ANÁLISE Porque acreditamos Visão, imagem Pedro Brandão no que acreditamos? De que é feita a nossa convicção? E como comunicamos o que sabemos, ou julgamos 020 021 ARQUITECTURA E VIDA saber? É fiável o nosso saber? São compreensíveis os nossos argumentos? Falamos para quem? Erros e mitos da imagem Em Julho as eleições para a Câmara de Lisboa monopolizaram a atenção sobre os temas urbanos, que julgáramos estaria A propósito de convicção, comunicação e cidade ocupada no espectáculo da Trienal de Arquitectura de Lisboa. Confortável explicação para o incómodo: na opinião sobre a cidade, hoje, não há protagonismo dos profissionais do desenho da cidade (nem por via das eleições nem Texto Pedro Brandão arquitecto por via da Trienal, a nossa opinião é perceptível). A propósito de convicção, comunicação e cidade Atingiu-se a débacle, no governo da cidade e também no papel (real ou imaginado) do arquitecto e de outros profissionais do desenho. Quando a coisa urbana desceu tão baixo e há tanto para fazer, somos ainda considerados como “estilistas” da cidade, essencialmente ocupados com a “imagem” (e connosco próprios). Porquê? Nos anos 80, no longo consolado em que Abecassis dirigiu a câmara teve várias vezes contra si os arquitectos, única voz em defesa de causas do espaço público, do património, da ribeirinha, da habitação. A opinião dos arquitectos tornou-se fonte de legitimação em matéria urbana. Nos anos 90, no primeiro mandato de Sampaio, assistimos à renovação das estratégias urbanas para Lisboa, do primeiro Plano Director Municipal (PDM), dos projectos e planos prioritários, dos debates públicos abertos sobre vários temas… grande número de decisões foi informado pela opinião profissional, sobre como fazer e refazer a cidade. Acabou. Da Expo para cá, raras vezes se viu um movimento de participação cívica dos profissionais do desenho na cidade (o elevador do Castelo?…) e o círculo restrito de amigos, as direcções partidárias e os negócios, acabaram por estabelecer a lógica de outras influências, se não pior. Propomos, então, uma reflexão sobre a comunicação profissional, em duas vertentes – uma, a do erro, outra, a do mito. Em ambas há uma fragilidade, ou obstáculo, para que a nossa opinião possa ser compreendida como necessária e eticamente fundada. Na medida em que deixarmos de a ignorar, ou esconder, o que a fragilidade mostra ou esconde pode ser superado. Do erro – do “projecto-de-cidade” – à ideia genérica de Lisboa Nas poucas manifestações públicas da opinião profissional a propósito de Lisboa, qual é o tema comum? Diria, a “Identidade”. Estamos sempre preocupados com a preservação dos valores arquitectónicos e paisagísticos definidores da identidade urbana herdada. Mas a essas representações responde uma trivial realidade: quanto baste de sagrado (monumentos, bem conservados para o turismo) e quanto se possa de profano (condomínios com projectos de “qualidade”, a preços perversamente estratosféricos). A ideia genérica de Lisboa além de pobre é errónea: futuro e passado, numa só imagem, degradam-se mutuamente. As representações de Lisboa precisam de “acreditação” profissional. Temos por isso de reflectir sobre a consistência e inconsistência dos próprios discursos que, como profissionais, construímos. Aquela legitimação profissional hoje baseia-se num discurso neutro e genérico (tal como o discurso político). As passwords são: reabilitar, reanimar, naturalizar, atrair, sem que seja preciso ponderar a verdade e a mentira, o custo e o benefício, ou sequer “o que é hoje a cidade realmente”: • Orio está morto porque o porto está em crise de competitividade: há dias em que se contam pelos dedos de uma mão os barcos no Tejo; • • A Baixa está morta porque se afastaram os centros financeiros, desconcentraram-se as funções administrativas do Estado, e deu-se a vitória comercial dos novos locais de residência e das grandes superfícies, na periferia. A ideia genérica do discurso político e profissional, que ignora a escala metropolitana da cidade, é a promessa de recuperar a população que Lisboa perdeu nos últimos vinte anos, (nada menos que 250 mil), através do apoio à “reabilitação”. Perguntamos como: se é com a construção de dez áreas de dimensão e densidade igual à da Expo (que aloja 25 mil habitantes), no único terreno que sobra, o do actual aeroporto, ou se conseguiremos o “regresso” em tal quantidade, numas dezenas de milhar 1 1. Futuro e passado numa só imagem: sempre estamos Os discursos sobre a cidade. Em vez de se fundamentarem na realidade, nos papéis que Lisboa pode ocupar, na sua relação local, regional, nacional e global, os “projectos-de-cidade” hoje apelam ao domínio de uma ficção, ou representação (ver caixa “o erro de Koolhaas”). A partir da nostalgia do que já foi a cidade – a cidade histórica, a única que reconhecemos e investimos de identidade, declinamos o futuro a partir do passado: • OCentro é Património, representação de um passado (monumento) e também de um futuro (a economia do lazer e da cultura); • • Orio é História, margem, docas, porto, e ao mesmo tempo é imagem de um Futuro, “de qualidade” (o waterfront, dos iates e gin tónicos). preocupados com a preservação dos elementos definidores de uma identidade urbana herdada. Praça de Espelhos em Graz – imagem PB ANÁLISE 022 023 ARQUITECTURA E VIDA 2 O erro de Koolhaas: representações, imagens e modelos, na figuração do futuro. Rem Koolhaas publicou em 1994 Delirious NewYork – a retroactive manifesto for Manhattan. Usando a fórmula do manifesto, que nas profissões do desenho é uma tradicional forma de formação e comunicação do pensamento paradigmático (ou mítico), o autor faz um diagnóstico impressionista de uma situação urbana peculiar (Manhattan), do qual decorre, directamente, a construção de um modelo messiânico. No caso, o modelo de Koolhaas é o “projecto Manhattan”, como se ao desenho da cidade tivesse antecedido um “projecto”, ou uma ideia de cidade: a da “congestão” urbana, conceito que não define, mas que qualifica como um valor, que se viabiliza através do excesso, da permanente adição de novos objectos, numa base que tudo acolhe. Para ilustrar a “fundamentação histórica” do modelo recorre a uma alegoria, baseada num falso mapa da cidade: em 1672, 50 anos depois da compra da ilha pelos holandeses, um gravador francês desenha um mapa da Nova Amesterdão, que Koolhaas reproduz, interpretando a “criatividade” do gravador como uma 2. O falso mapa de New Amsterdam publicado em “Delirious NewYork”, RK, e o verdadeiro, na gravura de Lisboa, do século XVI, em “Atlas de Lisboa” representação idealizada de uma cidade portuária europeia – amuralhada, com equipamentos dispostos na sua área central, castelo, catedral, instalações portuárias, armazéns. Mas que, além disso, conteria em si o carácter fundador do “projecto-Manhattan”: no exterior das muralhas, numa malha urbana regular (cortada por uma diagonal – futura Broadway) residiria uma enorme população, que espalhada num tecido planimétrico preciso, mas numa conformação altimétrica arbitrária, poderia crescer indefinidamente até ocupar a totalidade do território. Acontece que Koolhaas (e eventualmente as suas fontes)2 não reconhece a verdadeira origem da gravura – trata-se na verdade de uma gravura de Lisboa, falsificada para responder à encomenda. A grelha é afinal a do Bairro Alto, a Broadway é a calçada do Combro e o Mar do Norte é o Tejo. Passe a anedota (o astro teórico do urbanismo pós-moderno dispensará a miudeza de reconhecer a história de uma das capitais europeias da época), podemos ver neste facto “erróneo” uma outra alegoria: a da instrumentalização, ou falsidade do discurso, nas representações da cidade. A representação do futuro numa cidade nova, desenhada por Manifesto ou pensamento mítico, baseiase numa ficção, numa ideia-slogan, neste caso ao serviço de um modelo apresentado como de rotura com a cidade europeia histórica. O falso mapa de Amesterdão-Lisboa, dupla alegoria, falácia, ou imagem reinventada, permite-nos duas perguntas: a) Como transformamos uma imagem numa ideia e uma ideia num modelo (ou no seu contrário)? b) Falta ainda a Lisboa uma imagem para a sua representação do futuro, ou ela está diante de nós, na realidade metropolitana exterior às “muralhas”? de fogos em edifícios devolutos? Trata-se de uma nova sobreocupação de casas com quartos alugados (negócio florescente na Lisboa de 70)? Ninguém tem resposta sólida. O que queremos é “acreditar”. Que de repente, os lisboetas deixarão as periferias onde foram procurar o que não encontram no centro, para vir encher as casas e as ruas da Baixa, alimentando lojas de charme e galerias de arte, como nas ricas cidades europeias. E encherão também os jardins infindáveis de 15 quilómetros de frente de água, com animações de ioga, leitura de poesia e milhões de barquinhos à vela no Tejo, onde milhões de jovens reaprenderão essa arte secular. Nada se passará assim. O que está à vista é outra forma de “reabilitação”, essa sim conivente com a verdadeira “expulsão” dos habitantes dos bairros: os condomínios em quarteirões gentrificados, beneficiando de favores e apoios públicos. É um erro, é imoral, mas ficamos todos sossegados. A propósito de convicção, comunicação