Orgs.:
ALBERTO DA SILVA MOREIRA
CAROLINA TELES LEMOS
EDUARDO GUSMÃO DE QUADROS
ROSÂNGELA DA SILVA GOMES
VII CONGRESSO INTERNACIONAL EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO: A RELIGIÃO ENTRE O ESPETÁCULO E A INTIMIDADE – PROGRAMA
DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO, PUC Goiás, Goiânia, de 08 a 11 de abril de 2014 – ISSN 2177-3963
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GT19 RELIGIÃO, POLÍTICA E ESPAÇO
Coordenadores/as
Drª. Zeny Rosendahl (UERJ) [email protected]
Drª. Cristina Carballo (Universidad Nacional de Luján – Argentina)
[email protected]
Doutorando Rodrigues de Oliveira (UERJ) [email protected]
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ASHURA: LUTO E ENCENAÇÃO NA CIDADE DE SÃO PAULO
Karina Arroyo – UERJ ([email protected])
Resumo
Considerando a possibilidade de análise de uma comunidade religiosa, fecunda em
representações revivalistas, que são teatralizadas publicamente em momentos de clímax
emocional e coletivo, cabe à geografia cultural, reconhecer e analisar esse espetáculo,
que recria e alimenta a ligação eterna com o sagrado. Para tal, recorta-se um
determinado espaço ritualístico de ação e performance, que condensa o ato simbólico
capaz de demarcar as identidades sociais. Logo, esta comunicação pretende explorar
uma determinada localidade analisando o sagrado e suas formas expressivas sem se
afastar das categorias antropológicas, corroborando a intrínseca relação entre sagrado e
natureza; A cerimônia de Ashura é a encenação da Tragédia de Karbalah (Iraque) em
661 d.C, que revive o luto e o martírio do Imam Hussein, neto de Muhammad (Maomé)
fundador da religião islâmica. Seu martírio representa uma luta divina entre o sagrado e
o profano e a vitória eterna contra a tirania e a opressão da secularização. A cidade de
São Paulo, que desde 1880 recebe imigrantes de origem libanesa shiita e hoje conta com
mais de 7 milhões de descendentes é anualmente palco das representações de Ashura.
Este resumo, que futuramente será estendido a um caráter mais analítico, nos permite a
utilização de uma classificação profícua às ciências humanas, especialmente à
Geografia Cultural Renovada, pós 70, que se utiliza das classificações sócioantropológicas para reordenar o espaço. Logo, este trabalho nos permitirá encetar uma
reflexão geográfica capaz de desvendar as apropriações culturais do espaço sagrado e as
relações sociais mediadas por elementos simbólicos.
1. INTRODUÇÃO
Quando se perpassa a Geografia Cultural e a transformamos em substrato teórico
para a compreensão de uma prática de subjetividades identitárias, corrobora-se a
compreensão de que ela como campo de investigação científica indaga sobre os
movimentos espaciais no passado e no presente, qualificando e quantificando as
regularidades encontradas, relacionando tais processos à formação de identidades que
não são apenas reflexos da dinâmica social, mas sim condições dentro das quais se
constroem agrupamentos e redefinições contínuas de pertencimento.
As apropriações espaciais e sua leitura simbólica por determinado grupo
sintetizam o referenciamento espacial que compõe uma determinada identidade
sociocultural.
Logo, o campo a ser analisado é a cidade de São Paulo, inserido em um contexto
migratório que oportunizou aos muçulmanos shiaas1 oriundos de algumas regiões do
Oriente Médio, especificamente o sul do Líbano, e que identificados e coesos a partir da
religiosidade partilhada utilizaram o espaço da Mesquita Muhammad Mensageiro de
Deus(Mesquita do Brás), encontrando, portanto, as referências socioculturais capazes de
1
Xiitas. Do árabe shiat Ali (partidários de Ali), primo e genro do profeta Muhammad, considerado o
melhor sucessor por pertencer aos Ahlul Bayt (Casa Profética ou família do Profeta),pois estes têm um
caráter sagrado e a liderança da comunidade religiosa deveria estar a eles ligada, no entanto, após a
morte do Profeta seu sucessor foi Abu Bakr, companheiro (sahaba) e sogro do Profeta.
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lhes trazer a referência da pátria materna como se nunca tivessem saído de sua região de
origem.
A formação de uma comunidade árabe expressiva remonta ao final do século
XIX e primeiras décadas do século XX, quando milhares de imigrantes de fala e cultura
árabe, provenientes, em particular, do Líbano, Síria e Palestina chegaram ao país.
Trouxeram como conseqüência facilitadora de inclusão, sua bem sucedida instalação e
adaptação que são uma resultante de dois fatores: a exogamia, e em grande parte, da
atividade econômica exercida: o comércio.
Embora não existam estatísticas confiáveis, uma vez que o censo brasileiro não
permite o registro de identidades étnicas, apenas de identidades raciais, as estimativas
do número de árabes e seus descendentes no Brasil variam de três a dezesseis milhões
de pessoas (HILÚ, 2010, p.15), números altamente expressivos e capazes de configurar
uma comunidade crescente capaz de reproduzir nos seus territórios culturais discursos e
práticas específicas. Além disso, Oswaldo Truzzi (1997) oferece uma quantificação
diferente que justifica em larga escala, a contabilização em número inferior ao
proclamado por instituições oficiais. Ele afirma que até 1908 os imigrantes vindos do
Oriente Médio eram classificados em “outras nacionalidades” e que, somente após essa
data, eles apareceram como “turcos”. Truzzi coloca o termo “libanês em 1920 e o termo
“sírio” em 1922. (Ibidem, p.49)
De maneira concisa, a vinda em massa de imigrantes do Oriente Médio, iniciouse a partir de 1880, nas últimas décadas do Império Otomano2. Após a década de 1950,
a imigração declinou e não foi mais composta majoritariamente por cristãos como nas
décadas anteriores, e sim por muçulmanos sunitas e xiitas, sendo que, desde 1980 a
principal região de destino dos imigrantes passou a ser São Paulo e Paraná e, em 2010,
o número de muçulmanos estava estimado em um milhão(HILÚ, 2010, p.24) Portanto, é
exatamente em São Paulo, na comunidade islâmica xiita, que privilegio em minha
análise sócio-espacial e seus desdobramentos expressivos.
2. A COMUNIDADE
Uma análise dos modelos interpretativos e do universo discursivo da bibliografia
sobre os árabes no Brasil revelou que tanto os estudos acadêmicos quanto os não
acadêmicos seguem um fio condutor de ascensão e integração sistemáticos e lineares
dos imigrantes na sociedade brasileira, onde o resultado final seria sua assimilação
completa e irreversível, pelo abandono sistemático dos elementos culturais árabes. Esse
modelo de assimilabilidade foi elaborado a partir do comprometimento das ciências
sociais brasileira com a criação de uma “cultura nacional”, homogênea e integradora
dos diversos grupos sociais, tornando-se o quadro teórico dominante nos estudos sobre
imigração e etnicidade realizados desde os anos de 1940 (Ibidem, p.17)
2
O processo de emigração deu-se principalmente na área geográfica conhecida como Bilad AlCham(Territórios de Damasco)ou Suriya(Síria). O termo Síria era utilizado desde a Idade Média por
geógrafos árabes para designar o território que hoje corresponde ao sudoente da Turquia, Síria Líbano,
Israel/Palestina e Jordânia. Algumas subdivisões regionais tinham uma identidade geográfica, cultural e
histórica própria, como a Palestina (Filistin) ou o Monte Líbano(Jabal Lubnan), embora também fossem
vistas como parte integrante da Síria. (Ibidem, 2010, p.22)
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Portanto, essa visão de identidade étnica atrelada a objetos e conteúdos
especificamente árabes já foi abandonada pelas ciências sociais e conseqüentemente
para qualquer outro ramo da ciência que tenha seu aporte nos aspectos sociais inseridos
em seu objeto de estudo, haja vista, o modelo teórico que representa a etnicidade como
o resultado do processo de organização das diferenças culturais através de fronteiras
simbólicas, é que de fato, exemplifica as configurações observadas entre os imigrantes
árabes muçulmanos tanto de origem sunita como xiita. Ainda assim, os próprios grupos
estão em constante fluxo de criatividade e diferenciação entre as gerações, e mesmo
entre os indivíduos do mesmo grupo, haja vista, são as codificações dos geossímbolos e
das expressividades cotidianas que reconfiguram continuamente as fronteiras exteriores
e simbólicas, trazendo maior porosidade ou encrudescimento social.
As questões, motivações e contextos migratórios da população árabe que aqui
chegavam constituem um instrumental analítico necessário para compreender melhor o
universo religioso e civilizacional do mundo muçulmano, portanto, fez-se necessária
esta ordenação cronológica para que as representações revivalistas sejam respaldadas na
intenção dos imigrantes árabes muçulmanos de preservação identitária. Na cidade de
São Paulo, no bairro do Brás, em 1987 foi construída a Mesquita Muhammad
Mensageiro de Deus, situada na rua Elisa Witacker, 17, Brás, e administrada pela
Associação Religiosa Beneficente Islâmica do Brasil (ARBIB)3. Imbuída do espírito de
salvaguardar a tradição xiita, minoria nas migrações pós 1980, fundada por libaneses do
sul, representa anualmente a Tragédia de Karballah através de dois elementos
expressivos: ta’ziya4h e tatbir5.
Estes elementos transcendem a materialidade dos símbolos presentes no ritual. A
teatralização da Ashura traz a relação entre as estruturas expressivas e as estruturas
sociais. As manifestações corporais e a invocação oral são expressões simbólicas que
recriam o sentimento de luto, corroborando o pertencimento aos partidários de Ali. Tais
elementos embora presentes em quase todas as celebrações de Ashura não devem ser
considerados demarcadores indispensáveis do espetáculo, em grande parte porque
afirmar a existência de uma essência islâmica xiita a todas as celebrações seria
demasiadamente simplista e ideológica, devido a gama de puralidades de interpretações,
experiências e vivências. Cabe aqui recorrer a dois conceitos da fenomenologia
husserliana, noesis e noema, característica da geografia humanista, onde a primeira
denota a idéia e a significação fulcral de determinado objeto e a segunda às diversas
interpretações e vivências psico-sensoriais, muito embora, a História que embasa o
espetáculo é determinante na emoção coletiva, no compartilhamento do luto, da tristeza
e do sentimento de compaixão ao mártir Hussein. Recuperar os significados codificados
na paisagem é condição sine qua non, conforme afirma Cosgrove (2012, p.220) para a
interpretação das práticas sociais e, principalmente, reler os códigos na paisagem de
Karbalah, nos fornece toda uma cosmovisão que permite compreender a lógica do ritual
de Ashura.
3. O ESPETÁCULO: RITUAL DE LUTO E MEMÓRIA
3
Retirado de http://www.mesquitadobras.org.br/?op=33 em 12/03/2014
Lamentação, elegias.
5
Representação corporal, teatralização do luto. Geralmente com batidas cadenciadas no peito ou na
cabeça.
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“A Revolução do Imam Al Hussein(A.S)6, lutou contra a tirania e a
injustiça, o desvio e o pecado. Ela não foi simplesmente um
acontecimento histórico isolado no ano 61 hejrita, em Karbalah no
Iraque. Jamais foi um evento que se encerrou, e nunca teve seus objetivos
alcançados. Esta revolução é um movimento, uma ação e um método que
iluminou as gerações futuras.”(KHAZRAJI, 2008, p.9)
O movimento Husseinita teve sua história inicializada na cidade de Madinah,
Arábia Saudita, quando os agentes do governo da época quiseram impor que Imam
Hussein desse seu voto de fidelidade para o governador despótico Yazid ibn
Mu’awiyah, e ele recusando o pedido segue seu caminho para Meca e depois Karbalah,
palco da Tragédia. O luto derivado da morte do Imam é baseado na representação de um
binômio que se contrapõe e expressa dois juízos de valor eternos: bondade/maldade ou
tirania/liberdade. É uma revolução de ordem espiritual que se refere diretamente à
identidade islâmica, principalmente nos ambientes em que estes podem ser hostilizados.
Imam Hussein apesar da perseguição por propor um modo de vida islâmico
publicamente e de representar a minoria da população, preocupou por seu carisma e
capacidade de coesão. Carisma é, inclusive, característica intrínseca dos marjas7 shiaas
até hoje. Como Hussein, não abriu mão dos princípios islâmicos e permaneceu firme
negando seu voto de fidelidade, acabou fomentando a perseguição à família profética.
Tal ação emblemática representa a luta eterna do ego, das facilidades, da tirania contra a
valorização do din8, e conseqüentemente do Quran.
Khazraji (2008) ressalta que a Revolução do Imam Hussein, foi abrangente, não
tendo nenhuma limitação em termos de tempo e espaço, e exatamente essa plasticidade
espaço-temporal que permite a sensação profunda de luto e a lembrança anual do
martírio do Imam como se nas terras paulistanas fosse a sofrida e sagrada Terra de
Karbalah. Logo, ela pode ser transportada para qualquer espaço e ser revivida com a
mesma intensidade do que um muçulmano em solo iraquiano. Pois a Tragédia é um
protótipo eterno e imutável aplicável a qualquer espaço onde se dê uma luta entre o bem
e o mal ou entre a verdade contra a opressão.
É necessário fazer uma distinção conceitual importante, tendo em vista a
multiplicidade de conceitos que perpassam a Tragédia. A Batalha de Karbalah, foi o
combate derradeiro entre o Imam Hussein contra um governo despótico anti-islâmico,
corresponde ao último dia da Revolução que durou dez dias. Hussein não aceitou
submeter-se a uma legislação corrompida e profana. A Ashura, portanto, refere-se aos
dez primeiros dias de Muharram, o primeiro mês do calendário islâmico.
Após a morte do Imam, decapitado por seus inimigos, os sobreviventes da
família foram arrastados como prisioneiros até Damasco na Síria. A irmã de Hussein,
frente à Corte do Governador Mu’awiyah, profere um grande discurso, uma lamentação,
ouvida por centenas de pessoas, que gera uma profunda comoção. Portanto, surge de
Zainab Al-Kubra, a tradição anual da lembrança de Ashura, da lamentação, das elegias e
6
Sigla que significa Alaihi Salam, ou “que a paz esteja sobre ele”. Usado após o nome dos Imames da
família do Profeta.
7
Figura carismática. Líder religioso com profundo conhecimento Teológico.
8
Modo de vida islâmico completo,pode ser traduzido por obediência. Neste caso, obediência às leis
Divinas.
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da teatralização da dor e do sofrimento. Imbricados no amálgama simbólico, podemos
elencar alguns elementos materiais que evocam a lembrança do luto, da associação entre
a paisagem e o significante, dentre eles têm-se a água, que representa a sede sofrida por
todos os participantes da Batalha, incluindo mulheres e crianças. Hussein ficou sitiado à
margem do Rio Eufrates, impedido de chegar às margens, caso contrário, seria
dolorosamente assassinado(Ibidem, 146). Logo, no período correspondente à Ashura
água é distribuída em abundância e existe um dito reproduzido após a morte de Hussein
entre os Ahlul Bayt 9de que toda vez que se bebe água deve se lembrar de Hussein. Isso
vai a reboque da valorização dos recursos naturais, um dos princípios islâmicos mais
caros. Há também uma culinária específica, biscoitos feitos em fôrma própria com
ingredientes particulares, de fácil aquisição, que trazem a questão da escassez de
recursos alimentares e a valorização do conforto usurpados à época de Hussein. Há
outros doces próprios, que só devem ser fabricados nesta época, exatamente para o
paladar ter um caráter associativo profundo e garantir uma sinestesia profícua. Ver,
sentir, falar, pulsar, com mãos, pés e cabeça, eis o conjunto associativo e característico
que se apropria dos espaços e recria, revive com o corpo e a memória o passado. É na
publicidade da dor que se firmam as identidades e finalmente, são erigidas fronteiras
simbólicas. Portanto, a idéia de que um Imam, neto do Profeta e que inocente morreu
martirizado sob penosas circunstâncias, gera uma sensação inacabada de que há uma
Justiça Divina, piedosa e inquebrantável, no entanto, ela reverbera naqueles que se
apiedam dessa Tragédia e reúnem sob uma forte comoção os seguidores de um Imam
mártir e eterno. Nesse ínterim, a frase universal de que “Todo dia é Ashura, toda Terra
é Karbalah”, confere um caráter universal e eterno aos fatos e aos ritos.
Partindo da universalidade simbólica, tendo como princípio a terra querida e
sagrada eternizada como um mapa mental pode-se relembrar as considerações tuaninas
(1883), que abordam a identidade enquanto conceito geográfico. “Quase todos os
grupos humanos tendem a considerar sua pátria como centro do mundo” (Tuan, 1983, p.
165). Para que haja o conceito de pátria é necessário que haja uma localização e uma
consciência coletiva de pertença àquele povo e àquele lugar.
“Em diversas partes do mundo esse sentido de centralidade se
torna explícito por uma concepção geométrica do espaço
orientada para os pontos cardeais. O lar está no centro de um
sistema espacial astronomicamente determinado. Um eixo
vertical, ligando o céu ao mundo inferior, passa pelo lar. As
estrelas são percebidas como movendo-se ao redor da própria
moradia; o lar é o ponto focal de uma estrutura cósmica” (Tuan,
1983, p. 165).
A centralidade ligada ao reconhecimento de um núcleo simbólico familiar foi
abordado por Bonnemaison (In: CÔRREA, ROSENDAHL, 2012, p.13),como espaço
vivido em determinada territorialidade que emana da etnia, constituindo-se em relação
cultural vivida entre dado grupo social e uma trama de lugares hierarquizados e
interdependentes, originando um sistema espacial, isto é, um território. Ainda, segundo
9
Designa a família do profeta. Literalmente: “Povo da Casa”.
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ele, é pela existência de uma cultura que o território é criado; e é pelo território que uma
cultura se fortalece, exprimindo-se a relação simbólica entre cultura e espaço.
O espaço vivido na Mesquita do Brás, reprodutor num determinado tempo da
Karbalah martirizada, pode ser o expoente máximo de uma heterotopia atual. No espaço
Sagrado da Mesquita, territorializado principalmente durante a teatralização do luto, ele
é capaz de condensar seu núcleo e cristalizar momentaneamente suas franjas. É um
ponto nodal de revivalismo religioso e de supervalorização espacial, de delimitação de
território.
4. CONCLUSÃO
As celebrações de Ashura declinaram na primeira metade do século XX, quando
eram associadas a um tradicionalismo popular e rural. Elas foram proibidas por
governos autoritários modernizadores, como o do Xá Reza Pahlevi, no Iran, ou hostis à
expressão pública das identidades xiitas, como o de Saddam Hussein, no Iraque. No
entanto, os rituais e procissões de Ashura ganharam novos significados e força cultural
durante a revolução Iraniana de 1979, quando foram mobilizados para expressar
oposição ao governo do Xá, e durante a Guerra Civil Libanesa (1975-1990),quando
serviram para afirmar a identidade xiita dentro do universo político e cultural do
Líbano.(HILÚ,2010, p.26)
No século XVI, na Dinastia Safávida, que fez do xiismo a forma oficial de Islam no
Iran, os rituais tornaram-se símbolo de nacionalidade e adquiriram expressões mais
dramáticas e foram amplamente publicizadas, incluindo a expressão de golpes
perfurantes no peito e na cabeça (latam), tornando o tatbir agressivo, sendo intencional
verter sangue. Foi também através da teatralização, iniciada no Iran que as famílias
puderam compreender a história religiosa e tornou-se um paradigma à população,
servindo, sobretudo, como um método de divulgação e expansão do xiismo. Nesse
ponto é que as diferenças rituais e interpretativas entre os xiitas e sunitas no seio do
Islam tornaram-se mais profundas.
Em São Paulo, a Ashura é comemorada de acordo com o calendário islâmico, lunar
e, portanto, móvel, e representa principalmente uma identidade religiosa, minoritária, no
entanto, muito presente e ativa nas celebrações sociais. Participar da preparação dos
alimentos no período de Ashura, sua distribuição, comparecer aos 10 dias sem ausências
injustificadas, bem como participar das elegias (mulheres) - ta’ziyah e das teatralizações
– tatbir (homens), conferem capital simbólico aos indivíduos, demonstram piedade e
observância religiosa. Portanto, ainda cabem muitas análises de interesse geográfico a
este fenômeno religioso, expoente físico de rituais identitários, bem como as migrações
e adaptações espaciais entre Karbalah-São Paulo.
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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CÔRREA, R.L, ROSENDAHL, Z. Geografia Cultural: Apresentando uma
Antologia. In: In:CÔRREA, R.L, ROSENDAHL, Z. (org.) Geografia Cultural – Uma
Antologia. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012
COSGROVE, D. A Geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas
paisagens humanas. In:CÔRREA, R.L, ROSENDAHL, Z. (org.) Geografia Cultural –
Uma Antologia. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012
HILÚ, Paulo. G. Islã: Religião e Civilização – Uma abordagem Antropológica.
Aparecisa, SP: Santuário, 2010
______________Árabes no Rio de Janeiro: uma identidade plural. Rio de Janeiro:
Cidade Viva, 2010
KHAZRAJI, Taleb, H. A Revolução do Imam Hussein: Motivos, Fatos e
Resultados. São Paulo: Arresala, 2008
MERVIN, Sabrina. HISTOIRE
DOCTRINES. Paris: Flammarion, 2000
DE
L'ISLAM:
FONDEMENTS
ET
NETO, Hélion, P. FERREIRA, Ademir,P. Cruzando Fronteiras disciplinares:
Um panorama dos estudos Migratórios. Rio de Janeiro: Reva, 2005
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel,
1983
TRUZZI, Oswaldo Mário Serra. De mascates a Doutores: Sírios e libaneses em
São Paulo. São Paulo: HICITEC, 1997
VIDAL DE LA BLACHE, Paul. As características próprias da Geografia.In:
CHRISTOFOLETTI, Antônio (Org.). Perspectivas da Geografia. São Paulo: Difel, 1995
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CONEXÃO BRASIL-TURQUIA: O CYBER ESPAÇO COMO PROMOTOR DE
CASAMENTOS ENTRE BRASILEIRAS E MUÇULMANOS TURCOS
Andréa Pasqualin
Dra. Francirosy Campos - FFCLRP/USP ([email protected])
Resumo
Esta comunicação se propõe refletir sobre as necessidades de se tomar, também, o
campo virtual como campo empírico de estudo para compreender os casamentos que
ocorrem entre brasileiras (muçulmanas ou não) e muçulmanos turcos. No cyber espaço,
encurta-se o tempo e ampliam-se as oportunidades de tornar próximo o distante. Nesta
sociedade globalizada, a facilidade de comunicação contribui para o crescente aumento
dos casamentos interculturais. A mídia eletrônica, por sua vez, passa a integrar um
complexo mecanismo de construção do imaginário cultural e assume um importante
papel na construção dos mundos cognitivos, assim como na expressão da cultura e na
leitura e interpretação dessas culturas, o que inclui o olhar para a religião do outro. No
Brasil, assim como nos demais países do Ocidente, existe um modelo uniformizado de
Islã que negligencia as práticas e vivências contextuais, e embora não se tome
conhecimento de suas nuances, ele existe e acaba por “conectar” e propiciar novas
formas de relacionamentos. Para tal investigação, optou-se pelo método etnográfico
convencional e virtual. Como campo empírico convencional de estudo, a pesquisa
conta com a participação do Centro Cultural Brasil-Turquia (CCBT) e o Colégio Belo
Futuro, ambos localizados na cidade de São Paulo. No campo virtual, o estudo conta
com blogs pessoais e comunidades existentes no Facebook, de brasileiras casadas com
muçulmanos turcos. Dessa forma, espera-se compreender os casamentos que se
originam dos encontros virtuais e assim, entender essa faceta da religião islâmica no
Brasil.
Introdução
Está comunicação pretende refletir sobre o casamento intercultural realizado entre
brasileiras e muçulmanos turcos, tendo o campo virtual como campo empírico de estudo.
Na medida em que aumentam os avanços dos meios tecnológicos, encurta-se o tempo e
ampliam-se as oportunidades de tornar próximo o distante por meio da invenção de um novo
local de encontro, e se faz necessário incluir esse espaço – o cyber espaço10– nas pesquisas
atuais.
Essa facilidade de comunicação e locomoção contribuiu para o crescente aumento dos
casamentos interculturais.
Os turcos11, que outrora denominavam os árabes que aqui chegavam, hoje, chegam
diretamente da Turquia e mostram-se cada vez mais presentes em nosso cotidiano via internet.
10
Cyber espaço é um espaço existente no mundo da comunicação em que não é necessária a
presença física do homem para que ocorra a transmissão da mensagem, a comunicação se dá por
meio da tecnologia. Apesar da internet ser o principal ambiente do ciberespaço, devido a sua
popularização e sua natureza de hipertexto, o ciberespaço também pode ocorrer na relação do
homem com outras tecnologias: celular, pagers, comunicação entre rádio-amadores e por serviços do
tipo “tele-amigos”, por exemplo. (JUNGBLUT, 2004; GUIMARÃES JR., 1999). Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ciberespa%C3%A7o Acessado em 05.03.2014.
11
Segundo Gilberto Abrão, em Olatoeiro’s Blog, quando os turcos otomanos dominavam o Oriente
Médio, muitos árabes saíram de seus territórios durante a segunda metade do século dezenove. Não
existiam ainda os países árabes geográfica e politicamente definidos como hoje. A Síria, por exemplo,
compreendia o território dos países de hoje: Jordânia, Israel (Palestina), Líbano e Síria. Esses
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Desde 2010, o Brasil vem estreitando seus laços econômicos com a Turquia, o que promove o
intercâmbio de empresas, produtos, turismo e, por conseguinte de pessoas. De acordo com
matéria publicada por Valle (2013) no jornal Folha de São Paulo, em abril de 2013, entre os
anos de 2010 e 2012, o número de brasileiros que foram a Istambul, principal cidade turca,
aumentou 36%, passou de 65,2 mil para 88,9 mil em dois anos. Desde julho de 2012, em
resposta ao interesse crescente dos brasileiros, a Turkish Airlines (companhia de aviação
turca) passou a voar diariamente de São Paulo para Istambul.
Segundo Haydu (2009), nos dias atuais, há grandes fluxos migratórios, fenômeno
comum nas grandes metrópoles que, impulsionados por fatores variados, como por exemplo,
desastres naturais e conflitos políticos e/ou ideológicos trazem pessoas de diferentes locais do
mundo. Rittiner (2006) apresenta que, o contato entre os povos também acontece devido às
migrações de turismo, aos estágios ou aos estudos em países estrangeiros. A autora coloca que
o fato de se poder deslocar com mais facilidade de um local para o outro, aumenta a
possibilidade de encontros entre pessoas de culturas diversas contribuindo assim, para que
aconteçam casamentos interculturais.
Os dados do Censo Demográfico (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE,
2010), no ano da pesquisa, mostrou o aumento no número de imigrantes no país, sendo que
nos últimos dez anos, foi de 86,7%. Assim como, neste mesmo ano, 491.645 brasileiros
residiam no exterior. Do total de residentes em 193 países do mundo, 53,8% eram mulheres e
46,1% homens, com idade entre 20 e 34 anos, uma população jovem em idade de casamento.
Se o trânsito de pessoas pelo mundo aumentou, certamente, podemos imaginar o
trânsito que existe entre elas nas redes cibernéticas.
Outro fenômeno social se faz presente em nosso país nos últimos tempos é a projeção
da religião islâmica após o 11 de setembro de 2001. De acordo com Pinto (2010), embora o
Islã tenha chegado por aqui com a vinda dos escravos malês, ele ganhou notoriedade entre a
população depois que a mídia (muitas vezes único meio de informação de muitos brasileiros)
passou a divulgar os atentados terroristas contra os Estados Unidos ocorridos na data referida.
Assim, passamos a ser “bombardeados” com inúmeras notícias advindas do
telejornalismo internacional e nacional que, de acordo com Porto e Chaves Filho (2011),
contribuiu para que o olhar do telespectador se tornasse cada vez mais dependente das
informações e estereótipos advindos da imprensa, sendo que esta, raras vezes, ouviu um
praticante da religião.
Entretanto, se durante as notícias veiculadas sobre o ataque terrorista juntou-se o Islã à
violência, em contrapartida, nessa mesma época, despontava outro sucesso televisivo no
Brasil: a novela O Clone, veiculada pela Rede Globo de 01 de outubro de 2001 até 15 de
junho de 2002, a qual uniu os mesmos personagens – árabes e muçulmanos – de uma forma
divertida e estereotipada.
Segundo Ferreira (2009), mesmo que alguns estereótipos ainda tenham permanecido, o
enredo trazia alegremente alguns costumes marroquinos e aspectos da religião que agradaram
o gosto do público, como o marido Said (interpretado pelo ator Dalton Vigh) que além de
representar um galã, cobria a esposa de joias e provia o sustento da casa.
A mídia integra um complexo mecanismo de construção do imaginário cultural,
assumindo um importante papel na construção dos nossos mundos cognitivos e igualmente,
emigrantes vinham com um documento chamado “laissez passer” (do francês “Deixai passar”) emitido
pelo governo turco que dominava aquela região. Eram, portanto, considerados turcos, embora não
soubessem
dizer
três
palavras na
língua
do
império.
Disponível
em:
http://olatoeiro.wordpress.com/2010/03/13/por-que-os-arabes-sao-chamados-de-turcos/.
Acessado
em 10.05.13.
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11
como expressão de cultura e como leitura e interpretação dessas culturas (ALLIEVI12, 2003
apud MARQUES, 2011, p. 35).
O cyber espaço como ponto de encontro
Compreender este novo local de encontro – o cyber espaço – torna-se fundamental para
nos aproximarmos do entendimento dessas novas uniões entre brasileiras e muçulmanos
turcos, pois o mundo social da internet é tão diverso e contraditório quanto a própria
sociedade (CASTELLS, 2003).
De acordo com o autor citado acima, o surgimento da internet faz emergir um novo
meio de comunicação e com isso se promove novos padrões de interação social. A
comunicação online desvincula a necessidade de se estar no mesmo local para se poder
socializar. “A era da internet foi aclamada como o fim da geografia” (CASTELLS, 2003,
p.170). A internet tem uma geografia própria, feita de redes e nós que processam fluxos de
informações gerados e administrados a partir de lugares (CASTELLS, 2003).
Estudos de sociólogos urbanos como Suzanne Keller, Wellman e Claude Fischer
mostraram que redes substituem lugares como suportes da sociabilidade nos bairros e nas
cidades (CASTELLS, 2003).
Contudo, desde que a internet tornou-se pública em vários países, entre os anos de 1990
e 1995, e ainda hoje, várias críticas acadêmicas são tecidas sobre esse novo modo de
comunicação sob a alegação de que a falta de contato físico entre os indivíduos promove um
isolamento do social do usuário, como também promove uma sociabilidade aleatória, criação
de identidades falsas e a indução de pessoas a viverem fantasias online.
Castells (2003), no entanto, afirma que esses estudos distorcem a política social da
internet dizendo que ela é um terreno fértil para as práticas de fantasias sociais. Diz ele que, a
internet é “uma extensão da vida como ela é” (p. 100).
Turkle (1995) e Bayam (1998) dizem respectivamente, através de seus estudos que, a
noção do real existe nas comunicações online, assim como muitos usuários criam
personalidades compatíveis com suas identidades offline.
Castells (2003) atribui as reações negativas da internet ligadas ao período de adaptação
ao novo ambiente tecnológico.
Contudo, não podemos negar que, na ”caça” ao parceiro ideal, existem sim muitos
“perfis” falsos sendo criados no mundo virtual. Inclusive há comunidades de brasileiras no
Facebook13 que trabalham para divulgar e apresentar às demais brasileiras que se encontram
em namoros virtuais com turcos, os falsos pretendentes, que muitas vezes possuem mais de
um perfil ou já são homens casados. Nesses locais, as brasileiras disponibilizam as fotos dos
homens turcos com os vários nomes que eles se apresentam. Como também, quando recebem
pedidos de amizade via Facebook, antes de aceitarem, divulgam o nome e a foto do cidadão
no grupo e perguntam as demais participantes “Este turco é de alguém?”
Domingues (2004, s/p) acrescenta que “durante os rituais interativos, o corpo é chamado
a agir conectado a um sistema preparado para responder às suas ações. Assim, a interatividade
caracteriza-se por construir um sistema de relação do corpo com os sistemas artificiais.”
12
ALLIEVI, Stefano, 2003, “The media”, em Brigitte Maréchal, Stefano Allievi, Felice Dassetto e Nielsen
Jorgen (orgs.), Muslims in the Enlarged Europe. Leiden, Brill, 289-330.
13
Facebook é um site e serviço de rede social que foi lançada em 4 de fevereiro de 2004, operado e
3
de propriedade privada da Facebook Inc.. Em 4 de outubro de 2012 o Facebook atingiu a marca de 1
4
bilhão de usuários ativos. Em média 316.455 pessoas se cadastram, por dia, no Facebook, desde
sua criação em 4 de fevereiro de 2004. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Facebook.
Acessado em: 04/03/2014.
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De acordo com Lévy (1996) o movimento de virtualização afeta hoje não apenas a
informação e a comunicação, mas também os corpos e os coletivos da sensibilidade.
Segundo Pierre Lévy (1999, p. 26) “acreditar na disponibilidade total das técnicas e de
seu potencial para indivíduos ou coletivos supostamente livres, esclarecidos e racionais seria
nutrir-se de ilusões”.
As Redes Sociais Online, os blogs e a pesquisa científica
A Internet, segundo Guimarães Jr. (1997), conhecida como "rede das redes", constituise em uma técnica que condensa várias características do cyber spaço, conceito que lhe é
anterior e designa o espaço criado pelas comunicações mediadas por computador (CMC’s).
Compreender o espaço virtual como um modo de conceber a etnografia – etnografia
virtual, de acordo com Hine (2000), surge em resposta a uma necessidade de estudar
comunidades em que a comunicação se dá por meios eletrônicos, podendo complementar a
etnografia convencional, a qual se dá por meio presencial do pesquisador na comunidade.
