Memórias da Cidade Eterna: Ruínas,
Correspondências e História entre Madame de
Staël e o Conde de Palmela (1805-1815)
Sandra Rinco Dutra
Mestranda em História pelo PPGHIS/UFJF
Membro do Núcleo de Estudos “Madame de Staël
e o Romantismo Filosófico e Literário” – UFJF
[email protected]
[...] le temps prouvera si ce sentiment est une illusion de l’imagination, ou un
instinct du cœur qui me a fait vous deviner; si vous êtes ce que je crois, vous me
aimerez quelque temps, pas toujours, car la destinée ne nous a pas fait
contemporains, mais ce ne será pas facilement que vous donnerez ma place dans
votre cœur [...]
1
Madame de Staël
Introdução:
Roma, 1805. Numa noite primaveril de inícios do mês de maio, Madame de Staël e
D. Pedro de Sousa Holstein passeiam por entre as monumentais ruínas sob a luz da lua,
num dos últimos momentos de felicidade apreciados por ambos na Cidade Eterna. O então
embaixador de Portugal em Roma e a mulher considerada a mais notável da França,
exilada de seu país por Napoleão, viviam há dois meses sob uma espécie de encantamento
mútuo, que os despertou para um sentimento bastante intenso. Nele, ela acreditava ter
encontrado tudo o que havia buscado: era um jovem de vinte e quatro anos, belo,
inteligente, de temperamento amistoso, o qual cativava naturalmente aqueles com quem se
1
“[...] o tempo provará se este sentimento é uma ilusão da imaginação, ou um instinto do coração que fez-me
achar-vos; se vós sois isso que creio, vós me amareis algum tempo, não sempre, porque o destino não nos fez
contemporâneos, mas não será facilmente que vós dareis o meu lugar no vosso coração[...].” Trecho da carta
enviada à D. Pedro de Sousa Holstein, datada de 14 de maio de 1805. - STAËL Holstein, Germaine Necker;
SOUZA Holstein, D. Pedro de. Correspondance. (Prefácio, introdução, comentários e notas por Béatrix
D'Andlau). Paris; Gallimard, 1979, p. 36.
2
relacionava, e que “possuía uma voz extremamente bonita com a qual encantava as damas,
um ar grave com um tom de melancolia”2. Com ela, ele sentia-se lisonjeado por ter a
oportunidade de fazer parte das experiências de vida dessa esfuziante e impetuosa
escritora: no limiar de seus quarenta anos, ela já gozava de um reconhecimento intelectual
por toda a Europa, principalmente após seus atritos com o imperador francês, vivia cercada
pelos homens mais importantes e seu salão era um dos mais bem freqüentados, onde
recebia de literatos à homens de Estado; mesmo fora da França essa rotina era corriqueira.
Porém, o destino quis que seguissem caminhos distintos, embora ainda esta não
fosse a última vez que se encontrariam. O romance vivido por eles aconteceu em meio à
circunstâncias de tempos muito difíceis, tanto para si quanto para Europa. Ambos foram
marcados por perdas familiares e também pelos acontecimentos que seus países estavam
enfrentando por obra dos desígnios de Bonaparte. Mas para se chegar até este momento, é
preciso retroceder no tempo de modo a entender os eventos que levaram pessoas tão
distintas a se cruzarem.
Nostalgia do passado:
É fato que os ingleses sempre se distinguiram dos demais países europeus por
desempenharem seus interesses em conjunto, e esse potente espírito de associação, pode-se
assim dizer, foi o ponto determinante que os assegurou o comércio mundial; à esta vocação
de sua natureza, eles devem as liberdades que fazem parte de sua identidade e das quais
muito se orgulham. Já os franceses, a única coisa que haviam reunido conjuntamente era
seu espírito. A necessidade imprescindível de criar, o amor ao diálogo, a capacidade de
converter seus pensamentos em discursos rápidos foi, até a Revolução Francesa, um dos
maiores traços de seu caráter nacional. Dessa forma, este espírito de sociabilidade criou
mais um traço característico, além de uma verdadeira potência: os salões.3
É possível dizer que na França os salões freqüentemente exerceram uma real
influência sobre os governos, muitas vezes funcionando como lugar de resistência a eles, e,
no século XVIII, mestres absolutos de uma sociedade generosa e frívola, contribuíram
fortemente para mudar seu estado social. Pierre-Simon Ballanche, escritor francês e
filósofo contra-revolucionário, quando estudava as transformações sucessivas das
2
Ibidem, p. 16.
RÉCAMIER, Madame. Coppet et Weimar: Madame de Staël et la Grande-Duchesse Louise. Paris: Michel
Lévy Frère Libraires-Éditeur, 1862, pp. VII-VIII.
3
3
sociedades humanas, disse: “o iniciado mata sempre o iniciador”. Este aforismo resume em
poucas palavras uma verdade quanto ao que diz respeito à preponderância dos salões: “eles
fizeram ou ajudaram a fazer a revolução, mas a revolução os destruiu”. E, assim, foram se
dissolvendo na tempestade.4
Quando a ordem e a segurança tentaram se restabelecer após a trovoada que tinha
subvertido a França, as pessoas notáveis da época anterior, contemporâneas do auge dos
salões, nas quais foram conservados a necessidade e o gosto pela conversação,
encontraram-se notadamente isoladas em meio às novas gerações, que só conseguiam
conceber a idéia destes salões muito imperfeitamente. Diante disso, uma mulher, em
decorrência de sua sagacidade e espírito elevado, recebeu naturalmente a incumbência de
servir de centro unificador de todos esses elementos espalhados da antiga sociedade com
os novos ideais insurgentes: essa foi Madame baronesa de Staël-Holstein.
Por suas relações, pelo posto que seu marido ocupava, pelo importante papel que
havia desempenhado seu pai no mundo da aristocracia, além de praticar um liberalismo
muito difundido e pelo ardor de suas convicções políticas, ela convergia em causa comum
com a nova França, agregando à ela elementos tradicionais. Devido a isso, logo cercou-se
dos homens mais importantes dos diversos partidos, e seu salão não demorou a adquirir
verdadeira importância.5 Mas isso não era novidade para Madame de Staël, uma vez que
desde a infância estava habituada à rotina dos salões e aos debates político-literários dos
grandes homens.
Nascida em 22 de abril de 1766 em Paris, Anne-Louise Germaine Necker, filha de
Jacques Necker6 e Suzanne Curchod Necker7, era uma criança encantadora, embora não
4
RÉCAMIER, Madame, op. cit., pp. VIII-IX.
Ibidem, pp. XXIII.
6
Jacques Necker (1732-1804). Banqueiro e ministro das finanças de Louis XVI. Embora fosse um
protestante nascido e criado em Genebra, Necker representou um importante e controverso papel na história
política da França nas últimas décadas do antigo regime. Era o segundo dos filhos de Charles Frédéric
Necker, advogado, e de sua esposa Jeanne Gautier, filha do prefeito Gautier. Aos dezoito anos iniciou sua
carreira no Banco Thélusson e Vernet, em Genebra, mais tarde em Paris, tornando-se sócio em 1756. Seu
notável êxito como banqueiro lhe permitiu acumular em pouco tempo uma fortuna considerável. Em várias
ocasiões, Necker adiantou importantes quantias ao Tesouro Real. Em 1764, casou-se com Suzanne Curchod,
que muito o influenciou e o ajudou. Autor de várias obras sobre política e finanças, é no período do exílio na
Suíça, após a Revolução Francesa, que mais se dedica a tal função. Morreu em Coppet, em 1804, longe de
sua filha, exilada da França por Napoleão. – CHISICK, Harvey. Historical Dictionary of the Enlightenment.
Lanham: Scarecrow Press, 2005, pp. 291-2.
7
Suzanne (Curchod) Necker (1737-1794). Filha de um pastor protestante suíço pouco abastado, conheceu e
quase se casou com o historiador inglês Edward Gibbon, que sobre ela escreveu em suas memórias: “Ela era
instruída sem pedantismo, vívida na conversação, pura de sentimentos e elegante nas maneiras: sua
sagacidade e beleza foram tema de aplausos universais”. – CHILD, L. Maria. Memoirs of Madame de Staël
and of Madame de Roland. New York: C. S. Francis and Company, 1854, p. 7. Bonita, bem educada e muito
5
4
tivesse herdado a beleza de sua mãe. Aos seis anos já era vista no salão de Madame
Necker, “em um pequeno banco que ficava ao lado da poltrona de sua mãe: era forçada a
sentar-se e a portar-se direito como se levasse um colar de ferro”. Todas as noites, na mesa
onde sempre se sentava para jantar, ela jamais falava, mas escutava com uma tal atenção
que despertava um mesmo pensamento em todos: “esta jovem menina será algum dia uma
pessoa superior”. Ali, na casa de sua mãe, tinha contato não apenas com muito do mundo,
mas também com homens cujos discursos fortes e apaixonados tinham muito o que
oferecer ao espírito de uma criança; por isso, o espírito de Germaine foi mais ativo e mais
cedo desenvolvido.8 Sua educação foi extremamente severa, sobretudo para uma mulher
daquele tempo. Ela passava o dia todo na biblioteca em companhia de seus preceptores, e
somente de lá saía para acompanhar seus pais nas reuniões político-literárias que se
celebravam no salão todas as noites.9 E assim continuou “anos à fio”, numa disciplina de
estudos cada vez mais rígida.
Entretanto, tal maneira de tratar, ao mesmo tempo, o corpo e a alma tornou-se
nefasta para sua saúde. Ela padeceu, e logo não teve mais condições de continuar seu
processo de aprendizado; tinha então quatorze anos. Sua saúde não pôde agüentar à alta
pressão tão constantemente aplicada às faculdades de seu intelecto. Dessa forma, Germaine
foi levada de Paris para Saint-Ouen, lugar onde foi recuperar a saúde. Lá, uma vida muito
poética e lúdica sucedeu àquela séria e adulta que ela levava no salão de sua mãe.10 Uma
vez que as forças foram recuperadas, pouco a pouco reintegrou-se à vida agitada de antes.
O salão de Madame Necker, onde Germaine havia introduzido uma conversa jovial
e muito alegre, mantendo discussões de todos os tipos - o que era motivo de assombro
entre todos os presentes, devido a pouca idade - foi o primeiro teatro no qual Madame de
inteligente, foi levada para Paris por Madame Vermenou, que negociou seu casamento com o banqueiro e
político Jacques Necker. Foram muito devotados um ao outro. Com a ida de seu marido para o ministério das
finanças francês, ela estabeleceu um salão freqüentado pelos mais brilhantes literatos, artistas e políticos.
Madame Necker transferiu seu amor ao aprendizado e à escrita para sua filha Anne-louise Germaine. Como
uma ativa reformadora calvinista, tinha um especial interesse em ajudar doentes pobres. Em 1776, criou o
Hôpital Charité, chamado Hôpital Necker após sua morte. Sob sua direção, este foi moderno, limpo e
eficientemente administrado, tornando-se no século XIX um centro líder em medicina pediátrica e pesquisas.
Em 1790, Suzanne e seu marido foram forçados ao exílio na Suíça em decorrência da Revolução Francesa.
De lá, continuou a administrar seu hospital até sua morte quatro anos depois. – OGILVIE, Marilyn Bailey;
HARVEY, Joy Dorothy. The Biographical Dictionary of Women in Science. Knoxville: Univ. of Tenessee
Libs, 2000, p. 932.
8
D’ABRANTES, Duchesse. Histoire des Salons de Paris : Tableau e Protrait du Grand Mondo. vol. 2.
Paris: Chez Ladvocat Libraire, 1837, pp. 367-8.
9
MOLINA, Natacha. Madame de Staël. Madri: Círculo de Amigos de la História S. A. Editores, 1977, pp.
10-11.
10
D’ABRANTES, Duchesse, op. cit., p. 369.
5
Staël fez prova deste extraordinário talento para o discurso que ela possuía em alto grau,
tão bem aprimorado por seu pai através de conselhos que ela seguiu com respeito, amor e,
sobretudo, extrema admiração. Era de se esperar que com tantos atributos admiráveis em
uma mulher também fossem muitos os aspirantes à mão de mademoiselle Necker.
Eis que surgiu então o barão de Staël-Holstein11, embaixador da Suécia em Paris,
que pediu a mão da jovem em matrimônio. Germaine aceitou pela conveniência dessa
união, sobretudo, para seus pais. A duquesa de Abrantes, esposa do general Jean-Andoche
Junot (que após a morte do marido tornou-se escritora e memorialista), ambos amigos de
Madame de Staël, em sua obra História dos Salões de Paris, de 1837, dá a descrição do
barão: “O barão de Staël era protestante; era amigo de Gustavo III, de grande e bom
nascimento, de uma lealdade perfeita, e professando por ela [Germaine] uma profunda
admiração”. Logo a seguir, ela nos conta como o conheceu:
Eu conheci à muito Monsieur de Staël; ele vinha habitualmente à casa de minha
mãe, e eu o via diariamente na casa de meu tutor Monsieur Brunetière, de quem
ele era, à época em que encontrei-o, amigo e sobretudo devedor.
E ela encerra os comentários dizendo:
Monsieur de Staël era bonito, mas muito mais velho que Mademoiselle Necker;
isso era já uma grande diferença entre ela e ele; mas ele tinha pouco de espírito,
e eu nunca compreendi esta união por essa única razão, que para Madame de
Staël devia ser imensa.
