Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS
ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
CRIMES, VOZ E SILÊNCIO EM SORRY
Rafael Santos de Sousa (graduando – UFS/ PICVOL)
No romance da escritora australiana Gail Jones, intitulado Sorry, a personagem
Perdita Keene reconta (em primeira e terceira pessoa) a história de si mesma, de sua
família e de todas as atrocidades e violências físicas e psicológicas que guiaram as
personagens a traumas, os quais se manifestaram em suas vozes ou na ausência
delas, construindo suas identidades. O silêncio que predomina na relação de Stella,
Nicholas e Perdita, a adquirida gagueira e posterior mudez desta última, a mudez de
Billy, a voz “dominadora” de Nicholas e a forma como Mary e os povos aborígenes são
vistos e descritos são elementos encontrados no texto que nos ajudam a construir
cada uma das personagens do romance.
Segundo Clarke, Brown e Hailey (apud Moaşa 2012): “Identity is subjectively
and publicly available through self-narratives that actors construct inside themselves or
in interactions with others” (p. 64). Este é o assunto que nos propomos a tratar neste
artigo: a forma como a voz e o silêncio são utilizados no romance Sorry para
representar as relações de poder existentes no período de colonização da Austrália,
através dos estudos pós-coloniais de Spivak e de obras de autores, como Moaşa e
Stone sobre voz e silêncio e o papel da memória na construção da identidade.
Em sua obra intitulada “Can the Subaltern Speak?”, Gayatri C. Spivak, através
de sua crítica aos teóricos pós-estruturalistas, em especial Gilles Deleuze, Michel
Foucault e Jacques Derrida, discute a questão da representatividade dos povos
subalternos pelos intelectuais. Baseada nos preceitos marxistas de Gramsci, a autora
traz à luz o questionamento a respeito do sujeito subalterno como autônomo:
Two senses of representation are being run together: representation
as ‘speaking for’, as in politics, and representation as ‘representation’, as in art or philosophy. Since theory is also only ‘action’,
the theoretician does not represent (speak for) the oppressed group.
Indeed, the subject is not seen as a representative consciousness
(one re-presenting reality adequately). (1988, p. 70)
O que a autora indiana se propõe a tratar em seu artigo é sobre a real
impossibilidade de se representar o outro, sobre a necessidade desse Outro (o sujeito
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criado pelo imaginário europeu como necessário para a existência do Sujeito europeu
imperialista) de se rebelar e falar por si só. Essa atitude eurocêntrica configura-se em
uma violência da Europa contra o Outro.
Ao tratar de questões como as da representatividade e da alteridade, Spivak
argumenta sobre importância de refletir sobre a mulher como sujeito subalterno para a
análise desses temas. Em suas palavras, “in seeking to learn to speak to (rather than
listen too or speak for) the historically muted subject of the subaltern woman, the
postcolonial intellectual systematically ‘unlearns’ female privilege” (1988, p. 91). Assim
ela passa a discorrer a respeito da representatividade da mulher e do seu
silenciamento causado em parte pelas políticas imperialistas britânicas, em parte pelas
elites (middle classes) indianas, tomando como exemplo o sati – ritual de
autoimolação, realizado por viúvas de algumas regiões da Índia, de atirar-se à pira na
qual o corpo do marido é cremado. Esse ritual fora abolido pelo Governo britânico em
1829, tendo sido decidido por eles e por homens representantes das castas mais altas
da sociedade indiana. A despeito da proibição desse ato, existem registros de
inúmeras exceções a essa lei (casos em que mulheres escolhiam, ou eram
implicitamente convencidas a acreditar que escolhiam, a autoimolação) quando o
sacrifício da mulher era economicamente interessante ao Governo, pois garantiria a
Ele a posse das terras deixadas à viúva. Esse silenciamento feminino foi duplo, pois
além de se dever ao fato de mulheres não possuírem uma voz (feminina)
representativa de suas vontades e pensamentos a respeito dessa lei ou qualquer
outra, os registros contendo informações a respeito das exceções cedidas a algumas
mulheres não possuem seus nomes ou quando possuem, apresentam grafia tão
equívoca que impossibilitam sua averiguação.
Como, portanto, construir uma identidade quando não se tem o direito a voz?
Como pode existir um sujeito agente em terrenos em que a violência física e
ideológica
do
Sujeito
eurocêntrico
obriga
o
subalterno
marginalizado
ao
silenciamento?