Nesse sentido, entende-se por redes sociais online uma estrutura social composta por
pessoas ou organizações que possuem interesses em comum e estão conectadas via internet,
no cyber espaço. Sabe-se que as redes online operam em diferentes níveis como, por exemplo,
redes de relacionamentos (Facebook, Skype, Orkut, MySpace, Instagram, Twitter, Badoo),
redes profissionais (LinkedIn), dentre outras. Já os blogs são uma espécie diário online,
contrariando a privacidade existente em sua ideia inicial, na internet ele apresenta,
publicamente, relatos pessoais sobre determinado assunto. Um blog pode combinar texto,
imagens e links que dão acesso para outros blogs ou páginas da Web.
Ao procurar literatura sobre este tipo de casamento intercultural em bancos de dados
como Periódicos Capes, Scielo, Teses USP, Google Acadêmico e livros, utilizando o
cruzamento das seguintes palavras chave: Islã ou Islam ou Islão versus casamento ou married.
A surpresa foi que, apesar de amplamente discutido por leigos internet (blogs e redes sociais),
encontramos apenas um trabalho sobre o relacionamento de mulheres brasileiras com
muçulmanos estrangeiros, sendo uma dissertação de mestrado, na área da antropologia, que
embora se refira a esse relacionamento, o foco do trabalho está na construção do self dessas
mulheres em relação à reversão ao Islã (BARROS, 2012). Nos últimos dez anos é possível
encontrar no cenário brasileiro uma crescente produção, ainda que pequena, nos estudos
referentes ao Islã.
No Brasil, dentro das Ciências Humanas, áreas como a história, a ciência da religião, a
sociologia e a antropologia dominam os estudos realizados sobre Islã, abordando em sua
grande maioria questões referentes à identidade, conversão/reversão, jurisprudência e gênero
(uso do véu islâmico). Já na psicologia foi possível encontrar apenas dois trabalhos, sendo o
primeiro deles sobre saúde mental em imigrantes palestinos (ZAIA, 2006), embasado na
psicologia intercultural. E, o segundo sobre a relação entre a simbologia arquitetônica
islâmica inspirada pelo sufismo e as concepções psicológicas de Jung (RAFFAELLI, 2012).
Com efeito, se a ausência de trabalho cientifico sobre os casamentos entre brasileiras e
muçulmanos (em geral) são quase inexistente, encontrar dentro desta temática trabalhos
científicos que ainda levassem em consideração o cyber espaço foi uma busca nula.
Abu-Lughod (1986) diz ser preciso estarmos alertas à necessidade de entendimento do
sistema social tendo em conta homens, mulheres e o seu relacionamento, uma vez que, a
gestão da vida pessoal se intersecta com a vida no grupo e toma dimensões políticas na
medida em que se cruzam fronteiras físicas e psíquicas, e acrescentamos agora, as fronteiras
virtuais.
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Dessa forma, compreender o casamento intercultural, que tem como viés a união com
um muçulmano turco, torna-se importante tanto para tomarmos conhecimento dessa faceta da
religião islâmica no Brasil, como também para entendermos as vivências existentes nesses
novos lares islâmicos que são formados em grande maioria, pelos contatos estabelecidos no
cyber espaço.
O Casamento Intercultural
Os casamentos interculturais não são um modelo recente, mas a globalização e as redes
sociais têm facilitado o encontro de parceiros de origens diversas. Segundo Medeiros (2011,
p. 57) “[...] as pessoas ainda buscam sua felicidade através do casamento, apesar do grande
aumento no número de divórcios.”
Goldenberg (2011) coloca que as brasileiras repetem, insistentemente, que “falta
homem no mercado”, e as que se mostraram mais satisfeitas com suas vidas, entre as
brasileiras pesquisadas, são aquelas casadas há muitos anos. No entanto, de acordo com os
depoimentos das participantes em sua pesquisa, a autora constata a existência de uma riqueza
extremamente valiosa para as brasileiras: o marido.
Nesse sentido, podemos pensar, então, que devido à “crise interna” no mercado de
casamentos as brasileiras buscam esse companheiro no “mercado” externo? Utilizam a
internet para facilitar e agilizar a busca do amor ideal?
Togni e Raposo (2007) diz que o casamento intercultural sempre foi visto como
problemático na sociedade, pois a endogamia parece ter sido a “tendência natural” e uma
regularidade normativa. O autor ainda sustenta que, estudos contemporâneos sobre parentesco
e família têm incutido em suas análises uma variedade de grupos familiares: como por
exemplo, as famílias mono/homo parentais, a coabitação, os arranjos formais e informais de
pais adotivos e, no entanto, essas mudanças são, em vários momentos, contestadas tanto na
sociedade como na comunidade científica, sendo a família nuclear o ideal de modelo na vida
institucional e política.
De acordo com Truzzi (2008) desde os anos 1980 do século passado, estudiosos vêm
defendendo a tese de que a família no Brasil não pode ser compreendida apenas por traços
homogêneos acomodados em um padrão singular que evoluiu da família patriarcal à família
conjugal moderna, mas sim a partir de arranjos diferenciados, segundo especificidades de
classe, gênero, idade e, acrescenta o autor, etnia e religião.
Goldenberg (2003) também nos alerta que não há um modelo ocidental, mas vários. No
entanto, devo discordar quando diz que homens e mulheres continuam querendo casar e
constituir famílias, sem reproduzir o modelo tradicional de conjugalidade. O que vemos neste
campo de pesquisa é exatamente o contrário, no setor feminino. As mulheres com quem
temos contato, a princípio, buscam um homem “nos moldes antigos”; provedor e cuidador da
casa – mesmo que após o casamento isso não venha a acontecer. A própria Goldenberg coloca
como um dos resultados de suas pesquisas que, homens e mulheres nutrem um ideal
romântico de relacionamento e possuem expectativas de relacionamento estável, sério, fiel e
duradouro, padrões encontrados, na nossa sociedade, nos casamentos antigos. Ideais estes
que, facilmente podemos ouvir quando o assunto é casamento com muçulmanos (sejam eles
turcos ou não), como podemos ver a seguir: "Os árabes são muito gentis, educados, talvez
como aquele homem à moda antiga, que não há mais. É um ponto que encanta a mulher”.
(V.S, brasileira, 32 anos, casada com egípcio).
Quesitos como romantismo e gentileza também são pontos fortemente atribuídos aos
turcos. Outra fala muitas vezes ouvida em campo é: “os muçulmanos casam, os brasileiros
não querem se casar”.
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Mas, o que sabem as brasileiras sobre um homem muçulmano?
Muitas vezes, é possível ver, claramente, na rede a confusão entre cultura árabe ou turca
e religião islâmica. Na tentativa de conhecer o universo do amado as brasileiras buscam
informação em outros blogs, sites e revistas não especializadas e atribuem certas
características que são do homem muçulmano a toda uma etnia, ou vice e versa.
O Islã
De acordo com a proposta da autora Vitória Peres de Oliveira (2006, p.2) de que é
preciso “tentar entender o Islã entre nós”, no campo religioso brasileiro, é que se reforça a
importância deste estudo. De acordo com Marques (2008), no Brasil, embora os muçulmanos
continuem sendo minoria é necessário, neste momento histórico, maior atenção do meio
acadêmico para essa vertente, uma vez que fazem parte de uma comunidade global de fé que
vem crescendo, quer seja em função de deslocamentos migratórios propiciados pelas
integrações globais, quer seja pelo maior contato com a religião através dos meios eletrônicos
– mídias e Internet – ou pela conversão. E, acrescentamos aqui, em função também da vinda
de homens muçulmanos (sejam eles turcos ou não) para se casarem com mulheres brasileiras.
Ainda que muçulmano não seja sinônimo de árabe, e que a maioria dos religiosos
estejam fora do Oriente Médio, concentrando-se no continente asiático, na dissertação de
mestrado de Barros (2012), ela apresenta que grande parte das mulheres brasileiras revertidas,
com quem teve contato, manifestavam seu gosto pela cultura árabe (dança do ventre, comidas,
roupas). E acrescenta que, de acordo com Said (1990) sobre a ideia de orientalismo que
introduziu no ocidente representações do oriente como algo exótico, esse imaginário
orientalista, constitui o pano de fundo do encontro e da relação entre essas mulheres e seus
respectivos “amigos” ou “pretendentes”, definindo seu interesse por uns e não por outros
homens com quem interagiram (ou ainda interagem) online. Segundo a autora, embora essas
mulheres tenham conhecido homens de várias religiões e nacionalidades, no espaço da
internet, foram dos homens muçulmanos estrangeiros que elas se aproximaram e se
encantaram.
Na medida em que, as fronteiras tornaram-se permeáveis e a mobilidade contemporânea
movimenta para além de pessoas, ideias e símbolos culturais que provocam uma grande
transformação na vida social (APPADURAI, 2004).
Segundo depoimento, coletado em atividade de campo, do Sheik Jihad Hammadeh, ele
nos contou que durante a veiculação da novela “O Clone”, algumas brasileiras procuravam as
mesquitas para saber onde poderiam fazer dança do ventre. Fato esse que mostra o total
desconhecimento entre cultura e religião. Também é possível assistir em vídeos amadores,
feito por brasileiras que orientam as demais, alertas sobre o sonho de Jade14, pois muitas
brasileiras desconhecem a religião islâmica e tomam por base conhecimentos televisivos, que
algumas vezes se apóiam na realidade, mas a contornam com adereços para ganhar a atenção
do público.
A sociedade turca, que embora sua história política (pós Kemal Atatürk15) seja uma
tentativa de se aproximar do mundo europeu, ela ainda possui arraigada no seu cotidiano um
modo de vida que pouco se parece ao modo de vida europeu no que se refere a emancipação
das mulheres, principalmente quando se sai de grandes centros como Istambul e Izmir.
14
Uma bela e romântica muçulmana, personagem da novela “O Clone” vivido por Giovanna Antonelli
que se casa com Said o marido muçulmano que é bonito, provedor da casa e presenteia a esposa
com jóias.
15
Importante líder político que laicizou a política na Turquia.
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O Islã é muito mais que uma religião, ele suplementa modos de uma vida social e
política de seus fieis. Para os muçulmanos, o casamento é parte da religião, sendo um dos
preceitos proferidos pelo Profeta Mohammed e, portanto, casar-se para um homem
muçulmano é estar em acordo com os preceitos de sua religião, talvez isso explique o porque
dos muçulmanos se casarem mais que os brasileiros. Entretanto, as mulheres muçulmanas não
podem casar fora de sua religião, já os homens podem, uma vez que a religião é transmitida
pelo pai e assim os filhos serão muçulmanos.
El Hajjami (2008) acrescenta que a questão da igualdade entre os sexos, questão muito
presente no ocidente, confronta o referencial islâmico e coloca o mundo muçulmano em
questão no que tange as relações sociais entre os sexos, principalmente na esfera privada. Para
a autora, as condições de inferioridade que estão confinadas boa parte das mulheres nas
sociedades muçulmanas são oriundas principalmente da hegemonia de uma mentalidade
historicamente patriarcal que faz mau uso das leituras corânicas para legitimar as situações de
dominação, de violência e de exclusão em relação às mulheres.
Bouhdiba (2006, p. 279) afirma que “a feminilidade encontra-se reduzida a uma espécie
de avesso da masculinidade” nas sociedades islâmicas e a mesma encontra-se negada por
todos os lados, deixando para a mulher esconder-se e buscar refúgio na mulher “do lar” ou
“da noite”.
Embora na sociedade turca, principalmente nas grandes cidades, seja possível ver
mulheres muçulmanas turcas que são casadas e fazem faculdade ou trabalham, como também
vemos brasileiras (muçulmanas ou não) casadas com muçulmanos turcos que levam uma vida
próxima a que viviam no Brasil, ainda assim, segundo depoimentos de interlocutoras, o papel
da mulher é bem definido pela sociedade turca, sendo suas tarefas de esposa e mãe super
valorizados pela família turca, em especial pela sogra. E vale lembrar, que para a família turca
tradicional o peso da opinião dos pais pode mudar o rumo de qualquer história de amor.
Considerações Parciais
Por meio dos estudos realizados até o momento e das trocas de informações com as
colaboradoras e os colaboradores da pesquisa percebe-se a necessidade da construção de um
corpo de dados que auxilie na compreensão desses novos casamentos interculturais, que em
grande maioria acontecem via namoro virtual.
Até o momento, foi possível perceber um aumento no fluxo de muçulmanos
estrangeiros que chegam ao Brasil para fugirem das crises internas em seus países,
principalmente os que sofreram e ainda sofrem as conseqüências da Primavera Árabe como os
egípcios. No caso dos turcos, devido ao aumento nas transações comerciais entre BrasilTurquia e a mobilidade de brasileiros em terras turcas nos últimos tempos despertou o
interesse dessa população pelas terras brasileiras e também por suas mulheres.
Contudo, o cyber espaço aparece nos relatos das brasileiras como o local que propicia
esses encontros e gesta as ideias para que a “conexão” seja feita não apenas de forma virtual,
mas já em terras reais e estrangeiras. Ora são as brasileiras que cruzam o mar para contrair
matrimônio em terras turcas. Ora são os turcos que chegam ao Brasil para se casarem.
É possível notar que os homens muçulmanos, neste caso o turco, encontram
consonância nas suas buscas por brasileiras para contrair matrimônio. Os turcos em especial,
ressaltam sempre a beleza da mulher brasileira como um dos atrativos. Já as brasileiras
sentem-se atraídas pelos homens turcos porque dizem serem estes sedutores, românticos e
educados e também como apontou a pesquisa, a facilidade como estes homens se casam.
Embora muitos deles não passem do namoro virtual.
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Contudo, nesse casamento intercultural entre brasileiras e turcos muçulmanos não
parece existir apenas encantos, principalmente quando os namoros acontecem exclusivamente
ou em grande parte de forma virtual e pouco se conhece sobre a cultura e religião do marido.
Durante as conversas mantidas pelo casal, em grande parte usando o inglês como idioma
principal para se comunicarem, muitas idéias e conceitos escapam ao entendimento e
ressurgem quando dividem o mesmo teto. Também a ânsia em fazer tudo dar certo e acreditar
que tudo pode ser modificado e resolvido no comportamento alheio é outro fator que contribui
para o fracasso.
No campo virtual, tanto em blogs, vídeos, quanto em comunidades existentes no
Facebook é crescente o aumento de mulheres que, tem ou tiveram experiência de namoro ou
casamento com muçulmanos turcos. Muitos desses espaços são criados para informar as
demais brasileiras sobre as dificuldades existentes nesses relacionamentos.
A frustração das expectativas depositadas no casamento intercultural, somada as
dificuldades de expressão de pensamento pelo uso de dois ou mais idiomas na relação,
juntamente com a dificuldade de adaptação em uma cultura ou outra fazem aparecer os
desencantos dessa união que muitas vezes tornam-se muito difíceis de serem resolvidos por
estarem em um país estrangeiro e com um homem estrangeiro.
Com efeito, o cyber espaço nos convida a viajar e experimentar novas sensações seja no
mundo real ou virtual e para todas elas se faz necessário conferir nossa “bagagem” para saber
até onde podemos ir e levar sempre um “plano B” no bolso, como dizem as internautas.
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O FAZER POLÍTICO NAS FESTAS RELIGIOSAS: INTERAÇÕES ENTRE OS
ESPAÇOS SAGRADO E PROFANO
Otávio Costa – UECE ([email protected])
Resumo
O presente texto tem por objetivo compreender e suscitar reflexões acerca do aspecto
político das festas religiosas. No contexto de uma geografia da religião, podemos
observar que, entre as diversas funções sociais desempenhadas pelas festas religiosas, a
dimensão política destaca-se por uma função que tenta coadunar uma sacralidade cívica
e uma sacralidade de cunho religioso. Nesse aspecto, nos lembra Rosendahl (2013), que
o espaço da sacralidade cívica serve para evocar um poder que emana do povo, sem
possuir referencias a poderes sobrenaturais. Na perspectiva de entender como se forjam
essas espacialidades, elencamos o papel dos personagens presentes nas festas religiosas,
ou seja, autoridades civis e eclesiásticas nas quais elegem as festas religiosas como
lócus para o exercício do poder pelo qual o espaço e o tempo sagrado são marcados por
práticas e rituais simbólicos. Assim, buscamos compreender a dimensão política
contextualizada no âmbito da Geografia da Religião na qual substantiva-se numa
polivocalidade que fornece um amplo leque de interesses, entre os quais podemos
observar a partir da compreensão de certos lugares sagrados. Nessa perspectiva de
análise, tomamos como exemplo, duas festas religiosas no interior do Ceará: a Festa do
Senhor do Bonfim em Icó e a Festa de São Francisco das Chagas em Canindé cujo
cenário religioso se torna também um cenário político, sobretudo em anos de eleições.
1. INTRODUÇÃO
A relação entre religião e política tem esteio nas práticas que
circunstanciam o mundo dos homens, caracterizando, portanto, formas de poder nas
quais referenciam atos, rituais simbólicos, práticas econômicas e políticas que
estabelecem contornos e tramas em uma dimensão espacial cuja totalidade estabelece
demandas compartilhadas por aqueles que buscam o exercício de praticas políticas e
religiosas em um mesmo contexto. Sobre essa estreita relação atesta Novaes (2001, p.
61), que religião e política são dimensões distintas da vida social e que conformam
espaços sociais diversos, com instituições, finalidades e inserções temporais específicas.
Compreendendo ser a sociedade um fenômeno dialético, na abordagem
de Berger (1985), três momentos irão fundamentar esse processo: a exteriorização, a
objetivação e interiorização. Nesta perspectiva, buscaremos compreender contextos que
forjam certas espacialidades, nos quais elencamos o papel dos personagens presentes
nas festas religiosas, ou seja, autoridades civis e eclesiásticas que elegem as festas
religiosas como lócus para o exercício do poder pelo qual o espaço e o tempo sagrado
são marcados por práticas e rituais simbólicos. Assim, buscamos compreender a
dimensão política contextualizada no âmbito da Geografia da Religião pela qual
substantiva-se numa polivocalidade que fornece um amplo leque de interesses, entre os
quais podemos observar a partir da compreensão de certos lugares sagrados. Nessa
perspectiva de análise, tomamos como exemplo, duas festas religiosas no interior do
Ceará: a Festa do Senhor do Bonfim em Icó e a Festa de São Francisco das Chagas em
Canindé cujo cenário religioso se torna também um cenário político, sobretudo em anos
de eleições.
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Para Rosendahl (2003, p. 193-194), “a experiência religiosa é ao mesmo
tempo individual e coletiva pela qual a dimensão política do sagrado permite conhecer
múltiplas estratégias espaciais”. Tais estratégias dimensionadas pela autora citada estão
contextualizadas em uma representação do universo social. Uma definição que converge
para as análises de Berger (1985), ao afirmar que a sociedade é um construto humano,
denominando esse processo como uma dialética dos fenômenos sociais. Fundamenta-se,
portanto, uma trama complexa na qual tudo é tecido em conjunto. Religião e política
nesta concepção devem ser observadas como um emaranhado de fios diversos,
indissociáveis, mesmo que contemple antagonismos, cuja visibilidade irá definir
práticas espaciais provenientes de uma dialética dos fenômenos sociais motivados pelo
sentido da presença de atores sociais que ao mesmo tempo se constroem como sujeitos
também constroem a sua própria realidade.
Estabelecer uma discussão entre as práticas políticas e religiosas,
caracterizadas como um par dialético, dimensionando duas festas religiosas com
características singulares, significa compreender todo um arcabouço de significados.
Neste sentido, poderemos compreender espacialidades que possam definir paisagens ou
lugares em uma forma plural, pois, segundo Jackson (1998) “a abordagem adotada pela
nova geografia cultural enfatiza a pluralidade das culturas e a multiplicidade das
paisagens nas quais as culturas estão associadas”. Assim, ao falarmos de religião e
política no contexto das festas religiosas queremos compreender uma totalidade das
construções dos sujeitos, mesmo sabendo do grau de complexidade que envolve a
religião e a política.
É fato que festas religiosas e certas práticas políticas costumam andar de
mãos dadas, sobretudo em anos de eleições. Arma-se, portanto, uma trama para delinear
espacialidades que anunciam um espetáculo cuja história de relacionamento entre o
sagrado e o profano se confunde com a existência de um estabelecimento de práticas
sócio-espaciais emanadas a partir da organização social em que os sujeitos e suas ações
se acham inseridos. A análise que fazemos para o presente texto nos indica um caminho,
cujo esforço de reflexão desponta para alguns aspectos multifacetados na perspectiva do
espetáculo enquanto uma expressão que pode se manifestar espacialmente através da
“divisão de tarefas espetaculares, que conserva a generalidade da ordem existente”
(DEBORD, 1997).
A dimensão do fazer político e sua inserção na festa religiosa nos instiga
a pensar também na imbricação que move espacialidades distintas. Tais modalidades
são expressas através do sagrado e do profano. Mircéa Eliade ao falar da existência de
dois modos de ser no mundo, afirma que “se pode medir o precipício que separa as duas
modalidades da experiência – sagrada e profana – lendo-se as descrições concernentes
ao espaço sagrado e à construção da morada humana” (ELIADE, 1992, p. 19).
Conforme este autor, para o homem religioso, o espaço não é homogêneo, pois
apresenta roturas e quebras. Existe um espaço forte, significativo, sagrado e outros nãosagrados os quais representam o caos, no entanto é necessário sacralizar o espaço para
que ele seja habitado. As festas religiosas, com seus aspectos devocionais, e seus rituais
cumprem a função primordial de reatualizar o tempo mítico. O devoto ao participar
desses eventos evoca e recria de forma arquetípica o tempo original buscando na festa
uma reatualização que promove sua purificação. E a inserção política na esfera do
sagrado? Que reatualização pretende ser entendida quando tramas são configuradas
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para que elementos do sagrado se aliem a uma dimensão da política? São
contextualizações que pretendemos estabelecer a partir do exemplo de duas festas
religiosas.
2. TEM POLÍTICO NA FESTA
Na medida em que se consegue impor vontades e desejos, tanto as
dimensões religiosas quanto políticas desejam perpetuar suas veleidades, ora definindo
suas territorialidades visíveis ou não, ora construindo ideologias que por sua vez
também delineiam possíveis territorialidades. Aqui o poder emerge como prática tanto
na dimensão política quanto religiosa. O fenômeno religioso, pelo qual Raffestin (1993)
o caracteriza através das relações de poder conjuga com as demandas do fazer político,
implicando práticas e retóricas numa dimensão espacial. Os exemplos que
apresentaremos a seguir denotam estas práticas e iremos interpretar à luz de
contribuições teóricas que procuram dar clareza às ações em um ordenamento sócioespacial refletido em contextos singulares, aqui representados por duas festas religiosas
no interior do Ceará: a festa do Senhor do Bonfim em Icó e a festa de São Francisco das
Chagas em Canindé.
A cidade de Icó, distante 370 quilômetros de Fortaleza, está localizada na
região centro-sul do Ceará. É a terceira cidade mais antiga do estado, possui um rico
acervo arquitetônico associado ao ciclo da pecuária, tendo obtido em 1998, o título de
patrimônio histórico nacional. Em suas ruas antigas, repletas de casarões e sobrados,
acontece a terceira maior festa religiosa do Ceará – A Festa do Senhor do Bonfim –
realizada no período de 22 de dezembro à 1º de janeiro. Nesse cenário de festa de
interior, se observa exteriorizações enquanto uma constante efusão por parte daqueles
que fazem aquela festa religiosa. Se para Berger (1985), a exteriorização é uma
necessidade antropológica, vamos encontrar nesse ambiente de festa, a dimensão da
política e da religião pelas quais emergem exterioridades através de manifestações que
se peculiarizam por momentos conflituosos pelos exemplos que serão apresentados a
seguir.
A festa do Senhor do Bonfim em Icó, como qualquer festa de padroeiro,
sobretudo em anos de eleições, oferece cenário ideal para que políticos se utilizem do
evento com o intuito de angariar votos. Durante a preparação da festa ocorrida em 1981,
um fato peculiar provocou tensões entre políticos locais e o clero. Tudo começou
quando os padres jesuítas, recém chegados na cidade, observando a situação de pobreza
do município, tentaram reduzir o número de fogos, durante o novenário e a famosa
explosão de bombas no final da procissão. Fato este que motivou uma celeuma na
cidade, aqueles a favor da quantidade de fogos e os partidários da redução do número de
bombas. O movimento foi tencionado quando a igreja percebeu que o acordo
estabelecido nas reuniões preparatórias da festa não foi cumprido pelas autoridades
municipais. Tal episódio fez com que o bispo diocesano encerrasse a festa religiosa na
manhã do dia 1º de janeiro e não mais realizando a procissão no final da tarde que
culminaria com a famosa queima de fogos. Observa-se neste momento, a preocupação
da igreja em sacralizar o espaço de seus edifícios, ponto tradicional de partida e chegada
das procissões (DEL PRIORE, 2000). Entretanto, o prefeito e o deputado, este também
líder político da cidade e região, “decidiram realizar a procissão por conta própria, sem
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a autorização e sem a participação da igreja” (Jornal O POVO, 05.01.1982). Para o
vigário da cidade em entrevista ao jornal O POVO, afirmava: “Estamos vivendo, como
todos sabem um tempo de incompreensão, de agressão e de muita revolta de Icó por
parte de algumas autoridades do município”.( O POVO, 05.01.1982) Sobre o fato da
igreja não participar dos atos finais da festa, comentou “E a procissão de 1º de janeiro
que não foi uma procissão e sim uma passeata política, não contou com a participação
do Povo de Deus, mas de um grupo inexpressivo de Icó e muitas pessoas vindas de fora
que estavam desinformadas das decisões do bispo. Até um candidato a governador,
estava presente na procissão” (O POVO, 05.01.1982).
As divergências existentes no contexto da festa religiosa de Icó nos
conduzem a uma perspectiva pela qual afirma Berger (1985, p. 29), “a apropriação
interna do mundo por parte do homem também deve ocorrer em uma coletividade”.
Diante desse posicionamento, verifica-se, portanto, as formações de territorialidades,
aqui francamente delimitadas nas dimensões dos espaços sagrado e profano e
valorizando a participação de atores pela qual reflete e reforçam as relações de poder
hierárquicas de dominação e subordinação, inclusão e exclusão (Kong, 2004).
Outro exemplo que apresentaremos se reporta à festa de São Francisco
das Chagas em Canindé, cidade localizada a 120 km de Fortaleza. Encravado na ampla
depressão sertaneja, o sertão de Canindé, apresenta uma paisagem plena de significados
simbólicos, representados tanto pelos seus elementos naturais – aqui definidos pela
extrema aridez – como também pelos ícones representativos de uma paisagem cultural
cujos significados são passíveis de uma interpretação (COSTA, 2009). A festa é
conhecida tradicionalmente por reunir milhares de romeiros que, sobretudo, durante a o
mês de outubro se dirigem aquela cidade para pagarem suas promessas. São romeiros
provenientes de várias partes do Brasil, sobretudo dos estados vizinhos como Maranhão
e Piauí. Aqui, observamos que o cenário se modifica pela amplitude de escala. A
paisagem sagrada também se diferencia frente à perspectiva de uma festa típica de
romaria, bem diferente de ser uma festa de padroeiro.
Entretanto, tal qual a festa de padroeiro em Icó, o cenário para festa de
São Francisco enseja práticas cujas imbricações entre política e religião ocorre na
dimensão de um lugar sagrado. O fermento para o acontecer dessas práticas estão
calcadas em uma objetivação que no dizer de Berger (1985, p. 16) “é a conquista por
parte dos produtos de uma realidade que se defronta com os seus produtores originais.”
Substantivando essas práticas exemplificaremos um fato ocorrido durante a festa de
Canindé. Em 2010, em plena campanha política para presidência, o candidato José Serra
(PSDB), visita Canindé acompanhado do senador Tasso Jereissati. Durante a missa
celebrada no ampla quadra atrás da basílica, o padre disse comentou sobre os panfletos
que haviam sidos distribuídos antes entre os romeiros que participavam da festa. Tais
panfletos afirmavam ser a candidata petista Dilma Rousseff a favor do aborto e que a
mesma tinha envolvimento com o movimento terrorista ligado ás Forças
Revolucionárias da Colômbia (FARC). Afirmava o padre no momento: “Gostaria que a
missa não fosse tumultuada com os políticos que aqui chegaram, se vieram com outra
intenção, por favor, peço que saiam assim como entraram” (blog SGA Notícias) Tal
episódio o suficiente para que o senador Tasso Jereissati (PSDB) se exaltasse e fosse
tomar satisfações com o padre, afirmando que era um padre petista como aquele que
causava problemas para a igreja.
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Os dois fatos acima relatados ensejam uma discussão que aponta para
configurações sócio-espaciais pelas as quais práticas políticas e religiosas tentam
estabelecer uma lógica de deslocamento de fronteiras. Para Burity (2001) “a conjunção
de aprofundamento da religião como prática pessoal e desprivatização da religião como
força social e política é, muito mais frutífera como agenda para investigação do que a
discussão sobre o retorno do sagrado ou as querelas sobre a secularização, notadamente
se estamos pensando na questão da relação entre religião e política”. As práticas
políticas aqui representadas pelo poder daqueles que investem nos espaços sagrados,
pressupõe a ação de atores cuja presença em atos rituais do sagrado buscam amálgamas
para obtenção de dividendos, sobretudo em contextos de anos eleitorais.
Definem-se, portanto, territorialidades no espaço sagrado. Estas
territorialidades pressupõem subjetividades nas quais ações simbólicas circunscrevem
fronteiras. As práticas políticas expostas tanto na festa do Senhor do Bonfim em Icó,
quanto na festa de São Francisco em Canindé indicam na proposição de Sack (1986)
que as territorialidades devam conter a territorialidade da comunicação, cujos gestos e
manifestações criam uma fronteira na esfera do sagrado. As manifestações de poder nas
esferas do sagrado aí representadas sintetizam também uma ideia de território, que se
manifesta no dizer de Haesbaert (2002, p. 121) “como uma relação desigual de forças,
envolvendo o domínio de um controle político-econômico espaço e sua apropriação
simbólica”. A manifestação de poder encetada pelos atores ligados à igreja quanto os
personagens políticos se atrelam a uma dimensão simbólica que por sua vez definem
territorialidades também simbólicas, como uma forma de apropriação.
CONCLUSÃO
A discussão encetada no presente trabalho buscou acentuar duas
dimensões distintas que trazem suas singularidades nas suas práticas e proposições.
Política e religião poderiam em um primeiro instante parecer algo contraditório, uma
vez que política e religião possam se comunicar apenas em seus aspectos externos,
mantendo certo distanciamento em suas linhas de atuação. No âmbito das festas
religiosas citadas, a ação política tem o poder de introjetar valores e marcar suas
posições para destacar a imagem do político em tela, sobretudo em anos eleitorais. O
fazer político na dimensão de uma festa religiosa cumpre o papel de definir
territorialidades simbólicas, manifestas pela afirmação de poder e a inserção de valores
que sabiamente encontra respostas para suas demandas no âmbito de um espaço sagrado
que está repleto pela função catártica representada pela festa religiosa.
Por outro lado a igreja exerce seu poder na sacralização da festa,
promovendo a efervescência e a exaltação. No seu sentido lúdico, aqueles que integram
o poder religioso produzem uma manifestação que permeia toda a sociedade,
significando uma trégua no cotidiano rotineiro e na atividade produtiva. Sua natureza é
intrinsecamente diversional, comemorativa, pautando-se pela alegria e pela celebração.
Também conforma uma territorialidade, pela qual aqueles que representam o poder
religioso irão reivindicar a demarcação do espaço sagrado.
Neste sentido chegamos ao entendimento que nas festas religiosas de Icó e
Canindé a territorialidade religiosa acontece, segundo Rosendahl (2005), como sendo “o
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conjunto de práticas desenvolvidas por instituições e grupos no sentido de controlar um
território”. Dimensiona-se, portanto, um processo interativo e por vezes conflitante
através dos grupos que fazem ou participam desses eventos. Consideramos aqui, que as
possíveis territorialidades envolvendo o sagrado e o profano também não admitem
apenas a territorialidade concreta, mas também são entendidas pela formação de
relações com a dimensão simbólica que também é elemento estratégico para o
entendimento dessas territorialidades.
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ENTRE O RELIGIOSO, O FOLCLÓRICO E O SECULAR. O ESTUDO DOS
SÍMBOLOS E DOS RITOS NA FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO EM
PARATY – RJ
Diego Barbosa - UFJF
Resumo
As festas são momentos de (re)encontro, de afirmação da identidade e do sentido de
pertencimento. A festa do Divino é um ritual religioso do catolicismo popular, de
origem açoriana, que ocorre em vários países. Ela é conhecida pela sua exuberância
plástica ou performática. Considera-se uma festa de expressão religiosa popular,
composta de músicas, danças, procissões, passeatas e tradições seculares. A Festa do
Divino tem origem bíblica e caráter evangelizador que promove a fraternidade entre os
homens. É realizada em data móvel, na época de Pentecostes (50 dias após a Páscoa).
Proponho-me analisar, principalmente, os bastidores da festa, com o intuito de conhecer
e reconhecer sua organização e importância, preocupando-se em entender o significado
de ritos e símbolos envolvidos na cultura popular. Neste sentido, apresentar uma
reflexão sobre as dinâmicas e interações dos diversos atores sociais que participam do
processo de construção social desta celebração em uma dada localidade. Assim, a
questão da preparação e da realização da festa se torna o cenário principal, onde é
possível perpassar pela tríade festiva na qual se encontra a Festa do Divino em Paraty.
Considero essas categorias na qual a festa se realiza intercambiáveis, ou seja, não
excludentes, mas sim comunicáveis. É necessário analisarmos aqui como se configura
essas movimentações - passivas ou não - entre as categorias festivas (sagrada,
folclóricas e seculares) e como elas se configuram para os diversos atores que
participam da festa. Levando em consideração a persistente discussão entre
pesquisadores atuais sobre o cenário religioso brasileiro, considero de estrema
relevância discutir sobre como a religião se apresenta em diversos espaços da sociedade.
