SEMIÁRIDO
CENTRO DE REFERÊNCIA EM DIREITOS HUMANOS SEMIÁRIDO
Consulta-nos o coletivo Gênero e Diversidade na Escola – Mossoró acerca da
compatibilidade material e formal do Projeto de Lei nº 118/2015 – GVNSS com o sistema de
proteção e garantia de direitos fundamentais e humanos da Constituição da República de 1988
e leis vigentes no país, especificamente, as normas gerais sobre educação e direitos das
crianças e adolescentes.
O Projeto de Lei n° 118/2015 – GVNSS que “Dispõe sobre proibição da ideologia de
gênero, que substitui o termo sexo por gênero, no plano municipal de educação e sua grade
curricular de ensino em sala de aula”, foi aprovado pela Câmara Municipal de Mossoró, Estado
do Rio Grande do Norte e encontra-se sob a análise do Poder Executivo Municipal de Mossoró
para sanção ou veto.
Em suma, a referida iniciativa determina, no âmbito do sistema municipal de ensino, a
proibição da inclusão do que qualifica como ideologia de gênero, atendendo aos seguintes
princípios: a) reconhecimento da vulnerabilidade do educando na relação do aprendizado; b)
educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos da liberdade de
consciência e crença; e c) direitos dos pais a que seus filhos menores recebam educação moral
que está de acordo com suas próprias convicções.
Veda ainda a atitude do que denomina prática de doutrinação ideológica de gênero
em sala de aula, como a veiculação, em disciplina obrigatória de grade curricular do Município
de Mossoró, de conteúdos que possam estar em conflito com as convicções morais e religiosas
de estudantes ou de seus pais ou responsáveis; bem como enfatiza que o professor não
abusará da inexperiência, da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos, com o
objetivo de cooptá-los para a corrente ideológica de gênero.
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Por fim, condiciona a frequência de estudantes a palestras ou eventos facultativos que
tratem de conteúdos daquilo que qualifica como ideologia de gênero à prévia e expressa
autorização de pais ou responsáveis.
Eis o que havia a relatar. Passa-se à análise da proposta legislativa em comento.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 3º, inciso IV, evidencia que um dos
objetivos da República é promover o bem de todos, independentemente de raça, cor, sexo,
religião, idade, não admitindo quaisquer formas negativas de discriminação em relação não
somente a esses aspectos mencionados da esfera da vida humana, mas também quaisquer
outros tipos de preconceitos.
Assim, o Constituinte nada mais fez do que estabelecer o princípio da isonomia como
umas das finalidades centrais para construção de uma sociedade livre, justa e solidária, cujos
fundamentos se assentam na cidadania, no pluralismo e na dignidade da pessoa humana.
O que o Projeto de Lei nº 118/2015 denomina de “ideologia de gênero” ou “corrente
ideológica de gênero” nada mais é do que uma maneira pejorativa de se referir a corolário do
princípio da isonomia, ou seja, à igualdade de gênero. Portanto, preliminarmente, vale dizer
que a proibição inscrita no artigo 1º da proposta afronta, de pronto, objetivo da República,
axioma constitucional, não sendo assim possível advogar que materialmente lei ou ato
normativo outro possa criar restrições ou ingerências sobre conteúdos que veiculem a adoção
de princípio normativo, vetor para a efetivação do sistema de proteção e garantias de direitos
fundamentais e humanos albergados pela Constituição de 1988.
São vários os dispositivos constitucionais que claramente asseguram a igualdade de
gênero, a fim de criar obstáculos a discriminações e preconceitos, bem como modificar o
quadro histórico de sobreposição de gêneros e de identidades sexuais, alicerçado em institutos
e instituições jurídicas anteriores ao Estado Democrático de Direito inaugurado pela
Constituição Federal de 1988, que reforçaram ao longo de séculos violências físicas, simbólicas,
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psicológicas, sexuais, patrimoniais e morais contra mulheres e pessoas LGBT’s (Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e transexuais).