Sabe-se que a construção de nossas identidades muito depende da forma
como nós nos mostramos, ou melhor, como nos dizemos ao mundo. Contudo, o modo
como somos vistos não está intrinsecamente relacionado apenas com o que falamos
sobre nós mesmos e sobre o mundo, mas também com aquilo que não falamos –
assim como a linguagem, o silêncio é um elemento essencial na construção do eu.
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Todavia, deve-se entender voz e silêncio não como conceitos opostos, mas como
elementos essenciais para a existência um do outro. Segundo Moaşa, voz e silêncio
Should be considered as social activities, rather than a state of
being/state of affairs, since they are strategic and communicative
forms of interaction. Social actors are not voice or silence. Social
actors can have voice and silence; they can do both. (2012, p. 64)
Em Sorry o silenciamento das personagens se dá por problemas congênitos
em algumas ou como resultado de traumas, porém em outras esse silenciamento
apresenta-se como uma ação política e consciente, como uma metáfora ali inscrita
para simbolizar algo maior. No livro de Jones, esses símbolos ou analogias sobre voz
e silêncio se fazem muito presentes, seja para se referir às relações de
colonizador/colonizado, agressor/vítima, homem/mulher, por exemplo, ou para a
importância da linguagem (ou sua ausência) em suas diversas formas.
Dentre as primeiras analogias à violência e dominação presentes no livro podese citar as relações na família Keene. Entre Nicholas, Stella e Perdita os principais
sentimentos existentes são o silêncio e a indiferença. O casamento de Stella e
Nicholas parece-nos que se deu mais por uma mútua falta de perspectiva, não há um
sentimento ou um laço que os una. Eles não se admiram, não se amam ou sentem
qualquer sentimento de afeição um pelo outro: “the smallest thing would make them
ferocious with each other – [...] the ruins of marriage are not necessarily quiet, but
include yells, imprecations, megaphoned insults” (Jones. 2007, p. 46). Mesmo sua
noite de núpcias deu-se de forma fria e violenta: com a resistência de Stella, Nicholas
a força ao ato (como em todas as outras futuras vezes) o que a faz ter uma reação
que se assemelha com um surto pós-traumático:
[...] she woke in the middle of the night, released herself from the net,
and sat alone, on a hard chair, softly reciting sonnets [...] In her own
ears her voice sounded plaintive and full of loss. It sounded shabby,
as if she had suddenly aged. (idem. 2007, p. 28)
Eles não conversam entre si e essa situação só piora ao chegarem à Austrália,
onde Nicholas mergulha em seus trabalhos etnográficos e Stella passa a maior parte
de seu tempo em casa sozinha lendo Shakespeare.
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Toda essa situação piora com a gravidez inesperada e indesejada da mulher. A
criança passa a ser ignorada pelo pai e rejeitada pela mãe desde antes de seu
nascimento, esses sentimentos se confirmam com a escolha do nome da criança pela
mãe: Perdita, a filha rejeitada do rei Leontes e sua mulher, Hermione, injustamente
aprisionada por ele mesmo, na peça de Shakespeare intitulada “O Conto de Inverno”.
São claras aqui as referências construídas entres as personagens – Nicholas é
Leontes, o homem autoritário que violentamente mantém presa sua mulher e rejeita
sua filha recém-nascida; já Stella é Hermione, a rainha que está presa por ordens de
seu marido. O aprisionamento de Stella não é físico, mas psicológico, ela está presa
àquela terra (Austrália) de que ela não gosta e a seu marido, que para ela representa
sua supressão. O fim de Hermione é se tornar uma estátua de pedra e é assim que
Stella se imagina – como uma mulher que se tornou vazia e fria como uma pedra,
incapacitada de se mover. Perdita seria então a personagem homônima da obra de
Shakespeare – a filha que a mando do pai foi deixada na floresta para morrer. Perdita
nasceu fadada a não ser amada, vista ou ouvida.
Conforme Perdita vai crescendo a relação entre os Keene vai piorando.
Nicholas é cada vez mais violento com Stella e distante de sua filha, além de começar
a desenvolver uma estranha obsessão pelas notícias referentes à Segunda Guerra
Mundial, que ocorria enquanto eles estavam na Austrália. Stella segue se tornando
cada vez mais absorta em si mesma, ligada apenas a seu mundo de leitura e
começando a apresentar sinais de algum distúrbio psicológico, o que acaba por fazer
Nicholas interná-la em um hospital psiquiátrico algumas vezes. Ambos, Nicholas e
Stella, parecem jamais ter realmente se adaptado à Austrália e ao povo de lá. Contudo
Perdita parece ser o oposto dos seus pais; enquanto eles sentem tamanha aversão
por aquele ambiente, ela se sente completamente à vontade ali. Seus pais e os
habitantes da vila em que eles moram chegam a compará-la com os aborígenes, isso
faz com que eles a ignorem cada vez mais, a garota vive em um lugar no qual nunca
se sente ouvida. Esse tipo de tratamento, com o passar do tempo acaba provocando
marcas em Perdita, fazendo-a não se identificar com os pais, ou mesmo com a cultura
europeia à qual pertencia. A garota cresce marcada pela ausência e insanidade da
mãe e pela violência psicológica, física e ideológica do pai, muitas vezes manifestadas
pelo silêncio entre eles, contribuindo assim para os problemas que ela desenvolverá.