Introdução
Quem é da cidade, quem nasceu e tem família ali sabe sobre o
Divino, é fator que distingue quem é local e quem é de fora.
Para os moradores da cidade, ela é mais aguardada do que o
Natal, é época de “vestir roupa nova e festar”. (SOUZA,
Marina, 1994. p.57).
As festas de santo constituem um elemento importante para a compreensão da
ocupação do território e da formação, seja religiosa ou identitária, do Brasil. Trazidas
pelos colonizadores aqui se mesclaram pela “sociogênese”, que segundo a interpretação
de SANCHIS:
Deu-se no encontro (desigual) de três povos desenraizados nesta
terra brasilis marcado pela dominação da cultura
europeia/portuguesa sobre as duas seguintes – do nativo e do
africano – e na qual, “no avesso ou no interstício”, ocorreram
“microprocessos do jogo das identidades”, de “porosidades e
contaminações mútuas” que impediram uma compartimentação
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e uma distinção significativa entre essas culturas. (CAMURÇA,
2009, p.175)
As festas são momentos de (re)encontro, de afirmação da identidade e do sentido
de pertencimento. A festa do Divino é um ritual religioso do catolicismo popular, de
origem açoriana, que ocorre em vários países e, como acontece com o bumba-meu-boi,
com o carnaval e com outras festas populares, possui características específicas em
diferentes regiões do Brasil. Ela é conhecida pela sua exuberância plástica ou
performática.
A celebração anual das festas do Divino Espírito Santo é parte importante da
história da cidade do Rio de Janeiro, existindo aproximadamente desde o século XVIII.
No século XIX, até o fim do regime monárquico, com o qual estava fortemente
identificada, ela assumia grandes proporções, envolvendo praticamente todas as classes
sociais. Com a proclamação da República a festa foi proibida. Antes disso, era tamanha
a sua repercussão junto à população da cidade que intelectuais chegaram a propor a sua
escolha como símbolo nacional (ABREU, 1999).
Considera-se uma festa de expressão religiosa popular, composta de músicas,
danças, procissões, passeatas e tradições seculares. A Festa do Divino tem origem
bíblica e caráter evangelizador que promove a fraternidade entre os homens. É realizada
em data móvel, na época de Pentecostes (50 dias após a Páscoa). Nesse dia a Igreja
lembra a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, representado iconograficamente
por uma pomba e por línguas de fogo. Esse evento é considerado um dos dogmas da
Igreja Católica.
A origem da festa é conferida ao culto à devoção da Rainha Isabel, século XIV,
e à construção da Igreja do Divino Espírito Santo em Alenquer, Portugal, na qual teria
se estabelecido o culto à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, chegando a Paraty no
século XVIII. Um dos pontos relevante em relação à Festa do Divino é sua realização
sempre com grande pompa e brilhantismo.
A importância da análise, principalmente, dos bastidores da festa, com o intuito
de conhecer e reconhecer sua organização e importância, preocupando-se em entender o
significado de ritos e símbolos envolvidos na cultura popular. Neste sentido, apresentar
uma reflexão sobre as dinâmicas e interações dos diversos atores sociais que participam
do processo de construção social desta celebração em uma dada localidade,
particularmente nos dez dias de festa, onde ocorrem: novenas, missas, entrega das
lembrancinhas e uma grande procissão pelas ruas da cidade e também as apresentações
de danças folclóricas.
Assim, a questão da preparação e da realização da festa se torna o cenário
principal, onde é possível perpassar pela tríade festiva na qual se encontra a Festa
do Divino em Paraty. Considero essas categorias na qual a festa se realiza
intercambiáveis, ou seja, não excludentes, mas sim comunicáveis.
Ora, teria o religioso essa apreensão desta “mistura” entre folclórico,
religioso e secular? Onde termina o religioso e inicia-se o secular, ou vice-versa?
Como se estruturam as relações entre a instituição religiosa (a Igreja Católica), e a
instituição pública (a Prefeitura)? Como se dá a sociabilidade entre os grupos
envolvidos na preparação da festa? Quem são as pessoas que participam desta
festa? Qual o intuito, motivação e incentivo que transforma esses “fiéis” em
artistas folclóricos? Como a rua se torna uma extensão da Igreja? Qual o
significado de fazer a festa no espaço público?
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Considero que aspectos como esses tornam essa pesquisa instigante e nos
fazem analisar o quão poroso se torna a noção do espaço e dos sentidos dados no
acontecer da Festa.
O foco principal de observação será o processo de produção da festa, pois é aí
que o caráter espetacular deste evento anual torna-a um momento extraordinário. Neste
sentido, o que eu gostaria de também enfocar, é o caráter aglutinador de pessoas, grupos
e categorias sociais que participam deste evento, sendo por isso mesmo, um
acontecimento que escapa da rotina da vida diária.
Desde já gostaria de destacar que entendo esta manifestação como um ritual,
momento especial de convivência social que serve de suporte para a construção e
manutenção das relações sociais entre as pessoas envolvidas, sendo capaz, portanto, de
estimular e instaurar formas de sociabilidade. Portanto, este estudo tem também por
objetivo analisar as relações sociais que se cruzam num espaço socialmente classificado
e reconhecido como “religioso”, mas que se estende pelo folclórico e secular no espaço
público (BIRMAN, 2003).
Delimitação do Tema
A cidade de Paraty, recorte do presente estudo, está localizada no Sul do Estado
do Rio de Janeiro, sendo o município limite com o Estado de São Paulo.
Nos últimos anos, a Festa do Divino, assim como outras festas religiosas e
populares, passou a ser vista como elemento estratégico do turismo e foi incorporado ao
calendário de eventos culturais da cidade. Segundo MOURA (2005, p.38), essas festas
“(...) apresentam um caráter ideológico uma vez que comemorar é antes, de tudo,
conservar algo que ficou na memória coletiva”.
Em cada região de ocorrência, a festa tem suas particularidades. Em Paraty, a
festa é realizada desde o século XVIII, e contêm elementos religiosos e profanos, como
as bandeiras, as danças folclóricas e shows com artistas da atualidade.
A ausência de uma irmandade na cidade passa a responsabilidade da organização
da festa ao casal festeiro16 escolhido pelo pároco17 a partir das cartas de intenções
enviadas pelos interessados.
A festa é iniciada com a elevação do mastro na Praça Matriz um mês antes do
início da data marcada para a festa, mas sua organização começa com a escolha do casal
festeiro um ano antes, no final da festa do ano anterior. É de responsabilidade do casal
arrecadação de fundos, sejam eles financeiros ou materiais, para a realização da festa. O
casal durante o ano inteiro deve percorrer todos os distritos do município levando a
bandeira para que os devotos preste sua devoção ao Divino e contribuam com a festa
através do Livro de Ouro.
É na casa do casal festeiro que permanecem os objetos símbolos da festa como a
salva, o cedro e a coroa do imperador, com acesso livre para que os devotos façam suas
preces. Devido ao seu valor histórico, as peças são guardadas no Museu de Arte Sacra
da cidade onde recebem tratamento adequado e ficam mais protegidas fora do período
da festa. Também é da casa do festeiro que partem as procissões com as bandeiras com
16
Diferentemente de outras festas da cidade, a do Divino nunca foi organizada por uma
irmandade, sempre sendo feita pela comunidade como um todo. Sua continuidade se deve
também a isso, tendo em vista que após o fim das irmandades, muitas festas deixaram de ser
feitas ou tiverem dificuldades para se manterem.
17
Anteriormente, o festeiro do ano era sorteado.
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o símbolo do Divino, acompanhadas pela banda, percorrem o centro de Paraty em busca
das doações dos devotos durante o período da novena.
Outros eventos também são realizados durante esse período de novena como a
realização do bingo com todo o material doado pela população para arrecadação de mais
fundos para festa, o bando precatório, uma espécie de procissão onde são pedidas
esmolas para os fiéis que ocorre no último sábado da festa, percorrendo a cidade sempre
com as bandeiras do Divino acompanhadas pela banda.
Outros destaques da festa é o momento da coroação do imperador, representado
por um menino da cidade, rigorosamente trajado com capa de veludo e chapéu de bico;
a apresentação das danças folclóricas oriundas de diferentes distritos do município; a
distribuição do almoço gratuitamente representando a fraternidade e a soltura do preso
pelo imperador, atualmente uma encenação sobre a reflexão do perdão. Estas partes da
Festa do Divino são carregadas de simbolismo e singularidades, um conjunto
representativo das tradições populares fortalecendo a atratividade da cidade de Paraty.
A Festa do Divino Espírito Santo de Paraty é a mais tradicional do país, apesar
da ação transformadora do tempo. Em Eleita 3 de abril de 2013 foi eleita pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, “Patrimônio Cultural do Brasil”.
Justificativa
É necessário analisarmos aqui como se configura essas movimentações passivas ou não - entre as categorias festivas (sagrada, folclóricas e seculares) e como
elas se configuram para os diversos atores que participam da festa. Levando em
consideração a persistente discussão entre pesquisadores atuais sobre o cenário religioso
brasileiro, considero de estrema relevância discutir sobre como a religião se apresenta
em diversos espaços da sociedade.
A análise de ritos e símbolos constitui um dos campos mais férteis da
antropologia atual, de larga utilização em amplos domínios, tanto nos estudos sobre
religião e a cultura popular, como em vários outros. DURKHEIM (1989, p. 363)
considera que os ritos têm o objetivo de separar os seres sagrados dos seres profanos,
enfatizando a importância do estudo dos cultos ou ritos positivos e negativos.
VAN GENNEP (1978) e Edmund LEACH (1972) foram os principais
responsáveis pela ampliação dos estudos sobre ritos. Segundo VAN GENNEP (1978),
tanto para a análise de cerimônias quanto “como ponto de partida para uma reflexão
sobre o universo das relações sociais formalizadas, entre os homens, os grupos, os
espaços e as posições sociais fixas” (1978, p. 11), e também para estudar o
relacionamento entre os ritos e os atos teatrais. Já LEACH (1972) aborda a questão do
rito “como uma linguagem que serve para exprimir o status do indivíduo e para
expressar a estrutura social” (1972, p.18), considerando o rito como o aspecto
comunicativo de todo comportamento.
DA MATTA (1997), discutindo rituais nacionais brasileiros, lembra que, no
Brasil, a palavra ritual, no senso comum, está mais relacionado a momentos e
comportamentos solenes ou formais, e que as festas estariam no pólo da informalidade.
O autor considera, entretanto, o carnaval, as paradas e as procissões como ritos
nacionais que mobilizam as populações onde eles se realizam. Consideram o dia da
Pátria, o Carnaval e as festas religiosas como discursos sobre nossa realidade social.
“São discursos diversos a respeito de uma mesma realidade, cada qual salientando
certos aspectos críticos essenciais desta realidade” (1997, p. 17). Para DA MATTA “os
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rituais dizem as coisas tanto quanto as relações sociais... o problema é que, no mundo
ritual, as coisas são ditas com mais veemência, com maior coerência e com maior
consciência” (p. 29).
Victor TURNER, em vários trabalhos, desenvolveu amplamente o estudo do
simbolismo dos ritos tribais como forma de entender as estruturas sociais. Considera
que mesmo para entender um conjunto de atividades econômicas, necessita-se entender
o idioma ritual dessas atividades (1974, p.23). Preocupa-se em conhecer a exegese
nativa dos símbolos utilizados nos rituais. TURNER (1974) desenvolveu o estudo dos
ritos de passagem, enfatizando a “liminaridade” e a “communitas”, como momentos
especiais desses ritos, destacando neles, especialmente, a elevação e a reversão ou
inversão de posição e de status.
Pierre BOURDIEU (1989, p.9) lembra que “os sistemas simbólicos (arte,
religião, língua), como instrumentos de conhecimento e de comunicação, só podem
exercer um poder estruturante porque são estruturados”. O poder simbólico, para ele, é
um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnosiológica.
Em outra perspectiva, Clifford GEERTZ (1978) enfatiza a importância do estudo
da cultura na Antropologia, desenvolvendo uma teoria que alguns denominam de
interpretativismo simbólico. Considera que um dos objetivos da etnografia é “tirar
grandes conclusões a partir de fatos pequenos”. Para GEERTZ
O estudo antropológico da cultura é, portanto, uma operação em
dois estágios: no primeiro, uma análise do sistema de
significados incorporados nos símbolos que formam a religião
propriamente dita e, no segundo, o relacionamento desses
sistemas aos processos sócio-estruturais e psicológicos. A pouca
satisfação que venho obtendo com grande parte do trabalho
antropológico social contemporâneo sobre religião provém não
do fato de ele se preocupar com o segundo estágio, mas do fato
de negligenciar o primeiro e, ao fazê-lo, considerar como certo
aquilo que precisa ser elucidado. (1978, p. 142)
Vemos, portanto, segundo diversos autores, que a análise de ritos e dos sistemas
simbólicos constitui elemento fundamental para o conhecimento de uma comunidade.
No estudo da religião e da cultura popular, a análise de ritos e de símbolos é um recurso
essencial para a percepção da realidade.
Nesse campo de estudos, sabemos que os conceitos utilizados são muito
questionados. Cultura e religião popular são termos muito discutidos, como a maioria
dos conceitos utilizados pelas Ciências Sociais, sobretudo, devido às dificuldades de
conceituação do que seja povo e popular. O termo folclore, usado como sinônimo de
cultura popular é visto com certos receios pelas Ciências Sociais moderna,
especialmente no Brasil. A necessidade de distinguir religião popular e folclore faz com
que prefiramos utilizar o conceito de cultura popular ao estudarmos a Festa do Divino,
apesar das reconhecidas insuficiências desse conceito. Muitos não gostam do termo
cultura popular pela dificuldade de se estabelecer fronteiras entre o popular e o erudito e
entre a cultura dominante e a cultura do dominado. A expressão cultura popular pode
ser compreendida, segundo alguns, como uma foram mais moderna de designar o
folclore. O estudo das religiões praticadas pelas classes subalternas pode ser
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denominado de religiões populares, embora o conceito de religião popular seja também
motivo de discordância entre os estudiosos. Ainda nesse campo de estudos, outro
conceito objeto de discórdia é o de sincretismo, que quase sempre aparece como um
“aglomerado indigesto”, com a conotação pejorativa de mistura impura e confusa de
conceitos e idéias divergentes.
O estudo das festas populares situa-se, portanto, numa verdadeira floresta de
conceitos sobre os quais há mais desacordos e divergências do que unanimidades. É
preciso caminhar com cuidado nesse campo minado de discordâncias, evitando-se o
perigo de ser mal compreendido num terreno bastante marginalizado e periférico no
quadro das ciências sociais consideradas de vanguarda, mais preocupadas com temas e
teorias que sigam uma abordagem globalizante, discutindo, por exemplo, a
(pós)modernidade.
Sendo assim, proponho-me analisar ritos e símbolos na religião e na cultura
popular, procurando entender aspectos da festa do Divino realizada em Paraty.
Procedimentos teórico-metodológicos
O estudo dos ritos situa-se numa vertente de estudos centrais na antropologia e, a
noção de ritual pode ser conceitualmente banal se a tomamos como equivalente a
comportamento, uma vez que todo comportamento humano é inerentemente simbólico
(GEERTZ, 1973). Retém uma dimensão mais interessante quando, seguindo
DURKHEIM (1968), vemos nela a presença da “sociedade em ato”. A ênfase recai,
então, na ação/comportamento, a base da “efervescência coletiva”, trazendo consigo a
instauração da autoconsciência midiatizada pelas representações.
Uma fonte de inspiração também é dada pelas colocações de TAMBIAH (1985),
para quem um ritual é uma atividade simbólica que envolve concepções, um ato
expressivo cujos significados se tornam gestos, em um ensaio disciplinado de atitude
corretas (1985, p.84). Nesse sentido, o ritual envolve uma performance, que rearticula
os elementos do mundo social em uma nova gramática capaz de ser entendida e
percebida por todo o corpo social participante do rito, propondo um diálogo com DA
MATTA quando nos lembra que o ritual surge como uma área crítica para se penetrar
na ideologia e valores de uma da formação social (1980, p.24). Ou seja, o rito marca
em geral, aquele instante privilegiado onde buscamos transformar o único no universal,
o regional no nacional, o individual no coletivo ou ao inverso.
Em Paraty, campo empírico deste estudo, a comunidade se revela enquanto
coletividade diferenciada, enquanto um grupo que se pode reconhecer como único e
diferente dos outros. O estudo do ritual nos leva a compreender melhor a dimensão do
coletivo, na medida em que ele cria o cria e, é pela dramatização que ele expressa que
podemos tomar consciência das coisas e passamos a vê-las como tendo um sentido, vale
dizer, como sendo sociais.
Do ponto de vista etnográfico, a noção é muito útil, como assinalou
sensatamente Tambiah, ao indicar momentos distinguidos, por quem os pratica, como
especiais dentro da vida social rotineira.
PEIRANO (2002) também se utiliza da discussão de rituais, nessa transposição,
o foco antes direcionado para um tipo de fenômeno considerado não rotineiro e
específico, geralmente de cunho religioso, amplia-se e passa a dar lugar a uma
abordagem que privilegia eventos que, mantendo o reconhecimento que lhes é dado
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socialmente como fenômenos especiais. Não me limitarei a apenas esses autores, porém
aqui os destaco como principais fontes teóricas para se pensar a festa do Divino como
um ritual e também como uma invenção ou reinvenção de tradição (ver HOBSBAWN,
1997).
Conclusão
A devoção ao Divino Espírito Santo em Paraty está atrelada à vivência e à
transmissão de tradições que, atualizadas em cada Festa, delineiam a identidade e a
cultura dos paratienses. Para conhecer o patrimônio cultural dessa importante cidade
histórica, convidamos a compreender a Festa do Divino por dentro, a partir do olhar,
dos saberes e dos ofícios daqueles que a cultivam.
Trata-se de um bem cultural complexo, que enuncia um conjunto de celebrações
e formas de expressão, religiosas e profanas, e de saberes e fazeres que ocupam a praça,
as igrejas e as casas dos devotos. Tecida pelos paratienses como patrimônio vivo e
dinâmico, a Festa do Divino está em constante diálogo com o rico conjunto
arquitetônico da Cidade Histórica, dando-lhe vivacidade e constituindo fortes sentidos
de identidade com este lugar de memória. Realizada há cerca de três séculos em Paraty,
ao preservar símbolos e significados do período Imperial, a Festa do Divino guarda
também testemunhos de nossa História, contribuindo, assim, para formar os elos da
identidade brasileira.
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SANTO EXPEDITO: DA DEVOÇÃO ESPONTÂNEA À CONSTRUÇÃO DE
TERRITÓRIO
Claudemira Ito – UNESP ([email protected])
Resumo
O Município de Santo Expedito/SP tem sua história marcada pela devoção ao Santo
Expedito. Na década de 1940, com a chegada de uma família do Maranhão que trouxe
em sua bagagem a imagem do Santo e a promessa de construir uma capela. A devoção
da comunidade local a Santo Expedito ocorre desde a colonização do Municipio. O
inicio da visitação de devotos provenientes de outras localidades é incerto. Entretanto,
considera-se como marco inicial da visitação em massa, o dia 19 de abril de 1997, com
a vinda de romeiros, a cavalo de São Paulo.Desde então, o número de visitantes cresce
ano a ano, chegando a receber sessenta mil pessoas no dia do Santo. Isto se deve à
agregação do diversos atrativos na Festa de Santo Expedito, tais como a Cavalgada, a
Festa do Milho, a feira de artesanato e alimentação, o Leilão de Gado, sorteio de
prêmios e shows. A construção do Santuário com cerca de dez mil metros quadrados e
alguns investimentos em restaurante, lanchonetes e lojas para atender ao visitante
contribuem para uma nova territorialidade. Sendo que as manifestações ligadas aos ritos
de devoção ao Santo transformam-se em espetáculos. Os atos de fé dos peregrinos e
romeiros se transfiguram como atrativo turístico, atraindo o turista, que se move para a
observação do espetáculo. Dessa forma, o espaço da Missa campal, por exemplo, tempo
e lugar sagrado para o romeiro e peregrino, simultaneamente, é o mesmo do consumo de
alimentos e bebidas e ainda a contemplação do espetáculo pelo turista.
INTRODUÇÃO
A Ciência Geografia interessa-se pelo estudo dos espaços e territórios, suas
características, conflitos e transformações. Nesse contexto o geógrafo depara-se com as
marcas espaciais produzidas pelas manifestações e práticas religiosas, ou seja, o
contexto espacial da religião. Em Santo Expedito-SP a presença religiosa na história do
Município é expressa desde a escolha de seu nome. A malha urbana cresceu no entorno
da Capela de Santo Expedito, que após diversas reformas e ampliações determina a
centralidade da Cidade. Hoje, o principal marco urbano ainda é a Igreja de Santo
Expedito, os principais festejos do Município são os organizados pela Paróquia de Santo
Expedito e ampliam a cada ano o número de visitantes e devotos.
Por volta de 1940, com a chegada família do Sr. Arnóbio Guimarães
Tenório, migrante vinda do sul do Maranhão, iniciou efetivamente a história do
Município de Santo Expedito-SP. Conta-se que na bagagem desta família foi trazida a
imagem de Santo Expedito, ao qual era devota, com a promessa de que, ao chegar ao
Estado de São Paulo e encontrasse trabalho e um lugar para morar, construiria uma
capelinha a Santo Expedito. A graça foi alcançada e Sr. Tenório cumpriu a promessa de
construir a Capela, inicialmente denominada “Capelinha da Vila Braga”, em alusão à
Companhia de Colonização instalada no local. Mas, predominou a utilização da
denominação “Capelinha”; e aos poucos, por conta da imagem de Santo Expedito
existente na Capela, o povo denominou a localidade de Santo Expedito.
Da Capela simples, construída de pau a pique, coberta por tabuinhas de
cedro e piso de terra batida, hoje, está em construção o Santuário de Santo Expedito
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com dez mil metros quadrados. Das celebrações das missas dominicais para os poucos
habitantes locais, hoje, há missas campais para milhares de visitantes.
A Igreja de Santo Expedito tornou-se a maior referência da Cidade, polariza
e centraliza os serviços e o comercio, ou seja, foi o elemento determinante para a
hierarquização do “espaço homogêneo” encontrado pelos pioneiros da região,
importante na superação do “caos”e transformou-se no “centro” ou ponto fixo a partir
do qual foi edificado o Município.
Estas transformações em Santo Expedito-SP instigam o estudo da Geografia
do Turismo, das relações entre o sagrado e o profano e suas manifestações espaciais, o
convívio do turista e peregrino, as manifestações religiosas e o poder político local.
SANTO EXPEDITO: O ESPAÇO SAGRADO
O processo de formação do espaço sagrado do município de Santo Expedito,
localizado no oeste do estado de São Paulo, está associado à devoção trazida pelos
migrantes que se instalaram na região na década de 1940. A imagem de Santo Expedito
e a promessa de construção da Capela em sua homenagem foram os marcos iniciais das
manifestações religiosas. Singelas e espontâneas se transformaram em celebrações que
ganham contornos de espetáculos.
A cidade de Santo Expedito apresenta em sua história fatos que ao serem
analisados à luz das pesquisas de Eliade (2002) apontam para o conceito de “espaço não
homogêneo”, o qual se apresenta em porções com características diferentes,
qualificando-se em sagrado e todo o resto.
Rosendahl (2002) ao analisar a relação de religião e necessidade de
espacialização do mundo sagrado afirma:
A ideia de que existem espaços sagrados e que pode existir um
mundo no qual as imperfeições estarão ausentes, conduz o
homem a suportar as dificuldades diárias. O homem não
somente suporta as infelicidades da vida, como também é
conduzido a imaginar realidades mais profundas, realidades
mais autênticas que aquelas que seus sentidos revelam. O
homem consagra o espaço porque ele sente necessidade de viver
em um mundo sagrado, de mover-se em um espaço sagrado. O
homem religioso, dessa maneira, se exprime sob formas
simbólicas que se relacionam no espaço: cada vez que se ergue
uma nova igreja, o grupo religioso tem a impressão de que
cresce e se consolida. Apesar da onipresença de Deus, existem
espaços que são mais sagrados que outros. Seja no budismo, no
islamismo ou no catolicismo, a hierarquização do sagrado está
presente. É nos espaços sagrados de peregrinação que essa
diferenciação é mais nítida.(ROSENDAHL, 2002,p.16).
Dessa forma, a qualificação de um espaço sagrado depende de um processo
de segregação espacial, ou seja da não homogeneidade do espaço. Nesse sentido, os
conceitos de sagrado e profano são fundamentais para o entendimento dessa
heterogeneidade do espaço, em Santo Expedito-SP o sagrado é fundamental para
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entender o processo de produção do espaço.Eliade (2002) utiliza o conceito de
“hierofania” para designar o “ponto fixo” ou um “centro”:
É preciso dizer, desde já, que a experiência religiosa da não
homogeneidade do espaço constitui uma experiência primordial,
que corresponde a uma “fundação do mundo”. Não se trata de
uma especulação teórica, mas de uma experiência religiosa
primária, que precede toda a reflexão sobre o mundo. É a rotura
operada no espaço que permite a constituição do mundo, porque
é ela que descobre o “ponto fixo”, o eixo central de toda a
orientação futura. Quando o sagrado se manifesta por uma
hierofania qualquer, não só há rotura na homogeneidade do
espaço, como também revelação de uma realidade absoluta, que
se opõe à não realidade da imensa extensão envolvente. A
manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo.
Na extensão homogênea e infinita onde não é possível nenhum
ponto de referência, e onde, portanto, nenhuma orientação pode
efetuar-se, a hierofania revela um “ponto fixo” absoluto, um
“Centro”.
Vemos, portanto, em que medida a descoberta – ou seja, a
revelação – do espaço sagrado tem um valor existencial para o
homem religioso; porque nada pode começar, nada se pode fazer
sem uma orientação prévia – e toda orientação implicaa
aquisição de um ponto fixo. É por essa razão que o homem
religioso sempre se esforçou por estabelecer se no “Centro do
Mundo”. Para viver no Mundo é preciso fundá-lo – e nenhum
mundo pode nascer no “caos” da homogeneidade e da
relatividade do espaço profano. A descoberta ou a projeção de
um ponto fixo – o “Centro” – equivale à Criação do Mundo.
(ELIADE, 2002,p.17)
Este “Centro”, no Município de Santo Expedito-SP, sempre foi representado
pela Capela ou Igreja de Santo Expedito, a qual representa a orientação do “ponto fixo”
que estabelece o espaço sagrado do homem religioso. Na década de 1940, a região do
oeste Paulista, onde se localiza o Município de Santo Expedito contava com rede urbana
pouco densa e com população reduzida que vivia, sobretudo, na zona rural. A Igreja na
maioria das localidades se constituía o principal marco arquitetônico, assim como, a
manifestação do espaço sagrado, organizando o “caos” da homogeneidade do espaço
profano.
A Igreja de Santo Expedito representa a não homogeneidade do espaço na
leitura cotidiana, mesmo para os não crentes, estes lugares são considerados especiais,
únicos, ou espaços sagrados, os quais são qualificados como se abrisse possibilidade de
vivenciar uma outra realidade, diferente desta da existência cotidiana.
A fim de pôr em evidência a não homogeneidade do espaço, tal
qual ela é vivida pelo homem religioso, pode-se fazer apelo a
qualquer religião. Escolhamos um exemplo ao alcance de todos:
uma igreja, numa cidade moderna. Para um crente, essa igreja
faz parte de um espaço diferente da rua onde ela se encontra. A
porta que se abre para o interior da igreja significa, de fato, uma
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solução de continuidade. O limiar que separa os dois espaços
indica ao mesmo tempo a distância entre os dois modos de ser,
profano e religioso. O limiar é ao mesmo tempo o limite, a
baliza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o
lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam, onde se
pode efetuar a passagem do mundo profano para o mundo
sagrado. (ELIADE, 2002,p.18)
Nos dias de grande visitação em Santo Expedito-SP são observadas grandes
filas para adentrar a Igreja, os devotos esperam, às vezes, por mais de quatro horas, sob
sol forte e altas temperaturas, mas seguem resignados e respeitosos para tocar a imagem
de Santo Expedito e beijar sua mão. Alguns depositam flores e cartas aos pés da
imagem, além de deixar donativos nas caixas de coleta da Igreja. Isso tudo após
enfrentar a viagem, que algumas vezes dura a noite inteira. Há relatos de excursões
provenientes de até 800 km de distância de Santo Expedito-SP.
No interior da Igreja, as orações realizadas sob a imagem de Santo
Expedito, assim como os bilhetes e cartas mostram que o mundo profano é superado,
abre-se a possibilidade de comunicação com o Santo Expedito, como se existisse uma
abertura que levasse o devoto ao mundo dos deuses ou que trouxesse Deus e os Santos
para a Terra.
Pode-se refletir que a Capela e posterior Igreja de Santo Expedito, surgiram
com a necessidade do homem em romper a homogeneidade do espaço, qualificando-o
em sagrado e profano. A sacralização da Capela correspondeu ao imperativo de dar
segurança às famílias de migrantes, que viviam sob a ansiedade própria produzida pela
condição de migrantes em busca sobrevivência. Provavelmente, a escolha do terreno
não importava muito, algumas vezes está associada a fatores naturais, outras vezes são
frutos de visões e interpretações de sonhos, ou na busca de poder politico local.
Entretanto, o estabelecimento e criação do espaço sagrado é a expressão da
validação da posse do território pelos colonos/pioneiros que ocuparam o oeste paulista
nas primeiras décadas do Século XX.As extensas glebas de terras cobertas por
vegetação nativa eram entendidas como o Caos, era necessária, na visão dos pioneiros,
“a transformação do Caos em Cosmos, pelo ato divino da Criação. Trabalhando a terra
desértica, repetiam de fato o ato dos deuses que haviam organizado o Caos, dando-lhe
uma estrutura, formas e normas”. Eliade (2002,p22).
Quando se trata de arrotear uma terra inculta ou de conquistas e
ocupar um território já habitado por “outros” seres humanos, a
tomada de posse ritual deve, de qualquer modo, repetir a
cosmogonia. Porque, da perspectiva das sociedades arcaicas,
tudo o que não é “o nosso mundo” não é ainda um “mundo”.
Não se faz “nosso” um território senão “criando-o” de novo,
quer dizer, consagrando o. Esse comportamento religioso em
relação a terras desconhecidas prolongou se, mesmo no
Ocidente, até a aurora dos tempos modernos. Os
“conquistadores” espanhóis e portugueses tomavam posse, em
nome de Jesus Cristo, dos territórios que haviam descoberto e
conquistado. A ereção da Cruz equivalia à consagração da
região e, portanto, de certo modo, a um “novo nascimento”.
Porque, pelo Cristo, “passaram as coisas velhas; eis que tudo se
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fez novo” (II Coríntios, 5:17). A terra recentemente descoberta
era “renovada”, “recriada” pela Cruz. (ELIADE, 2002,p.22)
Dessa forma, constata-se que a construção da Capela de Santo Expedito foi
a consagração do lugar em repetição à cosmogonia, equivale à afirmação de que a
estadia não é temporária, a família determinou a escolha daquele lugar para a sua
instalação permanente. Tratava-se da decisão vital para a família e a comunidade, pois a
partir da construção da Capela, estava indicada a necessidade de organizar e ocupar,
numa alusão de superação do “caos”, com a construção da vila, das vias de circulação,
organização da vida social e politica.
Ainda, a Capela de Santo Expedito, a partir de sua construção, na década de
1940 , representou o “Centro do Mundo” para os habitantes do Município. Ao
apresentar o conceito de “Centro do Mundo”, Eliade (2002) faz a analogia de diversos
povos que constroem totens oucolunas como forma de ligação entre o Mundo dos
Deuses e a Terra. Estes construções dão origem à ideia de que o mundo se organiza em
torno delas, dai o simbolismo que todo deve ser planejado num “sistema” a partir deste
marco. É comum em algumas comunidades o “centro do Mundo” pode ser representado
por um fato geográfico, como uma montanha, pois representaria a abertura ou passagem
entre os mundos: sagrado e profano e vice versa.
Um grande número de mitos, ritos e crenças diversas deriva
desse “sistema do Mundo” tradicional. Não é o caso de citá-los
aqui. Parece-nos mais útil limitar-nos a alguns exemplos,
escolhidos entre civilizações diferentes, e que podem nos fazer
compreender o papel do espaço sagrado na vida das sociedades
tradicionais – qualquer que seja, aliás, o aspecto particular sob o
qual se apresente esse espaço: lugar santo, casa cultual, cidade,
“Mundo”. Encontramos por toda a parte o simbolismo do Centro
do Mundo, e é ele que, na maior parte dos casos, nos permite
entender o comportamento religioso em relação ao “espaço em
que se vive”. (ELIADE, 2002,p.24)
Dessa forma, em torno deste simbolismo organizou-se o Município de Santo
Expedito-SP, o espaço sagrado da Capela, e posteriormente a Igreja de Santo Expedito,
representou o “Centro do Mundo” para os primeiros habitantes (não índios) da região,
tornou-se o principal ponto de referência para o planejamento e crescimento urbano. Até
hoje, a Igreja de Santo Expedito está centro da Cidade, ao lado da sede dos poderes
constituídos: A Prefeitura Municipal e a Câmara de Vereadores. Assim como centraliza
os serviços e o comercio: Está ao lado da rodoviária, os bancos e o centro comercial.
A importância exercida pela Igreja de Santo Expedito na História do lugar
está na determinação do nome do Município, assim como a inscrição do Brasão
Municipal: “FID ET LABORE DUCO” – ou seja, com fé e trabalho tudo venço.
SAGRADO E PROFANO NA FESTA DE SANTO EXPEDITO
Desde a década de 1950 a Cidade de Santo Expedito-SP recebe devotos de
Santo Expedito, o número de visitantes cresce a cada ano, de algumas dezenas passa de
sessenta mil por dia no período de festa. Santo Expedito é invocado nos casos em que é
necessária intervenção imediata. Também é considerado protetor da juventude, os
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estudantes recorrem a ele para ter êxito nos exames. Seus devotos confiam que Santo
Expedito não adia seu auxílio, atende na mesma hora ou dia aos que a ele recorrem.