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A Constituição de 1988 garante a igualdade entre homens e mulheres (artigo 5º, inciso
I) em todos os âmbitos da vida, bem como na seara da família (artigo 226, § 3º), reconhecendo
a união estável como entidade familiar, prevendo sua participação no planejamento familiar
(art. 226, § 7º) e enunciando que direitos e deveres referentes à sociedade conjugal serão
exercidos igualitariamente (art. 226, § 5º); institui o dever estatal de coibir a violência
doméstica, em particular contra as mulheres (artigo 226, § 8º); proíbe a discriminação por
motivo de sexo no mercado de trabalho, protegendo as mulheres por meio de estímulos
específicos, nos termos da lei (artigo 7º, incisos XX e XXX), entre várias outras normas
constitucionais que atestam a igualdade de gênero como princípio norteador da legislação
infraconstitucional.
Além disso, o Supremo Tribunal Federal já asseverou que igualdade de gênero não se
resume apenas ao plano da isonomia entre homens e mulheres, mas contempla, da mesma
forma, o âmbito da orientação e da identidade sexual de cada um deles (ADI 4.277 e ADPF 132,
Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 5-5-2011, Plenário, DJE de 14-10-2011.). A proibição ao
preconceito trata-se, como firmado pelo Guardião da Constituição de 1988, de capítulo
referente ao constitucionalismo fraternal, e uma deferência ao pluralismo como valor
sociopolítico e cultural da sociedade brasileira.
Portanto, não há como coibir, sob pena de violação da própria Constituição de 1988, a
igualdade de gênero; é um contra senso que referenda relações verticalizadas e hierárquicas
entre os gêneros e nega a isonomia como emanação e irradiação do princípio da dignidade da
pessoa humana sobre todo o ordenamento jurídico. Nesse sentido, parece impossível conceber
como constitucional o Projeto de Lei nº 118/2015.
Assim, desautorizar o sistema público municipal de ensino, a educadore/as,
professore/as e estudantes a debater, discutir, analisar, estudar, pesquisar, e compartilhar
conteúdos acerca da igualdade de gênero no ambiente escolar é pôr em dúvida e contrariar a
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própria Constituição Federal de 1988 em um de seus maiores alicerces. Ainda mais quando o
artigo 205 enfatiza que é dever, tanto do Estado como da família, promover e incentivar a
educação, com colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa e o
preparo para o exercício da cidadania.
A igualdade de gênero é princípio que convive com outros direitos fundamentais como
a liberdade religiosa, de consciência ou de crença. Não são valores antagônicos ou
hierarquicamente superiores entre uns e outros.
Sob este aspecto, é importante ressaltar que a Constituição Federal de 1988 reconhece
a liberdade religiosa ao tempo em que inaugura um Estado Democrático de Direito laico. Em
particular, isso significa que o Estado brasileiro não adota, nem se sujeita, a nenhum credo ou
religião, tampouco pode obrigar a qualquer cidadão que professe determinada fé ou crença.
Concomitantemente, é garantido a todos e todas os direitos de liberdade religiosa, de crença
ou de consciência.
A laicidade é um princípio que declara que será respeitada a autonomia de quem crê e
de quem não crê em determinada em religião, crença ou profissão de fé, em consonância com
a isonomia e o princípio da não discriminação.
Em sua outra vertente, complementar a esta, está a adoção da não-confessionalidade
do Estado brasileiro, proibindo em suas instituições, em todos os poderes e esferas federadas,
por exemplo, o estabelecimento de cultos religiosos ou igrejas, subvenções a elas destinadas,
assim como também causar embaraço ao funcionamento ou manter com eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração
de interesse público. Dessa forma, não se coaduna com a própria liberdade religiosa a adoção
pelo Estado brasileiro de símbolos de qualquer religião ou crença, bem como o direcionamento
da educação pública para um ensino confessional seja de que natureza for.
