SEMIÁRIDO CENTRO DE REFERÊNCIA EM DIREITOS HUMANOS SEMIÁRIDO Consulta-nos o coletivo Gênero e Diversidade na Escola – Mossoró acerca da compatibilidade material e formal do Projeto de Lei nº 118/2015 – GVNSS com o sistema de proteção e garantia de direitos fundamentais e humanos da Constituição da República de 1988 e leis vigentes no país, especificamente, as normas gerais sobre educação e direitos das crianças e adolescentes. O Projeto de Lei n° 118/2015 – GVNSS que “Dispõe sobre proibição da ideologia de gênero, que substitui o termo sexo por gênero, no plano municipal de educação e sua grade curricular de ensino em sala de aula”, foi aprovado pela Câmara Municipal de Mossoró, Estado do Rio Grande do Norte e encontra-se sob a análise do Poder Executivo Municipal de Mossoró para sanção ou veto. Em suma, a referida iniciativa determina, no âmbito do sistema municipal de ensino, a proibição da inclusão do que qualifica como ideologia de gênero, atendendo aos seguintes princípios: a) reconhecimento da vulnerabilidade do educando na relação do aprendizado; b) educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos da liberdade de consciência e crença; e c) direitos dos pais a que seus filhos menores recebam educação moral que está de acordo com suas próprias convicções. Veda ainda a atitude do que denomina prática de doutrinação ideológica de gênero em sala de aula, como a veiculação, em disciplina obrigatória de grade curricular do Município de Mossoró, de conteúdos que possam estar em conflito com as convicções morais e religiosas de estudantes ou de seus pais ou responsáveis; bem como enfatiza que o professor não abusará da inexperiência, da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para a corrente ideológica de gênero. UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO (UFERSA) AV. FRANCISCO MOTA, 572 – CAMPUS LESTE ANTIGA SUTIC - BAIRRO COSTA E SILVA MOSSORÓ-RN | CEP: 59.625-900 FONE: (84) 3317-8266 E-MAIL: [email protected] SITE: crdhmossoro.wix.com/crdhsemiarido 1 SEMIÁRIDO Por fim, condiciona a frequência de estudantes a palestras ou eventos facultativos que tratem de conteúdos daquilo que qualifica como ideologia de gênero à prévia e expressa autorização de pais ou responsáveis. Eis o que havia a relatar. Passa-se à análise da proposta legislativa em comento. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 3º, inciso IV, evidencia que um dos objetivos da República é promover o bem de todos, independentemente de raça, cor, sexo, religião, idade, não admitindo quaisquer formas negativas de discriminação em relação não somente a esses aspectos mencionados da esfera da vida humana, mas também quaisquer outros tipos de preconceitos. Assim, o Constituinte nada mais fez do que estabelecer o princípio da isonomia como umas das finalidades centrais para construção de uma sociedade livre, justa e solidária, cujos fundamentos se assentam na cidadania, no pluralismo e na dignidade da pessoa humana. O que o Projeto de Lei nº 118/2015 denomina de “ideologia de gênero” ou “corrente ideológica de gênero” nada mais é do que uma maneira pejorativa de se referir a corolário do princípio da isonomia, ou seja, à igualdade de gênero. Portanto, preliminarmente, vale dizer que a proibição inscrita no artigo 1º da proposta afronta, de pronto, objetivo da República, axioma constitucional, não sendo assim possível advogar que materialmente lei ou ato normativo outro possa criar restrições ou ingerências sobre conteúdos que veiculem a adoção de princípio normativo, vetor para a efetivação do sistema de proteção e garantias de direitos fundamentais e humanos albergados pela Constituição de 1988. São vários os dispositivos constitucionais que claramente asseguram a igualdade de gênero, a fim de criar obstáculos a discriminações e preconceitos, bem como modificar o quadro histórico de sobreposição de gêneros e de identidades sexuais, alicerçado em institutos e instituições jurídicas anteriores ao Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição Federal de 1988, que reforçaram ao longo de séculos violências físicas, simbólicas, UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO (UFERSA) AV. FRANCISCO MOTA, 572 – CAMPUS LESTE ANTIGA SUTIC - BAIRRO COSTA E SILVA MOSSORÓ-RN | CEP: 59.625-900 FONE: (84) 3317-8266 E-MAIL: [email protected] SITE: crdhmossoro.wix.com/crdhsemiarido 2 SEMIÁRIDO psicológicas, sexuais, patrimoniais e morais contra mulheres e pessoas LGBT’s (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e transexuais). 