A Festa em louvor a Santo Expedito tem atraído um numero cada vez maior
de visitantespor diversos motivos: São poucas as Igrejas consagradas a Santo Expedito;
Divulgação de Santo Expedito promovida por fieis; Organização de festejos em vários
dias; Variedade de atrativos – feiras, shows, gastronomia, cavalgada.
A devoção a Santo Expedito se multiplica, pois os fieis que alcançam suas
graças geralmente promovem a distribuição “santinhos”- panfletos contendo a oração de
Santo Expedito, e ainda os dizeres: Em agradecimento, encomende e distribua um
milheiro desta oração. Dessa forma, os “santinhos” são distribuídos no comércio, nas
ruas, entre os amigos de tal forma que ampliam as possibilidades de convencimento de
novos devotos ao Santo.
A Festa de Santo Expedito se repete ano a ano, com alguns rituais que
seguem inalterados, com as Missas e visitação da imagem do Santo. Eliade (2002)
analisa esta necessidade em rememorar o ou reatualizar periódica do “tempo original”
onde o homem religioso tem um comportamento distinto daquele do tempo comum do
dia a dia, mesmo que sejam repetidas as mesmas atividades, este homem crê que
vivencia outra atmosfera impregnada do sagrado. É como se explica a importância da
participação da Missa de Santo Expedito, no dia 19 de abril, de cada ano, não vale outra
Missa, em outro lugar.
As múltiplas cerimônias que constituem as festasperiódicas e
que, repetimos, não são mais do que a reiteração dos gestos
exemplaresdos deuses, não se distinguem, aparentemente, das
atividades normais: trata se, emsuma, de reparos rituais das
barcas, de ritos relativos ao cultivo de plantasalimentares (yam,
taro etc.), da restauração de santuários. Na realidade, porém,
todasessas atividades cerimoniais se diferenciam dos trabalhos
similares executados notempo comum pelo fato de só incidirem
sobre alguns objetos – que constituem, decerto modo, os
arquétipos de suas respectivas classes – e também porque
ascerimônias são realizadas numa atmosfera impregnada de
sagrado. Com efeito, osindígenas têm consciência de que
reproduzem, nos mais ínfimos pormenores, os atosexemplares
dos deuses, tais como foram executados in illo tempore.
Assim, periodicamente, o homem religioso torna-se
contemporâneo dos deuses, namedida em que reatualiza o
Tempo primordial no qual se realizaram as obrasdivinas. Ao
nível das civilizações primitivas, tudo o que o homem faz tem
ummodelo trans humano; portanto, mesmo fora do tempo
festivo, seus gestos imitam osmodelos exemplares fixados pelos
deuses e pelos Antepassados míticos. (Eliade, 2002,p46)
As entrevistas realizadas apresentam dados importantes que reforçam essa
ideia de reviver periodicamente este tempo do sagrado, não são raros relatos de pessoas
que participam das Festividades de Santo Expedito por décadas, repetindo o ritual ano
após ano. E ao serem questionadas justificam que são reabastecidas pela fé, se sentem
renovadas, por isso fazem todos os esforços de participar todos os anos.
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Entretanto, a anual de Festa de Santo apresenta novos elementos ou
atrativos a cada reedição. A Cavalgada de Santo Expedito começou em 1997, se repete
todos os anos, com a adesão crescente de participantes, hojecongrega cerca de 1.500
cavaleiros da região de Presidente Prudente, de outras regiões de São Paulo e de Mato
Grosso do Sul. A Cavalgada composta de eqüinos, muares e bovinos, tradicionalmente,
inicia-se às 12:00hs e, ao passar diante da Igreja, quando os cavaleiros são aspergidos
com água benta e recebem a benção do Padre.
Este é um ponto de grande atração de público, pois é uma rara oportunidade
de presenciar os animais e seus cavaleiros, com suas bandeiras, berrantes e indumentária
típica de tropeiro. Também é interessante notar a heterogeneidade entre os cavaleiros,
desde trabalhadores rurais, pequenos, médios e grandes proprietários de terras,
trabalhadores autônomos, servidores públicos, sendo ainda importante salientar a grande
presença de mulheres e crianças. Percebe-se a presença de famílias inteiras, com
elementos de várias gerações.
No período festivo, ao redor da Igreja de Santo Expedito, é organizada uma
feira, com ambulantes que apregoam todo tipo de mercadoria, de imagens de Santos
Católicos, terços, medalhas, calçados, bijuterias, confecções, utensílios domésticos,
ferramentas, brinquedos, além de artesanatos e barracas de alimentos e bebidas.
SILVA & SOUZA (2012) ao analisarem Trindade-GO e a Festa do Divino
Espirito Santo apontam que nas “cidades-santuário, as funções urbanas são fortemente
espacializadas associadas à natureza religiosa” p.360.
Ao lado das manifestações religiosas comparece o comércio, o que é muito
bem recebido pelos moradores locais, pois trata-se de ocasião de aumentar sua renda
com a comércio, o serviço de estacionamento e até mesmo de cobrança de taxa de uso
do banheiro de sua residência. A Prefeitura Municipal é a responsável pela emissão dos
alvarás dos ambulantes, reserva área para os moradores locais e disponibiliza outras
para os comerciantes provenientes de outras localidades.
Ainda, as entrevistas realizadas entre os visitantes, apontam que a grande
maioria apoia a realização desta feira, não se incomodando com a convivência do
profano e o mundano na Festa Anual de Santo Expedito. A feira se tornou uma
componente da Festa e hoje já faz parte de sua tradição.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Município de Santo Expedito tem sua história intimamente ligada à
devoção ao Santo Expedito, desde a sua fundação a partir da primeira Capela, estava
determinado o centro, não somente da Cidade, mas de um ponto de peregrinação, de
milhares de pessoas que viajam durante horas para participar de rituais religiosos ou
profanos.
A escolha do nome do Município corroborou com a continuidade da
importância da Igreja de Santo Expedito no crescimento da Cidade, ao mesmo tempo
em que colaborou com o aumento da visitação e devoção, pois facilita a localização do
Município, e ainda ressalta a identificação dele com o Santo Padroeiro, dessa forma, foi
benéfica confusão entre a denominação do Município e o Santo, não restando dúvida de
quem visita o Município vem em função da devoção a Santo Expedito.
Ainda hoje, a Paroquia de Santo Expedito é o elemento mais importante da
paisagem urbana, além disso, se destaca na organização socioeconômica do Município.
Suas atividades, especialmente no período de Festas é o principal dinamizador da
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economia local. O grande fluxo de visitantes movimenta o comércio local, atrai
ambulantes de diversas partes do Estado de São Paulo, do Paraná e Mato Grosso do Sul.
Durante as Festas de Santo Expedito os ritos religiosos são acompanhados
por manifestações culturais, com destaque à cavalgada, que rememora antigos hábitos
da região.
Os visitantes compostos por peregrinos ou turistas, participantes dos rituais
religiosos ou profanos compõem uma dualidade que se expressa na paisagem urbana.
Espaços e lugares são resignificados, são criados territórios para as manifestações de fé
e do mundo sagrado. Enquanto, acontece a turistificação do território, com a
manifestação de atividades para o turismo, onde o profano vende e compra mercadorias
e serviços. Compreender esta dualidade é o grande desafio, sagrado e profano e suas
relações de complementaridade. Afinal de contas o turismo religioso movimenta cerca
de 15 milhões de reais por ano no Brasil. Os visitantes, homens religiosos ou não, a
população local o poder público e os gestores religiosos atuam como agentes
modeladores do espaço
Santo Expedito-SP exerce a função de cidade religiosa, atraindo visitantes
que buscam a proximidade com o sagrado. A Igreja é o centro desta busca e a partir dela
novamente se revela a dualidade, de polarizar o “mundo sagrado” e o “mundo profano”,
pois também vai determinar a hierarquização do comercio e serviços no seu entorno. É
o espaço sagrado interagindo com o profano.
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GRAFIA E ICONOGRAFIA: TRAÇOS IDENTITÁRIOS NA ESCOLA DO
SERVIÇO DO SENHOR
Mauro Fragoso - Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro ([email protected])
Resumo
O presente trabalho é resultado da investigação de 149 documentos denominados
Cartas (ou Atas) de profissão elaboradas no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro
entre os anos de 1602 e 1802, incluindo duas categorias distintas de religiosos: os
monges, devotados ao serviço litúrgico, e os conversos, destinados ao labor cotidiano na
manutenção da Casa de Deus. Os termos Escola do serviço do Senhor e Casa de Deus
são duas expressões cunhadas na Regra de São Bento que serve de código normativo à
vida cenobítica ocidental desde os primórdios do século VI. Escrito no território
hodiernamente conhecido como Itália, na esteira da chamada colonização da América
portuguesa, ao longo do século XVI, os beneditinos chegaram ao Brasil instalando-se
inicialmente na capital soteropolitana, de onde se expandiram pela colônia
acompanhando o progresso econômico garantido pela produção açucareira. Fundado em
1590, os primeiros documentos do gênero a que essa investigação se propõe foram
escritos no ano de 1602. Ao longo desses quatro séculos de existência, centenas de
Cartas de profissão foram elaboradas. Todavia, o presente estudo estabelece o ano de
1802 como recorte temporal tendo em vista as significativas ilustrações que deixam
transparecer a diversidade cultural de indivíduos que se congregaram em comunidade e,
sobretudo, as transformações ocorridas na sociedade luso-brasileira de então.
Introdução
A instituição hodiernamente conhecida como Ordem Beneditina remonta aos séculos V
e VI com o nascimento de São Bento em Núrsia, na atual e Itália, cerca de 480 e
falecido em Monte Cassino, igualmente Itália, cerca do ano 547. A incipiente família
religiosa notabilizou-se pelos Diálogos do Papa São Gregório Magno (†604), primeiro e
único biógrafo de São Bento, e particularmente pela difusão da chamada Regra de São
Bento a partir do século VIII, com a reforma carolíngia (‘LECLERCQ, 2012, p. 62). Na
esteira da cristianização, sob a influência de São Martinho de Dume, entre os séculos
VII e VIII desponta entre os lusitanos um monaquismo autóctone que a partir do século
XII cederia lugar Regra de São Bento (DIAS, 2011, p. 150-163). Entre os séculos XIII e
XV, sob a direção de Abades comendatários os mosteiros beneditinos europeus
iniciaram um processo de decadência espiritual. Diante de tamanha degradação o século
XVI notabilizou-se pelas sucessivas reformas beneditinas ocorridas na Europa. A
reforma dos mosteiros portugueses foi realizada graças à colaboração dos beneditinos
castelhanos da Congregação de Valladolid (DIAS, 2011, p. 142-149). Com isso, entre
os anos de 1566 e 1567 fica estabelecida a Congregação dos Monges Negros de São
Bento dos Reinos de Portugal (DIAS, 2011, p. 168). No processo de expansão marítima,
o Capítulo Geral de 1575 assinalou a possibilidade de fundação na América portuguesa.
O Capítulo Geral realizado em Lisboa no ano de 1581 determinou a referida fundação e
enviou os fundadores para a cidade de São Salvador, na Bahia de Todos os Santos, de
onde partiram para Olinda, em Pernambuco, e Rio de Janeiro (DIAS, 2011, p. 235-236),
tendo como principal fonte de subsistência a produção açucareira. Os fundadores do
cenóbio fluminense chegaram à cidade do Rio de Janeiro no ano de 1589, instalando-se
inicialmente na Capela de Nossa senhora do Ó, atual Igreja de Nossa Senhora do
Carmo, na Praça XV de novembro. No ano seguinte, 1590, receberam o Morro de
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Nossa senhora da Conceição, doado por Diogo de Brito de Lacerda, onde se instalaram
definitivamente, tendo em vista o afastamento do buliçoso cais do porto (Dietario,
1773, p. 3-4).
I Os ditames da Regra e as estratégias de época
Como suplementos da Regra de São Bento, as diversas Congregações beneditinas a
partir do segundo milênio passaram a elaborar suas próprias Constituições e
Costumeiros locais. As Constituições que garantem a unidade dos mosteiros vinculados
à determinada Congregação, e os Costumeiros que regulam as atividades claustrais de
cada comunidade monástica em particular.
Magnanimidade da Regra X delimitação das Constituições
A Regra de São Bento, escrita nos primórdios do século VI, quando a península itálica
sofria invasão de diferentes povos, contempla as diversidades culturais e prescreve que
no mosteiro o Abade não faça distinção de pessoas (BENTO, 2,16.18). No século XVI,
com o processo da expansão marítima e a ocupação de novas terras, os portugueses,
envolvidos com mouros e judeus, se valeram da mão de obra africana. Na segunda
metade daquele mesmo século, os beneditinos lusitanos, ainda em fase de restauração,
ampliavam a Ordem com a abertura de mosteiros na América portuguesa. Revendo a
legislação que haveria de controlar o ingresso de futuros monges nos claustros
beneditinos luso-brasileiros, as Constituições prescreviam que não fossem admitidos ao
noviciado a não ser candidatos de estirpe portuguesa, vetando constitucionalmente o
ingresso de portadores de mácula de sangue judeu, maometano, herético ou mestiço
(Constitvtiones [...], 1629, p. 109).
Monges e Donatos
Ao longo dos séculos, outro princípio completamente oposto à originalidade fora
introduzido nos claustros beneditinos dividindo a comunidade em duas sociedades
distintas – os monges e os donatos. Isto se deu na transição do primeiro para o segundo
milênio da era cristã. A categoria de irmãos leigos, conversos ou donatos, tinha por
objetivo a execução das atividades servis cotidianas, a fim de liberar os monges que
doravante passaram a dedica-se exclusivamente às celebrações litúrgicas. Esse costume
foi adotado pelos beneditinos luso-brasileiros, havendo distinção na formulação dos
votos. Os monges prometiam os três votos estabelecidos pela Regra: estabilidade,
conversão de seus costumes, e obediência. Os donatos prometiam obediência, castidade
e pobreza, segundo as Constituições de 1590 (p. 172-177). Não que os monges
estivessem dispensados da pobreza e castidades. Esses como preceitos evangélicos são
extensivos a todos os cristãos e passaram a constar da fórmula de profissão religiosa
com o declínio da espiritualidade na Idade Média, com o surgimento das Ordens
mendicantes. Nas duas fórmulas de profissão foram conservados os preceitos da Regra
que diz: “Dessa sua promessa faça uma petição em nome dos santos cujas relíquias aí
estão e na presença do Abade. Escreva tal petição com sua própria mão; ou se não
souber escrever, escreva outro rogado por ele, e que o noviço faça um sinal e a coloque
com sua própria mão sobre o altar” (BENTO 58,19-20). Sob critérios de precisão as
Constituições de 1590 substituem o “sinal” indicado pela Regra por “uma Cruz”, em
lugar do próprio nome (Constitvçoens [...] 1590, p. 175).
Marisque transitum
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Uma terceira alteração dos votos monásticos surgiu como dilatação do voto de
estabilidade do mosteiro de ingresso para toda a Congregação. Essa estratégia criou um
quarto voto beneditino, facultativo e exclusivo da Congregação luso-brasileira: o voto
de transpor o mar (marisque transitum), regulamentado pelas Constituições de 1629 (p.
122) e proferido tanto por monges de Portugal como do Brasil.
II As Cartas de profissão como indícios de diferentes traços biográficos
Segundo o geógrafo Paul Claval, as aptidões dos homens não são iguais. Claval
corrobora sua tese apontando como corolário os esforços realizados por determinados
indivíduos na realização de uma mesma tarefa, mas que terminam mostrando as
desigualdades naturais. Alguns são capazes de progredir em caminhos fechados para
outros. Assim, àqueles a quem a natureza lhes proporcionar maiores progressos,
estabelecem maior “conexão entre a cultura como realização e a hierarquização social”
(CALAVAL, 2002, p. 151). Neste sentido, as Cartas das profissões elaboradas na
Abadia fluminense entre os anos de 1602 e 1802 testemunham a grande diversidade
cultural entre os monges que emitiram seus votos naquele cenóbio durante os dois
séculos estabelecidos como recorte temporal da pesquisa. Ao mesmo tempo em que os
traços de algumas Cartas de profissão deixam transparecer marcas da cultura familiar
que cada indivíduo levou consigo para o mosteiro, outros, podem ser visto como
radiografias antecipadas dos futuros empregos desempenhados pelos respectivos
professos e sua trajetória hierárquica no interior da Congregação luso-brasileira. Ao
abordar a antiga Congregação dos Monges Negros da Ordem de São Bento dos Reinos
de Portugal e Brasil, é preciso lembrar que, como as demais Congregações beneditinas,
estas sociedades religiosas são regidas por Constituições que procuram suprir o que não
está previsto pela Regra. O adjetivo negro utilizado pela Congregação portuguesa tem
por finalidade a diferenciação entre os primitivos beneditinos e cistercienses. Os
primeiros, pelo fato de usarem a cogula preta, e os segundos, descendentes dos
primeiros, usarem a cogula branca. É mantendo como fio condutor da teoria abordada
por Claval de que o papel do geógrafo e debruçar sobre os laços estabelecidos entre
indivíduos e que são transmitidos de geração em geração através da articulação social
(CLAVAL, 1999, p. 11, 64,82), que ora apresentamos algumas Cartas de profissão
como transmissão e continuidade de cultura.
1.1 Frei Plácido das Chagas
A primeira Profissão monástica realizado na Abadia
fluminense foi a de Fr. Plácido das Chagas. Nome
muito comum entre os beneditinos por ter sido um dos
primeiros filhos espirituais de São Bento (MAGNO,
1996, p. 46). Quanto ao padroeiro onomástico, a
Congregação luso-brasileira valorizou os santos da
própria Ordem, os diversos santos do Martirológio
romano e os mistérios da salvação, como é o caso de
Fr. Plácido das Chagas, sob a influência da devoção
popular. Herdeiro da tradição judaica o cristianismo conservou a troca de nome ou a
adoção de um nome hagiográfico para expressar um novo estado de vida, como os casos
de Abraão (Gn 17,5) e Jacó (Gn 32,29). Esse costume foi mantido por Cristo trocando o
nome de Simão por Pedro (Jo 1,42). À luz da teologia paulina essa adoção de um novo
nome encontra o ápice do seu simbolismo quando o Apóstolo diz ser necessário
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despojar-se do homem velho e revestir-se do homem novo, criado à imagem de Deus
(Ef 4,22-24). Teologia essa anunciada por Cristo a Nicodemos quando lhe dissera que
era preciso “nascer de novo” para entrar no reino de Deus (Jo 3,3). Segundo a tradição
beneditina, cada monge faz seu noviciado no mosteiro de ingresso e nele permaneça até
a morte. Entretanto, no regime da Congregação luso-brasileira, a formação dos noviços
na Província da América portuguesa não seguiu estritamente a Regra e estabeleceu
temporariamente um noviciado comum instalado-o temporariamente em distintas casas.
O mosteiro soteropolitano, foi elevado à condição de Abadia no ano de 1584 e,
Arquicenóbio em 1596, tornando-se casa mãe das abadias de Olinda e Rio de Janeiro
(Dietário, 2009, p. 18). Como casa mãe, o Mosteiro da Bahia abrigou e formou os
primeiros noviços da Província brasileira. Fr. Plácido das Chagas já professou na
Abadia fluminense, a 10 de fevereiro de 1602, sob o governo abacial de Fr. Ruperto de
Jesus. Foi presidente (superior de um mosteiro na vacância de Abade ou Prior
conventual) do Mosteiro da Bahia, depois do que tomou posse como Abade do Rio de
Janeiro, a primeiro de outubro de 1617. Segundo o Dietario, governou um triênio e
enriqueceu a igreja com pintura. Iniciou a construção do “muro no canto da igreja velha,
até chegar ao riacho da horta, e levantou umas paredes por modo de torres para sobre
elas descansarem os sinos” (Dietario, 1773, p.12). Durante as obras de revitalização da
zona portuária (2012), por ocasião da abertura do túnel ao lado do arsenal da Marinha, o
referido muro foi encontrado entre a Rua Dom Gerardo e a Rua Visconde de Inhaúma.
Sob o governo de Fr. Plácido das Chagas professaram: Fr. Paulo de Jesus (28/01/1618),
Fr. Bernardo das Chagas (30/08/1619) e Fr. Jerônimo de Cristo (20/08/1619).
Completado o seu governo no Rio de Janeiro, “foi eleito no ano de 1632, Dom Abade
da Bahia, tendo já sido do Mosteiro de Olinda”, onde exerceu a função com notável
dignidade (Dietario, 1773, p.12). Até o presente os necrológios de Fr. Plácido das
Chagas e de seus três professos não foram encontrados. Essa crônica mortuária é uma
das principais fontes biográficas dos beneditinos. Com a falta desse documento, não foi
possível encontrar o local e a data do falecimento de Fr. Plácido das Chagas e seus
discípulos. Comparando as letras do corpo da petição com a assinatura, vê-se que o
referido documento foi redigido e assinado de próprio punho.
1.2 Frei Mauro Ferreira
Fr. Mauro Ferreira, natural de Braga, Portugal, foi companheiro de profissão de Fr.
Plácido das Chagas. Significativamente os dois primeiros professos do mosteiro
fluminense receberam por padroeiros onomásticos os dois primeiros discípulos de São
Bento. Mauro, corruptela de Amaro [Amarus, Maur] (MAGNO, 1996, p. 45-47).
Ambos professaram a 10 de fevereiro de 1602,
sendo os primeiros noviços que receberam a
formação monástica no Rio de Janeiro. Fr.
Mauro Ferreira faleceu a 29 de março de 1643.
Seu necrológio é sucinto. Foi o duodécimo
falecido na Abadia fluminense, acometido “de
uma paralisia” (Dietario, 1773, p. 223). Pelo que
se depreende da falta de notícias a seu respeito,
viveu tão discretamente como morreu.
Comparando o traçado da letra textual com a
assinatura, percebe-se que sua Carta fora escrita e assinada de próprio punho.
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1.3 Frei Miguel dos Anjos
Fr. Miguel dos Anjos foi o primeiro irmão donato a
professar na Abadia fluminense. Seus votos foram
proferidos a primeiro de setembro de 1613. A Regra
de São Bento não contempla distinção entre os
religiosos da clausura e determina que todos os
professos prometam Conversão dos costumes,
Estabilidade e Obediência (BENTO 58,17). A
categoria de irmãos leigos foi contemplada pelas
Constituições de 1590 (p. 172-177) indicando a
fórmula de voto e procedimentos. “Eu N. prometo
diante de Deus, & de todos os seus Santos obediência,
castidade, & pobreza, & me dou perpetuamente, a esta
casa, & ordem do bem aventurado S. B. em presença do R. P. F. N. Abade deste
mosteiro”. As Constituições continuam dizendo que o professando deve datar o
documento de dia, mês e ano (Constitvçoens [...] 1590, p. 175). Nem a Carta de
profissão, nem o necrológio dão a conhecer a naturalidade de Fr. Miguel dos Anjos. O
necrológio diz que foi o nono falecido no mosteiro fluminense. Veio a “esta terra por
criado de um Inquisidor Castelhano, que o povo fez embarcar para o Reino” [...].
Depois de professo atuou na fazenda de Iguaçu por muitos anos. Depois foi enviado à
Bahia, onde serviu na fazenda de Itapuã. De volta ao Rio de Janeiro, retornou à fazenda
de Iguaçu, onde serviu até o fim da vida. Faleceu no mosteiro fluminense a 25 de
outubro de 1640 (Dietario, 1773, p. 222). O necrológio de Fr. Miguel dos Anjos deixa
transparecer três estágios distintos de sua vida: 1) estrangeiro na América portuguesa,
durante o regime filipino; 2) de criado de um Inquisidor se torna religioso; 3) de criado
doméstico, passa a servir no campo. O que mostra a flexibilidade do deslocamento no
espaço e a execução de trabalhos segundo as necessidades da instituição. Não obstante
às dificuldades para grafar, escreveu e assinou sua petição de próprio punho. Segundo a
Regra de São Bento a profissão monástica em si consiste em prometer o noviço no
oratório, na presença de todos, a sua estabilidade, a conversão de seus costumes e
obediência à Regra e ao Abade, diante de Deus e de seus santos (BENTO 58,17-17;
1,2). Já os votos proferidos por Fr. Miguel dos Anjos não são os estabelecidos pela
Regra. Fr. Miguel dos Anjos promete obediência, castidade e pobreza.
1.4 Frei Pedro do Rosário
Fr. Pedro do Rosário professou no Rio de
Janeiro como irmão converso. Além de sua
Carta de profissão, nenhum outro
documento foi encontrado. No âmbito das
letras a carta de Fr. Pedro do Rosário traz
significativo elemento de cunho social
apontado pela Regra de São Bento. O
capítulo cinquenta e oito ao tratar da
recepção dos monges na comunidade, prevê que o noviço faça sua petição. “Escreva
com sua própria mão; ou então, se não souber escrever, escreva outro rogado por ele, e
que o noviço faça um sinal e a coloque com sua própria mão sobre o altar (BENTO 58,
14.19-20). Pela dificuldade com que Fr. Pedro do Rosário assinou o respectivo
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documento e a diferença no talho da letra, é possível perceber que o documento fora
redigido por outro.
1.5 Fr. Leandro de São Bento
Pela semelhança entre letras textuais e assinatura, percebe-se que redigiu e assinou o
referido documento de próprio punho. Essa Carta de profissão traz a novidade do voto
de Transpor o mar. Inadvertidamente o referido voto de Transpor o mar está redigido
como sendo próprio da Regra de São Bento.
Voto próprio da Congregação lusobrasileira. Segundo o documento:
“promito stabilitatem meam, et
convertionem morum meorum, et
oedientiam, etiam transeundi mare;
secundum Regulam Sanctíssimi patris
Beneddicti” (...) [prometo minha
estabilidade, conversação dos meus
costumes, obediência e transpor o mar,
segundo a Regra do Santíssimo Pai Bento]. Antes que o voto de Transpor o mar fosse
devidamente regulamentado, ele fora previstos pelas Constituições de 1590, ainda que
de forma indireta:
a doutrina dos santos cânones diz que o lugar não santifica o homem, senão
o homem ao lugar, e por experiência se sabe que a árvore muitas vezes se
muda não dá fruto, e portanto na profissão prometemos a estabilidade,
porque permanecendo nela, vivemos quietos, ócio religioso muitas vezes
mudado vive consolado porque leva consigo seus costumes que o inquieta e
a onde quer que for vão com ele (Constitvçoens [...], 1590, p. 153).
Pela exortação constitucional verifica-se a possibilidade de mudança de casa e não de
congregação, é uma questão de obediência. O referido voto foi definitivamente
estabelecido pelas Constituições de 1629. Segundo o necrológio, Fr. Leandro de São
Bento viveu muitos anos trabalhando na construção do mosteiro e do patrimônio
comunitário. Notabilizou-se por ser “bom músico e organista”. Atuou como mestre de
obras e administrador de fazendas. Foi eleito Presidente do Mosteiro de Santos, São
Paulo, cargo que exerceu por “pouco tempo”. Faleceu no cenóbio fluminense aos 17 de
setembro de 1673 (Dietario, 1773, p. 231). O rol das atividades desempenhadas por Fr.
Leandro de São Bento mostra o perfil de um monge erudito transitando pelo menos em
três campos distintos: na arquitetura, como um dos primeiros construtores do mosteiro;
na música, em função das celebrações litúrgicas; e na administração, como
administrador das fazendas de onde provinham as rendas para a edificação do complexo
monástico.
1.6 Frei Jerônimo de Cristo e Frei Bernardo das Chagas
Fr. Jerônimo de Cristo, como Fr. Bernardo das Chagas professaram no mesmo dia, a 20
de agosto de 1619. Endres citando o Livro de tombo da Bahia diz que Fr. Jerônimo de
Cristo foi Prior do Mosteiro de São Bento daquele Estado entre 1659 e 1663 e
Presidente do Mosteiro da Paraíba entre 1673 e 1676 (ENDRES, 1976, p. 242). Souza
em sua tese de doutoramento avança na pesquisa e aborda a questão separatista ocorrida
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no Brasil entre os anos de 1672 e 1679, quando os beneditinos da América portuguesa
procuraram se livrar do poder da Congregação lusitana (SOUZA, 2011, p. 265-272).
Comparando as Cartas de profissão de Fr. Bernardo das Chagas e de Fr. Jerônimo de
Cristo nota-se a familiaridade existente entre esses dois monges. Ambos oriundos do
mesmo sítio, Montemor, o Velho, Diocese de Coimbra, Portugal. Os onomásticos,
Bernardo e Jerônimo, dois santos monges ilustres. Das Chagas e de Cristo,
reminiscência da devoção popular à Paixão. A grafia de ambas apresenta talhe
semelhante. Ambos não prometem Atravessar o mar. Professaram na mesma data. A
ornamentação se apresenta como um sinal distintivo entre os autores das respectivas
Cartas. Ainda que modestamente, a Carta de Fr. Bernardo de São Bento tem quatro
letras capitulares ornamentadas, duas delas com flores. Elemento simbólico recorrente
no cristianismo como sinal de renovação e continuidade. Além dessas, apresenta outras
letras capitulares realçadas. Assinatura ornamentada por enigmático desenho: linhas e
pontos afixados sobre raios em z e s ou números 24439. A Carta de Fr. Jerônimo de
Cristo é mais sóbria. Com letras mais singelas e assinatura guarnecida de linha reta
sobreposta a volutas e linhas curvas. Fr. Bernardo das Chagas foi ignorado pelos
cronistas. Fr. Jerônimo de Cristo ficou registrado pelos cargos de Prior da Bahia e
Presidente da Paraíba. Os talhos das letras textuais, bem como os das assinaturas,
mostram que ambos redigiram e assinaram de próprio punho.
1.7 Frei Diogo da Paixão
Fr. Diogo da Paixão Rangel, natural da
cidade do Rio de Janeiro, professou no
mosteiro da mesma cidade a 01 de maio
de 1624. Não prometeu Transpor o mar.
A disparidade entre letras textuais e
assinatura demonstram que o documento
fora redigido por outro e assinado de
próprio punho. Através dessa petição de
Fr. Diogo da Paixão, pertencente à
nobreza da terra, é possível perceber a
importância que a composição gráfica e
a ornamentação começam a despontar
nas Cartas de profissão, quer seja pelo seu efeito decorativo, quer seja pela
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comprovação de status. Diogo é uma das possíveis traduções de Tiago, dois Apóstolos
de Cristo. Apenas acrescentou ou substituiu o sobrenome por Paixão. Palavra que
designa a condenação e o martírio da segunda Pessoa da Trindade enquanto Homem. O
necrológio de Fr. Diogo da Paixão noticia quão grandiosa fora sua ascensão hierárquica
na Província do Brasil. “Filho legítimo de Diogo de Maris e Paula Rangel, ambos
nobres e das principais famílias da terra”. Segundo os ditames da Regra (BENTO
58,24), “antes de professar fez doação de toda sua legítima paterna à sua mãe. Depois de
administrar a fazenda do Iguaçu, ocupou os maiores empregos da Província”. Após o
governo abacial nos mosteiro de Olinda e Bahia, foi eleito Provincial a 19 de julho de
1662, “sendo o primeiro filho do Brasil que ocupou esta dignidade”. Seu necrológio
acentua ainda que “assentaram todas essas honras sobre as boas partes naturais e morais
de que era dotado este monge; por ser manso; sobre modo compassivo e amigo dos
pobres”. No púlpito, exerceu com desenvoltura a arte da oratória. Sofreu pacientemente
por três anos de uma doença que lhe tirou a vida aos 18 de fevereiro de 1680 (Dietário,
2009, p. 232-233).
1.8 Frei Pedro de São Tomás
Fr. Pedro de São Tomás nasceu em
Recife, Pernambuco, e foi criado no Porto,
Portugal, donde veio ao Rio de Janeiro
para tomar o hábito em 1648, com 17 anos
de idade. Em 1700, quando lecionava, foi
eleito Prior pelo Abade Fr. Matias da
Assunção. Naquela mesma ocasião, foi ao
Porto visitar sua mãe, Maria de São João,
que se achava viúva. De volta ao Rio, foi
nomeado, pela segunda vez, Prior da
comunidade fluminense. Sua crônica
mortuária exalta seus serviços prestados
ao governador Francisco de Castro
Moraes em 1711, por ocasião da invasão francesa. A fim de reparar os danos causados
pelos franceses, foi a Portugal em busca de auxílios financeiros, mas regressou sem
conseguir coisa alguma. Denunciado como contrabandista, em 1719 embarcou rumo à
Corte para se defender. Durante a viagem naufragou e faleceu (Dietario, 1773, p 255257). A ilustração de sua Carta de profissão realizada no ano de 1685 mostra a íntima
conexão do cenóbio fluminense com os principais centros literários da Europa
seiscentista. A Natureza morta, gênero de pintura surgido em Flandres, depois da
Reforma luterana (FRAGOSO, 2011, p. 76), que emoldura o texto, chegou ao mosteiro
fluminense através de publicações flamengas que integram a coleção bibliográfica de
obras raras do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro.
1.9 Frei Mateus da Encarnação Pina
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Fr. Mateus da Encarnação era natural da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e
professou a 03 de março de 1703, segundo o Dietario (1773, p. 312). Filho de pais
ilustres, recebeu boa formação antes de ingressar no mosteiro. Foi ordenado por Dom
Sebastião Monteiro da Vide, em Salvado, no ano de 1708. De volta ao Rio de Janeiro
teve a felicidade de formar muitos discípulos. Dentre eles o Bispo de Areópoli, Dom
João de Seixas da Fonseca Borges. Notabilizou-se pela sua erudição e foi considerado o
melhor teólogo do Brasil de então, publicando várias obras em Portugal. O onomástico
da Encarnação, tema de teologia dogmática, pode ser visto como consequência de sua
formação domiciliar paterna e sinalização de sua carreira religiosa, se comparado com
outros onomásticos acentuadamente marcados pelo sentimentalismo devocional. Na
hierarquia, atingiu o mais alto grau permitido na América portuguesa, o de Provincial
(Dietario, 1773, p. 312-318). Redigiu e assinou sua petição de próprio punho.