12
Essa incompreensão de Madame Junot, na verdade, tinha todo fundamento. Germaine era
uma mulher muito inteligente e culta, e necessitava de um homem que estivesse à sua
11
Eric Magnus, barão de Staël Holstein (1755-1802). Diplomata sueco, entrou muito jovem para tal carreira,
e em 1783 tornou-se ministro plenipotenciário na Corte francesa. Por sua ligação com Jacques Necker,
casou-se com sua filha em 1786. O genro seguiu, na política, a rota que havia tomado seu sogro. Gustavo III,
que se opunha fortemente aos princípios da Revolução Francesa, chamou de volta à Suécia seu ministro em
1792, pouco tempo antes de morrer vítima de um assassinato. Mas o Duque de Sudermanie, tomando as
rédeas do governo sueco após esta catástrofe, reenviou à Paris o barão de Staël, que lá chegou dois meses
após a morte de Louis XVI. Ele foi, então, o único representante de uma monarquia junto à república
francesa. Logo, assustado com o espetáculo que o cercava, retornou à Suécia, levando um projeto de aliança
que o regente não acreditou dever ratificar. Após a queda de Robespierre, o barão voltou à Paris, onde
permaneceu até em 1799, época em que foi chamado pelo rei Gustave-Adolphe, que veio a alcançar sua
maioridade. Voltava, em 1802, à Coppet, quando morreu em Poligny, em Franche-Comté. - FELLER,
François-Xavier. “Staël-Holstein (Eric Magnus, baron de)”. In: Dictionnaire Historique ou ... . 5ª ed. vol. 12.
Lille: Chez L. Lefort Imprimeur-Libraire, 1833, p. 415.
12
D’ABRANTES, Duchesse, 1837, p. 374.
6
altura. Mas o barão definitivamente não se enquadrava neste perfil, somente tinha seu
título à oferecer, que para Jacques Necker era suficiente e oportuno, uma vez que sabia que
o barão casava-se com sua filha por sua fortuna.13 A cerimônia ocorreu em 6 de janeiro de
1786, ano em que ela iniciou sua carreira literária com Sophie ou Les Sentiments Secrets, e
que começou uma crítica ao pensamento de Jean-Jacques Rousseau.
Madame de Staël formou sua sociedade não apenas depois de seu casamento, mas
nos anos seguintes, em que a França enfrentaria um turbulento período de dificuldades e
incertezas. O que antes, nos salões, discutia-se sobre assuntos literário-políticos, dentre
outros, de uma forma prazerosa, aos poucos foi se transformando em ambientes
majoritariamente de discussões políticas engajadas, com representantes de todas as
correntes. Mas é certo que, em 1797, a França novamente havia encontrado um herói, com
grandes possibilidades de trazer de volta os dias de glória e agregá-los aos novos ideais
promotores da revolução. Em 1795, após esmagar o levante monarquista em 13 de
Vindimário (5 de outubro)14, Napoleão Bonaparte foi nomeado para assumir o exército da
Itália. A bem sucedida campanha italiana levou-o de volta a Paris, em dezembro de 1797,
como um grande homem. E, assim, toda a elite dos salões aguardava por conhecer o jovem
general corso, inclusive Madame de Staël.
O povo estava fascinado por tudo o que dizia respeito à vida de Napoleão; a frase
por ele dita em Milão, gravada na memória de todos, havia ajudado a manter essa
atmosfera ao seu redor:
Mergulharei em uma biblioteca e trabalharei para merecer um dia a honra de ser
admitido no Institut de France. As verdadeiras conquistas, as únicas que não
deixam arrependimento algum, são as que se fazem sobre a ignorância.15
Germaine, assim como todos em Paris, admirava-o profundamente, pois pela primeira vez
um soldado exaltava a importância das ciências e da literatura, colocando-as acima de suas
13
MOLINA, Natacha, op. cit., pp. 11-12.
Esse episódio foi a grande guinada na vida de Napoleão Bonaparte, quando o então General de Brigada,
cargo disposto à ele pelo agente político em Toulon Paul François Jean Nicolas, Visconde de Barras, como
segundo comandante da Armada Interna de Paris, pôs ordem na cidade, ao assassinar impiedosamente, sob o
fogo de 40 canhões, cerca de 300 amotinados que, reunidos nos arredores do Palais-Royal, opunham-se aos
ditames da Convenção. A partir dali se iniciaria a fase do Diretório, e o jovem corso de apenas 26 anos
começaria sua vertiginosa trajetória de glória, que acabaria por transformá-lo num revolucionário e também
reacionário Imperador da França. – BOURRIENNE, Mr. de. Memoirs of Napoleon Bonaparte. vol. 1.
Londres: Beaufort House, 1836, p. 32.
15
MOLINA, Natacha, op. cit., p. 31.
14
7
glórias militares. Via-o, sem dúvida, como um espírito elevado que merecia ter ao seu lado
uma mulher que o entendesse e o apoiasse. Ela acreditava que Josephine de Beauharnais,
com quem havia se casado em 1796, era uma mulher demasiado frívola e coquete para ser
a companheira de um homem tão importante. Na época em que Bonaparte estava na Itália,
Madame de Staël, em uma das várias cartas que o enviou (sem receber sequer uma
resposta), certa vez disse-lhe: “Parece-me uma mosntruosidade a união de um gênio com
uma créole insignificante e incapaz, de certo, de apreciá-lo e de compreende-lo”. De todo
modo, a verdade é que Napoleão não nutria por ela nenhuma simpatia. O que ele gostava
em uma mulher era tudo aquilo que pode-se chamar de qualidades femininas: a beleza, a
graça, a doçura e, sobretudo, a submissão. Para ele, Germaine era a personificação oposta
desses atributos. Por mulheres intrigantes, ousadas e inteligentes como ela, ele somente
poderia sentir uma instintiva repulsão.16
Mesmo após o golpe de 18 Brumário (9 de novembro de 1799), que inaugurou o
Consulado, Germaine e seu grupo ainda viam no Primeiro Cônsul um potencial restaurador
da República. Para eles, Bonaparte era, dentre todos, o único que tinha uma certa
segurança no agir, em meio à multidão de ambiciosos que levaram a França à calamidade.
Neste momento, o povo estava com ele. E para assim o manter, ele iniciou praticando uma
política de tolerância e misericórdia, que incluía admitir a volta dos exilados, dar indultos
àqueles que estavam presos por pequenos crimes, mandar que reabrissem as igrejas etc.17
Em dezembro, Benjamin Constant18, o fiel amigo e amante de Germaine, foi
nomeado, pelo abade Emmanuel Joseph Sieyès, para o Tribunato dos Cônsules da
República. Contudo, a partir daquele momento, a vida da baronesa nunca mais seria a
mesma. Todas as noites em seu salão, os freqüentadores discutiam e faziam manifestações
negativas ao novo governo e ao intelecto do Primeiro Cônsul. Madame de Staël não
participava de tais discussões, mas também não as impedia, uma vez que já suspeitava das
verdadeiras intenções de Napoleão. Tudo isso foi transmitido à ele que, através de seu
irmão Joseph, muito amigo de Germaine, a advertiu. À tudo isso, juntou-se o primeiro
discurso de Constant, considerado a primeira afronta à Bonaparte desde o 18 Brumário, e
16
Ibidem, p. 27.
Ibidem, p. 59.
18
Henri-Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830). Filósofo, publicista e político. Havia conhecido
Madame de Staël em 1794, em Lausanne, iniciando uma forte ligação com ela. Em 1803, viajou para a
Alemanha, acompanhando a baronesa em seu exílio, onde conheceu Goethe e Schiller. Ali, pediu-a em
casamento, mas com sua recusa, voltou à Paris e se casou mais tarde com Charlotte von Hardenberg. FELLER, François-Xavier. “Contant de Rebecque (Benjamin)” In: Dictionnaire Historique ou ... . 5ª ed. vol.
4. Lille: Chez L. Lefort Imprimeur-Libraire, 1832, pp. 146-9.
17
8
considerado da mesma forma obra da baronesa de Staël, uma vez que o discurso fora
preparado em sua casa e ela encorajara Benjamim a pronunciá-lo. Ainda, Napoleão
também acusou-a de haver deixado seu marido na miséria. O barão encontrava-se, nesta
época, falido e endividado. Assim, logo nos primeiros meses de 1802, Madame de Staël
determinou o fim de seu casamento; contudo, num último intento de reconciliação, o barão
partiu para Coppet, mas faleceu em um albergue em Poligny, quando estava a caminho. E,
para completar, ela publicou o romance Delphine (a história de uma jovem, retratando-se a
si própria, na qual a autora expõe seus subversivos ideais sociais, políticos e religiosos),
que é imediatamente bem sucedido em Paris, o que deixou Bonaparte muito irritado. Disse
ele ao terminar de lê-lo:
Este livro é uma viagem fantástica pelos campos das desordens espirituais e da
metafísica sentimental; uma fastidiosa mistura de tendências rebeldes à ordem
social, sobre a base do eterno conflito entre a felicidade do indivíduo e as normas
da ordem coletiva.19
Agora, dava-se de forma límpida a posição de ambos, diametralmente opostas: de
um lado estava Madame de Staël que, como discípula de Rousseau, defendia os direitos do
indivíduo sobre os da sociedade; de outro estava Napoleão, que não admitia nenhum ato
individual que não estivesse subordinado à ordem social.20 Estava declarada a guerra entre
eles. Assim, em fevereiro de 1803, ela recebeu a ordem do Primeiro Cônsul para se manter
fora de Paris. A baronesa acatou-a e foi para Coppet; porém, voltou a França em setembro,
acreditando que Bonaparte não mais se preocupava com sua presença, pelo fato de estar
demasiado ocupado com seus planos contra a Inglaterra. De toda forma, evitou Paris, se
instalando em uma pequena propriedade que possuía em Maffliers, a dez léguas da capital.
Sua intenção era unicamente passar ali o inverno e receber alguns amigos, e mesmo
aventurar-se até Paris para ir ao teatro e aos museus. Porém, assim como na Suíça, ela
continuava a ser vigiada, e logo que retomou a movimentação de seu salão, também foi
recomposto lá o ambiente conspiratório. Isso fez com que o Primeiro Cônsul determinasse,
no início de outubro, que ela deixasse a França.
Para Madame de Staël, ter que abandonar sua pátria era pior do que a morte, o fato
de ser privada do meio parisiense (que embora não pudesse mais freqüentar, sempre
arranjava uma forma de ficar próxima e levar a todos para sua companhia), e dos fiéis
19
20
MOLINA, Natacha, op. cit., pp. 61-85 passim.
Ibidem, p. 84.
9
amigos de espíritos elevados. Certa vez, conversando com a Duquesa de Abrantes, disselhe: “Eu amo a França, eu a amo com uma tal paixão, que se o Primeiro Cônsul ordenavame uma baixeza para lá ficar, creio que eu a cometeria.”21 Algo semelhante disse ela a
Joseph Bonaparte, momentos após saber do que foi decidido por seu irmão: “Diga-lhe que
deixe-me morrer na França, à vista de Paris, e eu o agradecerei com a minha alma, rezarei
à ele como se reza a um Deus.”22 Os irmãos do Cônsul, Joseph e Lucien Bonaparte, e
outros amigos, tentaram dissuadi-lo, mas o que conseguiram foi que ela pudesse ficar a
quarenta léguas de Paris. No momento em que partia, Joseph e Junot, sobretudo,
conseguiram um indulto de Napoleão para que Germaine permanecesse em Dijon e não
precisasse deixar a França, mas já era tarde, ela já havia cruzado a fronteira com Constant e
seus filhos, Auguste, Albert e a pequena Albertine.23 Assim começaram os dez anos de
exílio de Madame de Staël.
Juntos, chegaram à Frankfurt. Agora, a baronesa era a principal inimiga de
Bonaparte e estava solta pela Europa. A celebridade de seu pai e a dela própria, não só por
seus escritos e pela fama de seu salão, mas pelos embates travados com o ambicioso corso,
era uma garantia de que seria bem acolhida em todas as Cortes, como de fato o foi.
Realmente, as portas se abriram para ela e as Cortes lhe deram tratamento digno de um
chefe de Estado, sendo recebida por reis e rainhas. De Frankfurt, depois da convalescença
de sua filha que havia ficado doente, seguiram para Weimar, onde permaneceram de
dezembro de 1803 até fevereiro do ano seguinte, e onde Madame de Staël reuniu-se a
Goethe, Schiller e Wieland. Através do que lá teve contato, do grande progresso intelectual
que obteve na companhia de homens tão ilustres, Germaine transformou sua sede de
vingança pessoal em desejo de libertar sua pátria. Além disso, tornou-se muito íntima dos
soberanos de Weimar, sobretudo da duquesa Louise, a princesa, a qual nutriu por ela uma
afeição verdadeira e duradoura, e com quem trocou correspondências de 1804 à 1817,
quando cessaram por ocasião de sua morte.24
Em março de 1804, chegaram a Berlim, onde permanecem por quase um mês e
meio, de 8 de março a 19 de abril. Germaine foi apresentada à Corte, e nos salões
berlinenses conheceu Auguste Wilhelm Schlegel (poeta, tradutor e crítico, irmão de
Friedrich Schlegel, um dos principais filósofos do romantismo alemão) que foi
21
D’ABRANTES, Duchesse, 1837, p. 380.
MOLINA, Natacha, op. cit., p. 91.
23
Ibidem, p. 96.
24
RÉCAMIER, Madame, op. cit., p. 44.
22
10
recomendado por Goethe para ser o preceptor de seus filhos. Foi lá onde recebeu a notícia
da morte de seu pai, em 9 de abril. Dessa forma, ela partiu imediatamente para Coppet,
mas não conseguiu chegar à tempo para o enterro. A baronesa, neste período, mais uma
vez tentou fazer com que Bonaparte deixasse-a ficar na França, mas à essa altura ele já
havia sido coroado imperador e definitivamente não pensava de forma alguma em perdoar
sua inimiga, uma vez que todas as cartas que ela enviava aos seus amigos no país
passavam primeiro pelas mãos daqueles ocupados em vigiá-la, e essas estiveram sempre
repletas de críticas e deboches com relação à Corte de Napoleão e Josephine.25 Sendo
assim, ela não podia suportar ficar em Coppet, onde tudo lembrava seu velho e amado pai,
então, de comum acordo com Schlegel, decidiram partir para a Itália. E lá terá início um
dos períodos mais agradáveis de sua vida, quando logo conhecerá o jovem e belo D. Pedro
de Sousa Holstein.