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Além das violências psicológicas, físicas e sexuais que Nicholas comete contra
a mulher, há ainda aquelas que ele comete contra Martha, cozinheira da casa dos
Trevors, seus vizinhos e pais de Billy, e contra a garota Mary:
“When she pushed the screendoor, as quietly as she could, Perdita
saw Nicholas on the floor, pressing brutally into Mary. His trousers
were caught about his ankles, above his large boots, and Mary’s
brown thighs were splayed open before him” (Jones, 2007, p. 205).
Do estupro cometido contra a cozinheira dos Trevors, a mulher engravida e por
isso é enviada forçosamente a um lugar distante. Ao lado da violência sexual que ela
sofreu, ela sofre ainda outra forma de violência que é a de ser obrigada a se calar.
Martha se vê impelida a silenciar-se diante do crime cometido contra si, obrigada a
carregar em seu ventre um filho, fruto de uma agressão sexual. Seu silenciamento é
uma violência dupla, que surge primeiro de sua impossibilidade de manifestar sua dor
por ser negra, escrava e mulher – um ser socialmente sem voz – e depois por ter sido
enviada para longe, a fim de evitar que a reputação de Nicholas ou seu casamento
fossem prejudicados por ter tido um filho bastardo com uma escrava.
Os crimes sexuais, que Nicholas comete contra Mary são os que parecem ter
maiores consequências no decorrer da história, já que eles culminam com o
assassinato dele próprio. Mary é uma garota mestiça retirada de sua tribo, que é
trazida para o lar dos Keene para cuidar da casa e de Perdita durante uma das
internações de Stella, e que lá permanece mesmo após o retorno desta. Logo no início
do livro, lê-se uma das cenas em que se descreve o assassinato do pai da narradora,
mas até o próximo ao final do livro mantém-se o mistério sobre quem o matou
realmente. No momento do assassinato, estavam Perdita, Mary, Stella e Billy na casa
dos Keene, e houve uma espécie de pacto de silêncio entre eles, no qual o culpado
real jamais seria entregue, assumindo, assim a culpa pela morte Mary, sendo esta
presa. O que é descoberto apenas nos momentos finais da leitura é que a real
assassina de Nicholas é sua própria filha que, ao testemunhar pela segunda vez o pai
violentar a amiga, em uma atitude instintiva o esfaqueia e mata. Um fato que chama a
atenção com relação a esse assassinato é como a memória e a mudez são utilizadas
para explicar o silenciamento de Perdita.
Após o assassinato de seu pai, mais precisamente na noite seguinte, Perdita
parece começar o processo que a leva a gagueira e então ao seu silenciamento.
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Naquela noite repentinamente os problemas na fala da garota surgem e são
encarados pela mãe como uma forma de irritá-la pelo ocorrido. Stella continuará
tomando essa atitude de ignorar os problemas na fala da filha ou se pondo irritada por
eles por todo o livro. Após a morte do marido, a incapacidade de se sustentar e a
Grande Guerra que chegava ao território australiano, levam Stella e a filha a se
mudarem para uma cidade maior, onde ela consegue emprego e a filha começa a ir à
escola. E é na escola que os problemas da garota pioram, pois lá ela começa a ser
vítima de humilhações dos outros alunos por causa de sua gagueira, o que, aliado à
forma como a mãe trata seu distúrbio, faz com que Perdita passe a falar cada vez
menos até o ponto de não falar mais nada.
Esse silenciamento da menina é uma atitude inconsciente de resistência
àquela memória e não meramente um distúrbio fisiológico causado por um trauma. Em
Stone et al., o silêncio é classificado não apenas como a ausência de voz, mas como
uma incapacidade de falar ou lembrar-se de algo. (2012, p.40). Perdita e Stella se
mudam para a cidade buscando melhores condições de vida e, embora não
encontrem a melhor casa e não vivam com muito conforto, suas vidas seguem
tranquilas com Perdita estudando e Stella trabalhando, até que ela volta a ter suas
crises e por isso tem de ser internada mais uma vez, fazendo com que Perdita tenha
de ir viver com uma família designada a cuidar dela.