1.10 Salvador da Trindade
Fr. Salvador da Trindade era natural da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde
professou em 1723. Atuou como fazendeiro e porteiro. Transferido para Bahia, faleceu
aos 24 de outubro de 1746 (Dietário, 2009, p. 237-238). Pela falta de comprovação
documental, não exerceu grande poder hierárquico na Ordem.
1.11 Frei Paulo da Conceição
Fr. Paulo da Conceição Moura era natural de Curvelo,
Minas Gerais. Ingressou no mosteiro fluminense em 1801 e
professou no ano seguinte. Ordenado sacerdote em 1808,
obteve no mesmo ano a título de pregador. Em 1822 pediu
exclaustração para viver como clérigo secular, a fim de
cuidar da saúde. Naquele período lecionou filosofia nas
Minas Gerais e retornou ao mosteiro no ano de 1832, onde
apesar de sua enfermidade “prestou relevantes serviços”,
particularmente como bibliotecário, mestre de noviços e
cronista da Congregação. Doutorou-se em teologia quando
a falta de forças físicas o dispensavam de árduos trabalhos.
Faleceu a 01 de setembro de 1851 (GALVÃO, 1927, p.
226-227). Em comparação com as Cartas anteriores, o
documento de Fr. Paulo da Conceição sobressai por três
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motivos sui generes: primeiro, pelo sobrenome de Moura, possível indicador de sangue
infecto; segundo, pelo tetragrama hebraico, indício de tolerância judaica; terceiro, pelos
traços classicizantes que formam a moldura do texto18.
Considerações finais
A análise de 149 documentos elaborados entre os anos de 1602 e 1802, encontradas no
arquivo do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, corroborada pelas informações
contidas nos necrológios, dão prova da diversidade cultural dos indivíduos que ao longo
de dois séculos se reuniram sob um objetivo comum que era o Serviço do Senhor,
servindo-o da maneira mais distinta possível, sem vetar a identidade individual daqueles
que se congregava na identidade coletiva sob a espiritualidade delineada pela Regra de
São Bento. A Carta de Fr. Pedro de São Tomás mostra a simultaneidade da técnica
pictórica na Europa e no Brasil. A de Fr. Salvador da Trindade, os traços da Devotio
moderna, presente já nos textos de Santa Gertrudes. E finalmente a de Fr. Paulo da
Conceição, o prenúncio de uma nova era. Em suma, chama a atenção o fato de quanto
mais ornamentado o manuscrito, menor poder hierárquico desempenado pelo religioso.
Quanto mais simples, desprovido de ornamentação, como o caso de Fr. Mateus Pina,
maior desenvolvido intelectual e poder hierárquico.
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Janeiro – Abadia Nullius de N. S. do Monserrate. Rio de Janeiro: Papelaria Ribeiro,
2917.
18
Para melhor compreensão da cultura judaica no Brasil ver Grimberg, 2005.
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LECLERCQ, Jean. O amor às letras e o desejo de Deus. São Paulo: Paulus, [1957]
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SOUZA, Jorge Victor de Araújo. Para além do claustro: uma história social da
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UFF/Departamento de História (Tese de Doutorado), 2011.
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FAZENDO O MÉTIER DE DIÁCONO PERMANENTE:
POLÍTICAS DE MANUTENÇÃO E SUBVERSÃO
INSTITUCIONAL
Agnaldo Libório – UFMa / CAPES.
ESTRATÉGIAS
NO ESPAÇO
Resumo
O artigo apresenta uma breve discussão sobre reprodução e subversão de uma
configuração institucional, a partir da inserção de novos agentes na dinâmica da divisão
do trabalho institucional. Apresenta o caso da inserção dos diáconos permanentes na
economia católica dos bens de salvação. Compreendendo o ofício do ministério
diaconal não como uma prática natural ou produto exclusivo das codificações
canônicas, uma dádiva divina ou uma vocação imanente. Mas, como um processo
construído por meio das relações de indivíduos interdependentes, uma figuração
conflituosa de maneiras de ser e de estar na Igreja. Uma figuração construída pelas
relações interdependentes com o clero, com os leigos engajados, com o instituído (Igreja
Católica), com as pessoas com as quais convivem no cotidiano. Assim, o diácono
permanente aparece como um outsider que mobiliza recursos para a afirmação de suas
competências de especialista na economia dos bens de salvação. Para tanto, toma-se por
análise a entrada dos Diáconos Permanentes na cúria eclesiástica ludovicense e o
processo de formação deste novo métier, de um fazer a prática pela prática.
1. Introdução
A promoção do laicato, que consiste num processo de implicações complexas,
parece ter sido um viés, frente ao envelhecimento, a rarefação ou a lenta renovação do
quadro de presbíteros da Igreja Católica. O engajamento contínuo e crescente de leigos
em diversas atividades da Igreja faz notar o redimensionamento e a importância de uma
categoria de atores que até meados do século XX sempre ocuparam um lugar discreto e
dominado na configuração institucional católica. Isto não sem efeitos sobre a própria
divisão do trabalho eclesial entre especialistas e profanos.
Tradicionalmente, a Igreja Católica constitui uma instituição caracterizada por
diferentes posições institucionais cujas tarefas, direitos e deveres foram minuciosamente
prescritas, enquadradas e objetivadas ao longo de séculos de existência. Cada uma
dessas posições repercute sobre as relações dentro da configuração eclesial, implicando
em papéis e sistemas de atitude diferentes ou mesmo antagônicas. De forma
simplificada, este seria um espaço em que se encontram as desiguais categorias de
bispos, teólogos, padres, leigos (e agora diáconos permanentes) cujas percepções e
expectativas sobre as transformações da Igreja e sobre a própria crise institucional,
apresentam variadas matizes.
Quando se fala em crise, quer-se designar os processos gerais que afetam todas
as instituições (escola, partidos políticos, política, justiça), quer se trate de mutações do
engajamento, transformações nas formas de mobilização, refluxos nas formas de poder
ou de autoridade ou a recomposição dos princípios de legitimação (LAGROYE, 2006).
Embora nosso interesse investigativo se concentre na crise institucional católica, nas
recomposições de papéis e nas justificações práticas que isso suscita, ao conceber a crise
institucional como um fenômeno bem mais amplo, pressupõe-se aqui que, esse estudo
tende a colaborar na compreensão de transformações macrológicas.
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É necessário deter-se brevemente sobre o significado da expressão promoção
do laicato para clarificar o ângulo a partir do qual se pretende examinar o problema. De
forma genérica, dentro da configuração institucional católica, especificamente no Brasil,
houve-se sempre uma tendência a destinar aos leigos o desempenho de tarefas ligadas à
periferia da celebração do culto. Desde a organização dos materiais próprios das
cerimônias à prática dos cânticos e das leituras bíblicas (exceto o evangelho). Ainda,
aos leigos, competem também tarefas de formação religiosa-catequética – sem a
exigência de especialistas doutos (BOURDIEU, 2007a) – das crianças e adolescentes.
Contudo, percebe-se, atualmente, uma maior participação administrativa dos leigos nos
conselhos paroquiais e de comunidades, onde os leigos também decidem sobre as ações
coletivas a serem tomadas, como: os reparos e necessidades da Igreja, aplicação de
fundos obtidos por eventos como os festejos, bingos, rifas, etc.
É verdade que o simples exercício dessas atividades já cria certo número de
variações em função do prestígio e autoridade que se pode obter pelo simples exercício
de algumas funções. Assim, além do prestígio social e do status privilegiado de que
gozam alguns leigos (médicos, engenheiros, advogados), destacam-se ainda os leigos
animadores, os leigos engajados, os leigos que detêm domínio do discurso teológico ou
mesmo casos de leigos que detém certo grau de ascendência sobre a autoridade
paroquial e/ou diocesana. Alguns desses leigos também são chamados a exercerem
atividades autorizadas pela Igreja, principalmente em movimentos eclesiásticos e novas
comunidades de gestão do laicato (Renovação Carismática, Comunidades de vida e
aliança, Apostolado da Oração, Terço dos homens, etc.). Enfim, isso tudo permite
conceber que sob o termo promoção do laicato indicamos, na realidade, um “[...]
amálgama heteróclito de atividades de ajuda ao clero, de substituição conjuntural do
padre e de participação em empresas coletivas de evangelização [...]” (LAGROYE,
2006, p.207)19. Pode-se mencionar ainda toda uma categoria compósita de leigos
assalariados, a maioria leigos engajados, que possuem relações trabalhistas com a
Igreja, muitas vezes com condições precárias do ponto de vista do código do direito do
trabalho (BÉRAUD, 2006b).
É preciso reconhecer, no entanto, que essa promoção dos leigos não constitui
somente uma resposta à demanda institucional, decorrente de sua crise interna. Ela se
enraíza historicamente por uma crescente luta dos leigos por espaços nas atividades da
Igreja, desde o pós-guerra, quer por meio da criação e expansão da Ação Católica a
nível internacional, quer pelos movimentos de juventude, obras caritativas, associações
confessionais ou pelo envolvimento nos institutos educacionais. No Brasil, e no
Maranhão em particular, a promoção de leigos constituiu uma atividade decisiva para
minimizar a fraca cobertura institucional católica, traduzida tanto pelo diminuto número
de circunscrições eclesiásticas para a extensão territorial do Estado, quanto pela penúria
de vocações sacerdotais, agravada pelo contexto contemporâneo de desencantamento e
desinteresse pelos bens de salvação.
Ao centro do processo de gestão da penúria sacerdotal, de redefinição da
posição simbólica do laicato e das transformações nas modalidades operatórias de
exercício da autoridade religiosa, encontra-se uma inovação importante: a restauração
recente do diaconato permanente. Em desuso desde a Idade Média (GOEDERT, 1995,
p.19), a “reinvenção”, durante o Concílio Vaticano II (1962-1965), daquele que é
considerado o primeiro grau do sacramento da Ordem, o diaconato, conferiu a alguns
19
Tradução nossa.
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leigos ordenados neste ministério o exercício de funções quase sacerdotais (administrar
o sacramento do batismo, assistir ao sacramento do matrimônio, dar as bênçãos próprias
do clericato) ao mesmo tempo em que permitiu conservar algumas vantagens do laicato
(atividades profissionais, ser casado, grande liberdade de ação, etc.). Trata-se da
restauração de uma função eclesial que contribui inegavelmente a atenuar a distancia
entre os especialistas (doutos produtores) e os profanos (leigos) no espaço eclesial,
reconfigurando, não sem flutuações e tensões, os modos de manipulação dos bens de
salvação (Divisão do trabalho eclesial).
Nestes termos, este artigo volta-se para um problema de investigação
sociológica importante: os efeitos que a complexificação da divisão do trabalho produz
no espaço social. Ou seja, com a inserção da função do diácono permanente na
economia dos bens de salvação, quais serão as reações do corpo de especialistas que
detém o monopólio da manipulação dos bens de salvação na Igreja Católica? Ou
melhor, de que forma se dará a diferenciação entre as funções exercidas pelos padres
(estabelecidos) e as exercidas pelos diáconos permanentes (outsiders) na economia dos
bens de salvação? Conforme Durkheim, em a divisão do trabalho social, quanto maior
for o grau de aproximação das funções (atividades profissionais semelhantes) mais
predispostas estarão a combater-se, a disputarem espaços de atuação.
Assim, a formação de uma nova configuração20 (ELIAS, 2008) institucional
surge com novas relações de forças. Relações estas, estabelecidas entre os diáconos
permanentes e os demais especialistas que compõem a divisão do trabalho eclesial. Não
esquecendo a tênue fronteira das atribuições (definição de tarefas, espaços de atuação,
competências discursivas, clientela) e principalmente a jovialidade deste posto no
contexto institucional católico. Percebendo possíveis implicações que podem ser
geradas na divisão do trabalho eclesial a partir da inserção deste novo profissional na
economia dos bens simbólicos de salvação (monopólio da produção e distribuição dos
bens de salvação). Assim, o presente artigo aborda uma breve discussão sobre
estratégias de afirmação de um novo métier em formação na Arquidiocese ludovicense e
suas implicações na divisão do trabalho eclesial.
2. A construção de uma nova configuração institucional pela prática.
A complexificação das funções exercidas por um corpo social retrata
obrigatoriamente à fragmentação desses corpos sociais, e consequentemente sua
diferenciação. Ou seja, a emergência de especialidades com fins a atender uma demanda
decorrente do aumento da densidade e do volume social, próprios de sociedades
modernas fundadas por normas jurídicas (estatutos, regulamentos, códigos, etc) que
impessoalizam as relações, modificando os laços sociais.
Nesse sentido, a inserção do diácono permanente na economia dos bens de
salvação pode ser compreendida como um processo de complexificação das funções
eclesiais? E sendo, como se definirão as fronteiras das especialidades em um mundo
caracterizado pelo monopólio da função presbiteral? As respostas para tais
20
Cf., ELIAS, 2008, passim: configuração é uma formação de pessoas ligadas umas as outras por meio de
suas disposições e inclinações básicas, constituindo teias de interdependência ou configurações de
muitos tipos, tais como: famílias, aldeamentos, cidades ou estados. Sendo tais configurações fruto de
uma rede de indivíduos onde as “pessoas” coletivo e as “pessoas” indivíduos se completam num
“jogo” de influências sobre uma flutuação do ponto de equilíbrio de poder estabelecido nas relações
de interdependência dessas configurações.
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questionamentos ainda são imprecisas, em decorrência do pouco tempo de exercício
deste ministério e do baixo número de “vocacionados” ordenados atuando nas dioceses
e prelazias do Brasil21.
Contudo, análises preliminares demonstram que, apesar de haver diretrizes
formais da Igreja para o exercício do ministério diaconal, há, na prática, uma forte
imprecisão nas fronteiras que estabelecem os limites entre os ofícios presbiteral e
diaconal, estimulando um clima de concorrência traduzido numa relação de
estabelecidos e outsiders. Ou seja, “[...] mostra uma clara divisão, em seu interior, entre
um grupo estabelecido desde longa data e um grupo mais novo [...]” (ELIAS &
SCOTSON, 2000, p.19).
Segue o Documento de Aparecida dizendo no nº 206: “Quando
estão a serviço de uma paróquia, é necessário que os diáconos e
presbíteros procurem o diálogo e trabalhem juntos”. Acho que
isso é utopia que apresenta o documento. “Diálogo e trabalho
juntos”. O que mais observamos são divergências, falta de amor
e caridade. Arrogância e discriminação. Presunção e egoísmo
por parte de alguns que tem na paróquia, a sua “fortaleza”,
deixando somente entrar, participar da mesma, apenas aqueles
que lhe agradam ou comungam do mesmo pensamento para não
lhe contrariar. (Diác. L.G. – CND, 14/11/2009).
Nestes termos, os diáconos permanentes aparecem como os recémchegados, “os de fora” que pertencem a um grupo de menor virtude. Os inferiores da
hierarquia eclesial aos quais cabem as atividades de menor expressão: a de auxiliar
litúrgico do sacerdote, um acólito melhorado, um “quase padre”. “[...] Por vezes, os
diáconos não passam de um simples grupo de clérigos sem qualquer importância. Não
exercem nenhuma outra função, a não ser a litúrgica [...]” (GOEDERT, 1995, p.20). E é
aqui que surge nossa inquietação: o altar como fonte de legitimação e sacralização do
ofício diaconal.
Pela nossa fraqueza humana, há uma tendência de ficarmos “na
nossa”, fazendo o rotineiro, auxiliando ou presidindo
celebrações Litúrgicas, ministrando Batismo, Matrimônio,
Exéquias rotineiramente. Eis o perigo: às vezes é necessário
“tirar o umbigo do Ambão”. (Diác. J.C.P. – CND, 01/09/2008).
A exortação do Diác. J.C.P. deixa clara a sua preocupação com aquilo que
ele denomina de práticas rotineiras, isto é, com a naturalização do “ser” diácono com
funções restritas à liturgia, uma espécie de “presbiteriopalite”. Ou seja, os diáconos
permanentes tem encontrado no serviço das mesas e do altar (presbitério) uma estratégia
de sagração de seu ministério. Ou melhor, pelo exercício de funções consideradas
sagradas, “mais dignas”, “mais honrosas”, de maior status (incluindo o uso e o glamour
das vestes), diretamente associadas às funções sacerdotais, o diácono encontra uma
estratégia de afirmação de sua especificidade profissional na divisão do trabalho
eclesial, garantindo-lhe um mercado na economia dos bens de salvação. Isto, associado
21
Cf. site da CND (Comissão Nacional dos Diáconos), atualmente, existem aproximadamente 1.855
diáconos permanentes ordenados no Brasil e cerca de 1.500 candidatos em processo de formação.
Apenas 133 circunscrições eclesiásticas possuem diáconos, do total de 267.
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ao período de crise da “vocação” sacerdotal, com uma considerável redução do quadro
de presbíteros, tem se mostrado uma conjuntura favorável para que os diáconos saiam
da condição de auxiliares para a condição de protagonistas do altar, assumindo a
celebração do culto em decorrência da ausência de padres. Estabelecendo uma nova
dinâmica na economia dos bens de salvação e uma nova configuração institucional. Ou
seja, o diácono encontra no altar, no exercício de atividades propriamente sagradas,
antes monopolizadas pelo sacerdote, um caminho para legitimar e afirmar seu
ministério.
Contudo, surge então uma questão: se os dois ministérios (presbiteral e
diaconal) são instituídos pelo sacramento da ordenação, enquanto rito legítimo de
instituição (BOURDIEU, 1982), de inserção à hierarquia eclesiástica, conforme o
código canônico. Então, porque se faz necessário a busca de estratégias de legitimação
do ministério diaconal? Isto significa que a ordenação diaconal, enquanto um rito de
instituição (um ato de magia social) que marca, canonicamente, a passagem do leigo
para a condição de clero, conferindo-lhe distinção com relação a outros leigos, não é
condição sine qua non de entrada ao mundo dos estabelecidos. Ou seja, apesar do rito
da ordenação inscrever, canonicamente, o diácono na hierarquia clerical, ela per si não é
garantia de uma posição privilegiada no jogo institucional. É preciso associá-la a um
volume de capital reconhecido na prática e pela prática institucional.
SOMOS MINISTROS SAGRADOS. Diz o documento 157
(diretório do ministério e da vida dos diáconos permanentes) na
página 89, nº 1: “Mediante a imposição das mãos e a oração
consagratória, ele (diácono) é constituído ministro sagrado,
membro da hierarquia. Esta condição determina o seu estado
teológico e jurídico na Igreja”. Assim sendo, o diácono precisa
ser * R E S P E I T A D O*. Ou será que tudo isso é fantasia?
Não passa apenas de linhas escritas sem validade? Ou será que o
sacramento da ordem somente tem valor para o grau, episcopal e
presbiteral? (Diác. L.G. – CND, 14/11/2009).
Em um sentido mais direto, a Igreja cultivou, ao longo dos últimos séculos,
uma cultura sacerdotalizante que garantiu aos padres não só o monopólio da produção e
distribuição dos bens de salvação, mais também a condição de ofício legítimo, sagrado,
como se estes fossem dotados de um carisma e uma virtude ausente nos outros. Assim,
durante muito tempo, a igreja cultivou a imagem de um clero separado do mundo
profano, uma condição clerical de perfeição, de convite à castidade, de desprezo às
festividades mundanas e riquezas materiais, e de preferência mantendo-se afastado do
mundo do trabalho profano (BÉRAUD, 2006a). Assim, o sacerdote ideal típico é fruto
de uma construção histórica e social que exige do ser sagrado que ele seja retirado da
circulação comum, seja um separado, reafirmando um modo de vida excepcional,
fazendo deles os herdeiros legítimos do instituído (BOURDIEU, 2008a). Nestes termos,
o diácono permanente (clérigo totalmente inserido nas atividades do mundo profano)
precisará construir um novo perfil de clérigo no milieu católico. Um clérigo separado do
mundo, mas que esta no mundo: inserido no mercado de trabalho profano, casado, pai
de família, não imune aos percalços profanos:
No cumprimento das funções próprias do Sacramento do
Matrimônio e do Sacramento da Ordem, o diácono permanente
precisa tornar-se cada vez mais um homem forte e guarnecer seu
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ministério com legítimos e louváveis meios de defesa. [...]
Dentro do contexto familiar, o diácono permanente não está
isento de problemas e crises [...] Na comunidade eclesial, o
homem da dupla sacramentalidade não está livre de
incompreensões e da pesada sensação de sentir-se um estranho
no ninho. [...] no contexto familiar, no espaço da comunidade
eclesial e em tantos outros lugares, precisa deixar a marca do
testemunho do homem de fé. (Diác. J.R.M. – CRD Leste I
/CND, Nov/2008).
Portanto, o lugar da ordenação diaconal, enquanto instrumento de titulação
institucional, sugere uma “reflexão a respeito da multiposicionalidade dos agentes e da
pluralidade do pertencimento a outras esferas” (PETRARCA, 2013, p.119), uma vez
que, para fazer valer sua ordenação, os diáconos permanentes precisam investir no
acúmulo de outros capitais (capital escolar (profano e teológico), capital cultural,
profissional, artístico, relacional, etc.). Nestes termos, o problema não se encontra
necessariamente na ordenação como mecanismo de separação social e de inserção à
esfera sagrada. É preciso ir além das aparências dadas. É preciso perceber a
combinação, o encontro da ordenação enquanto rito de instituição arbitrariamente
legítimo e objetivado pelas vias canônicas (institucional) com o background social, com
outras propriedades sociais adquiridas fora da esfera sagrada. Ou seja, perceber o
emaranhado de trunfos acionados, mobilizados (a ordenação é um componente dentre
outros) para garantir a distinção e a ascensão do ministério diaconal neste espaço de
relações de forças interdependentes.
3. ‘Fazendo com’ reprodução e subversão
A regulamentação jurídico-canônica, a criação da Comissão Nacional de
Diáconos (CND) e suas variantes regionais e diocesanas como espaços organizacionais
e representativos, a criação de institutos de formação específica (Escolas Diaconais), e
os inúmeros instrumentos de comunicação e divulgação do ministério diaconal podem
ser vistos como fortes indícios de um processo de afirmação e legitimação deste “novo
clero”, recém-chegado. Neste sentido, a preocupação institucional em formalizar
documentos, diretrizes, revisar seus códigos, a exigência de uma formação longa e
especializada, a necessidade de se organizarem sob a forma de associações que
implementam mecanismos de fiscalização, acompanhamento e regulamentação do
ofício, a realização de encontros, congressos, reuniões e outros espaços com capacidade
de promover redes de relações com trocas de experiências exitosas e também suas
dificuldades são características que determinam o nível de profissionalização e
consequentemente de institucionalização de um ofício.
A Comissão Nacional dos Diáconos e assessores esteve reunida
em Vitória no Espírito Santo nos dia 22 a 25/agosto/13.
Debatendo, entre outros assuntos, a elaboração do subsídio que
será o documento de estudos nos encontros regionais e interregionais que deverão acontecer em 2014. Queremos fazer
memória a restauração, vida e ministério do diaconado na Igreja.
(Diác. Z.K. – CND, AGO/2013).
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Diante do exposto, pode-se dizer que o diácono permanente tem
conquistado um ‘lugar ao sol’ no mercado dos bens de salvação. Daí vê-se a
importância de observar o trabalho das entidades de representação e de outros espaços
de defesa deste ministério, como forma específica de acumulação de capital de relações
sociais e titulações (cursos formativos), percebendo seus discursos, suas ideias, suas
concepções de defesa da ordenação diaconal, as estratégias desenvolvidas com fins à
distinção e afirmação desta função eclesial. Neste sentido, a ideia de pertencimento a
um grupo, de fazer parte de uma categoria esta imbricada à condição de defendê-la.
Assim, os diáconos que estão alocados em posições dirigentes das entidades
de representação (nacional, regionais e diocesanas) desenvolvem ao mesmo tempo suas
funções ministeriais em suas paróquias (aquelas prescritas no Código Canônico) e
funções da esfera político/organizacional como: a organização de fóruns de promoção
da carreira (congressos, encontros, etc.), estímulos à criação de novas escolas diaconais
e a garantia de participação em espaços que promovam a defesa do ministério diaconal.
Além disso, a CND também tem procurado estreitar laços com outras instâncias de
consagração como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
A aparente insistência da diretoria da CND e das diretorias das
Comissões Regionais dos Diáconos, em busca da Comunhão
Diaconal tem razão de ser por causa do próprio desafio que
representa. [...] mas parece-me que ela (a comunhão) não se
completa na medida em que estamos distantes, às vezes sem
comunicação, sem participação efetiva nos encontros e reuniões
que definem o nosso próprio ministério na Igreja. Ao apresentar
aos Arcebispos, Bispos e Administradores Diocesanos,
presentes na 72ª Assembleia dos Bispos da CNBB Regional Sul
1, a proposta de filiação de todos os Diáconos do Estado de São
Paulo até o final do ano, e a consequente colaboração dos
responsáveis das Igrejas particulares, procuramos deixar bem
claro que isso não é “corporativismo” ou “enquadramento”, mas
um senso muito forte de organização, de participação e de
COMUNHÃO. Uma das prováveis preocupações de alguns
diáconos que resistem à filiação é quanto à necessidade de
contribuir financeiramente para a manutenção da CAD, CDD,
CRD e CND. Considero que o primeiro passo da tão esperada
COMUNHÃO é nos conhecermos, nos comunicarmos, sermos
participativos, priorizar sempre que possível, os eventos
diaconais, sejam eles a nível nacional, regional ou
diocesano. (Diác. J.C.P. – CND/ENAC, 04/05/2009).
É preciso convergir os esforços de muitos para fazer engendrar as regras do
jogo (ELIAS, 1994). Neste sentido, as disposições servem como mecanismos que
especializam as ações, que garantem aos agentes suas condições de peritos, que
distinguem as ‘maneiras de fazer’, de falar, de pensar, de produzir, de gostar, de
valorizar (CERTEAU, 2009; BOURDIEU, 2007a). E será o volume e a estrutura deste
‘modo próprio de fazer’ que determinará a estrutura do jogo. Ou como afirma Bourdieu:
“[...] o peso associado a um agente, suportado pelo campo que contribui para estruturar,
depende de todos os outros agentes, [...] das relações entre todos os pontos, ou seja, de
todo o espaço [...]”. Deste modo, “[...] a força de um agente depende dos seus diferentes
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trunfos, [...] depende do volume e estrutura do capital de diferentes espécies que possui
[...]” (BOURDIEU, 2008b, p.53) e da confiança que outros predispõem a atribuir como
crédito, como crença.
Neste sentido, os agentes devem ser capazes de criar subterfúgios, de agir na
clandestinidade e produzir algo próprio, mas com a aparência dos produtos da ordem
legítima. É pensar que, na prática cotidiana, os agentes utilizam a arte de apropriar-se
daquilo que lhes são impostos, dando-lhes um novo aspecto. Assim, mesmo subjugados,
fazem com elas outras coisas a partir de dentro (CERTEAU, 2009).
Estas ações subversivas conseguem, lenta e progressivamente, realizar uma
metamorfose da estrutura no interior dela. Assim, o sistema de significações próprias da
produção legitimada pela ordem estabelecida, acaba sendo objeto de manipulações de
consumidores/receptores que não integram o grupo de especialistas da arte de produção
e distribuição dos bens específicos daquela economia (a elite).
Para isto, as ações subversivas devem se constituir pelas redes de relações
pessoais, em um movimento constante, não calculado, que se aproveita tanto de
situações débeis do cotidiano quanto de situações mais estruturadas e que delas
dependem para incidir o poder de minar, corromper a ordem dominante, podendo daí
retirar benefícios, aumentar o capital cultural específico, capitalizar vantagens que lhes
permitam obter uma posição privilegiada no jogo. Conquista que só é possível pela
capacidade de conhecer a ordem por dentro. De conhecer as regras do jogo jogado, o
jogo oficial, o jogo legitimado por todos, para por meio dele inaugurar novas regras.
Dito de outro modo, ser um especialista das especialidades, aumentar seu volume de
capital específico para obter legitimidade suficiente para inaugurar um espaço
especializado, regido por novas regras, por novas relações de forças, traçadas entre a
incansável sutilidade de renovadas ações subversivas (de transformação) e por
constantes ações de resistência (de manutenção) que gozam de um lugar privilegiado no
postulado de poder. Em suma, uma nova configuração.
Nas últimas semanas, vários regionais fizeram seus encontros de
formação e/ou assembleias, com inúmeras e belas experiências
narradas. A participação dos diáconos, nesses regionais, ficou
abaixo do esperado. Deixo aqui um fraternal convite, para que
coloquemos como prioridade os nossos encontros de formação e
ou assembleias, pois, a amorosa convivência com os irmãos e os
estudos pertinentes nos dá força e orientação para nossa
caminhada ministerial. Mais especificamente, o Documento 96 CNBB / Diretrizes para o Diaconato Permanente está sendo
estudo mais profundamente, visto que este, agora, é documento
aprovado pela CNBB para toda Igreja do Brasil. Descrevo a
seguir alguns, entre tantos textos, que nos orientam em nossa
caminhada. O número 118 nos diz que o espírito de comunhão e
a corresponsabilidade no ministério ordenado urge que os
diáconos participem em assembleias diocesanas, reuniões do
clero, retiro e convivências. O número 119 reconhece que há
barreiras, mas é preciso insistir em nossa educação, já que é
urgente e primordial nossa formação e atualização, através do
diálogo e da participação de todos. (Diác. Z.K. – CND,
SET/2012).
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A aprovação das Diretrizes para o Diaconado Permanente no Brasil (Doc.
96 citado acima pelo Diác. Z.K.), pela CNBB, abre a possibilidade de inserção dos
diáconos em espaços como as reuniões diocesanas do clero (antes só para padres) que
servirão para legitimar seus posicionamentos em favor do exercício do ministério.
Assim, a filiação institucional, e os compromissos derivados dela, apresentam-se como
um recurso estratégico de afirmação eclesial do métier. Dessa forma, o engajamento
associativo, em seus níveis (Arqui)diocesanos, regionais e nacional representa não
somente uma possibilidade de garantir os serviços especializados do diácono na divisão
do trabalho eclesial, mas também uma forma de atuar politicamente na esfera do
sagrado, seja em defesa da Igreja, da nova eclesiologia do Vaticano II, da nova teologia
dos ministérios (GOEDERT, 1995, p.21)22, seja inserindo-se nas instâncias próprias da
hierarquia eclesiástica. Assim, percebe-se o empenho desses ‘novos clérigos’ em
acumular capital (específico), capitalizar vantagens, administrar suas redes de relações
pessoais, sacralizar suas práticas com fins de retirar benefícios que lhes permitam obter
legitimação e prestígio no exercício do ofício do diaconado permanente. Certamente
será preciso contar pelo menos mais duas ou três décadas para julgar o êxito de um
enraizamento institucional.
Neste sentido, o tempo também é uma categoria importante na consolidação
de uma configuração institucional caracterizada como espaço de relações de forças
específicas, com lutas pela manutenção ou transformação de seus regimes e concepções
de verdade, modelos e tendências, práticas e crenças que se definem pela unidade
multidimensional, porém, com movimentos antagônicos, contraditórios, conflituosos e
por tomadas de posição (CORADINI, 1998).
4. Estratégias de resistência e subversão como equilíbrio de poder
Numa análise que envolve a constituição de um novo espaço de relações de
forças, uma nova configuração social – no caso em questão: a gênese do diaconato
permanente no espaço eclesial ludovicense – é preciso compreender os efeitos
provocados pela administração da distribuição e circulação do volume de capital
cultural e econômico no interior deste espaço específico.
Para isto, é preciso considerar que o poder de cada agente é determinado
pelo volume de capital específico incorporado, objetivado e institucionalizado
(BOURDIEU, 2007b). Ou seja, pela concentração de capital que cada agente consegue
acumular e acionar no interior do espaço institucional, conforme sua posição no jogo.
Considerando que a distribuição do volume de capital será imprescindível na
composição e caracterização da estrutura institucional. Isto porque, quem ocupa as
posições privilegiadas no jogo (aqueles com maior concentração do volume de capital =
dominante) trabalha para que a estrutura do jogo atue em seu favor (BOURDIEU,
2008b). O que esta em questão não é necessariamente saber quem domina o jogo
institucional, mas a luta para estabelecer estratégias de manutenção ou transformação da
estrutura do jogo.
22
Cf. GOEDERT, op. cit., p.21: O Concílio Vaticano II consolidou uma nova eclesiologia que repercute
numa nova teologia dos ministérios, de um sacerdócio comum dos fiéis, onde há lugar para todos e
todos se completam.
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Por isso ser necessário compreender a lógica das relações de forças, suas
lutas, estratégias de resistências e subversões, de manutenção e transformação, de
rotinização e inventividades. É preciso mergulhar nas relações de forças realizadas na
base, nas lutas cotidianas estabelecidas pelas relações diádicas (LANDÉ, 1977), nos
pequenos laços que formam as redes interdependentes de poder. Ou seja, “distinguir as
redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que ligam e que fazem com que
se engendrem, uns a partir dos outros” (FOUCAULT, 1979, p.05).
Contudo, deve-se considerar que as práticas do cotidiano, as estratégias de
resistências e subversões engendradas pelos agentes no interior da instituição são
produto do encontro de suas trajetórias, de uma história incorporada, com uma história
objetivada da estrutura institucional no momento do encontro. Ou melhor, o encontro
das disposições acumuladas pelos agentes no decorrer de suas respectivas trajetórias (o
volume de capitais combinados: escolar, cultural, econômico, religioso, etc.) com as
disposições próprias da instituição (o capital instituído). E é este encontro que vai
legitimar o volume de capital a ser usado como trunfo nas relações de forças que
definem o espaço de conflitos e de seus respectivos dominantes e dominados.