Anseio do futuro:
Depois dessas tantas páginas muito interessantes, e muito resumidas diga-se de
passagem, sobre a agitada vida de Madame de Staël (com intrigas, romances, traições,
conspirações etc.), resta-nos, agora, da mesma forma, expor a vida de D. Pedro de Sousa.
Mas, devemos logo avisar, esta empreitada se dará de forma bem mais concisa e simples,
uma vez que o início da movimentação na vida do português coincide justamente com o
período em que estava em Roma e conheceu Germaine, por isso falta-nos fontes relativas
aos anos anteriores. Temos que admitir que, para um rapaz de vinte e quatro anos, poder
conhecer a mulher que não teve medo de enfrentar Bonaparte, assim como ter a
possibilidade de freqüentar seu círculo, usufruir de todos os benefícios que isso poderia lhe
proporcionar e ainda fazer parte de sua vida, digamos que isso não é pouca coisa.
D. Pedro de Sousa Holstein nasceu em Turim, em 8 de maio de 1781. Era filho de
D. Alexandre de Sousa Holstein26, o conde de Sanfré, e de D. Isabel Juliana de Sousa
25
MOLINA, Natacha, op. cit., pp. 106-7.
D. Alexandre de Sousa Holstein (1751-1803), conde de Sanfré no Piemonte. Foi o primeiro embaixador
residente de Portugal na Prússia. Filho de Manuel de Sousa, o senhor de Calhariz, e de Maria Anna
Leopoldina, princesa de Schleswig-Holstein-Sonderburg-Beck, exerceu o cargo de capitão da Guarda Real
dos Arqueiros até ser nomeado enviado extraordinário e ministro plenipotenciário de Portugal em
Copenhage, Berlim e Roma. Neste ofício, D. Alexandre descrevia as Cortes por onde passava, os ministros,
os monarcas, assim como a vida política e cortesã. Casou-se duas vezes: uma, em 1779, com D. Juliana de
Sousa Coutinho Monteiro Paim (mãe de D. Pedro e de mais três filhos), e outra, em 1796, com D. Balbina
Cândida de Sousa, moça do coro do Real Mosteiro da Encarnação, e sua sobrinha, filha de seu irmão D.
26
11
Coutinho Monteiro Paim27, a célebre “bichinho-de-conta”, apelido este conferido pelo
marquês de Pombal em decorrência da obstinação da moça em não consumar o casamento
arranjado com seu filho. Sua mãe, conseguindo casar com D. Alexandre, após o desterro
do marquês, acompanhou o marido às missões diplomáticas de que foi encarregado,
estando em Turim quando nasceu D. Pedro, seu primeiro filho. Teve como padrinhos o rei
Pedro III e a rainha Maria I, representados pelo ministro de Portugal em Nápoles, José de
Sá.28
Teve uma vida agitada desde o início. Seguindo por um tempo o pai nas diferentes
missões diplomáticas, em Copenhage e depois em Berlim, a família até então permanecia
unida. O jovem Pedro foi profundamente imfluenciado por sua mãe, um exemplo de
determinação, uma mulher notável. Em 1791, aos 10 anos de idade, foi colocado em um
internato de Genebra, local onde estudou regularmente os preparatórios para as escolas
superiores. A mãe e as irmãs também tomaram a cidade como residência. Neste período,
outra bela influência agiu sobre o menino, a de Gérard Monod, “um genebrês dono de uma
grande inteligência, que foi encarregado de sua educação e o inspirou o amor pelas letras e
pela poesia”. D. Pedro e suas irmãs passaram três anos na cidade suíça, onde vieram a
Fillipe João de Sousa e Holstein. Morreu em Roma, em 13 de dezembro de 1803, na companhia seu filho
mais velho, Pedro. – TORRES, João Carlos F. C. Castello Branco e; PEREIRA de Mesquita, Manuel de
Castro. Resenha das Famílias Titulares do Reino de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1838, pp. 148150.
27
D. Juliana de Sousa Coutinho Monteiro Paim (1753-1793). Nobre dama, filha de D. Vicente Roque José
de Sousa Coutinho de Menezes Monteiro Paim, moço fidalgo com exercício no paço, e de sua primeira
mulher, D. Teresa vital da Câmara Coutinho. Estava apaixonada por D. Alexandre de Sousa Holstein, quando
o marquês de Pombal designou-a para esposa de seu filho, José Francisco de Carvalho Daun, dando início a
uma história muito interessante. Ela resistiu de todas as formas, mas o onipotente ministro estava obstinado.
Assim, D. Vicente Paim, por ambição ou fraqueza, obrigou a filha ao odioso matrimônio. Em 11 de abril de
1768, no oratório da casa onde residia a avó da noiva, D. Maria Antonia, realizou-se o enlace. D. Isabel,
contrariada mas sem força para resistir à vontade paterna, casou-se, mas nunca considerou-o seu marido,
manifestando constantemente todo seu repúdio por ele. Foram inúteis todos os esforços para que D. Isabel
aceitasse a posição a que estava relegada, mas ela a tudo resistiu, numa tal determinação, que afinal todos se
convenceram da impossibilidade de se continuar tal situação. Sendo assim, em 15 de agosto de 1771, D.
Isabel foi recolhida ao Mosteiro de Santa Joana e depois mandada para o Convento do Calvário de Évora, e o
marquês de Pombal tratou de anular o casamento do filho para depois o casar, sem lhe importar quanto havia
de escandaloso neste proceder, com uma senhora da família dos Távora. A nobre dama foi efetivamente
levada para o citado convento, onde se conservou encerrada até à morte do D. José e queda do marquês de
Pombal, em 1777. Quando, enfim, estava livre, reencontrou seu grande amor, a quem dera provas tão
notáveis de seu sentimento. O casamento com D. Alexandre de Sousa Holstein realizou-se a 27 de unho de
1779, com quem teve quatro filhos e permaneceu até sua morte em Genebra, em 1793. - PEREIRA, Esteves;
RODRIGUES, Guilherme. “Paim (D. Isabel Juliana de Sousa Coutinho Monteiro)”. In: Portugal:
Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico. vol. V,
Lisboa, 1904, pp. 374-376.
28
STAËL Holstein, Germaine Necker; SOUZA Holstein, D. Pedro de, op. cit., p. 15. Na verdade, segundo a
autora, os padrinhos teriam sido o rei D. Pedro III e a rainha D. Maria II. Mas, como é sabido, esta só viria à
nascer em 1819, filha do Imperador do Brasil D. Pedro I. Portanto, a respectiva rainha, consorte de D. Pedro
III e madrinha de D. Pedro de Sousa, foi D. Maria I.
12
perder sua amada mãe, em abril de 1793. No ano seguinte, quando o exército francês
invadiu a Savóia e a revolução chegou à Genebra, Monod levou seus alunos para a
Holanda e depois para a Inglaterra; numerosos emigrados franceses freqüentavam sua
residência e, assim, o garoto participou de um ambiente de discussões de homens distintos
sobre toda gama de assuntos.
Neste mesmo ano, D. Pedro e suas irmãs partiram para Portugal, e pela primeira
vez conheceram sua pátria. Disse ele: "Tudo era novo para nós, o país, o clima, os
costumes". Lá, ele ingressou na Universidade de Coimbra, mas não pôde concluir o curso a
que se destinava, porque os deveres da hierarquia o obrigaram a alistar-se no exército, por
ser o primogênito de uma casa nobre. Em 1796, assentou praça no regimento de cavalaria,
denominado de Mecklemburgo, e em 1797 foi promovido a capitão e nomeado ajudante de
ordens do duque de Lafões. Por sua personalidade sedutora, não teve problemas para fazer
parte da sociedade. Em Lisboa, relacionou-se com as nobres damas da Corte, e também
com os poetas daquele tempo, em especial com a poetisa marquesa de Alorna, uma das
mais notáveis vozes do pré-romantismo em Portugal, a quem muito se afeiçoou.
Em 1803, foi designado conselheiro da embaixada de Roma, onde seu pai era
embaixador desde o ano anterior. Antes de lá chegar, permaneceu algum tempo em
Florença, e ali conviveu com o grande poeta Vittorio Alfieri, um dos maiores intérpretes
das instâncias patrióticas pré-Risorgimento, pouco antes deste morrer. Já em Roma,
cortejou as bela damas e gozou de todos os prazeres que ofereceram-no. Em dezembro,
faleceu seu pai, mas já D. Pedro conseguira captar a estima do papa e do seu secretário de
Estado, o cardeal Consalvi, que pediram com instância ao governo português que deixasse
ficar o jovem português no lugar vago antes pertencente à seu pai. Assim foi feito, ficando
no cargo até 1805. Em Roma, D. Pedro também conheceu e conviveu com ilustres figuras,
como o químico Gay Lussac e Wilhelm von Humboldt, dentre outros. E é através dessas
personalidades que D. Pedro de Sousa Holstein, agora conde de Sanfré (título herdade de
seu pai), vai conhecer a intrigante e impetuosa Anne-Louise Germaine, a baronesa de Staël
Holstein.
O encontro:
Em dezembro de 1804, oito meses após a morte de seu pai, Madame de Staël
decidiu deixar Coppet e partir para a Itália, lugar pelo qual manifestava já o desejo de
13
escrever um livro, acompanhada de seus filhos e de Schlegel. Primeiramente, foram à
Turim e depois Milão, onde passaram o réveillon; em Roma, chegaram em 4 de fevereiro
de 1805, ficando hospedados, provavelmente, na Place d’Espagne, lugar onde visitantes
ilustres geralmente se acomodavam. Tão logo foi anunciada a presença da egrégia mulher
na cidade eterna, como não poderia deixar de ser, a nova chegada foi cercada por uma
Corte; os homens mais interessantes e distintos se reuniram ao seu redor, ávidos por
conhecê-la e ouvi-la. Entre eles, estavam Wilhelm von Humboldt (filólogo, crítico e
homem de Estado; era o embaixador da Prússia desde 1801), o cardeal Ercole Consalvi
(amigos desde 1795, ele ajudaria a baronesa, mais tarde, a estabilizar as dificuldades do
casamento de Albertine de Staël com o duque de Brogllie), o Conde Khevenhüller
(ministro da Áustria em Roma), o príncipe Koslowski (diplomata russo, unido à Legação),
Alexis Artaud de Montor (secretário da embaixada da França em Roma), o Conde
Giuseppe Alborghetti (secretário da Academia dos Árcades), dentre outros. Aos adeptos do
salão romano da célebre baronesa, uniu-se o jovem português D. Pedro de Souza Holstein.
Madame de Staël logo notou o belo rapaz, que se encantou por ela. Ao terem a
possibilidade de algum contato, imediatamente se identificaram, “um mesmo sentimento
atraiu um para o outro”. Mas o que mais os aproximou foi o fato de ambos terem perdido,
recentemente, um pai adorado. A dor os fez compreenderem-se: “Quando uma desgraça
parecida arranca-vos as lágrimas, há de uma mesma tristeza fazer uma tristeza mais
suave…”29 A partir de então, teve início a amizade, o romance... e a troca de
correspondências.
O primeiro bilhete de Germaine para D. Pedro, e sua resposta, não se pode precisar
as datas, mas está entre 4 e 15 de fevereiro. Neste, ela pede-o para encontrá-la à noite,
provavelmente em sua casa, para recitarem versos, e junto manda-o uma gazeta com
notícias de Monsieur José Manuel de Sousa Pinto, nomeado para assumir a Embaixada de
Roma; sua chegada permitiria D. Pedro poder deixar a cidade.
Aí está vossa gazeta meu caro Conde, que eu envio-vos porque há um escrito
bastante singular, acredito eu, sobre Mr. Pinto; dá-me a noite inteira hoje,
diremos versos e estaremos um pouco sozinhos.
Mil amizades.
M. Staël de H.30
29
30
STAËL Holstein, Germaine Necker; SOUZA Holstein, D. Pedro de, op. cit., p. 17.
Ibidem, p. 24.
14
Apesar da natureza do convite, a designação usada por ela “meu caro conde”, assim
como a formal despedida “mil amizades”, ainda se fazem presentes. Do mesmo modo, ele,
em resposta, ainda chama-a de “madame”, mas pode-se notar seu entusiasmo com a
situação.
É necessário ainda que contra a minha vontade, Madame, que eu me prive da
felicidade de ver-vos em vossa casa esta noite; porque embora eu quisesse
procurar-vos eu não pude sair de minha casa quase o dia todo, encontro-me
contudo numa tal multidão de pequenos negócios à expedir que correria o risco
de encontrar-me amanhã muito embaraçado se eu não tivesse hoje um pouco de
assiduidade. Espero aliás ver-vos e repetir-vos tudo isto mais tarde esta noite na
casa do Conde de Khevenhüller onde irei um momento. Tenhais pena disto que
perco antes de querer-me e fazei, eu vos solicito, justiça aos meus sentimentos
por vós.31
No dia 15, Madame de Staël foi recebida “pastoralmente” na Arcadia-Accademia
Letteraria Italiana, sob o nome de Telisilla Argoica. Depois, D. Pedro foi à sua casa e
participou da reunião juntamente com os árcades, a última antes do embarque de Germaine
para Nápoles, no dia 17, acompanhada de Jean-Charles Léonard Sismonde de Sismondi,
Schlegel, Auguste e Albertine. Esta cidade será vivamente evocada na sua obra Corinne.