e cidade O mito: o aeroporto e o “coração” da cidade, da ingenuidade às causas de futuro Com honrosas excepções, quem aparece a tecer armas pela localização do aeroporto, em nome do Ordenamento do Território e do Desenho Urbano (dentro ou fora da cidade, a Norte ou a Sul), ou a denunciar o desastre do Túnel de Santana (como artefacto estimulante da deslocação automóvel e destruidor do espaço público), são outros protagonistas: engenheiros, economistas, juristas, ecologistas, jornalistas… Quanto a arquitectos, paisagistas e outros profissionais do desenho, silêncio. A nossa opinião privilegia a esfera da consagração: edifícios e espaços excepcionais que “marcam”, “rasgos” que “atraem”, “gestos” que “põem no mapa”. Mitos nossos contemporâneos. Reduz-se o pensamento sobre o futuro da cidade aos clichés da Imagem da pósmodernidade: • O mito da Event city – a cultura institucional como imagem de cidade. A Trienal de Arquitectura/OA e o Estado do Mundo/Fundação Calouste Gulbenkian, o Museu 3 4 5 6 Berardo/Centro Cultural de Belém e as Sete Maravilhas1, apresentaram-se em Julho com credenciais de eventosglobais, capazes de “pôr Lisboa no mapa” – mas quem avalia o que daí resultou realmente para a cidade? • • O mito do desenho como Arte e “magia” – os “vazios urbanos”, tema da Trienal, lidos como “oportunidades” para regenerar a cidade, e nós profissionais, seus “preenchedores” (ver caixa “ego-trip e soundbite). Dali ninguém concluirá, porém, que há uma dimensão do desenho da cidade que convoca o antes (estratégia) e o depois (o uso), em ambas implicando-se o “Outro” como actor e ética de projecto. • • • Omito da “Imagem de Marca”. A marca seria a “nova” imagem da cidade, para consumo. Um substituto genérico de tudo: da utopia, da estratégia e mesmo da identidade. A marca é uma imagem construída (branding). Podemos construí-la com o “centro-comercial-a-céu-aberto”, com as residências para estudantes e universidades na Baixa, com as ciclovias, o verde e a frente ribeirinha, mas é um A ego-trip e o soundbite como mitos da comunicação em Arquitectura. Comunicar Arquitectura não é fácil. São os códigos técnicos da representação que não são acessíveis se não a iniciados3, a complexidade do assunto, a diversidade de destinatários… Mas será talvez nas nossas atitudes comunicacionais, como “emissores”, que temos a principal dificuldade: o jargão, o falar para o interior do grupo e para “árbitros” institucionalizados em vez de para o público comum, a postura autocentrada, a procura do efeito, a incapacidade de ouvir… Da Trienal podem-se assinalar algumas experiências muito boas (as mais interdisciplinares), às quais além de público faltou um ou outro acerto, para alcançarem o retorno que mereciam: - É o caso da excelente ideia gerida com o jornal Expresso, do projecto “feito em colaboração” com o leitor leigo (ideia experimentada em iniciativas da OA nos anos 90, então muito criticada), cujo resultado merecia maior destaque (foi publicada no semanário mas não constava na exposição, nem havia informação sobre o assunto no local); - É o caso da exposição “Europa”, com uma leitura da Arquitectura contemporânea portuguesa apoiada em clips do Festival da Eurovisão, do óptimo filme de Edgar Pêra sobre as “obras de regime” e do oportuno exercício interdisciplinar sobre a Paisagem Urbana, a propósito do destino a dar aos terrenos da Portela, que mereciam melhor explicitação e polemização; - É o caso, na Cordoaria, da mostra de um lote de “bons projectos” nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, mas comunicada ao contrário: não evidencia porque é que uma “rede” feita de objectos “excepcionais” é ineficaz para fazer a qualidade e urbanidade das periferias; - É o caso das exposições “Promotores” e “Cidades explodidas” em que o investimento comunicativo, posto em 3. Exposição “Europa – Arquitectura portuguesa em emissão” 4. Exposição “Paisagem”, 5 exercícios interdisciplinares em écrans plasma 5. Áreas Metropolitanas – excepcionalidade, em vez de urbanidade 6. Exposição “Promotores” – ambientes incomunicantes 7. Exposição “Paisagem”, flipbook com evolução (equipe Portas+Cheis) excesso na criação de ambientes, nos recusava a leitura dos conteúdos (recusando mesmo a luz e a distância), mutilando a relação emissor > mensagem > meio > receptor e que incluía, sem explicação, uma exposição de trabalhos do atelier do comissário). Lições de uma Trienal para se/quando houver a próxima: Muitas vezes iludimo-nos com a cultura mediática, como um mito, uma salvação: …se tivéssemos alguém capaz de interessar os media falando a linguagem das vedetas, ou a linguagem dos soundbites políticos… alcançaríamos a “visibilidade”. São bastantes as provas de que não é por aí. Tal como já não é uma Hadid, irrelevante como pessoa que pensa e inverosímil como pessoa que faz arquitectura, que serve para chamar público... é mesmo o potencial mediático da arquitectura que é hoje frequentemente usado, em proveito próprio, por quem era suposto dar o seu, em favor dela. Teremos de escolher outros paradigmas comunicacionais – talvez menos de ego-trips, talvez menos de soundbites e certamente bastante mais de convicção, generosa e alterocentrada, nas causas da arquitectura e outras profissões do desenho da cidade. 