Nesse sentido, o Estado brasileiro não pode condicionar a prestação dos serviços de
educação com base em diretrizes religiosas. Segundo os princípios da educação nacional,
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conforme o artigo 206 da Constituição de 1988, o ensino no Brasil será baseado na liberdade de
aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e no pluralismo de
ideias e de concepções pedagógicas.
Ao condicionar a todos e todas estudantes da rede pública questões atinentes sobre
igualdade de gênero à liberdade particular de consciência e de crença de um determinado
grupo de discentes e às convicções morais de seus pais ou responsáveis, o artigo 1º do Projeto
de Lei nº 118/2015, em verdade, viola a própria liberdade religiosa, o princípio da laicidade e o
princípio da não-confessionalidade.
O pluralismo de ideias, a diversidade cultural, a tolerância e o respeito a crenças,
religiões, profissões de fé, pressupõem, no seu âmbito de proteção, o reconhecimento de
múltiplas e variadas formas de credo, manifestação e expressão do pensamento, em igual
dignidade. Proibições e privações desta natureza, dentro do sistema público de ensino,
impedem a convivência harmônica e o entendimento entre os grupos formadores da sociedade
brasileira.
O Projeto de Lei nº 118/2015 criará, ao arrepio da Constituição de 1988, diferenciações
negativas cujo propósito não é equilibrar situações fáticas existentes, mas criar fraturas e
divisões no sistema público de ensino a partir de convicções religiosas, o que contribuirá para
agravar desigualdades de tratamento já existentes nas próprias instituições de ensino. Em vez
de erradicar a intolerância, reforçar-lhe-á.
É dever do Estado, assim como respeitar, garantir e proteger a liberdade religiosa,
prestar educação a todos e todas que dela necessitem. Não pode, baseado na religião ou credo
de estudantes, pais e responsáveis, proibir ou impedir circulação de conteúdos de um princípio
normativo de estatura constitucional que vincula não apenas os poderes estatais, mas também
os particulares (eficácia horizontal dos direitos fundamentais).
Proibições e restrições criadas a partir de convicções particulares não tem o condão de
obrigar a terceiros a fim de que os privem de direitos de igual estatura, como o direito à
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educação, à cultura e à informação. Assim, de acordo com o artigo 210, § 1º, da Constituição de
1988, como o ensino religioso não é obrigatório, a religião ou a fé de estudantes, educadores,
pais e responsáveis não tem o viés de censurar o acesso a conteúdos sobre igualdade de gênero
a outros e outras que dela não professam.
Embargar a igualdade de gênero, a pretexto de suposta atenção à liberdade religiosa e
de consciência, é admitir expressamente, no ordenamento jurídico, a desigualdade,
contrariando os objetivos da República. Credo, fé, crença, convicções morais, políticas e
religiosas não têm o condão de suspender a eficácia e a aplicabilidade imediata de princípios
fundamentais, ainda mais em distinções inconstitucionais, engendrando possíveis discursos do
ódio entre educadore/as, pais, responsáveis, educando/as. Isto é, não podem estimular,
provocar, veicular e incitar expressões, manifestações e referências degradantes e agressões
mútuas – inclusive condutas desta natureza são tipificadas como crime, conforme o artigo 20
da Lei nº 7.716, de 5 janeiro de 1989, Lei de Crimes contra o Racismo.
A regra em nosso Estado Democrático de Direito é justamente a contrária: não se pode
invocar liberdades fundamentais, sejam de que tipo for, a pretexto de justificar, fundamentar
ou fazer apologia de ideias preconceituosas ou discriminatórias, tal e qual o Supremo Tribunal
Federal deixou firmado no leading case Ellwanger (HC 82.424, Rel. p/ o ac. Min. Presidente
Maurício Corrêa, julgamento em 17-9-2003, Plenário, DJ de 19-3-2004.), precedente
importante contra a proliferação de discursos do ódio no Brasil.