3 A Constituição de 1988 garante a igualdade entre homens e mulheres (artigo 5º, inciso I) em todos os âmbitos da vida, bem como na seara da família (artigo 226, § 3º), reconhecendo a união estável como entidade familiar, prevendo sua participação no planejamento familiar (art. 226, § 7º) e enunciando que direitos e deveres referentes à sociedade conjugal serão exercidos igualitariamente (art. 226, § 5º); institui o dever estatal de coibir a violência doméstica, em particular contra as mulheres (artigo 226, § 8º); proíbe a discriminação por motivo de sexo no mercado de trabalho, protegendo as mulheres por meio de estímulos específicos, nos termos da lei (artigo 7º, incisos XX e XXX), entre várias outras normas constitucionais que atestam a igualdade de gênero como princípio norteador da legislação infraconstitucional. Além disso, o Supremo Tribunal Federal já asseverou que igualdade de gênero não se resume apenas ao plano da isonomia entre homens e mulheres, mas contempla, da mesma forma, o âmbito da orientação e da identidade sexual de cada um deles (ADI 4.277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 5-5-2011, Plenário, DJE de 14-10-2011.). A proibição ao preconceito trata-se, como firmado pelo Guardião da Constituição de 1988, de capítulo referente ao constitucionalismo fraternal, e uma deferência ao pluralismo como valor sociopolítico e cultural da sociedade brasileira. Portanto, não há como coibir, sob pena de violação da própria Constituição de 1988, a igualdade de gênero; é um contra senso que referenda relações verticalizadas e hierárquicas entre os gêneros e nega a isonomia como emanação e irradiação do princípio da dignidade da pessoa humana sobre todo o ordenamento jurídico. Nesse sentido, parece impossível conceber como constitucional o Projeto de Lei nº 118/2015. Assim, desautorizar o sistema público municipal de ensino, a educadore/as, professore/as e estudantes a debater, discutir, analisar, estudar, pesquisar, e compartilhar conteúdos acerca da igualdade de gênero no ambiente escolar é pôr em dúvida e contrariar a UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO (UFERSA) AV. FRANCISCO MOTA, 572 – CAMPUS LESTE ANTIGA SUTIC - BAIRRO COSTA E SILVA MOSSORÓ-RN | CEP: 59.625-900 FONE: (84) 3317-8266 E-MAIL: [email protected] SITE: crdhmossoro.wix.com/crdhsemiarido SEMIÁRIDO própria Constituição Federal de 1988 em um de seus maiores alicerces. Ainda mais quando o artigo 205 enfatiza que é dever, tanto do Estado como da família, promover e incentivar a educação, com colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa e o preparo para o exercício da cidadania. A igualdade de gênero é princípio que convive com outros direitos fundamentais como a liberdade religiosa, de consciência ou de crença. Não são valores antagônicos ou hierarquicamente superiores entre uns e outros. Sob este aspecto, é importante ressaltar que a Constituição Federal de 1988 reconhece a liberdade religiosa ao tempo em que inaugura um Estado Democrático de Direito laico. Em particular, isso significa que o Estado brasileiro não adota, nem se sujeita, a nenhum credo ou religião, tampouco pode obrigar a qualquer cidadão que professe determinada fé ou crença. Concomitantemente, é garantido a todos e todas os direitos de liberdade religiosa, de crença ou de consciência. A laicidade é um princípio que declara que será respeitada a autonomia de quem crê e de quem não crê em determinada em religião, crença ou profissão de fé, em consonância com a isonomia e o princípio da não discriminação. Em sua outra vertente, complementar a esta, está a adoção da não-confessionalidade do Estado brasileiro, proibindo em suas instituições, em todos os poderes e esferas federadas, por exemplo, o estabelecimento de cultos religiosos ou igrejas, subvenções a elas destinadas, assim como também causar embaraço ao funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. Dessa forma, não se coaduna com a própria liberdade religiosa a adoção pelo Estado brasileiro de símbolos de qualquer religião ou crença, bem como o direcionamento da educação pública para um ensino confessional seja de que natureza for. Nesse sentido, o Estado brasileiro não pode condicionar a prestação dos