7 ANÁLISE 024 000 ARQUITECTURA E VIDA 8. Não pensamos, ou não dizemos o que pensamos? qual o tamanho da nossa cidade? O que significa o aeroporto na cidade de 3,5 milhões e100 km de diâmetro? Quantas cidades cabem na cidade? Imagem – Portela, Postal da época 9. Lá onde estão os habitantes da cidade real, estão as causas da cidade. Imagem PB 8 Notas: 1 – Por ordem da quantidade de público – de quase nenhum no primeiro a quase todo no último. Mais importante é perceber que mensagem passa, em cada caso, ou se passa alguma. Principalmente quando temos muitos meios e algumas ideias, como na Trienal, ficar aquém exige uma avaliação, para a aprendizagem e memória futura. 2 – Seja a fonte iconográfica, no Museum of the city of New York, ou a fonte bibliográfica, em Kouwenhoven J.A., “The Columbia Historical Portrait of New York”, Doubleday, referidas por RK. 3 – A exposição de Siza, um “trunfo” totalmente ineficaz como comunicação para o grande público – de nada serve, a um não profissional, mostrar edifícios com desenhos técnicos e maquetes abstractas (exibição das partituras). mito. O que é o “coração”? O que representam mesmo, para a vida real da cidade metropolitana, a Baixa e o centro histórico, o Tejo e o estuário? É só nessa substância, que estará o seu futuro como lugar central. Lisboa é outra coisa. Lisboa vai de Torres Vedras a Setúbal, terá 100 km de diâmetro, mais de três milhões de habitantes, um aeroporto aberto a muitos mais. É diversa e conflitual, entre vários actores e interesses. Se quisermos olhar para esta Lisboa real, ela é hoje feita de uma imagem dual: da fachada dianteira, de que se alimentam a nostalgia e o turismo; e da imagem das traseiras, onde vive a esmagadora maioria dos habitantes. É a Lisboa de hoje e é também a de amanhã, para a qual temos de encontrar soluções com profissionalismo e convicção. Hoje, antes do desenho, falta-nos o desígnio, a causa. Lá, onde estão os habitantes em busca de urbanidade, estão causas da cidade. Para passar de uma identidade mítica (do passado e do futuro) a uma identidade de projecto para Lisboa, não podemos estar apenas do lado do “estético”, da “imagem”. Temos de assentar o pensamento reflexivo na constatação do extenso, poliformico, policentrico, diverso. Como saberemos lidar com a incerteza e o conflito, no espaço e no tempo? •T emos 60% de urbanos em Portugal (o maior crescimento em 30 anos na UE), a esmagadora maioria deles “peri-urbanos” – e agora? A receita da “reabilitação” resolverá a dualidade da cidade: a visível e a invisível, a dos ricos e a dos pobres, a nova e a velha? • • Residentes e utentes, estranhos e enraizados, locais e globais, um dia sairão à rua (como nos subúrbios de Paris…) e de que lado estaremos nós, profissionais da cidade, na nossa missão de prever e propor soluções? Terminamos contra a teoria e a prática ensimesmada, com duas reflexões em busca das dimensões éticas do urbano, e das profissões do desenho… e do que há a fazer: •T emos de compreender os reais factores de mutação em cada uma das dimensões do urbano, não apenas na da forma física (feita de cheios e vazios), mas também na dimensão económica (a Urbe, espaço de geração de valor, diferenciação, oferta-procura), na dimensão social (a Polis, espaço de interacções – a segurança, a entreajuda, a comunicação), e na dimensão da ética (a Civis, os valores dos intercâmbios civilizacionais). Se não sabemos disso o suficiente, temos de aprender. • • Onde se cultiva hoje o sentido de causa, no desenho da cidade? Na Ordem e outras associações profissionais? No ensino da Arquitectura e de outras disciplinas do desenho? Na crítica e no debate de ideias? Muito pouco, se não o oposto. Os lugares onde a cultura reflexiva do desenho deveria ter lugar de honra reproduzem hoje o modelo da coutada: o discurso para consumo interno, renitente à interacção com o Outro. Jogos viciados. Se as nossas próprias “casas” estão doentias temos de as abrir a um novo ar. 9