Ela não terá a oportunidade de visitá-la acompanhada de D. Pedro, mas é pela imaginação,
sob a figura de Oswald (o amor de Corinne), que com ele contemplará Pompéia, o cabo
Miseno e os arredores.32
É para lá que o conde português endereçou sua próxima carta para a baronesa, em
23 do mesmo mês. Nesta carta, ele demonstra todo o seu deleite com a leitura de Delphine
31
Ibidem, p. 25.
Muito provavelmente D. Pedro de Sousa tenha servido de inspiração para o romance italiano da escritora
francesa. Alguns críticos emitiram pareceres contraditórios: por exemplo, G. Reval declara que ele é “o
grande amor criador do romance”, por outro lado, Dina Lanfredini acredita “que uma figura única domina: a
de Prosper de Barante”. Contudo, Madame de Staël revelou ela própria esta semelhança, quando escrevendo
à Souza, pouco depois de tê-lo deixado, afirma: “vós reconhecer-vos-á tal como vós sois”. Oswald tem todos
os traços do português: como ele, é jovem, belo, perdeu um pai amado, é indeciso, influenciável, dominado
por uma mulher excepcional. Porém, nada assemelha-se menos ao amor apaixonado de Oswald do que os
sentimentos de D. Pedro: ele é deslumbrado por uma personalidade cuja sedução age sobre todos,
secretamente lisonjeado por ter sido escolhido, estimulado por uma compreensão da sua natureza. Ele é
submetido ao encanto daquela que ele chama de sua “divina amiga”, mas, como se pode ver por suas cartas, e
é um dos motivos de sua publicação, nunca esta atração se transformou em amor. É um ser discreto, pouco
apto a inflamar-se. - Ibidem, pp. 18-9.
32
15
e justifica o desencontro ocorrido antes de sua partida, assim como a tristeza na qual se
encontrava por sua ausência.
[...] eu devoro atualmente Delphine com tanto mais de prazer [do] que a
felicidade que tenho em conhecer a autora acrescenta para mim um encanto
inexprimível ao que encontrava já na obra. Vós sois muito boa, Madame, por tervos percebido minha ausência durante a última noite que passou em Roma e a
manhã da vossa partida: concebo que sejais-vos bem fácil perdoar-me, permita
contudo que eu me justifique, porque esta falta de ardor que supõe-me não
combinou-se com a idéia que vós deveis ter de todos os sentimentos que
inspirais! O dia que vós partistes, passei às oito horas da manhã à vossa porta a
fim de saber ao certo o momento de vossa partida; de temer incomodar-vos e de
importunar-vos se eu entrasse em vossa casa em demasiada boa hora, disseramme que tínheis ordenado os vossos cavalos para meio-dia, e quando às onze
horas voltei à vossa casa fiquei sabendo que vós tínheis partido; fui por
conseguinte para consolar-me o quanto possível com Mr. Humboldt, falar de vós
e contar-lhe a minha deplorável aventura. [...] Podeis ler este rabisco, Madame?
Leiais pelo menos as garantias sinceras que ouso dá-las do meu respeito, da
minha devoção, de reconhecimento, de admiração, enfim de todos os
sentimentos com os quais continuo o mais devotado dos vossos empregados
aqui.33
Entretanto, Madame de Staël e sua comitiva estavam em meio a uma agitada
estadia, explorando a bela cidade italiana. No dia 26, fizeram uma excursão ao Vesúvio,
seguida de uma visita à Pompéia. No início de março, eles percorreram Pouzzoles, Cumes
e o Cabo Miseno.34 Deixaram Nápoles no dia 9 retornando à Roma, onde chegaram no dia
13. Uma vez de volta, a baronesa retomou suas relações com D. Pedro.
O bilhete seguinte de Germaine data de sábado, 23 de março. Ela alude a chegada
de um exemplar do Moniteur (periódico francês) de 19 de março, do qual transmite ao
conde português as últimas notícias francesas, em especial, o fato de Napoleão ter se
declarado rei da Itália.
33
Ibidem, pp. 26-7.
Pouzzoles é uma cidade situada na Província de Nápoles, e é conhecida desde a Antigüidade pelo
vulcanismo ao seu redor. Cumes é um sítio arqueológico italiano, onde se estabeleceu uma colônia grega,
aliada dos romanos contra os cartagineses. Cabo Miseno é uma colina repleta de ruínas com uma magnífica
vista sobre a baía de Nápoles, e as ilhas de Ischia e Procida. Segna il confine tra il golfo di Pozzuoli e il
canale di Procida .
34
16
[...] Chegou esta noite uma correspondência com um Moniteur de 19 de março,
que diz que o Imp. Napoleão declarou-se rei da Itália dizendo que nomearia seu
sucessor e separaria este trono do da França quando os russos deixarem Corfou,
os ingleses Malthe e os franceses Nápoles, porque há um relatório de Mr. de
Talleyrand que diz que os franceses permanecem em Nápoles apenas porque os
russos estão em Corfou [...]. O Papa parte em 6 de abril feita sua Páscoa em
Lion e estará aqui em 1º de maio; O Imp. parte alguns dias antes dele e vai fazerse coroar em Milão [...]. Adeus, caro conde, até amanhã ao jantar [...]. Quando
digo amanhã, será hoje quando recebereis este bilhete, mas escrevo-vos
terminando o dia; não percais tempo a responder-me; terminai as vossas cartas e
venhais.35
O bilhete de resposta é do dia 24. D. Pedro, agora, demonstra um pouco mais seus
sentimentos por ela.
Repreendendo-me vós provocais-me ao mesmo tempo dor e prazer e preencheisme de amor próprio; [...] estarei esta noite aos vossos pés para ser ensinado [...].
Confesso-vos que tinha um plano a dizer-vos hoje no jantar, contudo creio que
ele valerá mais assim que vós tivéreis a bondade de prometer-me dedicar-vos
toda a noite, a fim de ter mais comodamente o meio de implorar um perdão que
eu mereça e que desejo, e de beijar de fato esta mesma mão que tomo a liberdade
de o fazê-lo de longe em imaginação.36
Muito galante, ele provocou na baronesa um desejo mais arrebatado. O tom das
cartas seguintes vai demonstrar logo uma grande intimidade, notada pela mudança no trato,
uma vez que a denominação “meu caro conde” é substituído por “querido D. Pedro”. A
partir de então, Germaine vai nutrir por Pedro de Sousa uma amizade apaixonada. Com
ele, durante todo o mês de abril, ela fez passeios românticos por Roma, os quais irá
descrevê-los em Corinne: visitaram palácios, museus e, sobretudo, as ruínas de
monumentos antigos, além de passarem por Tívoli (onde situou a casa de Corinne) e
Frascati. Nesta carta, de 7 de maio, Madame de Staël convida-o a um último passeio pelo
Coliseu, e envia-o versos de amor, com a recomendação de que guarde-os para sempre
lembrar-se dela, pois deixará Roma no dia seguinte.
35
36
STAËL Holstein, Germaine Necker; SOUZA Holstein, D. Pedro de, op. cit., pp. 28-9.
Ibidem, p. 29.
17
[...] Guarde estes versos para vós unicamente até nos lugares onde nada de mim
pode ser repetido, [...] em Portugal, ou em dez anos. Os dias se passando e eu
estou muito pouco sozinha convosco [...]. Se vós retornastes esta noite às 11
horas, poderíamos ir juntos ver o Coliseu à luz da lua. Digo retornar, para deixarvos o tempo de fazerdes visitas; vós sabeis bem que a vida inteira passada
convosco me parece mais curta ainda do que o é.37
É com grande pesar que a baronesa de Staël deixou Roma para voltar à Coppet. Lá
havia chegado, três meses antes, muito infeliz, pela morte de seu pai e pelo exílio. Mas
tudo o que por ela foi vivido, “estas lembranças, estes desertos, este bonito céu ao redor de
Roma”, a fez amar esta cidade. Mas, sobretudo, é D. Pedro que ela deixou. Ele a
acompanhou até à saída de Roma, onde ela o fez prometer ir à Coppet, mas não imaginava
que “o caráter indeciso de seu companheiro fá-lo-á hesitar, e atrasar a sua viagem”.
Mal chegou à Florença, na manhã do dia 12, Madame de Staël escreveu ao amado,
expressando seu arrependimento pela partida.
[...] se vós tivésseis pedido-me eu teria ficado até à chegada do papa, mas talvez
vós não tenhais dito-me nada por delicadeza, e por uma certa de timidez não
ousei dizer-vos que eu o desejava [...]. Cada dia que passo, eu me repreendo por
ter partido [...]. Escrevê-lo-ei amanhã; tenho apenas um momento para apreender
o correio de Gênova. Que esta carta por conseguinte diga-vos apenas que eu o
adoro e que sofro.
Mas “é na carta de 14 de maio que se revela a alma de Madame de Staël”. A distância a fez
sentir a necessidade de expor seus sentimentos. É aqui que ela, de fato, amarga a diferença
de idade entre ambos, chegando a manifestar a idéia de casá-lo com sua filha Albertine no
futuro. A insegurança, percebida nas comparações que faz no decorrer da carta, a fez pôr à
prova as intenções do jovem e belo português e, para isso, ela o convida para ir à Coppet.
Tudo isso será usado por ela na composição de Corinne.
Eu não posso expressar-me, não posso confessar à mim mesma o quanto estou
infeliz por tê-lo deixado; nunca alimentei a esperança de passar a minha vida
convosco e sofro como se me fosse confiada à felicidade. Há no vosso caráter e
nas vossas maneiras não sei qual encanto que agiu misteriosamente sobre mim
[...] esta deliciosa harmonia de todo vosso ser que fez-me encontrar tanto
37
Ibidem, pp. 30-1.
18
encantamento na nossa amizade; mas o que dizer mais além de que vós triunfais
sobre a minha própria natureza? Tudo é gesto em mim, tudo é reflexão em vós,
tudo que sinto eu digo-vos, uma vela cobre todas as vossas impressões e contudo
eu estou mais unida pelo segredo da vossa alma, do que por tudo que nunca me
foi revelado; o tempo provará se este sentimento é uma ilusão da imaginação, ou
um instinto do coração que fez-me achar-vos; se vós sois isso que creio, vós me
amareis algum tempo, não sempre, porque o destino não nos fez contemporâneos
mas não será facilmente que vós dareis o meu lugar no vosso coração [...]; então,
querido D. Pedro, [...] é necessário que eu veja-vos novamente, é necessário para
nossas paixões pelo menos dois meses em Coppet e perto de Paris onde eu vos
veja sem constrangimentos [...] Ah venhais, venhais onde sereis recebido com
todas as afeições que o entusiasmo e a estima podem reunir; o vosso espírito e os
vossos sentimentos são às vezes prisioneiros no interior de vós mesmo, serei o
cavaleiro que vos resgatará, eu ensinar-vos-ei à conhecer-vos e à mostrar-vos
como sois, e quando fordes mais amável ainda do que o é, deixar-vos-ei e a
minha quimera será que vós sereis um dia o cônjuge da minha filha. [...]
asseguro-vos que ela terá o que pôde distinguir-me com vantagens a mais e
defeitos menos. Querido D. Pedro, isso não é completamente uma loucura,
apenas uma idéia; acredite-me, vós tereis a necessidade de uma mulher
diferenciada, vossa superioridade natural unida à da indolência, vos tornais mais
necessário que se una à uma mulher de espírito; [...] os gozos do coração são
mais íntimos, mais religiosos no seio dos homens virtuosos, disse um antigo, não
sei qual Deus mas habita um Deus, ah eu senti este Deus, nas ruínas em Roma,
que eu percorri convosco à luz da lua quase no momento de deixar-vos. Toda
minha alma foi penetrada de pesar, de ternura, de admiração, nós somos
contemporâneos sobre os destroços dos séculos, nós fomos unidos pelo mesmo
culto para com tudo o que é bonito [...]. Roma e vós são inseparáveis na minha
memória, compreendi apenas por vós as delícias desta estada; a minha
imaginação tem povoado o deserto, eu vos tenho amado e és tudo para mim [...]
Dois meses da minha vida são vossa obra, não sereis vós tentado a fazer-me
concessão ainda de alguns meses semelhantes! [...] se Mr. Pinto tardar a vir à
Turim e Genebra, eu serei capaz de passar o inverno seguinte na Itália se vós lá
estiverdes; sem vós todos os lugares me causariam uma emoção demasiado
dolorosa, enfim, decidais. Vós lestes o meu coração.38
A baronesa decidiu prolongar um pouco mais sua estadia florentina, pois encontrou
sua amiga Madame D’Albany, a viúva do poeta Alfieri, que entregou-lhe o manuscrito da
vida do ilustre italiano, a quem ela muito admirava. Mas, antes que D. Pedro pudesse
38
Ibidem, pp. 35-8.
19
responder a carta anterior, ela enviou-lhe uma nova, escrita dois dias depois, em 16 de
maio, dando-lhe notícias sobre os acontecimentos em Florença, e prosseguindo com as
lamúrias pela separação. Tudo a lembrava D. Pedro, inclusive o canto de “Madame
Bellina” recordou-lhe a suave voz. Mas ao final da carta ela o pressiona para um novo
encontro.
Estou ainda aqui porque realmente encheram-me de atenções e porque
tenho nas minhas mãos o manuscrito da vida de Alfieri escrito por ele mesmo e
que quero terminar antes de partir. [...] Ouvi ontem cantar uma dama Bellina que
deleitou-me pelos duos de Arioste, os conheceis? Cantai-os; ouvindo-os
representava-me a vossa suave voz, os vossos olhares tão sensíveis e voltados
para o céu assim como para a sua pátria. Querido D. Pedro, como tudo isso fezme sentir ainda mais quem vós sois. [...] Tenho estado constantemente comovida
por Madame D'Albany e por esta casa onde Alfieri viveu, amou, sofreu; é o
único italiano que foi um homem de norte pela profundidade das suas
impressões e pela independência dos seus sentimentos. Madame D'Albany não
tem muito de espírito, mas de naturalidade, e os olhos sempre cheios de lágrimas
chamando; [...] ela me tem falado de vós com muito interesse, disse-me que vós
agradastes à Alfieri mais que qualquer outro português [...] Para mim, todas as
circunstâncias, todas as conveniências, todos os interesses da vida estão no
coração, e por um sentimento eu faria a viagem de Humboldt com felicidade.