serviços de educação com base em diretrizes religiosas. Segundo os princípios da educação nacional, UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO (UFERSA) AV. FRANCISCO MOTA, 572 – CAMPUS LESTE ANTIGA SUTIC - BAIRRO COSTA E SILVA MOSSORÓ-RN | CEP: 59.625-900 FONE: (84) 3317-8266 E-MAIL: [email protected] SITE: crdhmossoro.wix.com/crdhsemiarido 4 SEMIÁRIDO conforme o artigo 206 da Constituição de 1988, o ensino no Brasil será baseado na liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e no pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. Ao condicionar a todos e todas estudantes da rede pública questões atinentes sobre igualdade de gênero à liberdade particular de consciência e de crença de um determinado grupo de discentes e às convicções morais de seus pais ou responsáveis, o artigo 1º do Projeto de Lei nº 118/2015, em verdade, viola a própria liberdade religiosa, o princípio da laicidade e o princípio da não-confessionalidade. O pluralismo de ideias, a diversidade cultural, a tolerância e o respeito a crenças, religiões, profissões de fé, pressupõem, no seu âmbito de proteção, o reconhecimento de múltiplas e variadas formas de credo, manifestação e expressão do pensamento, em igual dignidade. Proibições e privações desta natureza, dentro do sistema público de ensino, impedem a convivência harmônica e o entendimento entre os grupos formadores da sociedade brasileira. O Projeto de Lei nº 118/2015 criará, ao arrepio da Constituição de 1988, diferenciações negativas cujo propósito não é equilibrar situações fáticas existentes, mas criar fraturas e divisões no sistema público de ensino a partir de convicções religiosas, o que contribuirá para agravar desigualdades de tratamento já existentes nas próprias instituições de ensino. Em vez de erradicar a intolerância, reforçar-lhe-á. É dever do Estado, assim como respeitar, garantir e proteger a liberdade religiosa, prestar educação a todos e todas que dela necessitem. Não pode, baseado na religião ou credo de estudantes, pais e responsáveis, proibir ou impedir circulação de conteúdos de um princípio normativo de estatura constitucional que vincula não apenas os poderes estatais, mas também os particulares (eficácia horizontal dos direitos fundamentais). Proibições e restrições criadas a partir de convicções particulares não tem o condão de obrigar a terceiros a fim de que os privem de direitos de igual estatura, como o direito à UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO (UFERSA) AV. FRANCISCO MOTA, 572 – CAMPUS LESTE ANTIGA SUTIC - BAIRRO COSTA E SILVA MOSSORÓ-RN | CEP: 59.625-900 FONE: (84) 3317-8266 E-MAIL: [email protected] SITE: crdhmossoro.wix.com/crdhsemiarido 5 SEMIÁRIDO educação, à cultura e à informação. Assim, de acordo com o artigo 210, § 1º, da Constituição de 1988, como o ensino religioso não é obrigatório, a religião ou a fé de estudantes, educadores, pais e responsáveis não tem o viés de censurar o acesso a conteúdos sobre igualdade de gênero a outros e outras que dela não professam. Embargar a igualdade de gênero, a pretexto de suposta atenção à liberdade religiosa e de consciência, é admitir expressamente, no ordenamento jurídico, a desigualdade, contrariando os objetivos da República. Credo, fé, crença, convicções morais, políticas e religiosas não têm o condão de suspender a eficácia e a aplicabilidade imediata de princípios fundamentais, ainda mais em distinções inconstitucionais, engendrando possíveis discursos do ódio entre educadore/as, pais, responsáveis, educando/as. Isto é, não podem estimular, provocar, veicular e incitar expressões, manifestações e referências degradantes e agressões mútuas – inclusive condutas desta natureza são tipificadas como crime, conforme o artigo 20 da Lei nº 7.716, de 5 janeiro de 1989, Lei de Crimes contra o Racismo. A regra em nosso Estado Democrático de Direito é justamente a contrária: não se pode invocar liberdades fundamentais, sejam de que tipo for, a pretexto de justificar, fundamentar ou fazer apologia de ideias preconceituosas ou discriminatórias, tal e qual o Supremo Tribunal Federal deixou firmado no leading case Ellwanger (HC 82.424, Rel. p/ o ac. Min. Presidente Maurício Corrêa, julgamento em 17-9-2003, Plenário, DJ de 19-3-2004.), precedente importante contra a proliferação de discursos do ódio no Brasil. Por oportuno, tratamento isonômico no qual