Por oportuno, tratamento isonômico no qual se permita a inclusão da igualdade de
gênero em matérias da grade curricular não viola a liberdade religiosa. Regras universalizantes
adotadas por instituições públicas de ensino, como currículo, período letivo, programas
educacionais, horários, disciplinas, frequência e avaliações não implicam em desrespeito à
crença ou religião de nenhum estudante.
O Supremo Tribunal Federal confirma esta tese em julgado no qual foi suspensa a
tutela antecipada concedida a estudantes judeus que solicitaram realizar o Exame Nacional do
Ensino Médio (ENEM) em data diversa ao Shabat. Afirmou o relator, Ministro Gilmar Mendes,
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que “em mero juízo de delibação, pode-se afirmar que a designação de data alternativa para
realização dos exames não se revela em sintonia com o princípio da isonomia, convolando-se
em privilégio para um determinado grupo religioso”. (STA 389-AgR, Rel. Min. Presidente Gilmar
Mendes, julgamento em 3-12-2009, Plenário, DJE de 14-5-2010.)
Ao sustentar que a abordagem de questões relacionadas a gênero e diversidade
sexual, em âmbito escolar, afronta preceitos religiosos de foro íntimo, o Projeto de Lei nº
118/2015, defensor desse tipo de censura, poderia afirmar o mesmo quanto a maior parte dos
conteúdos científicos ministrados nas escolas. Tem-se, em verdade, uma inversão de valores,
com a submissão das liberdades científica, de expressão e religiosa, do direito à informação
dos/as estudantes, dentre outras prerrogativas fundamentais, aos postulados dogmáticos de
uma religião, crença ou fé específica, que, com esteio nesse raciocínio, pautariam os currículos
escolares e a atuação de professores e professoras.
Nesse quadro analítico, o artigo 2º do Projeto de Lei nº 118/2015, não apenas agride,
mas se constitui em verdadeira ameaça à liberdade profissional de ensinar e de expressão de
educadore/as, funcionando como censura prévia à educação nas escolas, o que não guarda
consonância com os incisos IX e XII do artigo 5º e inciso II do artigo 205 da Constituição de
1988. Por óbvio, esta afirmação tem em mente as condições peculiares de desenvolvimento de
crianças e adolescentes e a necessidade de uso de materiais e meios didáticos adequados a
cada faixa etária dos educandos assistidos pela rede pública municipal. Afinal, os profissionais
desta área realizam concurso específico, com conteúdos próprios, para atuar particularmente
com este público.
A proibição contida nesse dispositivo importa em censura prévia e controle
inconstitucional e ilícito da atividade docente. Corre-se, com a aprovação desta lei, não só o
risco de se criarem situações de assédio moral aos/às educadore/as, como também
institucionalizar indevidamente classificação de materiais pedagógicos e didáticos, inclusive de
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eventos curriculares e extracurriculares, criando um novo Índex1, conduta que não se coaduna
com o Estado Democrático de Direito.
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Precedente do Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria da Ministra Carmen Lúcia,
aponta para a importância da garantia da liberdade de expressão científica dos docentes que
aplica à liberdade de ensino em geral. No julgado referente à constitucionalidade da lei
brasileira de biossegurança, a Relatora afirma que esta liberdade se constitui em genuíno
direito de personalidade, afinal “O termo ‘ciência’, enquanto atividade individual faz parte do
catálogo dos direitos fundamentais da pessoa humana (inciso IX do art. 5º da CF). Liberdade de
expressão que se afigura como clássico direito constitucional-civil ou genuíno direito de
personalidade. Por isso que exigente do máximo de proteção jurídica, até como signo de vida
coletiva civilizada.”
Impedir, proibir ou excluir a igualdade de gênero do Plano Municipal de Educação
similarmente é incompatível com a liberdade de expressão científica e com os misteres do
Estado em desenvolver ambientes favoráveis à livre circulação de ideais e promover melhores
condições de convivência entre todos os cidadãos.