[...] esta carta já está demasiado longa. Adeus, adeus. Eu tenho estado aqui
constantemente sofrendo, eu não posso então adiar esta separação. Adeus.39
Em Roma, D. Pedro ainda não havia recebido as últimas correspondências da
baronesa, estava sem notícias dela. Também sofria pela separação, lamentava “afastar-se
daquilo que o havia encantado”. Então, em 15 de maio, ele escreveu-lhe uma carta. Nesta,
ele demonstra todo o seu desânimo e descreve a horrível sensação de andar pela cidade
lembrando a todo o momento do tempo que lá passaram juntos.
É triste para alguém que durante dois meses teve continuamente a felicidade de
ver-vos e de entender-vos, e está agora reduzido à manter convosco uma
conversa única e por escrito! Quanto encontro esta compensação insuficiente e
quanto lamento o tempo que escoou-se e do qual acuso-me que não ter
aproveitado tanto quanto eu tê-lo-ia podido! [...] Eu estou na maior impaciência
para receber notícias de vossa saúde e dos acontecimentos da vossa viagem [...].
Eu não tenho nada à dizer-vos relativamente à mim que vós não possais supor,
39
Ibidem, pp. 38-40.
20
minha vida se passa depois que vós partistes daqui com uma tal monotonia e um
tal enfado que quase tenho perdido a faculdade de pensar e a vontade de falar;
[...] O momento mais triste que tive foi o qual fui obrigado a refazer sozinho a
mesma estrada pela qual num momento antes nós tínhamos passados juntos;
nunca a cidade Roma e as suas campanhas desertas tinham-me parecido tão
melancólicas quanto neste momento onde eu lá retornei e me afastei em sentido
oposto de vós. [...] Abraçai, eu solicito-vos, as vossas crianças de minha parte e
compreendendo mesmo, se permite-me, a encantadora pequena Albertine.40
Assim, eis que chegou às suas mãos, no dia 18, o bilhete de Germaine escrito no dia
12 de maio. Por um lado, ele ficou feliz por receber notícias da escritora, mas, por outro,
ficou decepcionado pelo fato de saber que ela decidiu deixar Roma impulsivamente por ele
não ter aparecido nem na véspera, nem no dia de sua partida, e também por não tê-la
pedido pra ficar.
O bilhete que vós me escrevestes de Florença pelo correio de Gênova tirou-me
da apreensão mortal a qual eu tinha estado sobre a vossa conta durante 24 horas
que eu não tinha recebido notícias vossas, como esperava, à véspera do correio
da Toscana. [...] Um artigo da vossa carta tem-me afligido extremamente! Como
é possível que vós tenhais resistido ao desejo que vos arrebatava à deter-vos aqui
ainda por alguns dias, se vós sentíeis que este atraso podia combinar-se com a
urgência dos vossos negócios? Como é possível que um atraso bem justificado
da minha parte, com todo o respeito, tenha feito-vos decidir partir?
Freqüentemente eu repetia que não diria-vos nada sobre este caso, dado que vós
podíeis facilmente compreender quais eram, à respeito daquilo, meus desejos e
meus anseios, e que, supondo que seríeis do mesmo modo para vós, era inútil
acrescentar à dor de que vós tínheis de partir o embaraço de resistir às minhas
solicitações e as minhas orações! Enfim, não retornemos sobre o passado, gosto
mais de descansar sobre o futuro [...]. Vós podeis acreditar no quanto antecipo
sobre a felicidade de passar convosco alguns dias em Coppet; [...] Uma outra vez
falar-vos-ei das notícias do país. - Eu não permanecerei mais neste espaço para
solicitar-vos pensares em mim.41
Depois de receber este bilhete, no final do mês as cartas de 14 e 16 de maio chegaram à ele
que, esfuziante, colocou em nova carta suas impressões sobre tais. A atmosfera é de muito
romance.
40
41
Ibidem, pp. 41-2.
Ibidem, pp. 43-4.
21
Encontro-me rico neste momento, minha celeste amiga, recebi duas cartas vossas
consecutivamente que certamente causaram-me ainda mais prazer [...]. Eu tenho
estado até este momento, lhe confesso, mais acostumado a pensar e a sentir do
que a falar e escrever, e sinto-me tão indigno de manter-me convosco ou pelo
menos tão incapaz de fazê-lo, que tenho algumas vezes vergonha de respondervos; [...] Roma está bem triste depois de vossa partida, minha amável amiga, eu
procuro quais são os motivos que puderam contribuir para aumentar esta tristeza,
mas de boa fé, penso que não deve ser atribuída à vossa partida; [...] Perdão, eu
pareço-vos cerimonioso, insensato que sou eu... mas não pude permanecer
relendo o pedaço da vossa carta no qual vós falais-me do nosso passeio ao
Coliseu, e a lembrança das sensações que eu lá experimentei retornaram e
apreenderam-se completamente de mim! Se eu rever neste momento o coliseu,
não me parecerá mais que uma bela ruína [...]. Beijo-vos a mão de longe com
menos prazer, mas com tanto entusiasmo quanto de perto.42
Em 18 ou 19 de maio, Madame de Staël partiu de Florença em direção à Bolonha.
Como as respostas de suas cartas anteriores ainda não haviam chegado, no dia 22 ela
novamente escreveu, e é nesta carta que estabelece sua visão sobre o caráter de D. Pedro,
“esta indolência natural que impedia seus talentos reais de se desenvolverem”. Assim, a
baronesa tenta estimulá-lo, usando o poeta Alfieri como exemplo.
[...] Em Florença, li com verdadeira avidez a vida de Alfieri escrita por ele,
parece-me que há alguma relação convosco [...]. Traduzais em português esta
ode de Dryden, faça conhecer vossa nação as belezas desconhecidas das línguas
estrangeiras; vós tendes a temer apenas a indolência, tudo é em vós, acreditaisme, espírito, imaginação, e esta alma tão nobre e tão pura, que dá à todos os
talentos intelectuais um encanto e uma dignidade inexprimíveis, mas vós viveis
bastante com pessoas demasiado inferiores à vós, em todo caso, e vós não
deixais ir à vossa distinção natural [...].43
Nesta próxima carta do mês de junho, não se sabe exatamente quando, é perceptível
o estado de ânimo de D. Pedro, uma vez que ele descreve sua condição psíquica, sua
melancolia. Mas, ao mesmo tempo, parece seguir os conselhos de Germaine e começa a
42
43
Ibidem, pp. 44-8.
Ibidem, pp. 48-52.
22
escrever. Aqui também, embora nunca tenha comentado sobre a tal idéia da baronesa, de
casá-lo com Albertine, ele deixa claro que somente quer sua amizade.
Estive depois que escrevi a última vez, ainda mais raivoso e mais melancólico
que o normal, como eu estou acostumado à estas espécies de acessos não há nada
nisso que deva espantar-vos ou dar-vos lugar à tirar conseqüências. Eu creio
contudo que, desta vez, as causas psíquicas tiveram alguma contribuição
(embora involuntariamente) para o meu mal-humor [...] Acrescentais à ele o
trabalho que eu estava rigorosamente obrigado a fazer, [...] Enfim, com um
pouco de paciência tudo isso passa, tudo se apaga neste mundo e nos corações
excetuando os sentimentos quando eles são sinceros e fundamentados sobre as
qualidades reais e estes que tenho por vós são certamente deste gênero. [...] tive
os dias passados o desejo de consagrar alguns versos às idéias que inspiravamme [...]. Com respeito à tradução de Dryden, comecei-a, tenho muitas
dificuldades, porque eu não desejo massacrar os bonitos versos deste poeta como
as minhas próprias concepções e há alguns anos perdi o hábito de escrever em
versos portugueses e de falar esta língua, e finalmente eu não tenho dicionário
este que põe às vezes o cúmulo ao meu embaraço. [...] Cumprimentais as vossas
crianças da minha parte e a encantadora Albertine de que gosto demasiado para
querer nunca ser-lhe diferentemente que como o seu amigo [...].44
Saindo de Bolonha em 24 de maio, a baronesa de Staël-Holstein dirigiu-se à
Veneza, passando, primeiramente, por Ferrare; lá ela encontrou o poeta Onofrio Minzoni,
dono da tradução do soneto sobre a Paixão de Cristo o qual Germaine havia recitado na
Academia Árcade. Depois, passou por Padoue, vindo a chegar em Veneza no dia 27. Lá,
ela freqüentou os salões venezianos, e considerou-os os melhores da Itália. Mas, “o charme
melancólico da cidade atingiu-a”! Dessa forma, foi na “cidade dos amantes” que ela
descreveu, em Corinne, o adeus da jovem protagonista e seu amado Oswald. A seguinte
carta Madame de Staël começou-a em Padoue, em 26 do presente mês, terminado-a
somente em Veneza. Ela expõe suas considerações acerca da cidade, destes salões e, é
claro, dos seus sentimentos; ela tenta fazê-lo não se esquecer da promessa de ir à Coppet, e
tenta apressá-lo à isso.
Minha mais doce ocupação, querido D. Pedro, é escrever-vos, e desde que me
destes a esperança de rever-vos em breve é-me necessário não quebrar esta
44
Ibidem, 53-5.
23
cadeia de sentimentos e de pensamentos que unem-me assim intimamente à vós;
[...] É 31 de maio em Veneza. Comecei esta carta em Padoue, e como escreve-se
aqui apenas uma vez por semana para Roma, sou obrigada a esperar até amanhã
para terminá-la. Passei cinco dias em Veneza no meio dos venezianos e das
venezianas que encheram-me extraordinariamente de acolhimento; há lá mais de
sociedade, e por conseqüência mais de espírito de sociedade, que no resto da
Itália [...]. Eu parto amanhã para Milão onde não creio encontrar o imperador,
mas é provável que ele virá durante os 15 dias que lá passarei. [...] ah D. Pedro
vós não sentistes a separação como eu! Vós sois à mim mais necessário que eu
sou à vós; esta guerra deveria acelerar a vossa partida, os caminhos podem ficar
piores, enfim acelerai-vos mais [...]. A situação de Veneza é muito singular e
quando está-se feliz todos estes costumes misteriosos, as gôndolas, os canais,
tudo deve excitar as impressões poéticas, mas para mim que sofria com as
lamentações, encontrei-me mal de alma e saúde e é lá que colocarei o adeus do
meu romance.45
A próxima parada de Madame de Staël em direção à Coppet foi novamente Milão,
lugar onde havia passado o Réveillon. Nesta, Napoleão havia sido coroado rei da Itália em
26 de maio. É certo que ela não assistiu à cerimônia, mas, ao que parece, foi bem recebida
pela Corte do Imperador. “A viagem à Itália pareceu marcar uma trégua nas relações entre
Napoleão e Madame de Staël”. No período que seguiu-se das festas em decorrência de tal
coroação, todos mostraram-se amáveis com ela, inclusive Josephine que a elogiou. Além
disso, foi marcada em Turim uma reunião com o ministro das Finanças, de modo à discutir
sobre o pagamento do empréstimo feito por Jacques Necker ao Tesouro francês. Apesar de
tão bons acontecimentos, Germaine sofria com o silêncio das notícias da partida de D.
Pedro para Coppet, pelo fato de que em sua última carta ele não havia sequer mencionado
sobre o assunto; ela temia não vê-lo mais. Em carta de 15 de junho, fala-o diretamente
sobre o assunto.
Vosso silêncio meu querido D. Pedro faz-me infeliz, e vossa carta de fato fez-me
também, porque vós não me dissestes uma palavra disso que unicamente me
interessa, vossa partida [...] Vós tereis maldade se abandonardes meu coração, se
vós não vierdes para perto de mim; sinto que vós tendes maldade, mas vós
tendes necessidade de serdes amado profundamente e as doces afeições
45
Ibidem, pp. 56-9.
24
superficiais não vos são suficientes. [...] Eu peço-vos para enviar-me aqueles
versos sobre as lembranças que tocaram-me profundamente.46
Tão logo recebeu a carta milanesa, o conde português imediatamente respondeu-a,
em 19 de junho. Ele fica feliz pela audiência da baronesa com o ministro, acreditando ter
ela muitas chances de reaver o dinheiro de seu pai, mas explica-lhe que o embaixador
nomeado, José Manuel de Sousa Pinto, ainda o retém em Roma, uma vez que ainda não
havia chegado para tomar posse do cargo. Assim, não lhe dá a informação que tanto
deseja: a partida para Coppet.
Eu não posso exprimir-vos com quanto de agitação eu esperei as notícias de
vossa passagem por Milão, e qual prazer senti quando eu soube que tudo se tinha
passado não somente com cortesia, mas mesmo com uma galanteria
cavalheiresca. Agora, é vosso negócio fazer a conquista deste Ministro [das
Finanças] que tem-vos rejeitado, e se vós assim o fizerdes podeis contar como
realizado [o pagamento], porque ninguém nunca opôs-se à Alexandre o Grande e
à vós. [...] teria sido muito feliz para mim se vós tivestes encontrado sobre a
vossa estrada o meu apático sucessor [...]. Eu poderia esperar de ver-me um tanto
salvo de minha prisão em Roma; infelizmente este acaso não teve lugar, e exceto
vós eu não conheço pessoa no mundo que possa esperar adquirir bastante
influência sobre ele para fazer-lhe acelerar um dia sua marcha de tartaruga. Ele
está atualmente em Florença, [...] mas só Deus sabe quando chegará! Contudo eu
estou desesperançoso de todos esses atrasos, porque para além do desejo muito
vivo que tenho de ir passar alguns dias em Coppet, eu ao mesmo tempo necessito
com mais urgência parar-me algum tempo no Piemonte e apressar o mais que me
seja possível minha chegada em Portugal onde meus amigos e meus negócios
requerem-me de uma maneira muito imperiosa. Enfim, o que há de certo no
meio de tudo isso, é que a todo custo eu não deixarei de procurar a felicidade de
rever-vos em vossa casa, e para o resto é necessário estar ligeiramente
despreocupado e abandonar-se cegamente ao destino ou ao acaso que regula
estas espécies de coisas.47
Finalmente, Madame de Staël retornou à Coppet, mas antes fez uma pequena
parada em Turim, provavelmente para a tal audiência financeira, e de onde escreveu, em
46
47
Ibidem, pp. 60-1.