se permita a inclusão da igualdade de gênero em matérias da grade curricular não viola a liberdade religiosa. Regras universalizantes adotadas por instituições públicas de ensino, como currículo, período letivo, programas educacionais, horários, disciplinas, frequência e avaliações não implicam em desrespeito à crença ou religião de nenhum estudante. O Supremo Tribunal Federal confirma esta tese em julgado no qual foi suspensa a tutela antecipada concedida a estudantes judeus que solicitaram realizar o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em data diversa ao Shabat. Afirmou o relator, Ministro Gilmar Mendes, UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO (UFERSA) AV. FRANCISCO MOTA, 572 – CAMPUS LESTE ANTIGA SUTIC - BAIRRO COSTA E SILVA MOSSORÓ-RN | CEP: 59.625-900 FONE: (84) 3317-8266 E-MAIL: [email protected] SITE: crdhmossoro.wix.com/crdhsemiarido 6 SEMIÁRIDO que “em mero juízo de delibação, pode-se afirmar que a designação de data alternativa para realização dos exames não se revela em sintonia com o princípio da isonomia, convolando-se em privilégio para um determinado grupo religioso”. (STA 389-AgR, Rel. Min. Presidente Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2009, Plenário, DJE de 14-5-2010.) Ao sustentar que a abordagem de questões relacionadas a gênero e diversidade sexual, em âmbito escolar, afronta preceitos religiosos de foro íntimo, o Projeto de Lei nº 118/2015, defensor desse tipo de censura, poderia afirmar o mesmo quanto a maior parte dos conteúdos científicos ministrados nas escolas. Tem-se, em verdade, uma inversão de valores, com a submissão das liberdades científica, de expressão e religiosa, do direito à informação dos/as estudantes, dentre outras prerrogativas fundamentais, aos postulados dogmáticos de uma religião, crença ou fé específica, que, com esteio nesse raciocínio, pautariam os currículos escolares e a atuação de professores e professoras. Nesse quadro analítico, o artigo 2º do Projeto de Lei nº 118/2015, não apenas agride, mas se constitui em verdadeira ameaça à liberdade profissional de ensinar e de expressão de educadore/as, funcionando como censura prévia à educação nas escolas, o que não guarda consonância com os incisos IX e XII do artigo 5º e inciso II do artigo 205 da Constituição de 1988. Por óbvio, esta afirmação tem em mente as condições peculiares de desenvolvimento de crianças e adolescentes e a necessidade de uso de materiais e meios didáticos adequados a cada faixa etária dos educandos assistidos pela rede pública municipal. Afinal, os profissionais desta área realizam concurso específico, com conteúdos próprios, para atuar particularmente com este público. A proibição contida nesse dispositivo importa em censura prévia e controle inconstitucional e ilícito da atividade docente. Corre-se, com a aprovação desta lei, não só o risco de se criarem situações de assédio moral aos/às educadore/as, como também institucionalizar indevidamente classificação de materiais pedagógicos e didáticos, inclusive de UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO (UFERSA) AV. FRANCISCO MOTA, 572 – CAMPUS LESTE ANTIGA SUTIC - BAIRRO COSTA E SILVA MOSSORÓ-RN | CEP: 59.625-900 FONE: (84) 3317-8266 E-MAIL: [email protected] SITE: crdhmossoro.wix.com/crdhsemiarido 7 SEMIÁRIDO eventos curriculares e extracurriculares, criando um novo Índex1, conduta que não se coaduna com o Estado Democrático de Direito. 8 Precedente do Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria da Ministra Carmen Lúcia, aponta para a importância da garantia da liberdade de expressão científica dos docentes que aplica à liberdade de ensino em geral. No julgado referente à constitucionalidade da lei brasileira de biossegurança, a Relatora afirma que esta liberdade se constitui em genuíno direito de personalidade, afinal “O termo ‘ciência’, enquanto atividade individual faz parte do catálogo dos direitos fundamentais da pessoa humana (inciso IX do art. 5º da CF). Liberdade de expressão que se afigura como clássico direito constitucional-civil ou genuíno direito de personalidade. Por isso que exigente do máximo de proteção jurídica, até como signo de vida coletiva civilizada.” Impedir, proibir ou excluir a igualdade de gênero do Plano Municipal de Educação similarmente é incompatível com a liberdade de expressão científica e com os misteres do Estado em