Além de se constituir como ingerência injustificável no âmbito de proteção de uma
série de direitos fundamentais da Constituição Federal de 1988, o Projeto de Lei nº 118/2015 –
GVNSS viola não apenas princípios basilares da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)
como, igualmente, afronta direitos enunciados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e
do Estatuto da Juventude.
Para a LDB, a educação abrange processo formativo que se desenvolve na convivência
humana, desde o âmbito da vida familiar até a integração junto à sociedade civil (art. 1º). São
princípios básicos da Educação Nacional, dentre outros, a liberdade de aprender, ensinar,
pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber, o pluralismo de ideias e de
concepções pedagógicas e o respeito à liberdade e o apreço à tolerância (art. 3º, incisos II, III e
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Lista de livros proibidos pela Igreja Católica Apostólica Romana, usada como censura moral de obras durante as
Idades Média e Moderna.
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IV) – pela técnica legislativa, não à toa que estes valores normativos estão enumerados dentro
de um sequenciamento lógico, a fim de evidenciar sua íntima relação; igualmente enunciam
princípios de repetição/reprodução obrigatória do artigo 206 da Constituição de 1988.
Para o sistema de ensino público brasileiro, criado pela Constituição de 1988, somente
a observância e a efetivação desses princípios podem proporcionar a crianças e adolescentes o
gozo pleno do direito fundamental à educação, assegurando-se-lhes todas as oportunidades e
facilidades, a fim de lhes propiciar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social,
em condições de liberdade e de dignidade (artigo 3º e 4º do ECA).
Igualmente, o Estatuto da Juventude, em seu artigo 3º, enuncia que as políticas
públicas voltadas para os jovens, baseiam-se, dentre outros princípios, na promoção da vida
segura, da cultura da paz, da solidariedade e da não discriminação, enfatizando o respeito à
identidade e à diversidade individual e coletiva.
A supressão, a omissão e a proibição de práticas pedagógicas e educacionais, por meio
de leis ou quaisquer outros atos normativos, que invizibilizam o conteúdo do princípio
fundamental da isonomia contrariam todas essas disposições do ordenamento jurídico
brasileiro, bem como contribuem para perpetuar situações de intolerância, de condutas
violentas e opressoras, baseadas em preconceitos e discriminações negativas de gênero
combatidas pelo Poder Constituinte Originário.
O Município, cuja competência constitucional é universalizar obrigatória e
prioritariamente, com apoio do Estado e da União, o ensino fundamental da educação básica e
da educação infantil (artigo 30, VI c/c artigo 211, §§ 2º e 4), não pode, em seu Plano Municipal
de Educação, legislar, deliberada e contrariamente, a deveres previstos pela Constituição de
1988 e por normas gerais, válidas, vigentes e eficazes, estabelecendo norma restritiva que
suspendem a força normativa e vinculante de princípios fundamentais, os quais vinculam não
apenas os órgãos e poderes estatais, mas, também, os particulares, ou seja, toda sociedade
civil. Afinal, trata-se de proibição dirigida ao sistema municipal de ensino.
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A manutenção da proibição implica em desvio de uma das próprias finalidades da
educação básica, qual seja a de assegurar ao educando a formação comum indispensável para o
exercício da cidadania (artigo 22 da LDB), teleologia inscrita no artigo 53 do ECA que prescreve
o direito à educação a crianças e adolescentes, visando ao pleno desenvolvimento de sua
pessoa e ao preparo para o exercício da cidadania.
O Projeto de Lei em comento subverte esta ótica, pois, ao proibir a inserção do debate
sobre a igualdade de gênero como estratégia no PME de Mossoró, impossibilita a infância e a
juventude de compreender noções de respeito à dignidade da pessoa humana, de
reconhecimento de sujeitos de direito e de respeito e tolerância a suas identidades, de
pluralismo e diversidade de valores sociais e culturais, de reconhecimento de diferenças
positivas e negativas, bem como ideias sobre alteridade, solidariedade, paz e justiça social,
direitos fundamentais (humanos) de terceira e quarta dimensão.