Ibidem, pp. 61-4.
25
20 de junho, uma pequena carta, pedindo ao português que escrevesse-a sempre e dissesse
quando pretendia chegar à Suíça para visitá-la.
Já em Coppet, ela passou o verão na composição de seu romance e lamentando a
partida da Itália. Em cada trecho redigido, ela se lembrava
de todos os momentos felizes experimentados por ela ao lado do jovem e galante D.
Pedro. Assim, é “D. Pedro que tornar-se-á Oswald e cuja presença evoca à sua face”. Com
a demora deste e uma interrupção na seqüência das correspondências, um outro cavalheiro
apresentou-se à ela: este era Proper de Barante, filho do prefeito de Genebra, moço,
formoso, “amante ardente” e ansiando desposar-lhe. De fato, ele também concedeu traços
ao personagem de Oswald.
Então, em 24 de setembro, Pedro de Sousa escreveu novamente à sua “divina
amiga”, lamentando sua falta de consideração para com ela por ter passado tanto tempo
sem dar notícias. Agora, Monsieur Pinto já se encontrava em Roma, sendo assim, ele tenta
justificar porque ainda não partiu, mas desta vez faz uma previsão; e faz isso de um modo
sempre muito galanteador.
[...] Eu unicamente não poderei jamais perdoar-me por este longo silêncio e vós
deveis esquecê-lo facilmente. [...] vós não sois uma pessoa que se possa esquecer
[...] mas asseguro-vos que não cessei um momento desde a vossa partida de
sentir por vós no mesmo grau que durante os felizes momentos de vossa estada
em Roma [...]. Fui com Alexandre de Humboldt à Nápoles e ao fim de vinte dias
retornei antes dele, sempre apressado para empreender minha grande viagem, e
desejando certamente mais que tudo chegar à terra prometida de Coppet. Aqui
começa minha história lamentável, mil preocupações a respeito dos meus
negócios domésticos, Mr. Pinto que durante um longo tempo recusou-se muito
seriamente de deixar-me partir, até para que ele se colocasse a par de nossa tola
rotina de Roma, em seguida um pequeno retorno da febre, e sobretudo um pouco
desta irresolução que me é bastante natural, reteve-me até o presente. À cada dia
de correio prometo-me que escrever-vos-ei o momento da minha partida, e
sempre a impossibilidade de fazê-lo obrigava-me a adiar a minha carta. [...] eu
parto em 4 ou 5 dias para Turim e de lá para Coppet. [...] o caminho de Veneza
que eu tomo adiará talvez 7 ou 8 dias o início de minha viagem, [...] é certo que
logo acelerar-me-ei de terminar em Turim os meus fastidiosos negócios, vós
vereis-me certamente chegar aos vossos pés na pressa de alongar tanto quanto
puder os mais felizes momentos da minha vida. Então, eu deixo-vos e digo-vos
adeus até Veneza. Dizeis-me que vós perdoais-me, mas que isto não seja um
26
desses frios perdões, filho da frieza ou a indiferença. Eu imploro um
esquecimento bem honesto da minha falta, jurando-vos uma eterna e inteira
devoção.48
Como combinado, ao fim de setembro, D. Pedro finalmente deixou Roma, mas com
alguma hesitação. “Por Terni, cujas cascatas entusiasmaram-no, passou por Lorette,
Foligno, Fano, Rimini, Bolonha, Parma e chegou em Turim”. Ao que parece, não esteve
em Veneza como pretendia. Entretanto, alguns dias de atraso na viagem à Coppet
tornaram-se meses, uma vez que ele acabou por permanecer todo o inverno em Turim por
causa dos negócios de família, e também pelo fato de lá ter encontrado uma noiva,
Mademoiselle de Perron, uma bela jovem que pertencia à uma família de muita influência,
Mas não muito rica, possivelmente de razoável fortuna. Todavia, inúmeros bilhetes à todo
momento vinham recordar-lhe sua promessa que ir à Coppet, mas o tom destes, com o
passar do tempo, já não era mais o mesmo: “acabaram as efusões de Florença, a recordação
sentimental dos passeios em Roma”; um outro homem havia passado pela vida de Madame
de Staël, mas obviamente não lhe causou o mesmo impacto. Em 17 de outubro, ela
escreve-lhe as seguintes palavras:
Vosso silêncio, D. Pedro, fez-me sentir um cruel sentimento de tristeza [...]. Eu
continuo aqui ou em Genebra para esperar-vos. Dá-me o tempo que vós havíeis
prometido-me, ou devolva-me os versos que escrevi à vós de minha mão, porque
se não tendes mais amizade por mim, eu não quero que permaneça-vos provas da
minha, mas porque por conseguinte esquecestes-me? As mais afastadas das
minhas relações na Itália escreveram-me com cuidado, com interesse, e vós que
inspirastes-me tão profundo interesse, não temeste afligir-me. É que tem-se
menos valor por quem se gosta? Ou minha amizade diminuiu-se de meu mérito à
vossos olhos? Enfim venhais, e vós sereis perdoado. [...]Adeus, apesar de todas
as vossas faltas [...].49
Cansada do silêncio e da espera em Coppet, Madame de Staël resolveu ir para
Genebra. De lá, mandou outros bilhetes à D. Pedro, mas não recebeu notícia alguma; dessa
forma, ela irritou-se! Contudo, ainda tem muitas esperanças em levá-lo para lá, como se vê
neste bilhete de 27 de outubro:
48
49
Ibidem, pp. 65-7.
Ibidem, pp. 68-9.
27
Eu tenho-vos escrito para Milão e para Turim. Assim, vós tendes estado acolhido
por toda parte com minhas cartas e meu vivo desejo de ver-vos, eu adiei minha
viagem à Lyon para receber-vos melhor aqui. Enfim estou muito profundamente
ocupada da felicidade de manter-me ainda uma vez, talvez uma última vez,
convosco. [...]50
E mantém o tom e o discurso novamente em 12 de novembro:
[...] Vós tendes visto que a idéia de sentir-vos perto de mim tem abrandado meu
ressentimento, ao mesmo tempo quando penso que nada amei na Itália tanto
quanto vós, e que vós sois o único que negligenciastes-me, sou tentada a culpar
um de nós dois, decidais! Eu deverei ir à Lyon no mês de novembro [...], adiei
esta viagem até o mês de abril para esperar-vos e tenho lá, é verdade, algum
mérito, porque estou muito impaciente de ver-vos. Veremos agora qual será a
vossa impaciência, e o tempo que me dará. [...] Ai de mim, para suportar à uma
ausência tão longa não é necessário deixar lembranças bem doces?51
Somente em 18 de dezembro a baronesa de Staël afinal recebeu uma carta de D.
Pedro, mas esta vem anunciando seu noivado. É perceptível o constrangimento de do
português ao dar-lhe a notícia, por isso, ele descontrai, mas o embaraço é inevitável, de
modo que ele tem a precaução de mostrar-lhe que é um “negócio” sem nenhum sentimento
envolvido, e que os seus em relação à ela estão intactos.
Como desejo-me mal por ter passado assim tanto tempo sem escrever-vos! À vós
que a lembrança não me deixa e não me deixará jamais, e que não cessam,
apesar das minhas indesculpáveis lacunas, de conservar à mim sempre vossa
amizade. A preguiça à qual até agora todas as minhas faltas no que diz respeito a
vós devem ser atribuídas, não é contudo a primeira causa do silêncio que guardo
desde há algum tempo. Tenho uma confissão à fazer-vos, ensaiei-a dez vezes e
sempre adiei dizê-la no temor de que vós dissestes que é a confissão de uma
loucura. Mas a sorte está lançada; arranjei meu casamento, e isto mais
rapidamente e com menos certeza como eu não teria posto-me a comprar um
carro ou um cavalo. Realmente, quando eu penso não posso ainda convencer à
mim mesmo. Mas o que vós quereis: não casaria-me nunca se pesasse bem
50
51
Ibidem, pp. 70-1.
Ibidem, pp. 71-2.
28
maduramente e bem prudentemente os prós e os contras, é necessário fechar os
olhos quando quer-se cruzar este fosso. [...] Vós conheceis a pessoa de que se
trata, é a filha de Madame de Perron que vós vistes aqui e esta última
encarregou-me de dizer-vos mil coisas de sua parte quando escrevesse-vos. [...]
Após uma história como esta que acabo de contar-vos, não ousarei dizer-vos
mais nada agora. Queira conservar-me as bondades e uma amizade à qual ligarei
toda minha vida um valor muito superior à tudo isso que eu poderei dizer-vos, e
juro-vos uma parte essencial de minha felicidade. [...]52
Como não poderia ser diferente, Madame de Staël foi intensamente abalada por
estas palavras, jamais esperava que coisa semelhante pudesse acontecer tão cedo. Ainda
que tenha-lhe dado uma resposta fria, não pôde deixar de dizê-la, e também não pôde
deixar de pedir um último encontro, como já lhe havia sido prometido. Em 22 de dezembro
ela escreve:
Recebi a notícia de vosso noivado, D. Pedro, com emoção; não acreditei que
determinaríeis vossa vida tão cedo. Mademoiselle de Perron é encantadora e sua
mãe muito amável. Pedir-vos-ei para mandar-me os versos que dei-vos e tudo
mais deste tipo que vós tendes de mim. Lembrai-vos que eu pus esta condição e
que vós a havíeis aceitado. Eu rever-vos-ei sempre com prazer, sempre com
interesse. Venhais aqui, é talvez a última vez que nós nos veremos. Adeus, D.
Pedro, que vossa felicidade não apague vossas lembranças de Roma. Eu, que não
serei jamais feliz, não posso nada esquecer.53
Pouco mais de dois meses após esta última carta, D. Pedro, enfim, cumpriu seu
juramento e chegou à Coppet em 28 de fevereiro. Durante cerca de dois meses, ele
hospedou-se em Genebra e em Coppet, participando dos eventos realizados naquelas
sociedades, em um tempo de extrema felicidade, os quais ele classifica como “os mais
agradáveis de sua vida”.54
Em 19 de abril, Madame de Staël, na companhia dos filhos Albert e Albertine, de
Schlegel e de D. Pedro de Sousa, partia para Auxerre, na França, lugar este que ficava à 40
léguas de paris, o máximo de aproximação da capital francesa tolerado por Napoleão. O
que se pretendia era chegar pouco a pouco mai próximo de lá. Porém, logo nos primeiros
dias, Schlegel caiu doente e ela foi obrigada à ficar confinada nesta cidade onde não
52
Ibidem, pp. 72-3.
Ibidem, p. 74.
54
Ibidem, p. 75.
53
29
conhecia ninguém. O cavalheiro Pedro de Sousa ofereceu-se para fazer-lhe companhia até
a convalescença do alemão, mas por delicadeza ela recusou. Assim, ele deixou-a e foi para
Paris.55
O período que abrange os meses de abril à agosto de 1806 não foram encontradas
nenhuma carta de D. Pedro para Madame de Staël, mas é sabido que pelo menos uma a foi
enviada, pois nesta próxima carta de Germaine, datada de 3 de maio, ela faz menção à tal
correspondência: “pequena carta sobre o grosso papel”. É possível que nesta ele tenha
falado sobre sua volta à Portugal, de modo que a baronesa questiona sobre o assunto.
Ainda, ela se mostra saudosa dos tempos em Roma e roga-lha não partir antes de vê-la uma
última vez.
Amei muito, meu querido D. Pedro, vossa pequena carta sobre o grosso papel, se
bem que ela chegou-me num correio bastante tarde. Perdoei mesmo vossos
enternecimentos portugueses, mas não esqueço que prometeu-me que eles não
passarão o mar. [...] Vós não me dissestes uma palavra de vossas cartas de
Portugal, é questão de uma missão? O que escreveram-vos de Turim? Sempre a
mesma coisa, estou bem certa, mas vós não adivinhais a metade das perguntas
que eu queria fazer-vos, respondei-me sem ser perguntado. [...] Adeus, querido
D. Pedro, amai-me, escrevei-me e fazeis de nossa paixão muito de nossa vida
conjunta; [...] Eu vos amo sempre contudo do mesmo modo; esta capacidade de
amar não morrerá comigo. Oh! Quanto eu fui feliz em Roma há pouco mais de
um ano, querido D. Pedro. O que estou fazendo nesta França onde tudo é tristeza
para mim? Levai-me para a Espanha. Seriamente encontrar-me-ei bem mais
triste de ir sem rever-vos.56
Mais dois meses se passaram e nenhuma resposta do conde português chegou à
mãos da baronesa. Isso, definitivamente, deprimiu-a ainda mais. Os amigos, então, saíram
em seu socorro, mas seus esforços em reanimá-la falharam. Em Paris, D. Pedro sentia-se
extremamente bem, onde os amigos de Madame de Staël haviam-no muito bem recebido.
Enquanto ele aproveitava tudo o que a bela cidade podia proporcioná-lo, Germaine cada
vez mais estava amargurada e sentindo-se solitária. Em 5 de junho ela escreveu:
Eu lamento um pouco, meu querido D. Pedro, de vossa omissão; é grande o
efeito de Paris sobre os franceses, mas esperava que os estrangeiros escapassem.