desenvolver ambientes favoráveis à livre circulação de ideais e promover melhores condições de convivência entre todos os cidadãos. Além de se constituir como ingerência injustificável no âmbito de proteção de uma série de direitos fundamentais da Constituição Federal de 1988, o Projeto de Lei nº 118/2015 – GVNSS viola não apenas princípios basilares da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) como, igualmente, afronta direitos enunciados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Estatuto da Juventude. Para a LDB, a educação abrange processo formativo que se desenvolve na convivência humana, desde o âmbito da vida familiar até a integração junto à sociedade civil (art. 1º). São princípios básicos da Educação Nacional, dentre outros, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e o respeito à liberdade e o apreço à tolerância (art. 3º, incisos II, III e 1 Lista de livros proibidos pela Igreja Católica Apostólica Romana, usada como censura moral de obras durante as Idades Média e Moderna. UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO (UFERSA) AV. FRANCISCO MOTA, 572 – CAMPUS LESTE ANTIGA SUTIC - BAIRRO COSTA E SILVA MOSSORÓ-RN | CEP: 59.625-900 FONE: (84) 3317-8266 E-MAIL: [email protected] SITE: crdhmossoro.wix.com/crdhsemiarido SEMIÁRIDO IV) – pela técnica legislativa, não à toa que estes valores normativos estão enumerados dentro de um sequenciamento lógico, a fim de evidenciar sua íntima relação; igualmente enunciam princípios de repetição/reprodução obrigatória do artigo 206 da Constituição de 1988. Para o sistema de ensino público brasileiro, criado pela Constituição de 1988, somente a observância e a efetivação desses princípios podem proporcionar a crianças e adolescentes o gozo pleno do direito fundamental à educação, assegurando-se-lhes todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes propiciar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (artigo 3º e 4º do ECA). Igualmente, o Estatuto da Juventude, em seu artigo 3º, enuncia que as políticas públicas voltadas para os jovens, baseiam-se, dentre outros princípios, na promoção da vida segura, da cultura da paz, da solidariedade e da não discriminação, enfatizando o respeito à identidade e à diversidade individual e coletiva. A supressão, a omissão e a proibição de práticas pedagógicas e educacionais, por meio de leis ou quaisquer outros atos normativos, que invizibilizam o conteúdo do princípio fundamental da isonomia contrariam todas essas disposições do ordenamento jurídico brasileiro, bem como contribuem para perpetuar situações de intolerância, de condutas violentas e opressoras, baseadas em preconceitos e discriminações negativas de gênero combatidas pelo Poder Constituinte Originário. O Município, cuja competência constitucional é universalizar obrigatória e prioritariamente, com apoio do Estado e da União, o ensino fundamental da educação básica e da educação infantil (artigo 30, VI c/c artigo 211, §§ 2º e 4), não pode, em seu Plano Municipal de Educação, legislar, deliberada e contrariamente, a deveres previstos pela Constituição de 1988 e por normas gerais, válidas, vigentes e eficazes, estabelecendo norma restritiva que suspendem a força normativa e vinculante de princípios fundamentais, os quais vinculam não apenas os órgãos e poderes estatais, mas, também, os particulares, ou seja, toda sociedade civil. Afinal, trata-se de proibição dirigida ao sistema municipal de ensino. UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO (UFERSA) AV. FRANCISCO MOTA, 572 – CAMPUS LESTE ANTIGA SUTIC - BAIRRO COSTA E SILVA MOSSORÓ-RN | CEP: 59.625-900 FONE: (84) 3317-8266 E-MAIL: [email protected] SITE: crdhmossoro.wix.com/crdhsemiarido 9 SEMIÁRIDO A manutenção da proibição implica em desvio de uma das próprias finalidades da educação básica, qual seja a de assegurar ao educando a formação comum indispensável para o exercício da cidadania (artigo 22 da LDB), teleologia inscrita no artigo 53 do ECA que prescreve o direito à educação a crianças e adolescentes, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa e ao preparo para o exercício da cidadania. O Projeto de Lei em comento subverte esta ótica, pois, ao proibir a inserção do debate sobre a igualdade de gênero como estratégia no PME de Mossoró, impossibilita a infância e a juventude de compreender noções de respeito à dignidade