Em síntese, não há cidadania sem isonomia, seja ela de gênero ou de qualquer outra
natureza. A restrição inconstitucional ao tema da igualdade de gênero no PME de Mossoró
ainda conta com outras afrontas diretas à LDB, ao ECA e ao Estatuto da Juventude.
Em primeiro lugar, a vedação de práticas pedagógicas ou conteúdos que tratem da
igualdade de gênero em sala de aula ou a partir da grade curricular choca-se com o enunciado
no artigo 27 da Lei das Diretrizes e Bases da Educação que atesta a difusão de valores
fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem
comum e à ordem democrática como uma das diretrizes que devem ser observadas na
construção dos conteúdos curriculares da educação básica. A proibição contida na proposta
legislativa em questão sequer leva em consideração esta norma programática.
O que dizer então de um dos objetivos do ensino fundamental, inscrito no inciso IV do
artigo 32, qual seja o de fortalecer os vínculos e laços de solidariedade humana e de tolerância
recíproca em que se assenta a vida social? Qual a compatibilidade desses dispositivos com
projeto que nega a promoção da igualdade de gênero em âmbito escolar? Nenhuma.
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Em segundo lugar, a própria LDB reforça, em seu artigo 26, § 9º, que os currículos da
educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio de base nacional comum,
complementada pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e
dos educandos, deve contemplar conteúdos relativos aos direitos humanos, observadas a
produção e a distribuição de material didático adequado a crianças e adolescentes. Não há
como conceber minimamente cidadania ou direitos humanos sem o princípio da isonomia,
consubstanciado aqui na igualdade de gênero, atacada pela proposta legislativa em análise.
Na Seção IV do Estatuto da Juventude, destinada exclusivamente ao direito à
diversidade e à igualdade de jovens, o artigo 18 enumera como algumas das ações do poder
público para efetivação desses direitos justamente (incisos III, V e VI): a) inclusão de temas
sobre questões étnicas, raciais, de deficiência, de orientação sexual, de gênero e de violência
doméstica e sexual praticada contra a mulher na formação dos profissionais de educação; b)
inclusão, nos conteúdos curriculares, de informações sobre a discriminação na sociedade
brasileira e sobre o direito de todos os grupos e indivíduos a tratamento igualitário perante a
lei; e c) inclusão, nos conteúdos curriculares, de temas relacionados à sexualidade, respeitando
a diversidade de valores e crenças.
Aliás, a promoção da igualdade de gênero trata-se de ação programática de objetivo
estratégico da Diretriz 19 do Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3 (Decreto
Federal nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009) que estabelece que a inclusão da temática de
educação e cultura em direitos humanos nas escolas de educação básica e em instituições
formadoras integrarão as diretrizes curriculares de todos os seus níveis e modalidades, a fim de
promover o respeito das diversidades de gênero, orientação sexual, identidade de gênero,
geracional, étnico-racial, religiosa, com educação igualitária, não discriminatória e democrática.
Vê, nesse sentido, mais uma vez, que o projeto de lei em destaque contraria vetor da educação
básica de há muito reconhecida juridicamente como política pública nacional.
Ademais, o artigo 2º e seus parágrafos constantes no Projeto de Lei nº 118/2015 ainda
se qualificam como verdadeiros obstáculos à concretização do direito fundamental à
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informação de crianças e adolescentes. Que outra interpretação seria possível quando a
supressão e a omissão da igualdade de gênero no sistema municipal de Ensino de Mossoró, tal
e qual prevista nos dispositivos em destaque, contrariam expressamente a determinação do
artigo 71 do ECA, de que toda criança e adolescente, respeitada sua condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento, tem direito à informação?