É esse casal que vai se preocupar em procurar um tratamento para o problema
de Perdita levando-a para um médico, Dr. Oblov, para ajudá-la. Com um método
inovador e excêntrico, Dr. Oblov promove seu tratamento com a fala através de textos
de Shakespeare. Lentamente, porém de forma eficaz, o tratamento começa a ter
resultados em Perdita, mas o médico tem também interesse em entender a causa do
problema da garota. A resposta para esse seu questionamento vem durante uma das
sessões quando ouve a jovem recitar um trecho de Macbeth, o mesmo que a mãe
recitara no momento do assassinato de Nicholas; é então que a jovem vive a epifania
ao lembrar que foi ela quem matou seu próprio pai e não Mary ou sua mãe: “Perdita
held the knife with both hands and plunged it into Nicholas’s back” (Jones, 2007, p.
205). De acordo com Stone et al, “the silenced memory could potentially be
remembered and expressed if the appropriate retrieval cues, situational demands, or
motives were present” (idem. 2012, p. 40). Ainda que relutantemente ou que o tenha
feito por não conseguir entender a situação ao seu redor, Perdita silenciara-se a
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respeito de sua culpa sobre o crime e a incriminação de Mary. É esse silêncio, essa
escolha ou incapacidade de falar que gera seu trauma e seu consequente
“esquecimento” do ocorrido naquela noite. Anos após o ocorrido, ao descobrir que era
a verdadeira culpada, a protagonista tenta inocentar Mary, a quem reencontra com a
ajuda de Billy, após revê-lo na cidade em que mora. A personagem não obtém êxito
nessa empreitada, pois Mary a proíbe de se incriminar para tirá-la da prisão e Stella se
recusa a testemunhar a favor de Mary, que acaba por morrer alguns anos depois na
prisão, sem que Perdita tivesse conseguido pedir perdão “I should have said sorry to
my sister, Mary. Sorry my sister, oh my sister, sorry” (Jones. 2007, p. 223).
É esse pedido de perdão que dá nome ao romance, mas por trás dele há muito
mais do que o pedido de Perdita a sua amiga, que morreu em uma prisão pagando por
um crime que não cometeu. Nesse pedido de desculpas há a tentativa de tentar se
expiar da culpa e implorar pelo perdão dos povos aborígenes, que ao longo de toda a
colonização britânica na Austrália sofreram inúmeras atrocidades. Mary é a
representante idealizada dos povos aborígenes, ela tem em si a beleza e mágica da
natureza, a força dos povos ditos selvagens e toda a riqueza do seu conhecimento.
Nela encontramos metonímias várias ao longo do texto sobre a alteridade da mulher,
dos nativos australianos e de tudo aquilo que ao longo do período imperialista europeu
foi marginalizado sob a insígnia do Outro subalterno ao Sujeito eurocêntrico. Além
disso, Mary é uma representante de um grande grupo de crianças que ficaram
conhecidas como Stolen Generation.
Throughout the frontier conflict indigenous children were often
kidnapped and exploited for their labour. […] In addition to random
kidnappings, there was systematic government and missionary child
removal programmes designed to ‘inculcate European values and
work habits in children, who would then be employed in service to the
colonial settlers’ (Mason, 1993: 31). Such practices frequently came
under the banner of ‘protection and segregation’ of indigenous people.