da pessoa humana, de reconhecimento de sujeitos de direito e de respeito e tolerância a suas identidades, de pluralismo e diversidade de valores sociais e culturais, de reconhecimento de diferenças positivas e negativas, bem como ideias sobre alteridade, solidariedade, paz e justiça social, direitos fundamentais (humanos) de terceira e quarta dimensão. Em síntese, não há cidadania sem isonomia, seja ela de gênero ou de qualquer outra natureza. A restrição inconstitucional ao tema da igualdade de gênero no PME de Mossoró ainda conta com outras afrontas diretas à LDB, ao ECA e ao Estatuto da Juventude. Em primeiro lugar, a vedação de práticas pedagógicas ou conteúdos que tratem da igualdade de gênero em sala de aula ou a partir da grade curricular choca-se com o enunciado no artigo 27 da Lei das Diretrizes e Bases da Educação que atesta a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática como uma das diretrizes que devem ser observadas na construção dos conteúdos curriculares da educação básica. A proibição contida na proposta legislativa em questão sequer leva em consideração esta norma programática. O que dizer então de um dos objetivos do ensino fundamental, inscrito no inciso IV do artigo 32, qual seja o de fortalecer os vínculos e laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social? Qual a compatibilidade desses dispositivos com projeto que nega a promoção da igualdade de gênero em âmbito escolar? Nenhuma. UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO (UFERSA) AV. FRANCISCO MOTA, 572 – CAMPUS LESTE ANTIGA SUTIC - BAIRRO COSTA E SILVA MOSSORÓ-RN | CEP: 59.625-900 FONE: (84) 3317-8266 E-MAIL: [email protected] SITE: crdhmossoro.wix.com/crdhsemiarido 10 SEMIÁRIDO Em segundo lugar, a própria LDB reforça, em seu artigo 26, § 9º, que os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio de base nacional comum, complementada pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos, deve contemplar conteúdos relativos aos direitos humanos, observadas a produção e a distribuição de material didático adequado a crianças e adolescentes. Não há como conceber minimamente cidadania ou direitos humanos sem o princípio da isonomia, consubstanciado aqui na igualdade de gênero, atacada pela proposta legislativa em análise. Na Seção IV do Estatuto da Juventude, destinada exclusivamente ao direito à diversidade e à igualdade de jovens, o artigo 18 enumera como algumas das ações do poder público para efetivação desses direitos justamente (incisos III, V e VI): a) inclusão de temas sobre questões étnicas, raciais, de deficiência, de orientação sexual, de gênero e de violência doméstica e sexual praticada contra a mulher na formação dos profissionais de educação; b) inclusão, nos conteúdos curriculares, de informações sobre a discriminação na sociedade brasileira e sobre o direito de todos os grupos e indivíduos a tratamento igualitário perante a lei; e c) inclusão, nos conteúdos curriculares, de temas relacionados à sexualidade, respeitando a diversidade de valores e crenças. Aliás, a promoção da igualdade de gênero trata-se de ação programática de objetivo estratégico da Diretriz 19 do Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3 (Decreto Federal nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009) que estabelece que a inclusão da temática de educação e cultura em direitos humanos nas escolas de educação básica e em instituições formadoras integrarão as diretrizes curriculares de todos os seus níveis e modalidades, a fim de promover o respeito das diversidades de gênero, orientação sexual, identidade de gênero, geracional, étnico-racial, religiosa, com educação igualitária, não discriminatória e democrática. Vê, nesse sentido, mais uma vez, que o projeto de lei em destaque contraria vetor da educação básica de há muito reconhecida juridicamente como política pública nacional. Ademais, o artigo 2º e seus parágrafos constantes no Projeto de Lei nº 118/2015 ainda se qualificam como verdadeiros obstáculos à concretização do direito fundamental à UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO (UFERSA) AV. FRANCISCO MOTA, 572 – CAMPUS LESTE ANTIGA SUTIC - BAIRRO COSTA E SILVA MOSSORÓ-RN | CEP: 59.625-900 FONE: (84) 3317-8266 E-MAIL: [email protected] SITE: crdhmossoro.wix.com/crdhsemiarido 11 SEMIÁRIDO informação de crianças e adolescentes. Que outra interpretação