Minha saúde tem estado sempre de mais a mais prejudicada nesta estadia a qual
55
56
Ibidem, p. 77.
Ibidem, pp. 78-80.
30
sofri tanto! E é à força de ópio que eu sou poupada de 12 horas de dor sobre as
24. [...] Partirei contudo sem rever-vos! Oh! Isso parece-me bem triste e é talvez
um pressentimento esta dor que faz-me tão triste em deixar-vos. Se eu não revervos onde eu reencontrar-vos-ei? Ah! O que há de palavras simples que contêm
de amarga tristeza! E quanto este pequeno exílio contém de dor!57
Em 8 de junho nova carta: ela não conseguia mais viver em Auxerre, mas não
queria partir sem que o português encontrasse-a uma última vez antes que deixasse a
França para unir-se à Portugal. Assim, muito perturbada, ela implorou por sua ida até lá.
Já que tens, querido D. Pedro, o muito amável pensamento de dizer-me adeus,
escolheis esta semana [...]. Em sim ou em não tornei esta estadia um horror
nervoso e não vivo um pouco desde que vim na câmara mesmo onde vós
dissestes-me tão suave adeus; renovai-os contudo e roguai ao céu por mim para
que eu viva uma vez na mesma cidade que vós. [...] Eu esperar-vos-ei com Mr.
de Montmorency, querido D. Pedro, e eis que minha esperança é ludibriada!
Tenho estado também bem atormentada por todas as notícias políticas quando
elas dizem respeito à vós. Tenho febre há dois dias, não sei se resistirei à tanta
dor. Um momento bem doce será este o qual rever-vos-ei ainda uma última vez.
[...] dê-me a felicidade de rever-vos ainda e a felicidade de dizer-vos adeus. Eu
lá encontro algum encanto.58
Mas D. Pedro não lhe enviou sequer um bilhete. Desse modo, preocupado com o
abatimento de sua amiga, Mathieu de Montmorency, logo no dia 10, mandou à ele um
recado, no qual pedia-o para “encarregar-se de nossa amiga triste e infeliz. Crê-se que ela
terá uma grande consolação vendo-o”. Imediatamente, ele partiu para Auxerre para tirar
Germaine do calvário em que vivia. Lá ficou de 12 à 17 de junho, quando voltou à Paris.59
Algum tempo depois, em 31 de julho, Pedro de Sousa novamente pôs-se à
encontrar Madame de Staël. Mas, dessa vez, para fazer com que ele mantivesse o devido
contato, ela sugeriu que o jovem conde traduzisse os Lusíadas, de Camões, para o francês.
Ele, de fato, aceitou a empreitada, mas, tomado pelos acontecimentos políticos de seu país,
nunca chegou a terminar tal tradução. Após três semanas encantadoras, o português voltou
à Paris, em 22 de agosto. Extasiada, Madame de Staël escreveu-o no dia 26:
57
Ibidem, p. 80.
Ibidem, p. 81.
59
Ibidem, pp. 81-2.
58
31
Que as primeiras palavras que escrevo sejam para vós, querido D. Pedro, à quem
devo três semanas tão doces e tão indefectíveis. Com qual simplicidade vós
sacrificastes tudo o que é luxo e prazer, para vos dedicastes à todos os tipos de
privação exceto às do sentimento, porque não tínheis certamente privações, dado
que ninguém no mundo pode nem amar-vos nem sentir-vos como eu; estas
pobres oitavas de Camões faltam-me quase tanto quanto o seu autor. [...]
Schlegel está bastante fraco e a cabeça trabalha em todos os sentidos de uma
maneira penosa. [...] Adeus, até [dia] 9, não é? Com as oitavas? E a paz, o que
diz-se? Isso será bem melhor que o [dia] 9. Escreva-me imediatamente nem que
for algumas linhas; elas far-me-ão bem.60
A condição de Madame de Staël, embora fosse amenizada pelos amigos, era
constante, ou seja, por mais que eles fossem pedir por ela, para que pudesse ficar por
algum tempo em Paris, não conseguiam nenhum indulto, e isso deixava-a cada vez mais
desesperançosa. No dia 30 de agosto, D. Pedro já de volta á Paris escreveu-a dando conta
dos últimos acontecimentos acerca de Portugal, assim como a evolução de sua tradução,
que neste momento encontrava-se impossibilitada de prosseguir.
[...] Não sabe-se nada de positivo sobre o assunto da paz, depois de vários dias
não chegou-se a nenhum consenso, Lorde Lauderdale está sempre aqui mas a
negociação arrasta-se e ele pareceu-me que desespera-se bastante com o
resultado. A sorte de Portugal depende provavelmente desta chance e
infelizmente ela não está ao seu favor; espalhou-se hoje o boato que Lorde
Vincent entrou em Lisboa e que o Príncipe estava embarcando com ele. [...] Vós
não podeis imaginar o que custar-me-ia ir recomeçar a viver num novo
hemisfério, após ter trabalhado para acostumar-me ou para submeter-me aos
infortúnios e aos sentimentos deste. Esta vida tem as dores mesmas às quais ela
une-se. Eu partirei daqui em 12 ou 13, no mais tardar em 15 do próximo mês, dia
9 é um dia que eu não esquecerei. Para as oitavas às quais vós tendes a bondade
de pensar elas vão sempre, mas lentamente, sois minha musa, [...] o desejo de
vos mostrá-las e o interesse que tendes forçavam-me à um trabalho ao qual a
melancolia em que recaio e mil distrações forçadas retiram-me neste momento
continuamente [...].61
60
61
Ibidem, pp. 86-7.
Ibidem, pp. 88-90
32
Madame de Staël, ao receber sua carta, pôs-se a escrever, de modo a confirmar o encontro
marcado para dia 9 de setembro.
Querido D. Pedro, [...] Benjamin faz crer que vós passareis por Auxerre,
se, isto é, sairdes de Paris quinta-feira 11 e vierdes à Auxerre. Se ele engana-se
dá-me o antigo encontro para o dia 13 em vez do dia 9 e no mesmo lugar do
qual tínhamos combinado. [...] Preferia mais perder a metade do meu sangue do
que não passar dois dias ao menos convosco para derramar todas as minhas
lágrimas em vosso seio. [...] Estejais no dia 11 em Auxerre [...] Ou bem estejas
lá no dia 13 no lugar combinado e dê-me lá dois dias. Em Auxerre tenho dois
dias podendo estender-se à quatro, em outro lugar isso não aconteceria. Mas não
quero esperar em Auxerre, é demasiado triste.62
O conde tomou a liberdade de marcar um novo lugar, na fazenda em Argeville de
Benjamin Constant, possivelmente porque desejava passar ainda alguns dias em Paris.
Como a distância de Argeville à Paris era cerca de 70 km, isso permitia-o facilmente
retornar, podendo deixar a fazenda no dia 16 ao anoitecer, passar dois dias em Paris, e, por
fim, colocar-se a caminho de Portugal, lá chegando no dia 19 à meia-noite. Se tivesse que
ir à Auxerre, como se sabe ficava à 40 léguas (mais ou menos 220 km), seria impossível tal
coisa.
[...] de toda maneira estou certo de rever-vos e que para vós estais bom de
deixar-me escolher o lugar onde vos reencontrarei, confessarei-vos algumas
razões que explicarei em seguida que fizeram-me querer ficar em Paris dois ou
três dias à mais. Assim no caso deste vosso arranjo irei encontrar-vos dia 15 na
casa de Benjamin e deixarei Paris imediatamente após, sem uma palavra de
resposta vossa partirei no momento para Auxerre. [...] Adeus, contudo, se eu não
receber mais cartas vossas nos encontraremos no dia 15.63
Acompanhada de Benjamin Constant, Madame de Staël retornou à Auxerre no dia
19 de setembro e partiu de lá com ele para Mantes e depois para Rouen. O dia seguinte da
partida de D. Pedro, ela desabafou a tristeza de, talvez, não mais voltar a vê-lo.
Espero que este bilhete alcance-vos ainda. Ele pode dizer-vos o quanto ouvindo
os vossos cavalos afastarem-se e o quanto vós tornou-me feliz retornando. Que
62
63
Ibidem, pp. 90-2.
Ibidem, pp. 93-4.
33
vosso coração e vossa generosidade façam o resto. Adeus querido, querido D.
Pedro, oh! Quando direi este nome com um futuro?64
E com o mesmo tom amoroso ele respondeu o bilhete:
Eu estarei após amanhã à noite em Lyon mas não espero vossas notícias até
Perpignan ou Barcelona. [...] Eu deixei apenas uma pessoa na França mas esta
pessoa é para mim um universo e tenho necessidade de pensar em tudo o que
recorda-me em Portugal para não encontrar-me infeliz de lá voltar. Adeus,
espero impacientemente vossas notícias de Rouen.65
D. Pedro, na companhia de Lourenço de Lima, embaixador de Portugal em Paris,
foi deixando a França para trás. Em 30 de setembro, de Perpignan, ainda no território
francês, ele redigiu nova missiva para Madame de Staël, dando conta da tristeza de deixar
o país, de seus sentimentos, além de enviar-lhe algumas oitavas de sua tradução de
Camões.
Parar-me-ei aqui apenas algumas horas e embora muito embaraçado dos
preparativos da viagem à Espanha e mil preocupações, aproveitarei contudo de
um momento para persuadir-me à conversar convosco. Deixo a França com um
sentimento misto de prazer e de pesar, vós sois a única causa dos pesares, sem
vós todos os sentimentos estarão do outro lado da balança. [...] O primeiro conto
dos Lusíadas está terminado e o segundo começará provavelmente após a minha
chegada em Lisboa. Adeus, querida amiga, não duvideis jamais nem da
abdicação e nem da extensão dos sentimentos que sinto por vós, e dá-me tanto
quanto possível notícias, não somente vossas, mas dos negócios vossos. [...] Eu
envio-vos 3 oitavas que já traduzi [...]. Adeus, deixo-vos sem poder acrescentar
mais nenhuma palavra, tenho ainda que escrever uma ou duas cartas para
Lisboa.66
Assim, os dois viajantes entraram na Espanha, passando por Barcelona e Madri.
Nestas cidades, ele não teve tempo de escrevê-la, mas dela recebeu uma correspondência
em Madri, datada de 26 de setembro, de Rouen, local onde recebera permissão para residir.
64
Ibidem, p. 96.
Ibidem.
66
Ibidem, pp. 97-9.
65
34
[...] Ah! Como esta partida para Portugal aflige-me! Vós dissestes à Hochet que
estaríeis um ano ausente; vós havíeis dado-me esperanças mais doces. O que se
deve esperar? [...] vós não poderíeis fazer coisa pior do que casar-vos, se
pudésseis fazer pior, seria deixar o continente. Pensais em mim para lá
permanecer, em mim que amo-vos de coração mais do que qualquer pessoa no
mundo, que amo-vos sem o interesse mesmo da felicidade, porque sei que não
chegarei jamais a passar a minha vida perto de vós. [...] Benjamin sente saudades
vossas; ele lembra-me que vosso círculo está aqui; voltai para nós! E as oitavas!
Penses em mim fazendo-as, meu prefácio está todo pronto, ele está em meu
coração. [...] Eu suplico-vos, escreva-me da Espanha, sobretudo, estarei inquieta
de vossa rota neste país. Querido, querido D. Pedro, ah! Quanto nós estamos já
longe!67
Antes de atravessar a fronteira, de Badajoz, ele escreveu-lhe uma última vez em 12
de novembro:
Eu escrevo-vos da última cidade da Espanha por onde devo passar nesta viagem.
[...] Espero que tenhas recebido a carta que escrevi-vos de Barcelona; [...] eu
deveria dizer-vos alguma coisa de nossa viagem, mas contentar-me-ei pelo
momento de vos assegurar que ela tem sido extremamente feliz, embora
excessivamente longa e fatigante. [...] Vós não dissestes nada de vós em vossas
cartas, queria saber se ficas ainda algum tempo em Rouen ou se vós prevedes
alguma coisa de vossa sorte ao menos para este inverno. [...] Digais se peço-vos
muitas coisas da minha parte aos vossos amigos que ouso considerar um pouco
como meus. Adeus, querida amiga, não esqueçais-me, espero receber logo
notícias vossas em Lisboa e vou escrever-vos-ei longamente daqui a alguns dias
após minha chegada nesta cidade.68
Depois desta carta, não foi encontrada nenhuma outra correspondência entre
Madame de Staël e D. Pedro de Sousa Holstein entre 12 de setembro de 1806 à 15 de maio
de 1807, sendo que esta última foi enviada por ela. Uma nova carta dele somente se dará
em 15 de setembro de 1808, ou seja, quase dois anos após sua última correspondência. Mas
não foi totalmente culpa sua, pois os eventos que se deram em Portugal no período de sua
chegada em diante, de extrema agitação, provavelmente o impossibilitaram de fazê-lo. Mas
isso parece não ter chegado ao conhecimento de Germaine, que aparentou ter ficado
67
68
Ibidem, pp. 100-1.
Ibidem, pp. 101-3.
35
bastante magoada com a falta de notícias. É o que se pode ver em carta ao amigo
Alborghetti, de 4 de dezembro:
Quereis notícias de D. Pedro; ele deixou-me há dois meses para voltar à Portugal
onde ele está atualmente; ele deve vir para casar-se com sua piemontesa mas eu
temo que não o faça mais com um muito grande prazer. Ele empreendeu neste
verão, à campanha em Borgonha na minha casa, uma tradução de Camões em
versos franceses que era realmente surpreendente para um estrangeiro. Mas o
que acontece em Portugal?”69
Em 1º de maio de 1807 foi publicada a obra Corinne, que, assim como Delphine,
teve grande repercussão em Paris. Diante disso, no dia 15, ela enviou uma carta para D.