Parte-se do pressuposto que tais configurações são formadas de um lado,
por indivíduos (estabelecidos) que compõe uma elite dominante dotada de uma espécie
de carisma, “[...] de uma virtude específica que é compartilhada por todos [...]” (ELIAS
& SCOTSON, 2000, p.20) que: produz, distribui e faz circular os bens de produção
(materiais e simbólicos). E do outro lado, grupos de indivíduos que estarão na condição
de dominados pelos primeiros (os recém-chegados). Neste sentido, a força do poder
encontra-se na capacidade de dissimular o ‘não’, de produzir coisas, propriedades
simbólicas como: discursos, ideias, maneiras, estilos, gostos. “Deve-se considerá-lo
como [...], uma nova ‘economia’ do poder, isto é, procedimentos que permitem fazer
circular os efeitos de poder de forma [...] contínua, ininterrupta [...] muito mais
eficazes” (FOUCAULT, 1979, p.08). Assim, é pela produção e legitimação do capital
instituído que se engendra o poder.
Assim, o espaço eclesial ludovicense configura-se como um espaço de
relações de forças onde os estabelecidos (os padres e seus aliados) produzem e fazem
circular ideias, discursos, estilos, etc. que tendem ao mesmo tempo a reforçar sua
condição de superioridade, de grupo legítimo, e também de excluir e estigmatizar os
recém-chegados (diáconos permanentes), disseminando, implicitamente, uma cultura do
“quase douto”, onde os diáconos são vistos como um “quase padre”, um profissional
habilitado a exercer atividades menores na economia dos bens de salvação. Como
ressalta o depoimento de um diácono permanente:
Somos muitas vezes deixados de lado. O enriquecimento que
poderíamos produzir gerar na Igreja com nossa experiência de
homens casados, pais de família, provedores de um lar, homens
seculares, nos é castrado. [...] Infelizmente, a grande maioria dos
diáconos permanentes do Brasil tem encontrado enormes
dificuldades em seus ministérios. Não somos nem lembrados.
[...] Como se não bastasse o esquecimento temos alguns padres
que não nos aceitam não nos querem para o serviço do altar,
muito menos em suas paróquias para o serviço ao qual fomos
chamados e ordenados. (Diác. L. G. – CND, 14/11/2009).
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Assim, a condição de “quase” acaba restringindo a participação destes
outsiders na economia dos bens de salvação, limitando-os a atuações setoriais, com
risco de não obter apoios internos, de não ter o reconhecimento externo, de não serem
seguidos ou serem seguidos por poucos. Contudo, mesmo não sendo um “douto
produtor”, estes ‘novos intelectuais’ também já não estão na condição de meros leigos.
A eles cabem à honra de poder manipular, de ser fiel depositário de parte de alguns bens
específicos. E isto mostra o lugar estratégico que ele ocupa. A posição de agente de
fronteira. Aquele que flui entre o douto produtor (caracterizado por estratégias de
resistência e manutenção) e os leigos.
o padre havia dito que se eu continuasse a visitar e celebrar na
comunidade ele (padre) tinha “poder” para fechar a mesma. [...]
Será que era porque eu estava mais presente do que o padre?
Ouvia mais a queixa, o lamento a angustia a aflição do povo do
que o padre? Visitava mais os doentes do que o padre?
Procurava orientar mais o povo do que o padre? Será que era
porque era periferia e eu estava lá, enquanto o padre... [...] Não
quero ser arrogante, mas o nosso papel hoje, em um mundo
pluralista, é o de ajudar em muito a igreja católica e para isso
fomos ordenados. O diácono está a serviço para ir onde o padre
não pode estar. (Diác. L. G. – CND).
Exposto tais considerações, é fundamental considerar que todas as
correlações de forças (disputas de poder) estabelecidas por meio das relações diádicas
são intermediadas por um ponto de equilíbrio (ELIAS, 2008) específico. Ou seja, as
díades, unidades mínimas das relações sociais, são formadas por pares de pessoas que
estão continuamente medindo suas forças entre si. E esta competição é mediada por um
ponto de equilíbrio que faz manter ou ruir a relação. É pensar na função de ligação da
haste de uma balança: ligar os dois lados da balança de modo a estar na condição de
interdependência, buscando encontrar o fiel da balança, o ponto de equilíbrio. Neste
sentido, “[...] o equilíbrio de poder está sempre presente onde quer que haja uma
interdependência funcional entre pessoas [...]” (ELIAS, 2008, p.81).
5. A prática cotidiana como um fazer do métier
Pensar num ‘fazer’ de um ofício qualquer é considerar que sua prática –
aquilo esperado pelos pares como a prática ‘natural’ de uma determinada categoria –
não ocorre simplesmente pela imposição de algo pronto e acabado, pela imposição de
mecanismos objetivados de regulação (normas). Mas, também por um construir
cotidiano, por práticas contínuas, mutáveis e inventivas de indivíduos interdependentes
– indivíduos ligados por suas relações diádicas, por correlações de forças – que, cada
um, com suas próprias contribuições e capacidades, colaboram, com seu ‘fazer’
cotidiano, na produção e/ou reprodução, legitimação e/ou subversão da ordem. Nestes
termos, o ministério diaconal é um métier em construção, mediante sua prática
cotidiana, adequado às necessidades contemporâneas, como considera a própria Igreja:
É interessante observar, todavia, que o concílio nunca pretende
que a forma do diaconado permanente proposta seja a
restauração de sua forma anterior. [...] O que restabelece, é o
princípio do exercício permanente do diaconado, não na sua
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forma particular que tivesse assumido no passado. [...] o concílio
parece aberto às formas que ele poderá tomar no futuro em
função das necessidades pastorais e da prática eclesial, mas
sempre na fidelidade à Tradição. Não se podia esperar do
Vaticano II que fornecesse uma figura bem definida do
diaconado permanente, [...] O máximo que podia fazer era abrir
a possibilidade de instaurar de novo o diaconado como grau
próprio e permanente da hierarquia [...] Para além disso, poderia
esperar que evoluísse a forma contemporânea do diaconado
permanente. Finalmente, a aparente indecisão e hesitação do
concílio pode servir de convite à Igreja para que continue no
discernimento do tipo de ministério apropriado ao diaconado
mediante a prática eclesial [...]. (Comissão Teológica
Internacional, 2002. p.32).
Assim, a manutenção ou transformação de um ofício instituído ocorre pelo
encontro das práticas cotidianas, espontâneas, imprevistas, não calculadas de indivíduos
interdependentes que fazem parte do jogo específico desse métier e as normas jurídicas
próprias deste instituído. Neste sentido, pensar no ‘fazer’ de um ofício é considerá-lo
como um sempre ‘por fazer’, um ‘fazendo’ de agentes interdependentes localizados em
espaços sociais de relações de forças específicas. Uma construção nunca acabada
daquilo que se espera como a prática daquele ofício. Isto porque as práticas dos agentes,
práticas estabelecidas por meio de relações diádicas, em microcosmos sociais, são
produtos e produtoras de conjunturas históricas, mesológicas e macrológicas, são
especificidades próprias dos momentos de encontros das trajetórias individuais e
coletivas. Neste sentido, o exercício das funções religiosas requer a existência de um
instituído esperado, de uma prática subjetiva adequada à realidade específica do mundo
eclesiástico. Ou na mais pura linguagem clássica weberiana: as funções clericais são
caracterizadas pela existência de locais de veneração que estão ligados a um aparato
objetivo de culto. Assim, as funções clericais são ao mesmo tempo produto e produtoras
de um sagrado instituído.
A forma ritual da função clerical se apresenta segundo duas modalidades: a
do mediador com o sagrado e a da cerimonialidade propriamente dita (BÉRAUD,
2006a). Neste sentido, no caso católico, a presença do padre é inevitavelmente esperada,
não só do ponto de vista das exigências canônicas que lhes asseguram o monopólio da
função de mediador e de executor de certos sacramentos, mas também por uma espécie
de poder de vigilância exercido pelos fiéis mais engajados ao catolicismo. Contudo,
hoje em dia, são muitas as demandas endereçadas aos padres, e uma grande parcela
dessas demandas não está inscrita na esfera do sagrado, são atividades mais profanas,
ligadas à administração paroquial e que exigem um grande investimento de tempo para
executá-las. Tal realidade somada à nova teologia dos ministérios pós-Vaticano II e a
nova divisão do trabalho eclesial pode ter por consequência a descaracterização do
espaço antes reservado ao monopólio do padre, abrindo espaço para o diácono.
Com isto, a condição de protagonistas no exercício das funções diaconais
nos ritos da celebração da palavra, batismos, casamentos, exéquias, apresentam-se como
outro elemento eficaz de afirmação ministerial, seguindo a máxima weberiana de que
não existem clérigos sem culto. Assim, a prática de suas funções, reservadas pelo direito
canônico, dá ao diácono a visibilidade, o status e o glamour que só os ritos instituídos
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possuem. Desde o esplendor das vestes sacras aos discursos proferidos e bênçãos
próprias dos diáconos. A eficácia simbólica presente na prática da celebração dos ritos
instituídos colabora com a consagração e legitimação das funções clericais, “[...] ou
seja, a fazer desconhecer enquanto arbitrário e reconhecer enquanto legítimo, natural,
um limite arbitrário; ou, o que é equivalente, a operar solenemente, ou seja, de maneira
lícita e extraordinária [...]” (BOURDIEU, 1982, p.58 – tradução nossa).
Considerações finais
O artigo faz uma breve apresentação do contexto de promoção do laicato
encetado por alguns clérigos e leigos engajados em experiências de laicidade,
promovendo debates, internos e externos, a partir de suas práticas cotidianas. A
promoção do laicato tem se tornado uma espécie de amalgamado heteróclito de
atividades de ajuda ao clero e de participação efetiva dos leigos investidos de
responsabilidade na empresa coletiva de evangelização. Contudo, estes últimos podem
se colocar numa situação de concorrência com os padres, que percebem suas ações
como uma ameaça à preservação de sua própria função e de sua autoridade.
Acredita-se que os estudos sobre a composição dos especialistas do espaço
eclesiástico, suas funções na divisão do trabalho eclesial, a ocupação de seus cargos,
assim como seus processos seletivos podem ser orientados por esquemas analíticos
produzidos por Bourdieu e seus herdeiros. Partindo do pressuposto que o espaço
eclesiástico possui um conjunto de disposições especificas que o caracteriza e que
define a afinidade com certas propriedades sociais. A proposta deve ser de apreender os
recursos acumulados pelos especialistas ao longo de suas trajetórias, tanto pelo processo
de familiarização com o mundo eclesial (catequeses, grupos pastorais, movimentos,
redes de amizade, ritos, etc.) quanto por seus respectivos background social, percebendo
como tais recursos são cambiáveis por trunfos, vantagens em suas estratégias e
correlações de forças no interior do espaço institucional. Em suma, perceber como a
mobilização destes recursos, destas propriedades sociais pode servir como estratégias de
manutenção ou transformação do espaço eclesial. Em outras palavras, qual a capacidade
de refração, de retradução de recursos exógenos à esfera sagrada com fins de garantir
sua autonomia relativa com relação ao mélieu social mais amplo - profano.
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ECONOMIA, FENÔMENO RELIGIOSO E MERCADO
Everton Carneiro – UNEB ([email protected])
Resumo
Este texto elegeu o fenômeno religioso como objeto de investigação devido à sua
influência sobre a economia, a política, o mundo do trabalho, ou seja, sobre a
humanidade como um todo, atingindo a riqueza de manifestações organizacionais que
refletem uma gama de diferenciações estruturais e culturais. Pretende-se analisar, em
meio ao pluralismo vigente, a noção de mercado religioso em meio a uma sociedade
diante de um intenso processo de secularização.
Ninguém sabe ainda a quem caberá no futuro viver nessa
prisão, ouse, no fim desse tremendo desenvolvimento, não
surgirão profetasinteiramente novos, ou um vigoroso
renascimento de velhospensamentos e idéias, ou ainda
nenhuma dessas - a eventualidadede uma petrificação
mecanizada caracterizada por essa convulsivaespécie de
autojustificação. Nesse caso, os ‘últimos homens’
dessedesenvolvimento cultural poderiam ser designados
como‘especialistas sem espírito, sensualistas sem coração,
nulidades queimaginam ter atingido um nível de civilização
nunca antes alcançado.
Max Weber23
INTRODUÇÃO DA CONVERSA
E o Verbo se fez carne24, afirma o Evangelho de João logo no seu início. Dessa forma
testemunha a encarnação de Deus. Já que se tem a idéia de um Deus encarnado (tornado
carne), portanto numa relação de materialidade e concretude, também a igreja procura
testemunhar da mesma forma, propondoo amor divino para dentro de cada contexto
novo. Já que os tempos e as situações mudam, a igreja precisa redefinir conteúdo e jeito
de seu testemunho, seja por meio do discurso, da vivência ou doserviço.Esse redefinir
sugere considerar o evangelho em seus contextos distintos bem como levar a sério a
realidade atual. Essa se caracteriza por muitas faces nos níveis econômico, social,
cultural e religioso.
Assim, analisar o fenômeno religioso é tarefa complexa, implicando entende-lo como
uma realidade situada e orientada não somente no plano religioso, mas também
econômico, político e cultural. Não é sem razão que a religião ocupa um crescente e
admirável lugar em diversas áreas de estudo. Sendo assim, discutir religião é discutir
transformações sociais, relações de poder, de classe, de gênero, de etnia; é entrar num
complexo sistema de trocas simbólicas, de jogos de interesse, é deparar-se com um
23
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo.p.131.
A Bíblia Sagrada. Evangelho de João 1.1.
24
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sistema sócio-cultural permanentemente desenhado que permanentemente redesenha as
sociedades.
1 .INÍCIO DE CONVERSA
No que se refere à secularização, processo em expansão, percebe-se que este
termo já aparecia nos escritos neo-testamentários do apostolo Paulo, designando sob o
aspecto “saeculum”, o século: trata-se da temporalidade deste mundo, a dimensão
mundana da vida humana. Compreende-se assim, que a expressão “retornar ao século”
significa retornar ao mundo profano, identificando-se desta forma, com a laicização.
A laicização é uma realidade humana que se descobre a partir do
problema do conhecimento nas sociedades modernas lá onde se
constata não somente o desencantamento do mundo, mas a
desmitologização ou mais amplamente a desdogmatização do
saber. Tema crítico, a laicização adquiriu notoriedade nos meios
científicos a partir das análises de sociologia econômica
desenvolvidas por Karl Marx em torno à crítica da economia
política, com a descoberta da realidade social por trás do fenômeno
da alienação no capitalismo.25 (LUMIER)
Globalmente, a secularização designa o processo visível desde o final da Idade Média
que vê atividades ou dimensões da vida humana ligados à esferareligiosa como a Arte, a
Ética, a Moral ou a Política cortar-se de toda referência ao sagrado. Hoje, a expressão
secularização é usada para definir um processo no qual o mundo e a história humana se
compreendem a partir deles mesmos, de maneira propriamente imanente.Os séculos
XVII e XVIII foram herdeiros de uma racionalização progressiva do pensamento social.
Nessa época, triunfou o pensamento racionalista e individualista moderno; as artes e as
ciências emancipam-se progressivamente da tutela da Igreja. O estado moderno se
constrói centralizado e burocrático.
Com essa mudança epistemológica, filosófica, política e social, a religião se torna
um objeto a ser pensado, podendo ser representada como uma realidade, como sendo
histórica, como uma construção institucional ligada a um conjunto doutrinal abstrato,
controlando as práticas, normatizando.
Diante disso, pode-se afirmar que a secularização é o impacto da modernidade (em
diferentes níveis: econômico, social, político, intelectual, simbólico, etc.) sobre a
religião ou mais exatamente, sobre a configuração tradicional das relações entre a
religião e a sociedade.Outeiral assim afirma sobre a modernidade:
Os quatro pilares da modernidade foram: fé na razão, fé no
progresso tecnológico, fé na ciência como substituta da religião
na condução dos destinos humanos e fé no homem autônomo e
auto-suficiente. (OUTEIRAL apud SCHLENDER, 2003:14)
25
Disponível emhttp://jl-cogitatio.blogspot.com.br/2007/04/laicidade-e-sociologia-reflexo-sobre-o.html
Acessado em 04/11/2013
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A secularização envia, inicialmente, a um fenômeno jurídico-político: a separação
das Igrejas e do Estado. A secularização designa a localização da religião fora da esfera
pública, e seu limite ao domínio privado. Enfim, ela remete a um processo de laicização
pelo qual as diversas instituições sociais conquistam sua autonomia dotando-se de
ideologias, referências e regras próprias. Como a Igreja, que era o eixo central da
socialização e do controle social das sociedades do passado, perde essa função, o
conceito de secularização pode, designar a perda de influência da religião na sociedade.
Deve-se perceber aqui que o problema não está na separação da Igreja e do
Estado26, mas na maneira como se faz e nos objetivos que levam a isso. Há uma
acomodação em cima de teorias, até bem fundadas, que levam os poderes a fazerem o
que bem quiserem de acordo com o que lhe é mais conveniente. Esse lado da questão
deve ser bem tratado, pesquisado e detectado por todo cidadão para que seja, no
mínimo, denunciado. Sobretudo, não se deve ignorar que o ser humano não é somente
composto pela sociedade ou pela religião, pelo intelecto ou pelo sentimento, e que tanto
uma faceta quanto à outra, compõem o Estado, bem como a Igreja.
Em meio às transformações que se processam no mundo contemporâneo e o rápido
progresso dos últimos anos, é notório o quanto novas configurações religiosas surgem
com a finalidade de atender às novas exigências/construções/invenções da sociedade e
de um “mercado” religioso cada vez mais diferenciado, que também faz parte de todo
um processo de redimensionamento do mundo do trabalho. À medida que o mercado de
bens de salvação vai se expandindo, novas configurações de identidade surgem,
estabelecendo-se, produzindo ou contribuindo com a economia em variadas escalas. O
século XX é marcado por uma intensa abertura de igrejas, expandindo as fronteiras e a
atuação em várias direções. As antigas formas identitárias vão sendo paulatinamente
substituídas por outras mais mercadologicamente aceitas, ou, no mínimo, mais atrativas
no mercado de bens religiosos. Tal atitude significa,deixar de lado a própria idéia de
passado e valores que outrora lhes garantia uma dada identidade, e encarar a sociedade e
as mudanças de maneira mais livre.
26
No Brasil em 20 de Abril de 1911 foi publicado pelo Governo Provisório um decreto com força de lei
que estipulava a separação do Estado e das organizações religiosas. O decreto era da autoria de Afonso
Costa, então ministro da Justiça. Nos termos do próprio diploma, ele deveria ser ratificado no
Parlamento, o que só veio a acontecer em Março de 1914, por entre muita controvérsia. Embora a
sanção parlamentar tardasse, tal não impediu a imediata aplicação do decreto, que aliás se estendeu em
1913 às colônias, com alguns ajustes.
A promulgação desta lei inseria-se no contexto de certas medidas que tinham sido tomadas logo a partir
de Outubro de 1910: proibição das Ordens religiosas, proibição do ensino religioso nas escolas públicas
e particulares, abolição do juramento religioso, entre outras limitações impostas à acção da Igreja
Católica e aos seus privilégios. Nos termos do diploma, o Catolicismo deixava de ser religião oficial do
Estado; o culto público era fiscalizado (preservando-se rigorosamente, no entanto, a liberdade do culto
privado); parte dos bens da Igreja era confiscada.Lei de Separação do Estado e da Igreja. In Infopédia
[Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2008. [Consult. 2008-06-09].Disponível na www: <URL:
http://www.infopedia.pt/$lei-de-separacao-do-estado-e-da-igreja>. Acessado em 10/08/2011.
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A importância conferida ao estudo da identidade foi variável ao
longo da trajetória do conhecimento humano, acompanhando a
relevância atribuída à individualidade e às expressões do eu nos
diferentes períodos históricos.(JACQUES, 1998:159)
Em tempos de globalização, neoliberalismo, mundialização, modernidade e pósmodernidade, as rotinas da vida cotidiana constituem um desafio para a religião. Este
novo momento histórico desafia as formas religiosas diversificadas. A religião, como
um dos elementos centrais do campo simbólico da sociedade, não escapa a essa
dinâmica cultural em que a sociedade está envolvida, na qual o heterogêneo e o diverso
contrapõem-se ao monolítico e ao homogêneo; o concreto, específico e particular ao
abstrato, geral e universal.
Nessa nova sociedade, a religião também muda, ela se desterritorializa, depende das
forças mercantis; ela passa a ser orientada a adaptar-se a situações inusitadas e a novas
demandas. Reage às suas concorrentes lançando mão da propaganda e dos meios
eletrônicos de comunicação, simplificando sua linguagem em função de um limitado
número de "produtos" religiosos.
Fluxo de propriedades que se vendem, fluxo de dinheiro que
escorre, fluxo de produção e de meios de produção que se
preparam na sombra, fluxo de trabalhadores que se
desterritorializam: será preciso o encontro de todos esses fluxos
decodificados, sua conjunção, suareação uns sobre os outros (...)
para que o capitalismo nasça. (DELEUZE, F. & GUATTARI, F.
1976:283)
Uma das coisas mais surpreendentes nessa nova dinâmica da religião é a facilidade que
qualquer um tem de mudar de uma para outra sem problemas de consciência e de
constrangimento. Estamos na era da religião do mercado sem fronteiras; ela se espalha e
se fragmenta, não se sabe mais de onde veio; refaz-se a cada demanda; avança nos
espaços e lança-se no mercado. A religião explode, se pluraliza, e por isso se sujeita à
lei da concorrência; como mercadoria, é vendida a um conjunto de “clientes” que não se
sentem mais obrigados a consumi-la.
O pluralismo religioso possibilita que o mercado concorrencial seja abastecido com uma
variedade de ofertas religiosas (terapia corporal, mental e afetiva; cultos de reposição de
energia; crença no poder dos cristais e de tantas outras formas de espiritualidades ou de
forças e energias), onde o melhor produto é aquele que cada adepto elege e consome
como tal.
A religião passa a interessar somente no sentido de seu alcance individual; aos poucos
ela vai se re-territorializando na esfera do indivíduo e deste para a dinâmica das relações
de consumo, vendo-se obrigada, agora, a ser regulada pelas regras do mercado.
Esse texto apóia-se no fato de que as relações sociais no mundo são diversas e plurais.
Por quê? Porque, no passado, deu-se uma ruptura religiosa com o mundo medieval, o
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qual tinha como centro a teologia cristã, que, a partir de uma única interpretação da vida
e das relações sociais, comandava a estrutura social. A ruptura dessa centralização
recebeu o nome de modernidade, sendo esta um fenômeno histórico complexo e de
longa duração. Sua descrição e análise não cabem aqui, mas é possível mencionar como
o campo religioso foi transformado.
A modernidade representou para o mundo ocidental uma verdadeira revolução na
maneira da pessoa perceber-se diante do mundo, de sentir, de amar, de relacionar-se e
organizar as suas relações sociais. No decorrer dos quatro séculos seguintes, a religião
perderia sua hegemonia na sociedade, seja na esfera política seja na social, cultural e
econômica. A religião perdeu sua posição central no âmbito público, no sentido em que
se estabelecia como princípio ordenador da tradição e da cultura, para ser reduzida à
esfera privada. Longe da religião ser banida do âmbito público, ela parece ter ganho um
revigoramento, um re-encantamento do religioso e do mágico, com o ressurgir de
movimentos religiosos que trazem novas formas de expressão, inquietações e
preocupações, incorporando ou rejeitando a nova fase do capitalismo. Além de qualquer
coisa, escolher passou a significar a oportunidade de exercer a liberdade de poder optar
entre diversas alternativas, pressupondo liberdade também na oferta.
A escolha da própria religião será, então, orientada por critérios diferentes da tradição e
da cultura, como o conforto, o bem-estar e a conveniência. Assim, vê-se que a religião
não é mais, nos dias de hoje, uma imposição social nem uma herança cultural. Isso
acontece mesmo nos povos latino-americanos, nos quais a religião continua sendo um
dado importante, mas não definitivo, sobretudo nos grandes centros urbanos. Merece ser
destacado que, se o indivíduo moderno tem a oportunidade de escolher sua religião,
pode também escolher não ter religião nenhuma, ou ter uma religiosidade fora de um
sistema oficial de religião (Igreja).
O século XX caracterizou-se pela sua radicalidade nos processos iniciados na
modernidade. A opção pessoal, valor fundamental defendido pelo individualismo
liberal,
...para evitar que todos os homens invadam os direitos dos outros e
que mutuamente se molestem (...) coloca-se, naquele estado, a
execução da lei da natureza nas mãos de todos os homens, por meio
da qual qualquer um tem o direito de castigar os transgressores
dessa lei numa medida tal que possa impedir sua violação...
(MELLO, 1995:91)
... manifestou-se na sua máxima expressão ao transformar o fiel em consumidor. Ser
fiel, de qualquer denominação religiosa, teria como princípio estar ligado a uma série de
valores éticos, acreditar no sentido da vida, da felicidade, do além, na explicação última
da existência humana, etc.. No mercado religioso, ao ser o fiel transformado em
consumidor de bens religiosos, deixa de ser um crente ou fiel de uma instituição e de
seus princípios, para se transformar num mero consumidor da religião, satisfazendo suas
necessidades pessoais do tipo emocional, existencial ou econômica.
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Uma característica marcante do novo milênio é que as pessoas podem encontrar
diversas formas de dar sentido a sua vida, sacralizando o que anteriormente era tido
como profano, como a ciência, a tecnologia, a ideologia.
Assim, o indivíduo moderno encontra um sentido existencial no consumo e na
racionalidade. Ele, porém, se coloca também na opção de não ter um sentido religioso.
Opção essa chamada, convencionalmente, de ateísmo.
Junto a tudo isso, os símbolos que são retirados das diversas religiões não levam em
conta os contextos sociais e históricos, consequentemente, há um processo acelerado de
descontextualização das referências sagradas, portanto, a sua banalização. Por exemplo,
como poderia ser definida uma reunião, realizada num bairro de classe média
deSalvador, que começa com mantras hindus, continua com reflexões de auto-ajuda e
termina com orações, tudo num clima ambientado entre símbolos do Candomblé?
Se, por um lado, observa-se a emergência de grupos religiosos sem referência
institucional, realizando misturas diversas, de outro lado, vê-se a existência de grupos
que radicalizam sua pertença religiosa, autoproclamando-se defensores da ortodoxia da
suas doutrinas e dos seus rituais simbólicos, ou seja, fundamentalismo. 27
O olhar fundamentalista é unívoco, unidirecional e unidimensional. Os fundamentalistas
não aceitam, por princípio, aquilo que seja diferente daquilo que eles compreendem
como verdade, estando relacionadosàs correntes de pensamento conservadoras, nas
quais seus membros são invariavelmente reacionários. Sintetizando os elementos
constitutivos do fundamentalismo religioso, pode-se resumi-los em três.
O primeiro diz respeito aos princípios universais exclusivos sobre o bem e o mal, que se
tornam referência absoluta na concepção de mundo de seus adeptos. O segundo é a
moral religiosa que perpassa a vida cotidiana de seus fiéis, sendo o parâmetro que
permite ter um instrumento de controle social, tanto de corpos quanto de consciências,
por parte de grupos e estados que sustentam o poder. O terceiro é ter uma única fonte de
interpretação do livro sagrado, o qual contém leis e princípios divinos.
Soma-se a isso a relação do mundo moderno com a religião, que é mediada pelos meios
de comunicação, criando uma cultura alicerçada no espetáculo e no simulacro. Assim, a
experiência religiosa é submetida também à exigência de novidade, gerando crentes que
procuram a religião só para consumir. Na procura de satisfazer suas necessidades,
curiosidades e desejos de experimentar algo novo, tornam-se consumidores religiosos
neste grande mercado dos sentidos que virou a religião.
Este grande mercado, regido pela lógica mercadológica sob a qual a esfera da
religião opera, produz, entre outras coisas, o aumento da importância das necessidades e
desejos das pessoas na definição dos modelos de práticas e discursos religiosos a serem
oferecidos no mercado, ao mesmo tempo em que demanda das organizações religiosas
27
N. do Autor:A atitude fundamentalista caracteriza-se por desenvolver um modo autoritário e
intolerante, impondo-se compulsivamente e não admitindo o diálogo.
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maior flexibilidade em termos de mudança de seus "produtos" no sentido de adequá-los
da melhor maneira possível para a satisfação da demanda religiosa dos indivíduos.
No contexto de pluralismo acentuado em que se vive, passou o tempo em que as
instituições religiosas podiam propor à sociedade um conjunto de exigências relativas à
fé e aos comportamentos, esperando uma aceitação social imediata. Nas sociedades
contemporâneas, onde os indivíduos são crescentemente orientados para decidir
livremente a respeito de que modelo de religiosidade (quando escolhem um) vão adotar,
o que as organizações religiosas oferecem tem que ser atrativo para os potenciais
consumidores. Assim, o ethos28do consumo, que prevalece em termos de sociedade
inclusiva, e o pluralismo do campo religioso, são elementos fundamentais para entender
como a lógica mercadológica determina a dinâmica de transformações dos modelos de
religiosidade.
O que está em jogo, quando as hierarquias das instituições religiosas abrem espaço para
que prevaleça um determinado modelo de religiosidade, em detrimento de outro(s), é a
eficácia do conjunto de significados e de visões do mundo que são oferecidos à massa
de fiéis atuais e potenciais. Assim, as modificações introduzidas em termos de
discursos e práticas religiosas se constituem num esforço no sentido de tornar, a cada
momento, o produtoreligioso oferecido mais eficiente (em termos de eficácia
simbólica), em atender as necessidades religiosas dos fiéis.
2 .MEIO DA CONVERSA
Assim chegamos à questão do pluralismo religioso de nosso tempo,que faz parte de um
contexto mais amplo que a esfera religiosa. Para entendê-lo e abordá-lo como enfoque
teológico atual é necessário verificar suas raízes histórico-filosóficas e o contexto social
e ideológico de onde emerge. O religioso da contemporaneidade é definido pela
categoria “pluralismo”. Para compreender como religioso atual se manifesta, faz-se
necessário uma reflexão primeira sobre esta categoria (ABBAGNANO, 1999:765).
O pluralismo é característico ou aspecto fundamental da pós-modernidade, sendo
inclusive, uma condição existencial do ser humano, existimos em uma realidade
múltipla e complexa de cores, diversidades e dimensões que constituem a própria
natureza de um modo geral. Ser humano é existir numa multiplicidade de
possibilidades, dimensões e visões da realidade.
Neste contexto emergem as diversas formas de pluralismos: o pluralismo como parte da
economia e da política, pluralismos que reivindicam liberdade nos diversos campos da
sociedade, da ciência e da ética. O pluralismo tambémpassa a ser constitutivo da
28
N. do autor: É um termo genérico que designa o caráter cultural e social de um grupo ou sociedade.
Designa uma espécie de síntese dos costumes de um povo.É a totalidade dos traços característicos pelos
quais um grupo se individualiza e se diferencia dos outros.Ethos pode assim incluir temas culturais,
padrões culturais e valores. Quando desejarmos nos referir ao conjunto de valores tradicionalistas
gaúchos, às atitudes próprias e características do gaúcho, ao seu modo de ser e agir, podemos
simplesmente dizer: Este é o ethosgaúcho!
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reflexão teológica29, gerando uma diversidade de teologias, modelos, métodos e
linguagens.
Os novos movimentos religiosos mostram que tanto a modernidade como a pósmodernidade, não eliminaram a religião, mas produziram transformações notáveis em
suas expressões. Estes novos movimentos religiosos são evidência da incapacidade de
resposta das religiões estabelecidas, fortemente burocrático-oficializadas. Os elementos
característicos e enfáticos dos novos movimentos religiosos são um paliativo para a
insegurança causada nas pessoas pela fragmentação da realidade, pelas rupturas das
formas tradicionais de convivência que gera massificação e anonimato. Neste contexto,
nasce o temor de perder a própria identidade, faz nascer grupos sectários, de identidade
forte que promovem relações estreitas e calorosas entre seus membros e buscam assim
remédio à ruptura das formas tradicionais de vida e da marginalização social. Estes
elementos que caracterizam esses grupos ou novos movimentos estão presentes tanto
dentro do contexto cristão como de outras expressões religiosas. No contexto cristão
principalmente com o avanço neopentecostal, a experiência de conversão “novo
nascimento”, leva o indivíduo a adquirir um senso de pertença, se estabelece novos
relacionamentos, integrando a pessoa num círculo mais amplo de amizade. Quanto
menor o grupo mais o indivíduo sentirá a força aglutinadora da comunidade.(HORTAL,
1993)
Com o fim da religião institucional ou institucionalizada, como falar de Deus? Como
transmitir a fé sem religião? O problema da religião antes era lidar com as carências
humanas (o sentido da morte). Hoje a religião tem que lidar com a onipotência do
sistema neoliberal, a cultura ocidental globalizada da onipotência. A religião antes era
uma resposta para o caos, a religião colocava ordem. A religião hoje é uma resposta
situada a necessidade imediata. Os maispobres querem respostas imediatas às suas
carências materiais/financeiras, os mais ricos querem respostas imediatas para suas
banalidades. Religião é para dar respostas a problemas. Religião não é certeza de
mundo, mas a forma de controlar as incertezas.
A visão pluralista traz uma nova compreensão de unidade religiosa. Pluralidade não
deve ser confundida com formas de sincretismo que combine as diferenças históricas e
culturais das religiões para que seu centro comum possa ser institucionalizado. Ainda
mais, não é uma forma dissimulada de “imperialismo religioso” que acredita haver uma
religião que tenha o poder de purificar e depois absorver todas as outras. De modo geral,
não é tolerância raquítica que convoca as religiões para um reconhecimento de sua
validade única, ignorando-se mutuamente e continuando cada uma seu caminho de autorealização e auto-satisfação.
Pluralismo religioso é uma forma de colaboração e cooperação entre as religiões e
tradições religiosas. Isto exige uma atitude respeitosa do outro, decisão de aprender do
outro e com o outro através do diálogo. É uma busca de construir uma comunidade feita
de comunidades, com suas diferenças de expressão religiosa. O esforço de um
pluralismo ”unidade na diversidade” parece ser imperativo no mundo em que vivemos.