seria possível quando a supressão e a omissão da igualdade de gênero no sistema municipal de Ensino de Mossoró, tal e qual prevista nos dispositivos em destaque, contrariam expressamente a determinação do artigo 71 do ECA, de que toda criança e adolescente, respeitada sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, tem direito à informação? Sem perder de vista a condição peculiar de desenvolvimento de crianças e adolescentes, bem como as prevenções especiais e restrições legais previstas no ECA, a esses sujeitos é assegurado, assim como a qualquer cidadão, o direito de ser informado, obter dados e participar ativamente dos processos de ensino e aprendizagem nas escolas. Ao eliminar dos currículos e de quaisquer estratégias educacionais questões relacionadas a gênero e diversidade sexual e condicionar à autorização dos/as pais/mães ou responsáveis o acesso de crianças e adolescentes a informações relacionadas aos temas, o Projeto de Lei nº 118/2015 trata educandos/as crianças e adolescentes como objetos, repositórios de conteúdos selecionados de forma heteronômica, com vistas ao controle do que devem ser e de como devem pensar – o inverso do que prezam o ECA e os preceitos educacionais vigentes no país. A educação escolar, conforme expresso nos Parâmetros Curriculares Nacionais, deve promover “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”. De que maneira se poderia alcançar esse objetivo caso o Município adote como parâmetro legal para a educação a censura prévia aos temas gênero e diversidade sexual, fruto, em última análise, da inconstitucional invasão do espaço público estatal por preceitos religiosos? Assumir esse caminho seria o primeiro passo do Município de Mossoró a um retrocesso em termos educacionais e sociais. Décadas de construções pedagógicas e aperfeiçoamento de políticas públicas seriam desfeitas, em rumo frontalmente contrário à Constituição de 1988 e a todo o arcabouço normativo que regulamenta seus dispositivos. UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO (UFERSA) AV. FRANCISCO MOTA, 572 – CAMPUS LESTE ANTIGA SUTIC - BAIRRO COSTA E SILVA MOSSORÓ-RN | CEP: 59.625-900 FONE: (84) 3317-8266 E-MAIL: [email protected] SITE: crdhmossoro.wix.com/crdhsemiarido 12 SEMIÁRIDO Por oportuno, alerta-se que não há apenas contrariedade das normas gerais sobre educação já referidas, o Projeto de Lei nº 118/2015 se imiscui e procura suceder diretrizes e bases da educação nacional, cuja competência para atribuição é privativa da União, de acordo com o artigo 22, inciso XXIV, da Constituição de 1988. A proposta legal em análise extrapola, portanto, a competência municipal concorrente, prevista no artigo 24, inciso IX, da Constituição da República de 1988. Por conseguinte, ao invadir seara legislativa de outra esfera federada, a aprovação deste projeto incorrerá, de igual modo às incompatibilidades materiais, em vício de inconstitucionalidade, neste caso formal. Pelas razões de interesse público, inconstitucionalidades e ilegalidades acima expostas, o Centro de Referência de Direitos Humanos da Universidade Federal Rural do Semi-Árido recomenda ao Exmo. Prefeito de Mossoró que vete, na sua integralidade, o Projeto de Lei nº 118/2015 – GVNSS, que dispõe sobre proibição da ideologia de gênero, que substitui o termo sexo por gênero, no plano municipal de educação e sua grade curricular de ensino em sala de aula, a fim de concretizar os objetivos da Constituição da República de 1988 de construir uma sociedade sem discriminações de quaisquer origens, justa e solidária, promovendo o pluralismo, a diversidade e a cidadania, e contribuindo com a educação local, para diminuição futura e atual dos índices de violação de direitos que envolvam afronta à igualdade de gênero. Mossoró, 14 de julho de 2015. Me. Oona de Oliveira Caju Coordenadora do CRDH Semiárido Professora do Curso de Direito da UFERSA Me. Rodrigo Vieira Costa Coordenador Adjunto do CRDH Semiárido Professor do Curso de Direito da UFERSA Me. Gilmara Joane Macêdo de Medeiros Membro do Conselho Consultivo do CRDH Semiárido Professora do Curso de Direito da UFERSA UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMIÁRIDO (UFERSA) AV. FRANCISCO MOTA, 572 – CAMPUS LESTE ANTIGA SUTIC - BAIRRO COSTA E SILVA MOSSORÓ-RN | CEP: 59.625-900 FONE: (84) 3317-8266 E-MAIL: [email protected] SITE: crdhmossoro.wix.com/crdhsemiarido 13