Sem perder de vista a condição peculiar de desenvolvimento de crianças e
adolescentes, bem como as prevenções especiais e restrições legais previstas no ECA, a esses
sujeitos é assegurado, assim como a qualquer cidadão, o direito de ser informado, obter dados
e participar ativamente dos processos de ensino e aprendizagem nas escolas.
Ao eliminar dos currículos e de quaisquer estratégias educacionais questões
relacionadas a gênero e diversidade sexual e condicionar à autorização dos/as pais/mães ou
responsáveis o acesso de crianças e adolescentes a informações relacionadas aos temas, o
Projeto de Lei nº 118/2015 trata educandos/as crianças e adolescentes como objetos,
repositórios de conteúdos selecionados de forma heteronômica, com vistas ao controle do que
devem ser e de como devem pensar – o inverso do que prezam o ECA e os preceitos
educacionais vigentes no país.
A educação escolar, conforme expresso nos Parâmetros Curriculares Nacionais, deve
promover “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e
o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”. De que maneira se
poderia alcançar esse objetivo caso o Município adote como parâmetro legal para a educação a
censura prévia aos temas gênero e diversidade sexual, fruto, em última análise, da
inconstitucional invasão do espaço público estatal por preceitos religiosos?
Assumir esse caminho seria o primeiro passo do Município de Mossoró a um
retrocesso em termos educacionais e sociais. Décadas de construções pedagógicas e
aperfeiçoamento de políticas públicas seriam desfeitas, em rumo frontalmente contrário à
Constituição de 1988 e a todo o arcabouço normativo que regulamenta seus dispositivos.
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Por oportuno, alerta-se que não há apenas contrariedade das normas gerais sobre
educação já referidas, o Projeto de Lei nº 118/2015 se imiscui e procura suceder diretrizes e
bases da educação nacional, cuja competência para atribuição é privativa da União, de acordo
com o artigo 22, inciso XXIV, da Constituição de 1988. A proposta legal em análise extrapola,
portanto, a competência municipal concorrente, prevista no artigo 24, inciso IX, da Constituição
da República de 1988. Por conseguinte, ao invadir seara legislativa de outra esfera federada, a
aprovação deste projeto incorrerá, de igual modo às incompatibilidades materiais, em vício de
inconstitucionalidade, neste caso formal.
Pelas razões de interesse público, inconstitucionalidades e ilegalidades acima expostas,
o Centro de Referência de Direitos Humanos da Universidade Federal Rural do Semi-Árido
recomenda ao Exmo. Prefeito de Mossoró que vete, na sua integralidade, o Projeto de Lei nº
118/2015 – GVNSS, que dispõe sobre proibição da ideologia de gênero, que substitui o termo
sexo por gênero, no plano municipal de educação e sua grade curricular de ensino em sala de
aula, a fim de concretizar os objetivos da Constituição da República de 1988 de construir uma
sociedade sem discriminações de quaisquer origens, justa e solidária, promovendo o
pluralismo, a diversidade e a cidadania, e contribuindo com a educação local, para diminuição
futura e atual dos índices de violação de direitos que envolvam afronta à igualdade de gênero.
Mossoró, 14 de julho de 2015.
Me. Oona de Oliveira Caju
Coordenadora do CRDH Semiárido
Professora do Curso de Direito da UFERSA
Me. Rodrigo Vieira Costa
Coordenador Adjunto do CRDH Semiárido
Professor do Curso de Direito da UFERSA
Me. Gilmara Joane Macêdo de Medeiros
Membro do Conselho Consultivo do CRDH Semiárido
Professora do Curso de Direito da UFERSA
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO (UFERSA)
AV. FRANCISCO MOTA, 572 – CAMPUS LESTE
ANTIGA SUTIC - BAIRRO COSTA E SILVA
MOSSORÓ-RN | CEP: 59.625-900
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Mossoró acerca da compatibilidade material e formal do Projeto de L