No contexto do pluralismo das religiões, nenhuma religião pode pretender uma posição
privilegiada de se auto-proclamar como exclusiva e absoluta. Ao contrário, é chamada a
29
Sobre o pluralismo teológico ver(GEFFRÉ, 1992: 91-110).
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ver-se em um contexto pluralístico como um dos tantos ramos da vida religiosa através
do qual, os seres humanos podem ser salvificamente relacionados com esta Realidade
Última. Frente a pluralidade de religiões, são várias as atitudes que se tomam, de um
modo geral se fala de três posições: exclusivismo, inclusivismo e pluralismo.
(LIBÂNIO, 2000:413-431)
Pluralismo religioso, neste caso, não é uma teoria geral meta-religiosa de interrelacionamento das tradições religiosas. É aceitação da realidade de outras comunidades
religiosas, de aceitar sua coexistência com elas e, de continuar sua tarefa missionária
como igreja com métodos adaptados às circunstâncias.
PARA NÃO CONCLUIR A CONVERSA
Os rumos que a humanidade no mundo contemporâneo está tomando, exigem
acompanhamento e discernimento. A teologia tem como uma de suas tantas tarefas
neste tempo, discernir os sinais dos tempos e os sinais do Espírito que sopra onde quer e
conduz os rumos da Igreja. Pluralidade de fato e de princípio é um elemento
constitutivo da realidade atual. Para uns, este é um momento de crise, de insegurança
das bases legitimadoras das estruturas inadequadas ao pluralismo. Para outros, um
momento de graça e oportunidade de sanar diferenças, recriar laços e enriquecer pontos
de vistas fechados. Este novo enfoque não prescinde, nem relativiza a tradição da Igreja,
mas a inclui como elemento de base para sua construção. Não existe pluralismo de
princípio sem uma autêntica e legitima identidade própria.
Num contexto de globalização, de individualismo crescente, de multiplicidade de
opções e, por fim, de pluralismo religioso, escolher uma religião pode caracterizar cada
vez mais um rompimento com o passado religioso familiar. Tais rupturas biográficas
podem "resultar num rompimento mais geral com o passado histórico do Brasil como
'nação católica'”. Nessa perspectiva, a religião de origem representa para a sociologia da
religião um objeto de análise menos instigante e menos rentável analiticamente do que a
religião de escolha. Nesse sentido, Hans Kung diz:
Apesar de todas as diferenças de crença, de doutrina, e de ritos,
também podemos perceber semelhanças, convergências e
concordâncias. Não só porque em todas as culturas os homens se
confrontam com as mesmas grandes questões – as questões
primordiais sobre a origem e sobre o destino: o ´de onde´ e o
´para onde´ do mundo e do homem; sobre como superar o
sofrimento e a culpa; sobre os padrões do viver e do agir; sobre
o sentido da vida e da morte -, mas também porque nas
diferentes culturas muitas vezes os homens obtêm de suas
religiões respostas semelhantes. Na verdade, todas as religiões
são também mensagem e caminho de salvação. Afinal de contas,
todas elas transmitem, por meio da fé, uma visão da vida, uma
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atitude perante a vida, e uma norma para o bem-viver.(KÜNG,
2004:16)
As sociedades se apresentam atualmentecom um campo religioso profundamente
transformado e reordenado, ondediferentes formas de expressão religiosa (institucionais
e não-institucionais,tradicionais e novas, permanentes e efêmeras, fundamentalistas
eperformáticas, sectárias e ecumênicas) convivem no contexto de umpluralismo que
parece não colocar limites à diversidade.
O nosso textopropôsproblematizar a dinâmica deste campo religioso na
modernidadeconsiderando a diversidade religiosa e a secularização como dois
processoshistoricamente associados. Procurou-se reconhecer a importância da análiseda
experiência religiosa na sociedade contemporânea como um elemento vitalnos
processos de interpretação dos fatos sociais.
Com certeza não realizamos uma análise do pluralismo religioso emsua complexidade
pós-moderna, onde se entrelaçam elementos de tradiçõesmilenares e contemporâneas
com filosofias e “verdades” produzidas pela reflexãohumana e a elaboração científica.
Nosso objetivo foi, desde o início,bem mais modesto. Pretendíamos mostrar que o
campo religioso atualestá num processo ativo de produção de significados e de
recomposição desuas forças internas. Longe de se apresentar como uma sobrevivência
do passado, ou um movimento secundário em relação às tendências dominantes
deorientação e determinação do processo histórico, asexperiências religiosas hoje se
apresentam como importantes instâncias deprodução de narrativas sociais, nas quais os
indivíduos e grupos sociais inscrevemsua ação.
Reconhecer a atualidade e importância da experiência religiosa nasociedade
contemporânea não significa, no entanto, que estejamos propondouma volta ao passado,
mas apenas buscamos chamar a atenção para dimensõesconstitutivas da religião como
um elemento vital nos processos de interpretaçãodos fatos sociais e de fazer e refazer
identidades coletivas. Ao invésde pensar tradição e modernidade como um contraste
binário, preferimosapontar para as possibilidades de arranjos entre elementos de
diferentes origens,vivenciados em experiências pessoais e coletivas que ultrapassam
apossibilidade do controle das instituições religiosas.
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PROTESTANTISMO BRASILEIRO E O REGIME MILITAR NO BRASIL
João Marcos Santos – UFCG ([email protected])
Resumo
Nesta comunicação será discutido um documento intitulado A Igreja em face das
injunções políticas, produzido em resposta ao Manifesto dos Pastores Batistas,que se
destinavam a uma análise de conjuntura nos conturbados anos sessenta do século
passado. A partir desta análise se pretende colocar em perspectiva o discurso político do
protestantismo brasileiro. O documento, redigido pelo pastor João Soren e publicado no
órgão oficial das igrejas batistas no Brasil, tornou-se rapidamente um texto de referência
para os setores mais conservadores do protestantismo.
Introdução
Nesta comunicação se propõe a análise de um documento intitulado A Igreja em
face das injunções políticas publicado em O JORNAL BATISTA em 31 de maio de
1964. O documento é reacionário em sentido stricto e se constitui uma resposta ao
Manifesto dos Pastores Batista, publicado em setembro de 1963.
A conjuntura nacional no início dos anos sessenta é conhecida e sua marca mais
preeminente é o Golpe Militar de 31 de março de 1964.
O protestantismo construiu uma enunciação retórica forjadora da sua identidade
social como infenso às questões políticas, embora esta enunciação seja um falseamento
da realidade. O protestantismo brasileiro resulta do empreendimento de missões
estadunidenses, na quase totalidade, que se estabeleceram no Brasil na segunda metade
do século XIX, majoritariamente de caráter conservador e pietista. Sistema religioso
atípico na tradição histórica brasileira, o protestantismo teve sua sobrevivência
decorrente da proteção do Estado e este vincula não mais se desfaria na experiência
daquele grupo religioso.
Todavia, apesar da condição majoritária dos segmentos conservadores desde
cedo, na república, surgiu uma tendência progressista que não se alheiava das
discussões sobre a conjuntura política e social do país. Com baixo nível de
institucionalização, estes setores serão fortalecidos, a partir dos anos cinqüenta no
âmbito da Confederação Evangélica do Brasil, organizada em 1932, que em meados do
século criou o Setor de Responsabilidade Social da Igreja, que inicialmente voltou-se
para um modelo assistencialista, mas que progressivamente foi politizando seu discurso,
aproximando-se de tendências tidas como “de esquerda”.
A construção de um discurso político foi conquistando outros espaços dentro do
protestantismo, sem conseguir uma elaboração mais formal, e passou a ser visto com
entusiasmo pelos progressistas, com curiosidade pelo centro e com desconfiança pelos
conservadores.
Historicamente os batistas no Brasil, organizados na Convenção Batista
Brasileira, não optaram por estabelecer vínculos formais com a Confederação
Evangélica Brasileira, nem com aproximações com a ordem política. Seus ministros
estavam organizados na Ordem dos Ministros Batistas Brasileira.
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Todavia, a conjuntura referida dos anos sessenta se mostrava incisiva e não mais
podendo ser ignorada. Assim, durante a realização da Convenção Batista no ano de
1963, um expressivo grupo de ministros, aproveitando a realização do conclave, tomou
a iniciativa de publicar um Manifesto sobre a conjuntura política. A Convenção Batista
Brasileira não subscreveu o Manifesto, e seguiu-se um sem número de discussões
internas sobre o documento, marcadamente a favor das reformas de base propugnadas
pelo presidente João Goulart.
Os protestantes brasileiros, embora divididos em diversas denominações
religiosas, guardava certa simetria ideológica e teológica, de maneira que o documento
transcendeu os espaços da confissão batista, e as reações também. Os grupos mais
conservadores ficaram alarmados, pois não conheciam um discurso com tamanho grau
de politização nem seu formato tão explícito.
Implementado o Estado Militar a tendência do protestantismo foi
majoritariamente, mas não na totalidade, de apoio a ordem discricionária, já que suas
relações históricas com o estado e a retórica anticomunista se conformavam mais com
os postulados religiosos.
Neste contexto, o pastor João Filson Soren, pastor da poderosa 1ª Igreja Batista
do Rio de Janeiro, e um dos principais líderes da denominação batista, escreveu um
texto que destinou aos fiéis de sua comunidade e que chamou de Orientação Pastoral
para os membros da 1ª Igreja Batista do Rio de Janeiro. O documento teve ampla
repercussão, inclusive fora do universo batista, e ganhou sua legitimidade com a
publicação no órgão oficial da denominação, O JORNAL BATISTA, então sob velada
censura interna.
1.O Manifesto Batista
O documento se divide em uma introdução e seis seções: 1) incompetência
política da igreja, 2) pronunciamentos eclesiásticos de natureza política; 3) vinculação
da igreja a organizações e movimentos políticos; 4) penetração político partidário no
ambiente eclesiástico; 5) a igreja e os regimes políticos; e 6) uso tendencioso de
terminologia política e ideológica em assunto eclesiástico e teológico.
Com sumária remissão ao contexto nacional o documento é introduzido numa
concepção que permeia todo seu conteúdo: uma visão dualista da história. Para o autor a
realidade é cindida em duas esferas distintas, intransponíveis e irreconciliáveis
associadas a uma ordem sagrada ou religiosa e uma profana ou secular,
respectivamente. Na primeira o autor situa a natureza da igreja, cuja “missão e tarefa
são de qualidade precípua e essencialmente espiritual”. O essencialismo proposto
oferece ao argumento uma pretensa incontestabilidade, já derivativos históricos e
questões conjunturais não têm atributo ontológico para demandar da igreja nenhuma
ação que não se conforme ao que está posto na tradição como missão e tarefa, sob o
risco de colocar aqueles que contrariem a tese na condição de sectário, heterodoxo, se
não, infiel.
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Esta concepção e caracterização da igreja, como entidade atemporal tem um fim
específico de oferecer a igreja a condição necessária de enfrentamento da secularização.
Um dos mais graves perigos com o qual a igreja se tem
defrontado desde os primórdios de sua existência, é o perigo da
secularização. Esse perigo é tanto mais ameaçador por ser
insidioso. A tentação mais ardilosa que o Diabo armou no seu
empenho de derrubar o Senhor da Igreja, foi a tentativa de
envolvimento secularizador de Sua missão redentiva neste
mundo (SOREN, 1964, p. 1)
A secularização seria “o grande desvio doutrinário e a conseqüente deformação
institucional” vivida pelo cristianismo e estaria na base da igreja católica desde o
império de Constantino, em 313. Sem conexão com as origens históricas e com a
concepção sociológica de secularização, o autor quebra as conexões com as origens das
denominações modernas na reforma religiosa do século XVI.
Se acompanharmos Paul Tillich vamos lembrar que a Era moderna começou
com o renascimento e a reforma. O protestantismo emergiu no século XVI como
protesto contra o sistema hierárquico que se havia entreposto entre o homem e o
Sagrado, mediação de agências humanas. O humanismo situando a razão humana como
categoria final de arbitragem, indicava seu acento antropocêntrico, sofrendo restrições
por razões ligadas a tradição.
A liberdade eclesiástica foi substituída pela liberdade de consciência, destinada a
promover uma nova unidade às estruturas mentais, não apoiada num modelo
providencialista, e manifesta no laicismo radical da teologia do sacerdócio universal dos
cristãos. O fato é que o protestantismo, embora apelasse à consciência individual,
guiada pela escritura e nutrida na comunidade religiosa, dependia de um tipo de
harmonia automática constituinte.
Decorrendo desta aliança humanismo-protestantismo, o protestantismo apropriase progressivamente da teoria humanista da harmonia30. Esta apropriação viabilizou-se
pela resistência do humanismo ao mesmo conjunto de valores ao qual se opôs o
protestantismo.
O humanismo, que também recusou o mito das origens, introduziu uma nova
concepção que permitia ao homem se apropriar-se de uma “humanidade universal”
fundada num logos divino. Ao assim fazer criou um novo imperativo antropológico
relativo a liberdade do homem, que portador da razão e da verdade, estava destinado a
formular uma nova ordem para a sociedade, de base racional; que alcança sua forma
plena na substituição de “autoritarismo esclarecido” dos inícios, pelos mitos liberais e
sociais democratas.
Quanto a questão objetiva, estava posto que na percepção sensorial a natureza se
dava ao homem de tal maneira que surgiu um conhecimento natural adequado aos
propósitos do controle do mundo, e acreditava na livre expressão das forças criativas
humanas; na Cultura (a tolerância), na Economia (liberalismo), na Política
30 Crença em uma harmonia pre-estabelecida do cosmos, da psiquê e da sociedade que levaria ao
progresso inevitável, calcado na liberdade individual.
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(democracia); cujo resultado final era aquela sociedade racionalmente modelada.
Afirma então Tillich:
A era moderna com sua tremenda criatividade resultou da
reunião da fé protestante com a humanista; vieram daí as idéias
modernas de tolerância, da educação e da democracia; vieram
também daí a energia e os alvos da época da ‘livre empresa’. As
implicações práticas da teoria da harmonia natural tornam-se
especialmente claras quando se observa o contraste entre os
pressupostos sociais e metafísicos da era protestante-humanista
em comparação com os da época católica. O catolicismo sempre
dependeu da hierarquia supostamente baseada na hierarquia
ontológica do ser. Procurou fazer com que o sistema hierárquico
controlasse todas as esferas da sociedade. Nos países conte o
catolicismo dominou, como na Itália e na França, conseguiu
diminuir os focos de resistência dessas idéias. A era protestantehumanista tem dependido de uma certa harmonia oculta. Dessa
forma o protestantismo tem demonstrado maior cooperação e
harmonia com as esferas culturais autônomas do que o
catolicismo (TILLICH, 1992, p. 294).
Tenta o autor, então, conectar a contemporaneidade com a tradição, àquela à
qual estariam ligados os batistas. Sem nenhuma referência a outras tradições religiosas,
afirma os batistas como os que se “caracterizam na história como os paladinos da
liberdade religiosa”, após afirmar que:
A observância do chamado princípio da separação entre igreja e
estado, é um dos mais poderosos baluartes de defesa da igreja
contra o perigo da secularização. Citado princípio consiste, em
suma, de que são distintas as esferas de ação, estrutura e
finalidade, respectivamente, da igreja e do estado (SOREN, op.
cit., p. 1)
O argumento da introdução será concluído com a indicação das causas porque a
secularização contemporânea constitui-se ameaça á fé cristã. Com uma sutil
desqualificação dos seus oponentes, diz o autor:
O aspecto contemporâneo dessa luta tradicional dos batistas
apresenta algumas facetas novas em conseqüência da evolução
nos conceitos políticos e sociológicos. Há, entretanto, mais dois
fatores que concorrem para reascender essa luta. Um deles é a
pobreza da cultura teológica, de modo geral, que por sua vez
responde pela indefinição e insegurança das idéias e das
convicções. O doutrinamento dos cristãos, inclusive os
evangélicos, desta geração, falta resistência a erosão produzida
pela correnteza do pensamento secular. Outro fator, que também
é de fundo teológico, se prende a confusão muito encontradiça,
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entre os próprios crentes, sobre o que na realidade são a natureza
e missão da igreja de Jesus Cristo (Ib. p. 1).
À margem da realidade social, dois meses após o estabelecimento do estado de
exceção, enquanto a ditadura ensaiava seus primeiros passos e os confrontos ainda se
achavam na rua, o autor menciona, e apenas de passagem, este cenário como “outros
fatores”, que se verifica “em nossa pátria o interesse crescente por assuntos sociais e
políticos...”, que
apanhou alguns crentes, inclusive líderes evangélicos,
doutrinariamente desprevenidos, e que tomados de entusiasmos,
afoitos, embora bem intencionados, tendem a incidir em
confusões no que diz respeito às prerrogativas individuais dos
crentes, e as responsabilidades da igreja como tal (Ib. p. 1)(grifo
nosso)
1.1.Incompetência política da igreja
O argumento para esvaziar a ação política na tradição cristã, conforme o autor, e
que sem ingenuidade sabia que realizava um ato político, é feito por negação e
comparação. Ora se a missão e tarefa da igreja são precipuamente espirituais, todas
ações que tiverem este atributo reconhecido, são em si ilegítimos. Tomando a figura
teológica da igreja como Corpo de Cristo, afirma o autor que “não compete a igreja,
como Corpo de Cristo que é, qualquer prerrogativa em função política” (grifo nosso)
assim como “não compete a igreja a chamada função politizadora”, uma vez que
“compete isso aos órgãos políticos...”.
No mesmo texto autor remete ao papel do estado, como sendo a organização e a
tutela da sociedade política, e com base no seu postulado que igreja e estado são esferas
distintas, argumenta que, se não compete ao estado prerrogativas religiosas, isto reforça
sua teses que a igreja não age sobre o fenômeno político.
Conclui com a idéia conhecida que as relações do cristão com a política esgotase na esfera individual, espaço da vida social que sempre está a espera do “testemunho
fiel dos filhos da luz”, lançando a base do item subseqüente.
1.2.Pronunciamentos eclesiásticos de natureza política
Neste ponto fica mais evidente o caráter reacionário do documento, ante o
referido Manifesto no ano anterior, e “tais pronunciamentos constituem transgressão do
princípio de separação entre a igreja e o estado”. O autor opera a revelia do fato que as
instituições sociais são a memória institucionalizada das sociedades, e que se
estabelecem como respostas aos problemas concretamente vividos e se justificam na
medida em que preservam sua eficácia prática, mediando a relação com o mundo, e
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promovem a descrição das realidades institucionais, como base para os imperativos
axiológicos, e no caso, religiosos.
Interessa observar, que o autor aponta os políticos como origem das denuncias
da politização da religião, e o faz nos seguintes termos:
Verifica-se recentemente reclamações enérgicas de políticos
situados em várias partes da vida partidária no nosso país, contra
a ostensiva intervenção eclesiástica em assuntos políticos. E tais
protestos são de todo procedentes porque estas intervenções,
além de extemporâneas, criam coações irritantes. Diga-se
também, de passagem, que estas proclamações políticoeclesiásticas são praticamente destituídas de sentido doutrinário
e valor teológico. Valem elas, pelo prestígio político que têm, ou
imaginam possam vir a ter as entidades que fazem esses
pronunciamentos (Ib. p. 1).
Contraditoriamente, o autor parece reclamar a ausência de uma reflexão
teológica que dote de sentido as práticas, após afirmar que estas práticas não são de
competência religiosa.
1.3.Vinculação da igreja a organizações e movimentos políticos
Em seu afã restritivo, o autor esgota a possibilidade qualquer ação em cobeligerância. Considera como ilegítimo a associação “que se afinem com os ideais da
igreja e do Evangelho”, porque “perde em prestígio, tanto da parte a que se alia, como
também da parte divergente e politicamente adversa. E especifica:
Não deve a igreja formar, quer na “marcha dos camponeses”,
quer na “marcha com a família”. Trata-se de movimentos
políticos, cujas fileiras a igreja não deve engrossar. Outra, muito
outra, é a marcha da igreja de Jesus Cristo... em seu roteiro
divino (Ib. p. 1).
Nas duas seções o autor parece não levar em consideração a ausência do
hermetismo pretendido entre religião e política. A imbricação de fé religiosa e
comportamento político, para a qual chamava atenção Aline Coutrot (1996), de
dinâmica social e organização religiosa, também se reconhece se acompanhando Júlia
percebermos que “as mudanças religiosas só se explicam, se admitirmos que as
mudanças sociais produzem, nos fiéis modificações de idéias e de desejos que os
obrigam a modificar as diversas partes de seus sistema religioso.”(JÚLIA, 1988, p. 107)
para a conclusão que os processos sociais se impõem aos sistemas religiosos e estes
oferecem respostas àquelas demandas da sociedade.
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Assim, já não se ignora que as aspirações humanas e suas utopias são
engendradas, vitalizadas e mediadas em crenças, gerando a expectativa por uma forma
relacional com os demais indivíduos, inclusive no plano institucional, que se deve
consubstanciar na vida social, passando esta a conter a marca destas convicções
radicais.
A crença religiosa contém a necessidade de traduzir temporalmente seus
conteúdos, isto é, a incorporação na ordem temporal dos elementos que se expecta no
advento religioso.
A crença se traduz em sistemas religiosos contidos no corpo social. A agência
política31 se constitui em principal interlocutor da fé religiosa, na medida que provoca,
impõe e questiona o sujeito religioso para que ele ofereça uma formulação ao conteúdo
de suas convicções, que desenvolvem um arcabouço ético, que determina a relação do
sujeito com a sociedade política, quando reforça, interdita ou ajuíza a ordem e a prática
política.
1.4.Penetração político-partidário no ambiente eclesiástico
Para o autor, a militância religiosa, restrita a ação individual, não pode ser
levada para o ambiente religioso, nem para a instituição religiosa, pois significar
transpor para o ambiente sagrado as “tensões das refregas e competições seculares”,
atentatório ao que considera “dignidade” da igreja.
Soren levanta um argumento contraditório quando afirma que as atividades e
instituições políticas estão sob a tutela do direito positivo, e que se as igrejas passam a
militar politicamente se colocam sobre a possibilidade de que as agências estatais que
fiscalizam os órgãos políticos possam intervir sobre as igrejas. O que o autor não
menciona, é que as igrejas constituem-se entidades jurídicas e civis e já estão sob a
tutela, a fiscalização e o poder do estado. Citando exemplos que não indica, refere a
situações de intervenção estatal em agências religiosas, para concluir: “alegou-se
violência e defesa à liberdade religiosa, etc. Tais protestos, no entanto, pouco valeram.
O estado estava com a razão”, recomendando:
É necessário que nos acautelemos contra o perigo do
extravasamento de entusiasmos ou de paixões políticopartidárias e ideológicas em nossas igrejas, para que não
arrastemos para elas uma atuação comprometedora e vexatória
(SOREN, op.cit. p. 1).
1.5.A igreja e os regimes políticos
31Política entendida aqui no sentido stricto como forma de organizar a vida em sociedade.
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É tarefa bastante complexa a enunciação de um discurso político numa situação
de crise extrema, para um enunciador que não tem a política como seu objeto mais
freqüente de reflexão. O imediatismo compromete. Todavia, se a enunciação se dá ao
calor da hora, mas o discurso tem uma genética mais profunda.
“Se não cabe a vinculação da igreja em partidos políticos, não cabe jungi-la a
regimes de governo”. Assim abre o autor o tópico. Argumenta que parte do problema
está na dinâmica dos processos políticos. Se historicamente é possível que o direito
divino dos reis tenha se constituído em princípio indiscutível, hoje não mais, e se os
cenários mudam, portanto, não é prudente defender pressupostos que o tempo pode
desfazer. Muito menos, argumenta o autor, tentar fundamentar na Bíblia Sagrada
qualquer projeto político.
Em seguida ele informa que regime fundado sobre o materialismo é inaceitável,
dentro da lógica anticomunista do momento, adjetivo que não usa para “outros”, ainda
que não seja competência da igreja sancionar nenhum.
É fato que alguns regimes se assentam sobre princípios e
filosofias materialistas inaceitáveis para os cristãos. Isto não
quer dizer, entretanto, que outro regime político que não esse,
seja o regime sancionado ou aprovado pela igreja. Tal sanção
não é de competência da igreja (Ib. p. 6).
1.6.Uso tendencioso de terminologia política e ideológica em assunto eclesiástico e
teológico.
Na última seção o autor se estende mais e modifica a sua enunciação. Soren
toma seis assertivas que colhe de falas de terceiros, todas elas com conteúdo
contestatório e contrario a ordem que se instituíra no Brasil e passa a comentá-las uma a
uma na seguinte ordem: “a igreja é da esquerda”, “o cristianismo é por índole e por
natureza revolucionário”, “o evangelho é subversivo”, “cumpre a igreja defender as
instituições e a legalidade”, “a igreja não pode se acomodar e silenciar diante das
iniqüidades e injustiças deste século”, e “a igreja precisa estar integrada com o povo
porque a religião é expressão da alma do povo”.
O autor relata que a primeira sentença causou confusão e escândalos aos
ouvintes, e responde que a igreja não pode ser de direita ou esquerda porque seu
referente é a verdade, ficando evidente que esta concepção de verdade é excludente, e
remetem aos elementos de crença do autor.
Informa que a segunda assertiva só pode ser admitida em sentido “espiritual”,
pois o sentido secular da expressão revolução é contraditório com o cristianismo,
enquanto “religião da paz, do amor, da fraternidade, da irmanação”, e que o próprio
Jesus recusou reiteradamente o status de chefe revolucionário em seu tempo.
Responde ao terceiro dito afirmando que subversivo é o pecado e não o
evangelho como se pode inferir dos seus efeitos sobre o indivíduo, e que não é possível
encontrar no cristianismo verdadeiro nada que se assemelhe a um “programa
subversivo”.
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Para a quarta afirmação ele reitera que não é matéria de compet~encia da igreja,
e que para a garantia da legalidade “dispõe o estado das Forças Armadas e da polícia,
sem a observância de que, no caso, esta o estado o ente político a produzir a quebra da
ordem.
Estende-se mais neste ponto da exigência do enfrentamento pela igreja das
injustiças do século, apontando seu vínculo com o programa de governo Goulart, e
afirma que a igreja sempre enfrentou o mal
O que o escritor pretendia, porém, é que a igreja fizesse coro com as
vozes políticas que defende determinada fórmula (reforma de base)
para combater tais injustiças. As autênticas igrejas de Jesus Cristo
sempre combateram o mal e a iniqüidade. São elas as vozes mais
antigas e mais poderosas nesse combate. Mas também as autênticas
igrejas de Jesus Cristo não se apóiam em messianismos políticos,
sociais e econômicos do século para o cumprimento de sua missão
profética (Ib. p. 6).
Finalmente argumenta que apenas em sentido figurado a religião é a alma de um
povo, e recusa o conteúdo “ultra-humanista” da formulação, declarando que toda
humanidade se encontra ante a impossibilidade moral de opera positivamente, devido a
sua natureza pecaminosa.
Conclusões
Segundo tese conhecida de Élter Maciel (1972) o pietismo foi a ideologia que
impulsionou o movimento missionário e tornou-se a ideologia da Igreja no Brasil, não
estabelecendo diferenças teológicas profundas. O pensamento do protestantismo
brasileiro, então, é aquele afeito a uma religião do indivíduo, vida interior, iluminação
(oração), experiência de salvação, e subjetividade.
O sectarismo perfeccionista, o literalismo na interpretação bíblica; a
identificação mundo-provação e a depreciação pela vida social colocaram seu acento na
dicotomia mundo-igreja, e numa a religiosidade ética, não teológica e não social. O
efeito mais evidente deste individualismo é restringir a relação Deus-mundo, a Deusalma, e pela salvação de sua alma o abdica dos interesses sociais como coisas
“mundanas”.
Quando a pastora de Sorem ganhou a publicidade que a sua imprensa religiosa
lhe outorgou, sua fala se tornou paradigmática na conduta protestante ante o golpe
militar, abraçando uma postura quietista, devota e mistificada em sua subjetividade
Paradoxalmente na reprodução do modelo de religião civil americana, o
protestantismo brasileiro majoritariamente aprofundou o abismo entre si e a sociedade
durante sua história numa reação defensiva ao meio sócio-cultural do país.
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Atribuindo a sociedade elementos de corrupção religiosa, pessoal, e social, não
interessa a simbiose religião-sociedade. Na medida em fosse possível modificar este
padrão, com a adesão crescente ao protestantismo e a rejeição conseqüente ao
catolicismo, os “fieis filhos da luz” poderiam pensar na interação, porque o substrato
axiológico a viger seria o da religião protestante através das estratégias conversionistas.
O protestantismo brasileiro foi então marcado historicamente pelas formulações
legalistas oposta aos demais segmentos do corpo social, ficando em questionamento
constante em relação a ética individual na qual está envolto “ética individualista ...em
última análise, vinculada a ideologia do individualismo burguês" (MACIEL, 1972; l47).
A atitude da Igreja em relação a todo o conjunto de práticas sociais, é
principalmente, entregar-lhe uma doutrina moral. O protestantismo não vê a estrutura
como produzida por forças humanas, e "não pensa em mudança da estrutura e sim no
aperfeiçoamento desta... e obter um comportamento justo nas normas estruturais"
(LEONARD, 1981, p. 144) A postura protestante termina por torná-lo um aperfeiçoador
da ordem na medida em que fornece os instrumentos de pensamento que a reforçam.
Foi através do pietismo que o protestantismo ocultou as contradições sociais e
foi eficiente na forma de construir no plano do imaginário um discurso relativamente
coerente que produziu toda uma prática política marcada pelo interesse autoreferenciado e pelo apoliticismo.
É preciso lembrar, seguindo Berger (1985), que a construção do mundo visa a
dar coerência às experiências do homem em suas relações com a natureza e a sociedade.
Uma vez constituída, a visão de mundo se internaliza na sociedade. Os efeitos da
internalização, serão mais evidentes no comportamento, ou seja, na ética.
A religião não pode deixar de ser vista como expressões humanas que visam a
dar sentido à vida e às suas experiências em termos de absoluto e transcendência.
Implica na tendência para absolutizar as realidades contingentes, onde o sagrado adquire
e conseqüentemente sustenta a objetivação da realidade.
Na esfera específica de participação política, a atitude característica será a
neutralidade, que torna-se auxiliar da ordem e aperfeiçoadora de instituições. Por isso o
protestantismo limitava suas ações políticas àquelas que não colocassem em questão a
estratificação social e que fossem permitidas pelas autoridades. A luta protestante foi
toda voltada contra a Igreja Católica e não uma procura de solução para os problemas da
sociedade. Lutaram por liberdade de culto, após o que se tornaram mais prontos a
reforçar os poderes constituídos. Vencidos os abusos da Igreja Católica o protestantismo
não continuará sua luta por reformas constitucionais.
A formulação liberal da liberdade individual completa-se com a salvação
individual. A sociedade se reforma reformando o indivíduo, fornece a base da
neutralidade recomendada. A ação é proselitista para converter o país, o que pressupõe
uma hermenêutica que não coloca em dúvida a estrutura da sociedade.
Conhecida estas caracterizações é possível inferir porque o discurso de Soren foi
acolhido por este protestantismo majoritariamente conservador. Como temos indicado,
o seu caráter era reacionária porque crescentes segmentos do protestantismo voltavamVII CONGRESSO INTERNACIONAL EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO: A RELIGIÃO ENTRE O ESPETÁCULO E A INTIMIDADE – PROGRAMA
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se para a contestação da ordem político, sendo estes setores protestantes os que foram
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RELIGIÃO E POLÍTICA: APONTAMENTOS SOBRE A ATUAÇÃO DE
RELIGIOSOS NA POLÍTICA BRASILEIRA
Rodrigo Camilo – UFG ([email protected])
Resumo
A presente comunicação tem o intuito de analisar a atuação de religiosos no campo
político brasileiro. A instituição de uma Frente Parlamentar Evangélica no Congresso
Brasileiro e sua atuação – muitas vezes conservadora – gera críticas não só dos
adversários políticos dos evangélicos como de setores da sociedade que pregam a
laicidade do Estado Brasileiro e a não atuação de religiosos na política. Este trabalho irá
abordar a atuação de religiosos envolvidos com a Teologia da Libertação que durante o
Regime Militar no Brasil teve papel atuante na contestação desse regime para defender
a tese de que, com o processo de contenção da Teologia da Libertação realizado pelo
Vaticano, e o gradual distanciamento dos religiosos com a política – especialmente a
partidária −, a presença de religiosos na política ganhou destaque com o fortalecimento
dos evangélicos da política brasileira, presença essa que vem gerando polêmica em
diversos segmentos da sociedade de nosso país.
Introdução
A atuação de religiosos na história da política brasileira sempre foi constante e
imbuída de grande peso nas questões mais delicadas e salientes da sociedade brasileira.
Desde a denominada pelos historiadores “questão religiosa”, quando em virtude das
relações de Dom Pedro II com a maçonaria e os conflitos com a Igreja Católica que
desgastaram sua imagem, passando pelos movimentos messiânicos que ajudaram a
convulsionar a política brasileira durante a Primeira República e até durante a Era
Vargas quando os líderes católicos conseguiram impor a obrigatoriedade do ensino
religioso e vetar o divórcio, a influência da religião sobre as questões políticas aqui no
Brasil é determinante.
Neste artigo que embasa nossa comunicação, pretendemos focar a história mais
recente da relação entre religião e política: vamos fazer comentários sobre o
envolvimento de religiosos ligados à Teologia da Libertação durante o período da
Ditadura Militar no Brasil (1964-1985) e a atual ação dos religiosos da Frente
Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional. O objetivo será, pois, adentrar no
debate sobre a pertinência da atuação de religiosos e traçar um paralelo entre esses
modelos de se fazer política para podermos fundamentar nossa opinião de que os
religiosos – como qualquer segmento da sociedade – possui direito de participar dos
principais debates acerca da política brasileira, mas que, em virtude de seu peso
histórico e social, devem estar pautados por uma linha de ação bem definida e
comprometida com a realidade social brasileira.