The ‘benevolent’ aspect of the practices originated with a Select
Committee Inquiry set up by the British colonial headquarters
following alarming reports of massacres and atrocities committed by
expansionist Anglo-Celtic settlers. (SHORT, 2008, p. 87-88)
O que nos chama mais a atenção aqui é a forma como Jones colocou-se diante
dessa situação. Sendo ela professora universitária, branca, pertencente à cultura
dominante, ocupa uma posição delicada para escrever um romance que trata sobre
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momentos tão críticos da história australiana. Ao longo de todo o livro, podemos
perceber que os povos aborígenes são mostrados de uma forma quase romântica:
ocupando a posição dos “mocinhos”, sempre descritos com bons adjetivos e como
seres humanos ideais que por seu contato com a natureza estão mais próximos do
“Verdadeiro”. Essa atitude pode fazer parecer que, ao descrever os personagens
aborígenes com qualidades boas todo o tempo no livro, a narradora esteja dando a
eles voz para mostrar aquilo que de bom eles têm, mas que na literatura tradicional
poucas vezes é mostrado. Todavia, será que dessa forma ela está dando voz aos
povos aborígenes ou os está silenciando? A protagonista e narradora, Perdita,
encontra nos povos aborígenes uma grande identificação. Enquanto com seus pais se
sente rejeitada e não ouvida, entre Mary, seu povo e outros povos nativos da Austrália,
ainda que sem conseguir utilizar-se de sua fala plenamente devido a sua gagueira, ela
se sente acolhida e como parte da comunidade. Sempre descritos de uma forma
positiva, a fim de mostrar sua cultura, pode parecer à primeira vista que essa atitude
esteja permitindo à cultura aborígene uma voz, mas o que deve ser atentado aqui é
que esta voz é intermediada por uma voz “não-aborígene”, uma voz pertencente a
cultura dominante. O Outro aqui não deixou de ser o exótico, o diferente e o oposto;
ainda que agora seja visto sob uma ótica menos pejorativa, os povos aborígenes ainda
são o Outro (o não-eu europeu). Sob uma ótica próxima à defendida por críticos póscoloniais, como Spivak, essa atitude embora possa ter boas intenções, traz mais
malefícios que benefícios, posto que se entendermos Perdita, em Sorry, como um alter
ego de Jones, esta ocupa o lugar da voz hegemônica europeia. Apesar de seus
esforços em tentar tornar os povos aborígenes (os subalternos) Sujeitos agentes
através de seu livro, Jones acaba por reproduzir imagens recorrentes na cultura
ocidental, tratando os aborígenes ora como homogêneos, supersticiosos e pouco
civilizados, ora como puros, livres de maldade e necessitados da intervenção do
homem branco. Fazendo uma analogia aqui à sentença repetida por Spivak em sua
crítica a intervenção britânica nas leis indianas, “White men are saving brown women
from brown men” (1988, p. 92). Os aborígenes ainda indefesos e puros precisam que o
branco cuide deles.
A vida da jovem Perdita retratada ao longo do romance Sorry, quando
analisada sob uma ótica pós-colonial, conforme tentamos fazer através deste artigo,
mostra-nos de que forma as violências cometidas por Nicholas contra Mary, sua
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mulher, Stella e sua filha, Perdita são análogas às cometidas pelos colonizadores
britânicos contra os povos nativos da Austrália, e como elas interferem na construção
da identidade de cada personagem. A representação da mulher como um sujeito
subalterno inferior, relaciona-se com a forma como o sujeito feminino é visto de forma
marginalizada pelo dominador masculino (Nicholas) e como o Outro (aborígene) ocupa
essa mesma posição marginal diante do imperialismo europeu, conforme trata Spivak.
A representação do outro pelo sujeito dominador são também, segundo ela, uma
forma de violência, pois sua intenção de representação acaba por se tornar uma
legitimação do silenciamento do outro, o que, segundo as pesquisas de Moaşa, finda
por interferir diretamente na construção de seu self.
REFERÊNCIAS
JONES, Gail. Sorry. 1. ed. Perth: Vintage Books, 2007.
SPIVAK, Gayatri C. Can the Subalter Speak? in Cary Nelson and Larry Grossberg, eds.
Marxism and the interpretation of Culture. Chicago: University of Illinois Press, 1988: 271-313.
Disponível em: < http://www.mcgill.ca/files/crclaw-discourse/Can_the_subaltern_speak.pdf >
Acesso em: 28 nov 2013
MOAŞA, Horia. Relatioships between Voice, Silence and Identity Formation in Organizations. in
Bulletin of the Transilvania University of Brasov.Transilvânia:Vol. 5 n. 1.p.63-69. 2012.
Disponível
em:
<
http://webbut.unitbv.ro/BU2012/Series%20VII/BULETIN%20VII%20PDF/05_MOASA_BUT1%202012.pdf > Acesso em: 18 mar 2014
SHORT, Damien. Reconciliation and Colonial Power: Indigenous Rights in Australia. Londres:
Ashgate.
2008.
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<
https://www.academia.edu/5298297/Reconciliation_and_Colonial_Power_indigenous_rights_in_
Australia_2008 > Acesso em: 19 mar 2014
STONE, Charles B.; COMAN, Alin; BROWN, Adam D.; KOPPEL Jonathan; HIRTS,
William.Toward a Science of Silence: The Consequences of Leaving a Memory Unsaid.
Perspective on Psychological Science.Vol. 7. n. 1. p. 39-53. 2012. Disponível em: <
http://wws.princeton.edu/system/files/research/documents/coman_toward_a_science_of_silenc
e.pdf > Acesso em: 20 mar 2014
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