Pedro, rompendo o longo silêncio, a fim de ter notícias suas e saber suas impressões sobre
a obra que ele havia inspirado.
Eu não posso explicar-me meu querido D. Pedro, o que acontece que eu não
tenho cartas vossas, vós enviastes-me a tradução de Camões [...]. Por graça
escreva-me sobre vossa carreira diplomática e vossos projetos para Turim;
dizem-me que não recebe-se uma nota das vossas cartas e que inquieta-se do
futuro. Ainda que vós façais, escrevei-me, se estou certa que vós passareis o
inverno próximo em Portugal, talvez eu não resistirei ao desejo de para lá ir. [...]
Lisonjeia-me que Corinne (que começa como um grande sucesso em Paris e na
Corte) valer-me-á este outono a permissão de ir em minha terra, mas há muitos
acontecimentos ainda até o mês de setembro. Mande-me aqui todo a seqüência
de vossos projetos fixos para o inverno. Enviarei Corinne para casa do Conde de
Lima; espero que ele entregue-vos; estou impaciente de vossa impressão;
lembro-me que ela é muito favorável em tudo ao meu redor, mas preciso de uma
carta vossa para dar-me conta do que escrevo, de saber se o que penso é verdade.
[...] não há ninguém no mundo que eu possa amar assim apesar do vosso
silêncio; não há rastros vossos desde Badajoz. [...] Eu estimo-o sempre mais,
mas agradar-me isso o que chama agradar nunca! Vós que menosprezais um
pouco os meios e os sucessos do tipo de encanto que possuístes, escrevei-me por
conseguinte; não peço-vos, indigno preguiçoso que sois, uma correspondência
seguida, mas não saber o que vós achais e nem o que vós fazeis, é demasiado
forte. [...] enfim, se daqui a dois meses eu não tiver uma carta vossa, escrevo à
Mr. de Araújo para queixar-me de vós oficialmente, pode ser mesmo ao príncipe
real. Adeus, meu querido D. Pedro, verdadeiramente dói-me vosso silêncio, faça69
Ibidem, p. 103.
36
o cessar. Conte-me se as vossas amáveis irmãs estiverem contentes com
Corinne.70
Mas é fato que os dois meses se passaram e ela só receberia as tais impressões
algum tempo depois, ou melhor, um ano e quatro meses depois, em 15 de setembro de
1808. Como sempre, desconcertado pela falta que cometera, D. Pedro escreveu-lhe uma
última bela missiva, na qual fala sobre as dificuldades enfrentadas neste período por
Portugal, os nobre sentimentos ainda vivos por ela e a emoção que sentiu ao ler Corinne e
a lembrança de dias tão felizes.
Devo agora ousar escrever-vos? É necessário que eu conheça bem o vosso
coração e que abandono-me bem ao movimento do meu para fazê-lo! O que
dissestes vós de meu longo silêncio, o que pensastes de mim? Se soubesses
desde que deixei-vos o quanto de todas as maneiras possíveis andei pela
desgraça, o quanto fui cercado de idéias sinistras, quão terrível futuro
apresentava-se à mim, estou certo que mereceria toda a vossa compaixão! [...]
Eu vos disse em uma carta que escrever-vos-ia após minha chegada em Portugal
(e que vi por 2 cartas que recebi de vós que não chegou-vos) que eu me
encontrava aqui em uma situação bem diferente do que eu esperava. Cinco ou
seis de meus parentes e de meus amigos mais íntimos exilados por pretenderem
projetos de conspiração, toda a nobreza suspeita, um governo fraco e
desconfiado, um príncipe inteiramente entregue à intrigas de subalternos me
anunciavam a demasiada ruína inevitável deste país. Eu mesmo, embora
estrangeiro à todas as últimas intrigas da Corte, embora tendo bastante êxito ao
que dizia-se durante o curso da minha missão, encontrava-me contudo por
minhas ligações e pelo meu nascimento numa posição bastante crítica. [...] Fui
nomeado nesta época para acompanhá-lo [o príncipe regente] ao Brasil, mas a
minha desgraça foi que fui atacado mais ou menos por este tempo de uma
doença de peito e de um reumatismo terrível que me privava do uso quase de
todos os meus membros e pôs-me durante quase seis meses à dois dedos da
morte. [...] Acabo de escrever à Madame de Perron que após todos os
adiamentos involuntários que eu tenho posto ao cumprimento da minha
promessa [...] eu não podia certamente deixar Portugal neste momento sem
desonrar-me, e que servindo no exército e provavelmente sobre o ponto de
marchar pela Espanha, não me podia prever qual época eu seria livre de ir
encontrá-la. Ela pode por conseguinte olhar a sua filha como livre das suas
promessas [...]. Todo o Portugal está erguido, mas privados dos hábitos gerais e
70
Ibidem, pp. 104-7.
37
de mil socorros necessários para fazer a guerra, ainda perderíamos muito sangue
e tempo talvez antes de entregamo-nos aos nossos opressores. [...] Agora que
renasci, tenho vergonha de falar-vos deste longo período durante o qual fui
arrebatado de uma apatia mortal, tenho vergonha de dizer-vos que apesar da
insensibilidade na qual eu parecia mergulhado, tenho seguido-vos por toda parte,
eu tomava às vossas dores com um interesse do qual tem-vos talvez infelizmente
o direito de duvidar: que saía da minha letargia apenas para falar de vós à todos
os arredores com esta efusão de coração e este entusiasmo que vós inspirar-me-á
toda minha vida. Que de lágrimas espalhei sobre Corinne! Que de impulsos o
meu coração tomou lendo-o. O país que ela habitava, a voz que ela tomava
emprestado para cantar [...]. Debatia-me como inspirado e possuído por todas as
lembranças da minha juventude, por todos os sonhos possíveis de glória e de
amor! Mas, oprimido sem dúvida pela doença e pela dor, caí mil vezes numa
depressão de corpo e de espírito os quais vós teríeis pena à persuadir-vos, se este
silêncio de um ano e meio não vos desse uma idéia. Enfim, espero ter superado
os meus mais terríveis momentos; [...] Tudo convida-me à ouvir ainda meu
coração os sentimentos de entusiasmo e de amizade que somente estes podem
preenchê-lo. Podei-vos ainda crer-me digno de conceder-me ao menos uma parte
disso que eu havia obtido. [...] Não perderei uma ocasião de escrever-vos eu
mesmo quando eu não estiver arriscando de colocar-vos em perigo e espero de
tempo em tempo ter êxito. Eu estou impaciente de receber dois bilhetes vossos:
“eu lamento-vos e perdôo-vos” e “digno-me ainda conceder o título de meu
amigo”, far-me-ia morrer de alegria! Quanto eu daria para ter neste momento
notícias vossas, de vossa família, de vosso amigos, que estou tão orgulhoso de
tê-los como meus! Lembrai-me às vossas lembranças se acreditar-vos que eu
mereço ainda a pena, elas rodeiam tudo e sempre em um lugar bem diferente do
meu. Se a Espanha e Portugal assegurarem suas liberdades e sua independência
tornando-se dignas um dia de atrair vossa curiosidade, posso ainda esperar vervos aqui. Se o destino e a humilhação do resto do Europa querem que eles
sucumbam numa luta desigual, eu irei talvez, se eu viver, pedir-vos um asilo.
Deixemos o cuidado do futuro à Providência, e acredites que não terá certamente
um só momento da minha vida no qual eu não encontre profundamente marcado
no fundo do meu coração todos os sentimentos que eu dediquei-vos.71
Com esta carta termina a correspondência seguida entre Madame de Staël e D.
Pedro de Sousa. Somente uma carta tardia do português, de 1815, foi encontrada até aqui.
71
Ibidem, 107-111.
38
“O destino separou os que por uma amizade apaixonada haviam constituído o projeto de
dedicar-se uma parte de sua existência”.72
Conclusão:
Para concluir, como se pôde ver, as histórias de ambos são definitivamente muito
diferentes. Madame de Staël quando chegou à Itália já havia experimentado uma vida
glamorosa, assim como grandes dificuldades, pois gozava de grande prestígio e respeito e,
neste momento, atravessava o pior período de sua vida, uma vez que foi obrigada, devido
ao exílio, à deixar sua querida França. Já o jovem português, em 1805, ainda iniciava sua
carreira diplomática, por ocasião da morte de seu pai e a indicação para assumir o seu lugar
na embaixada de Roma. Somente havia iniciado os estudos e possuía uma grande fortuna
herdada por sua família. Sua verdadeira importância se dará do período das invasões
napoleônicas à Portugal em diante, quando depois de deixar o exército se integrou à
carreira política naquele país.
Todavia, isso não impediu que eles se relacionassem intensamente. Como já dito,
D. Pedro possuía todos os atributos que Germaine sonhava em um homem: beleza,
sagacidade, ilustração, além de uma belíssima voz que a encantava. Em contraponto,
Madame de Staël era, para ele, o exemplo de mulher inteligente, espirituosa, determinada e
forte, o que provavelmente o proporcionou muito benefícios (pois aprendeu muito com ela
e com seus ilustres amigos), mas também o remeteu às lembranças de sua mãe, que como
ela havia desafiado o poder de um déspota, no caso, o marquês de Pombal.
O que se seguiu na vida da baronesa ainda fora bastante complexo e, em linha
gerais, incluiu: novo exílio em Coppet, a destruição dos manuscritos de De l’Allemagne à
mando de napoleão, fuga de Coppet com a grande viagem pela Rússia e Suécia, um
segundo casamento em 1810 com Albert Jean Michel de Rocca, a morte do filho Albert, a
chegada na Inglaterra em 1813, e, por fim, o retorno à Paris em 1814. Já Pedro de Sousa
esteve nos combates contra os franceses em Portugal, sendo nomeado major pelos serviços
prestados; em 1810 casou-se com uma jovem de 12 anos, D. Eugênia Telles da Gama, com
quem teve quinze filhos73; foi enviado como encarregado dos negócios na Espanha, depois,
72
Ibidem, p. 112.
À título de curiosidade, enumeraremos aqui os quinze descendentes do casal por ordem de nascimento: 1º)
D. Alexandre de Sousa e Holstein, 1º conde de Calhariz; 2º) D. Eugénia Maria de Sousa Holstein; 3º) D.
Isabel Leopoldina Eugénia Antónia Domingas Martinha José Francisco de Sousa Holstein; 4º) D. Domingos
73
39
conheceu uma bela carreira como encarregado dos negócios na Inglaterra e desempenhou
um papel de primeiro plano como embaixador e enviado ao Congresso de Viena; foi
presidente do conselho de ministros de 1834 à 1836 e primeiro ministro de 1842 à 1846,
nomeado conde, marquês e depois duque de Palmela, tornando-se um dos homens mais
importantes de seu país.
Porém, “não era isso que Madame de Staël, descrevendo os dons excepcionais de
seu companheiro, havia pressentido quando ela procurou estimular a inteligência do jovem
indolente”.74 E é provável que ela tenha se lembrado disso durante sua estadia na
Inglaterra, em que teve a oportunidade de revê-lo em uma house party na casa de Lorde
Landsdowne, estadista inglês, que reunia em sua bela residência homens importantes.
Triste reencontro: Madame de Staël não era mais a deslumbrante “pastora” de
1805. Ela tinha perto de 50 anos, os traços pesados, a cintura engrossada,
envelhecida prematuramente pelas provações, as tristezas, a doença e o ópio do
qual abusava para encontrar o sono. Sousa tinha 35 anos; estava sempre bonito,
sedutor e a diferença de idade era ainda mais acentuada. Ao se reencontrarem,
evocaram seus passeios sentimentais, Roma à luz da lua, o Coliseu? As
lembranças em algum momento os aproximaram? Melancolia dos dias passados,
de uma felicidade em um instante vislumbrado, as promessas não cumpridas.75
Apesar dessa grande diferença no time de suas vidas, uma coisa pode ser dada
como certa: o agente promotor dessa união e das mudanças que se seguiram daí por diante
foi Napoleão Bonaparte. Tanto a nostalgia de um passado de juventude e de glórias da
escritora e pensadora, quanto um anseio de um futuro brilhante e bem vivido do conde
cruzaram-se por intermédio do ambicioso Imperador francês e, diante disso, viveram o
melhor que puderam.
de Sousa Holstein, 2º duque de Palmela; 5º) D. Manuel Vicente António Domingos Francisco de Sousa
Holstein; 6º) D. Maria Ana da Anunciação de Sousa e Holstein; 7º) D. Maria José de Sousa Holstein; 8º) D.
Teresa Maria da Conceição Antónia Domingos José de Sousa Holstein; 9º) D. Rodrigo de Sousa, marquês
honorário; 10º) D. Catarina de Sousa Holstein; 11º) D. Ana Rosa do Santíssimo Sacramento de Sousa
Holstein; 12º) D. Pedro Maria de Sousa Holstein; 13º) D. Francisco de Sousa Holstein, 1º marquês de Sousa
Holstein; 14º) D. Tomás de Sousa e Holstein Beck, 1º marquês de Sesimbra; 15º) D. Filipe de Sousa
Holstein, 1º marquês de Monfalim. – CANEDO, Fernando de Castro da Silva; CASTRO, Rodrigo Faria de. A
Descendência Portuguesa de El-Rei D. João II. vol. II. Lisboa, 1937.
74
STAËL Holstein, Germaine Necker; SOUZA Holstein, D. Pedro de, op. cit., p. 112.
75
Ibidem, pp. 113-4.
40
Bibliografia:
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(Prefácio, introdução, comentários e notas por Béatrix D'Andlau). Paris; Gallimard,
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Resenha das Famílias Titulares do Reino de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional,
1838 .
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Ruínas, Correspondências e História entre Madame