Ditadura e política: a TL e a oposição ao regime
Com o endurecimento do regime militar a partir do governo Costa e Silva em
1966 e o aumento dos oficiais “linha dura” no exército, surgiu um conflito entre a ideia
de justiça social da Igreja e de subversão do Estado militar brasileiro. Por um lado, na
visão dos militares, os religiosos não entendiam o momento que o Brasil estava
vivendo, com a influência de comunistas no país e, com isso, prejudicava o
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desenvolvimento do país. Por outro lado, a situação política e econômica brasileira era
responsabilizada pelos religiosos mais atuantes como a causa da pobreza e miséria de
boa parte da população, fato que os governos militares não conseguiam solucionar.
Assim, os religiosos partiam em defesa dos oprimidos, o que faziam dos religiosos
subversivos e alvos de repressão por parte dos militares, situação que dava mais
determinação à ação dos religiosos, criando um espiral de desentendimentos que explica
as tensões entre Estado-Igreja no Brasil.
Foi nesse contexto que ganhou força o movimento da Teologia da Libertação,
especialmente a partir da década de 1970. Partimos da tese de que o fortalecimento da
TL nesse período foi uma confluência de fatores internos e externos relativos à Igreja
Católica; dos fatores internos podemos destacar, entre outros a reorganização pela qual
a Igreja dos católicos passou a partir da década de 1960, com a realização do Concílio
Vaticano II e a reunião do CELAM de 1968 em Medellín. O primeiro foi uma proposta
surgida no seio da IC para se abrir para a realidade do mundo, se aproximar dos seus
fiéis e um incentivo a uma ação pastoral mais direta. Já o encontro de bispos na
Colômbia foi uma tentativa de se pensar a Igreja no contexto de opressão da América
Latina e de quais seriam as prioridades de sua ação pastoral. Sobre esse contexto o
teólogo peruano Gustavo Gutiérrez opina:
O Vaticano II fala do subdesenvolvimento dos povos a partir
dos países desenvolvidos e em função do que estes podem e
devem fazer por aqueles; Medellín procura ver o problema
partindo dos países pobres; por isso os define como povos
submetidos a um novo tipo de colonialismo. O Vaticano II fala
de uma Igreja no mundo e descreve-a tendendo a suavizar
conflitos; Medellín comprova que o mundo em que a Igreja
latino-americana deve estar presente encontra-se em pleno
processo revolucionário. O Vaticano II dá as grandes linhas de
uma renovação da Igreja; Medellín dá a pauta para a
transformação da Igreja em função de sua presença em um
continente de miséria e injustiça (GUTIÉRREZ, 2000, p. 187).
Já os fatores externos dizem respeito ao contexto político latino- americano da
época pautado pela emergência dos regimes militares e sua opressão, bem como as lutas
sociais contra essa realidade. Motivados pelo novo contexto da Igreja e indignados com
a realidade social da América Latina, diversos religiosos assumiram a luta política como
sua bandeira, pois eles pensavam que os religiosos não poderiam se omitir em:
Um novo período histórico abria-se na América Latina,
caracterizado pela intensificação das lutas sociais, o
aparecimento dos movimentos guerrilheiros, uma sucessão de
golpes militares e uma crise de legitimidade do sistema político
(LÖWY, 2000, p. 70).
Foi assim que religiosos se insurgiram contra essa situação e atuaram com
firmeza em favor dos que eram oprimidos. Podemos para exemplificar essa atuação de
religiosos envolvidos com a Teologia da Libertação com o contexto político no exemplo
de Pedro Casaldáliga e as ações da Prelazia de São Félix do Araguaia durante o seu
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bispado (1971-2005). Em um contexto de instalação de grandes empresas agropecuárias
na região do nordeste mato-grossense incentivadas pelo projeto de desenvolvimento
econômicos pensado pelos militares, a atuação dos religiosos da Prelazia em favor dos
indígenas e dos posseiros violentamente afetados por essas grandes empresas foi
decisiva para reduzir o drama social que tomou conta daquela região.
O que houve foi que a atividade missionária causava grandes problemas à
tentativa das autoridades de impor a “ordem” na região. A conduta dos padres e a
teologia que abraçavam eram totalmente rechaçadas pelos defensores do sistema
implantado pelos militares no Brasil. Tarcísio Padilha, de uma família
ultraconservadora ligada aos militares no poder, ao criticar os elementos subversivos no
Brasil, criticava a “’teologia da violência’ e a ‘participação de religiosos em
movimentos subversivos’” (SERBIN, 2001, p.29). No nordeste do Mato Grosso,
aconteceu uma situação em que a ação do Estado e dos latifundiários contra os posseiros
causava a mobilização dos religiosos em favor destes contra aqueles. Essa defesa fazia
com que o Estado e as grandes empresas tratassem os religiosos como inimigos,
aumentando a desconfiança e o controle sobre eles.
Assim foi que em nível local, a atuação dos religiosos da Prelazia de São Félix
do Araguaia foi decisiva para poder organizar e defender a população que estava em
luta desigual contra a força do Estado militar que impunha seu plano de
desenvolvimento econômico para a região – utilizando frequentemente a força – e as
empresas agropecuárias e seus jagunços e advogados para defendê-las. Em nível
nacional, a atuação dos religiosos foi uma das causas que levaram ao fim o regime dos
militares com sua sistemática denúncia dos abusos dos direitos humanos que eram
cometidos e negociando para o abrandamento do regime. Indubitavelmente – em que
pese que a Ditadura foi um período atípico na história do Brasil – esse modelo de
atuação política se mostrou importante e saudável para as instituições democráticas de
nosso país.
O contexto atual: a emergência dos evangélicos na política
As perseguições sofridas pelos religiosos envolvidos com a Teologia da
Libertação devido às criticas por sua militância política foram intensas. Vários
religiosos foram afastados de sua posição dentro de sua Igreja, como o espanhol Jon
Sobrino em El Salvador e Leonardo Boff no Brasil, os quais sofreram por parte do
Vaticano um “silêncio obsequioso”, ou seja, sendo impedidos de se manifestarem
publicamente sobre assuntos da teologia católica.
O brasileiro, aliás, largou a batina em 1991 e tornou-se leigo. Contudo, essa
atitude não fez com que ele abandonasse seus preceitos políticos. Leonardo Boff
continuou a pensar como deveria ser a atuação da Teologia da Libertação no atual
momento político, econômico e cultural. Perdeu ênfase o caráter radical da política, com
a redução da atividade de religiosos em partidos políticos ou em grupos de esquerda
com a atuação pastoral tendo como foco novos atores sociais. Leonardo Boff a esse
respeito diz que:
Sem entrar em detalhes, surgiram várias tendências dentro da
mesma e única Teologia da Libertação: a feminista, a indígena,
a negra, a das religiões, a da cultura, a da história e da ecologia.
Logicamente, cada tendência se deu ao trabalho de conhecer de
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forma crítica e científica seu objeto, para poder retamente
avaliá-lo e atuar sobre ele de forma libertadora à luz da fé32
A volta da democracia, bandeira empunhada com muito empenho pelos
religiosos da Teologia da Libertação, paradoxalmente, não significou um envolvimento
efetivo com a política. Na verdade a tônica foi contrária, ou seja, um afastamento da
política partidária e a procura de novos palcos onde se fazer política.
Entretanto, a política realizada por partidos no Executivo, mas, essencialmente,
no Legislativo não ficou desprovido de pessoas envolvidas com a religião. Paul Freston
afirma que já nas primeiras eleições livre para um candidato civil à Presidência da
República em 1989 os evangélicos já se faziam notar. Ainda com o ranço do discurso
“marxista” do PT e com a visão de o então candidato Collor fosse mais “temente a
Deus”, os evangélicos, segundo cálculos de Freston, ofereceram mais de 4 milhões e
meio de voto ao candidato do PRN do que a Lula do PT. De acordo com Freston, isso
foi devido aos seguintes fatores:
1) Se apresentava como oposição ao governo Sarney; 2) Podia
ser plausivelmente representado como “temente a Deus”; e
3) explorava o tema da combate à corrupção, tema político
de cunho moral e, por isso, facilmente compreendido mesmo
pelo evangélico não-politizado33 (FRESTON, 2006, p. 96
A participação de religiosos pentecostais na religião não parou de crescer,
inclusive com a candidatura de um político declaradamente representante dos interesses
evangélicos, − o carioca Anthony Garotinho. Nos últimos 20 anos, pois, a presença de
religiosos pentecostais na política devido à polêmica de muitas de suas ações tem sido
alvo de diversas opiniões: alguns justificando-a, outros opondo-se completamente.
Antes de concluir com nossa opinião sobre o debate, se faz mister oferecer alguns
elementos sociológicos em relação à atuação de evangélicos na política brasileira.
O político evangélico uma vez sendo eleito a um cargo legislativo tem a
tendência de fortificar o seu comprometimento com suas bases eleitorais, resultando em
uma atuação conservadora nas questões tratadas e com uma defesa das igrejas com as
quais possuem vínculos. Paul Freston (2006 pp.11-2) constrói dois tipos de atuação dos
evangélicos na política: o institucional, com as determinações evangélicas apoiando a
entrada de seus religiosos no campo político-partidário (muitas vezes financeiramente
falando) para a defesa de seus interesses, como a Igreja Universal do Reino de Deus; há
também o tipo autogerado, quando um indivíduo considera-se em uma “missão dada por
Deus” seu envolvimento com a política, mas que, uma vez eleito, afasta-se dos
32
Declaração retirada do artigo de Leonardo Boff em seu blog denominado “Quarenta anos da
Teologia
da
Libertação”.
Disponível
em:
<http://leonardoboff.wordpress.com/2011/08/09/quarenta-anos-da-teologia-da-libertacao>.
Acesso em: 15 de agosto de 2012.
33
Vale sublinhar que Paul Freston destaca ainda que além desses motivos em favor de
Fernando Collor, houve também por parte dos evangélicos uma forte rejeição a Lula. Esse
rejeição se explica pelo fato de que o candidato do PT era visto como comprometido com o
marxismo ateu e também – de acordo com Freston – que à época dessa eleição correu um
boato de que Lula se aliaria com os católicos progressistas para “perseguirem” os
evangélicos.
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interesses sociais de seus eleitores e estabelece uma agenda que satisfaz apenas aos seus
próprios interesses.
Com a formação de uma bancada no Congresso representando os interesses dos
muitos evangélicos na política, o senso comum pode afirmar que eles atuam em uma
completa harmonia. Na realidade, as diferenças regionais, as ambições pessoais de cada
política e a concorrência entre as diversas denominações pentecostais fazem com que
não exista uma agenda uniforme entre esses políticas. Naturalmente, também seria
equivocado falar em desunião, visto que esses políticos conseguem muitas vezes se
unirem em temas que são de interesses comuns, como sobre a religião e, acima de tudo,
assuntos relativos à “moral humana”. Por conseguinte, quando se fala em legalização do
aborto, o casamento homoafetivo, entre outros, esses religiosos se agrupam para tratar
esse tema conforme suas concepções religiosas. O sociólogo Ricardo Mariano
contextualiza:
Nas duas últimas décadas, deputados e senadores pentecostais
dedicaram-se à defesa intransigente de seus interesses
corporativos e de uma moralidade cristã estrita. O que se
comprova com sua intervenção nas votações, nas políticas
públicas e nos debates legislativos relacionados às propostas de
descriminalização do aborto e do consumo de drogas, à união
civil de homossexuais, aos direitos humanos e sexuais, às
tecnologias reprodutivas, à clonagem humana, ao uso de células
embrionárias em pesquisas científicas, ao ensino religioso nas
escolas públicas, à reforma política (MARIANO, 2005).
Conclusão
A partir do exposto, a presença do pastor Marcos Feliciano à frente da Comissão
de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados não surpreende. Surpreende menos
ainda sua posição determinada contra a legalização do aborto ou sua aberta oposição a
políticas públicas que venham favorecer a parcela GLBT brasileira. Em recente
declaração ao Estado de São Paulo34, o Deputado João Campos (PSDB-GO), líder da
Frente Parlamentar Evangélica, espera um crescimento de 30% no número de políticos
para sua bancada nas próximas eleições. Ou seja, a tendência é que a atuação dos
evangélicos na política continue a gerar polêmicas e discussões.
O atual modelo de atuação de religiosos na política dá razão aos que dizem que
“o Brasil é um país laico e, assim, religiosos deveriam se abster da política”? Pensamos
que não. A atuação política de religiosos contrários à realidade imposta pela ditadura
dos militares mostra que a religião e sua grande influência35 que exerce no Brasil pode
contribuir com a democracia e a igualdade para a população. Em uma sociedade plural
como a nossa, todos os segmentos que a compõem devem ter garantidos e serem
estimulados para uma efetiva participação política, seja nas esferas oficiais da política,
seja na vida política cotidiana.
34
Reprodução disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,evangelicos-projetamaumento-de-30-da-bancada-na-eleicao-do-ano-que-vem,1112414,0.htm. Acesso em 13 de fevereiro de
2013.
35
De acordo com estatísticas do último Censo do IBGE, 8% dos brasileiros se declaram ateus
ou sem religião.
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A questão que se coloca é quais posições vão ser defendidas pelos religiosos na
política e não sua participação. Assim como a sociedade, os grupos religiosos no Brasil
são complexos e plurais – inclusive meio ás suas próprias instituições −, devendo estar a
população atenta às propostas e ideias defendidas por esses políticos. Paul Freston
ilustra nossa tese:
A questão não é mais se a igreja brasileira terá ou não uma
presença política; é a questão de como será essa presença. Está
na hora daqueles que não se conformam com a tendência
dominante (fisiológica, triunfalista e conservadora) agirem de
forma mais coordenada e ousada (FRESTON, 2006, pp. 107-8,
grifos do autor).
Freston, com essa declaração, pensa tendo como ênfase a realidade dos
pentecostais na política, mas podemos estender tal colocação aos diversos grupos
religiosos que tenham influência na sociedade e que vejam a política – especialmente a
partidária – como campo válido para a sua atuação. Afinal de contas, o atual cenário
político brasileiro, com todos os seus problemas, não deve ser restringido, mas sim
aberto àqueles que estejam dispostos a oxigenar o atual contexto e fortalecer a
democracia brasileira.
Referências Bibliográficas
BOFF, Leonardo. Teologia do cativeiro e da libertação. Petrópolis: Vozes, 1998
_______________. Ecologia, mundialização, espiritualidade. Rio de Janeiro: Record,
2008.
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação: perspectivas. São Paulo: Loyola,
2000.
MARIANO, Ricardo. Pentecostais e política no Brasil. Disponível em: <
http://www.comciencia.br/reportagens/2005/05/13_impr.shtml>. Acesso em: 18 de out
de 2012.
MARTINS, Edilson. Nós do Araguaia: Dom Pedro Casaldáliga, bispo da teimosia e
liberdade. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
SERBIN, Kenneth P. Diálogos na Sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na
ditadura. tradução: Carlos Eduardo de Lins da Silva. 1°ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
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RELIGIÃO, POLÍTICA E ESPAÇO: A DIFUSÃO DA FÉ ATRAVÉS DO
MASS MEDIA E AS ONLINE COMMUNITIES
Jefferson Oliveira - NEPEC/PEAGERC ([email protected])
Resumo
A partir dos anos 80, a geografia vem apresentando a dimensão espacial da religião em
seus múltiplos caminhos de análise desde a perspectiva da geografia cultural e da
geografia da religião. As relações entre religião, política e espaço serão privilegiadas em
nosso estudo. Este artigo situa-se na temática de interação entre o mundo material e
simbólico, compreendido pelas categorias geográficas de análise como: (i) difusão
espacial, (ii) escala e (iii) tempo. A seguir, três exemplos empíricos serão incorporados
ao estudo: (a) Atos de renúncia; (b) Igreja Católica o Mass Media e as Online
Communities: Difusão da fé na hipermodernidade e; (c) A Midiatização da fé através do
Mass Media e as Online Communities: o exemplo da Comunidade Católica Canção
Nova.
As relações entre religião, política e espaço manifestam-se de diferentes modos e suas
manifestações espaciais também o fazem. Há diferentes maneiras de conhecer as
relações entre religião, política e espaço. Na perspectiva da ciência geográfica, é
possível pensar essas relações a partir de alguns temas eminentemente geográficos. Isto
não implica abandonar temas especificamente associados à religião, mas, o contrário:
incorporá-los às temáticas geográficas, na crença de que a espacialidade - que define o
olhar da geografia - se faz presente em toda a ação humana. Os temas geográficos a
serem considerados são: (i) difusão espacial, (ii) escala, (iii) tempo (ROSENDAHL,
2012).
Completando nossa análise, apresentamos de maneira breve três exemplos de
manifestações espaciais: o primeiro visa a realçar estratégias em escala mundial; (a)
Atos de Renúncia; (b) o segundo retrata a estrutura de difusão em redes de informações
– mass media e online communities e, por sua vez, (c) a Comunidade Católica Canção
Nova em sua midiatização da fé. A intenção é analisar, neste artigo, os exemplos da
dimensão política nas relações sociais que colocam em jogo os efeitos de poder.
Enfatizando os estudos da experiência da fé na pesquisa geográfica, apresentam-se os
temas selecionados:
(i)
difusão espacial:
A teoria da difusão espacial é extremamente útil para se analisar as relações
entre política, religião e espaço, especialmente ao considerar uma religião que foi
implantada de fora para dentro, em um amplo território cuja ocupação foi lenta,
conforme exemplificado pela ação da Igreja Católica no território brasileiro iniciada em
1500. A teoria da difusão, objeto de longos debates nas décadas de 1960 – 1970 deve
ser considerada em sua formulação mais geral. Segundo isto, processos e formas
originam-se em um ou mais focos iniciais e se espraiam no tempo e no espaço, seguindo
caminhos intencionados e possíveis. Difusão por contiguidade, por via hierárquica, por
meio de saltos são tipos ideais que a literatura geográfica tornou conhecidos, mas há
outras possibilidades não sistemáticas por meio das quais a difusão espacial se verifica.
Na análise das relações entre política, religião e espaço, a teoria da difusão
espacial pode ter um papel fundamental, permitindo tornar claras as intenções de uma
dada instituição religiosa em sua busca de expansão territorial. Ainda nesta análise,
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diferentes escalas espaciais podem ser consideradas, a exemplo da difusão do islamismo
ou do cristianismo no primeiro milênio, que se efetivaram em ampla escala. A difusão
das denominações neopentecostais a partir de missões para fé em uma dada rua ou praça
se faz em outra escala espacial. Enfatiza-se, contudo, que há, nos exemplos, relações
interescalares.
Na medida em que implicam a troca mais ou menos constante de informações,
as relações de poder se estruturam por redes e essas não se manifestam da mesma forma
espacial. Procura-se cria uma multiplicidade de lugares centrais e hierarquizá-los.
Exemplo da rede diocesana brasileira (ROSENDAHL, 2003), (CORRÊA e
ROSENDAHL, 2008): assim, a estrutura das redes de informação favorece – ou
favoreceu, até bem pouco – a centralidade do poder. Os recentes progressos das
telecomunicações fizeram com que as redes organizadas hierarquicamente perdessem
uma parte dessa vantagem. A existência de modos de comunicação mais econômicos
como a comunicação simbólica, especialmente consolida conjuntos que, de outro modo
tenderiam a romper-se. A manifestação espacial da política faz-se também por meio da
iconografia política do território, como aponta Leib (2002), como base em Jean
Gottmann.
O custo das transferências a distância limita a dimensão de muitas redes, o que
restringe o exercício do poder a círculos, cujos raios de ação são limitados. Entretanto,
as possibilidades de combinações de papéis, via internet, são ilimitadas. Podemos nos
basear na linguagem das relações religiosas, hoje, existentes na mídia como TV e
internet.
No campo religioso, como aponta Dejean (2008) a emergência da imagined
communities ou online communities permite a construção de comunidades de fiéis cujo
espaço referencial é virtual. A internet é largamente utilizada por Igrejas Evangélicas e
Pentecostais. Por exemplo: o Portal de referência TOP Chrétien classifica de maneira
temática, permitindo assim, a pregação de pastores situados em diferentes lugares do
mundo e ouvidos em diversos lugares.
(ii) Escala
As relações entre política, religião e espaço verificam-se em múltiplas escalas,
cada uma caracterizando-se por específicos processos, ações estratégicas e formas
espaciais. Essas múltiplas escalas, por outro lado, estão no âmbito de cada religião,
institucional, que confere unidade funcional e política à religião.
As múltiplas escalas decorrem em razão da religião constituir-se em
instituições pontuais diferenciadas entre si, como também formas em área. As
primeiras, pontuais, diferenciam-se entre si em virtude de funções distintas que
exercem, a exemplos de templos, prédios administrativos, cemitérios religiosos, e
outras, como pela hierarquia que, no âmbito de cada função podem exercer. As formas
em área constituem os territórios paroquiais e diocesanos ou ainda territórios
específicos. As formas pontuais e em área estão inter-relacionadas entre si e originam
escalas espaciais de ação da religião.
A análise da dinâmica do poder e da sua ação em diferentes escalas assinala a
multiplicidade de estratégias imaginadas para fazer com que os grupos religiosos
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sobrevivam e estabeleçam seu domínio no espaço. É possível diferenciar dois grandes
tipos de sociedade:
(a) a sociedade e/ou grupos étnico-religioso, em que o poder está imbricado nos
sistemas de relações cuja finalidade é múltipla, e onde o poder religioso é apenas um
ingrediente;
(b) as sociedades onde uma parte das formas do poder se autonomiza.
(CASTRO, 2009; CLAVAL, 1992, 2010). É esta complexidade da natureza territorial,
“mais que um mero espaço de controle ou escala de mando” (CASTRO, 2009, p. 586)
que a Instituição Religiosa se mantém. Neste sentido, pode-se acrescentar que é pela
existência de uma religião que se cria um território e é pelo território que se fortalecem
as experiências religiosas coletivas e individuais. Há necessidade, em nível teórico, de
explorar a experiência da fé no lugar em que ela ocorre. A religião pode ser
compreendida hoje como uma “visão de mundo” (GEERTZ, 1989). A interpretação dos
valores cognitivos representa o princípio sobre o qual o homem “jogado” na natureza
encontra respostas e chega a compreender o sentido de sua presença neste mundo.
Como uma dada sociedade realiza está relação com o lugar e idealiza uma cosmogonia?
A difusão da fé e a escala de atuação de uma dada comunidade podem ser
agora abordadas. As maneiras como um católico irlandês e um católico brasileiro, um
católico rural e um católico metropolitano do Rio de Janeiro experienciam e negociam o
lugar religioso a ser analisados e submetidos aos contextos locais.
(iii) tempo:
As relações entre política, religião e espaço envolvem também o tempo. Em
uma perspectiva geográfica, pode-se falar, em espaço-temporalidade das relações entre
política e religião. Bastante complexa, podendo ser caracterizada, entre outros aspectos,
por continuidades e/ou descontinuidades espaço-temporais, envolvendo mudanças de
processos, estratégias e formas espaciais. A diferenciação espaço-temporal caracteriza
essas relações, sendo inimaginável conceber uma cristalização delas, pois estão inscritas
no movimento da sociedade. A cristalização implicaria o desaparecimento da religião ou
sua transformação em instituição residual, limitada espacialmente. (CORRÊA, 2010)
As estratégias espaciais de continuidade e/ou descontinuidade espaçotemporais fazem todo o sentido na análise da Instituição Religiosa. No estudo da
dinâmica da Igreja Católica no Brasil, a função magnífica da Igreja é o tempo e o
espaço de implantação da estratégia escolhida. Como exemplo nas primeiras décadas do
século XX, a influência de líderes leigos em torno da revista A Ordem e do Centro Dom
Vidal criado em 1922. Eles representavam o “primeiro agrupamento político que
esboçou a ideia do nacionalismo católico como alicerce da restauração das tradições
católicas do povo brasileiro após o catolicismo republicano, os pedreiros que
construíram a muralha espiritual anticomunista” (MIR, 2007, p. 89).
A aliança entre Igreja e Política adquiriu em 1930 um momento singular na
sociedade brasileira e o papel da Igreja Católica em sua relação com o Estado. A
dinâmica envolvendo Igreja Católica estava representada sob a liderança do Cardeal
Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra (RJ) e o governo republicano, pós-revolução de
1930, representado pelo Presidente Getúlio Vargas (ROSENDAHL, 2005, 2012). Tal
evento resultou em forte aliança.
As relações espaciais entre Religião, Espetáculo e Intimidade manifestam-se
de diversas formas e suas representações espaciais também o fazem. No contexto
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tempo-espaço a emergência do online communities presente na construção de
comunidades de fiéis torna-se oportuna à análise de como uma dada religião se
difundiu em determinadas áreas. As condições sócio-políticas, os meios, os agentes
específicos, os caminhos e as barreiras são estratégias religiosas que devem ser
mostradas.
As ações de controle e de manutenção em suas múltiplas escalas espaciais
favorecem a compreensão da abordagem espacial da religião no lugar de atuação,
inclusive no espaço virtual. Na medida em que se aplica a troca mais ou menos
constante de informações, as relações de poder se estruturam por redes. Elas não se
manifestam de formas iguais e nem com o uso das mesmas estratégias. Esta dinâmica da
relação da religião, da política e do espaço, hoje, permite reconhecer as
formas espaciais simbólicas resultantes.
Desta maneira para responder algumas destas problemáticas, os exemplos delas
abordados serão:
(a) Atos de renúncia
Os recentes atos de renúncia do poder religioso marcaram o cenário mundial:
Tenzi Cyatro, de 76 anos, o 14º Dalai-Lama, em uma decisão histórica, anuncia
oficialmente a intenção de ceder seu papel político no governo do Tibete no exílio – na
cidade indiana de Dharamsola – para um líder livremente eleito pelos tibetanos. Trata-se
de uma saída estratégica, ocorrida em 20 de março de 2011 pelo Dalai-Lama.
Joseph Ratzinger, 86 anos, Papa Bento XVI, anunciou em Roma, sua renúncia
para 28 de fevereiro de 2013, uma ação fortemente humana na figura do Papa que,
durante séculos, esteve acima do bem e do mal. A decisão do Papa Bento XVI
representa um sopro de modernidade na Instituição Igreja Católica Apostólica Romana.
Em ambas as renúncias, o simbolismo é muito pesado e poderoso, envolve
dimensões espaciais de poder político, econômico e religioso. As renúncias do 14º
Dalai-Lama e o Papa Bento XVI foram marcas de um movimento-revolucionário da
hierarquia religiosa e a dessacralização de um cargo escolhido, que só se abandona para
passar ao reino dos céus. Trata-se de um cargo vitalício de poder religioso em cada um
dos exemplos religiosos anteriormente mencionados. No cenário mundial, as renúncias
foram episódios de variada narrativa política. A difusão dos episódios em escala
mundial apresentou uma dinâmica do poder religioso e o seu lugar no mundo. As
informações se estruturaram por redes de comunicação e relações de poder.
(b) Igreja Católica o Mass Media e as Online Communities: Difusão da fé na
hipermodernidade.
Na literatura observamos que, nos anos 60, surgiram movimentos de protestos
sociopolítico-cultural e religioso em várias partes do mundo. Foram os anos de 1968 e
1969 marcados por momentos de crise no comportamento da sociedade mundial: na
música, no vestuário, no movimento feminista, dentre outros. A religião acompanhou
essas mudanças e tentou ser flexível ao momento de crise. Rosendahl (2012) apresenta
uma justificativa contextualizada com as ideias weberianas de que, nos momentos de
guerra e de crise social-econômica, a religião tende a ser um refúgio para o homem. Em
algumas sociedades, ocorre um recrudescimento religioso do grupo social envolvido.
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O parágrafo anterior nos remete a um período vivenciado em nossa sociedade,
que também propiciou uma mudança nas bases da Igreja Católica Apostólica Romana
através do Concílio Vaticano II (OLIVEIRA, 2010). Esse Concílio possibilitou o
surgimento de um dos movimentos que mais crescem na Igreja, a Renovação
Carismática Católica.
Para muitos autores, o momento atual em que vivemos em nossa sociedade é
considerado um período pós-moderno, período de grandes transformações e mudanças
na sociedade. Atualmente, porém, a partir destas mesmas transformações, observamos
que a sociedade no século XXI, passa por um processo crescente da busca pelo self, ou
seja, uma buscar por uma maior individualidade. Isso é algo cada vez mais marcante nos
grandes centros onde os encontros pessoais começam a ser trocados pelo uso dos
smartphones, dos computadores, tablets, entre outras tecnologias da informação que tem
tirado muitas pessoas do convívio social.
Se observarmos os grandes transportes de massa nos grandes centros como Rio
e São Paulo, os smartphones são o principal meio de contato entre as pessoas.
Normalmente, uma viagem que antes tinha um contato social, agora tornou-se virtual,
onde o Facebook, Twitter, Youtube, entre outros meios e redes de comunicação virtuais,
tornaram-se quase que parte da vida cotidiana de uma pessoa.
A Igreja a partir dessa nova realidade e com a perda de fiéis, entende que ter
domínio sobre um grande e poderoso meio de comunicação é de extrema relevância
para manutenção e aquisição de novas estratégias de evangelização.
Desta maneira, o Mass Media e as Online Communities, ou seja, os meios de
comunicação - TV, Rádio, Internet - e sistemas operacionais móbile - como Android da
Google e iOS da Apple - e as mídias/redes sociais -Facebook, YouTube, Twitter,
Tumblr, Google+, Instagram, Flick - possibilitam a Igreja a ter novas frentes de
domínio.
A difusão da fé através dos meios de comunicação em suas diferentes esferas e
escalas de uso possibilita ao devoto um maior contato com o divino. Observamos uma
mudança na tradicionalidade da Igreja, onde antes o contato com o divino só poderia
ocorrer dentro das Igrejas e através de uma difusão por contato; atualmente em um
período pós-moderno ou hipermoderno (LIPOVETSKY e SERROY, 2011) como
podemos chamar a atual condição da sociedade pela busca do seu self, a busca da
individualidade e a modernização da sociedade atual, o devoto pode participar da Missa,
rezar o terço, ler a palavra – a Bíblia e o evangelho do dia, participar de shows, palestras
e inúmeras outras opções sem sair de casa pela TV, pela Internet ou pelo celular.
Essa dualidade se insere até mesmo nos tipos de peregrinações (OLIVEIRA,
2011) e ao mesmo tempo em que traz o novo, a estratégia da Igreja é a de trazer à
sociedade a busca do tradicional, o conservadorismo na Igreja (CARRANZA e MARIZ,
2009). Nesse sentido, vale ressaltar que apesar de existir essas novas frentes de
evangelização, o católico praticamente ainda assim, deverá participar fisicamente na
Igreja.
(c) A Midiatização da fé através do Mass Media e as Online Communities: o exemplo
da Comunidade Católica Canção Nova.
No nosso século tão marcado pelos mas media ou meios de
comunicação social, o primeiro anúncio, a catequese ou o
aprofundamento ulterior da fé não pode deixar de se servir
destes meios conforme já tivemos ocasião de acentuar. Posto ao
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serviço do Evangelho, tais meios são suscetíveis de ampliar,
quase até o infinito, o campo para poder ser ouvida a Palavra de
Deus e fazer com que a Boa Nova chegue a milhões de pessoas.
A Igreja se sentiria culpável diante de seu Senhor, se ela não
lançasse mão desses meios potentes que a inteligência humana
torna cada dia mais aperfeiçoados. É servindo-se deles que ela
‘apregoa sobre os terraços’ a mensagem de que ela é depositária.
Neles encontra uma versão moderna e eficaz do púlpito. Graças
a eles consegue falar às multidões (EN45). (ABIB, 2010, p. 34)
– Utilização dos meios de comunicação – Evangellium
Nutiandi)
A Comunidade Canção Nova, fundada no dia 02 de fevereiro de 1978, na
cidade de Queluz, interior de São Paulo, através do Monsenhor Jonas Abib e mais 12
jovens se apresenta como uma das maiores comunidades católicas do mundo
(OLIVEIRA, 2011). Localizada na cidade de Cachoeira Paulista, interior de São Paulo,
a Canção Nova se configura como uma comunidade de vida e aliança que tem como
carisma principal aquilo que é um dos objetivos nessa terceira parte do artigo, o carisma
pela evangelização através dos meios de comunicação, podendo adicionar aqui também
as Online Communities.
Tratar sobre o processo de surgimento desse carisma pelos meios de
comunicação seria inviável neste artigo pela quantidade de informações, mas vamos
destacar aqui alguns aspectos que a configuram como umas das maiores comunidades
católicas do Mundo, o qual possibilita uma difusão da fé através dos meios de
comunicação no Brasil e no exterior, assim como, uma grande convergência de milhões
de fiéis durante os acampamentos de oração realizados na sede da comunidade em
Cachoeira Paulista, o qual possibilitou o surgimento de uma hierópolis pós-moderna
(OLIVEIRA, 2010, 2011)
Os meios de comunicação começaram a ser utilizados pela Canção Nova
segundo Abib (2010) a partir da doação de um duplicador de fitas cassetes, que era
utilizado para copiar as palestras gravadas nos encontros para depois vendê-las. A partir
disto, começaram a produzir o primeiro programa de rádio na Rádio Mantiqueira em
Cruzeiro (SP) e posteriormente programas vieram a surgir em diferentes estações, como
na Rádio Cultura de Lorena, Rádio Bandeirantes de Cachoeira Paulista (atual Canção
Nova) e na Rádio Mineira do Sul, em Passa Quatro, Minas Gerais (OLIVEIRA, 2010).
Para que viesse a ocorrer o processo de difusão pelos meios de comunicação,
um documento foi o diferencial para esse processo: o Evangellium Nutiandi (PAULO
VI, 1975), mencionado ao Monsenhor Jonas Abib pelo então bispo de Lorena, Dom
Antônio fomentou o processo de confirmação para o objetivo daquilo que a Canção
Nova faria de transformar o homem para um mundo novo e seu principal meio de
evangelização, de difusão da fé, seriam os usos dos meios de comunicação tais como
TV, Rádio, Internet além do comércio de produtos do departamento de audiovisual
(DAVI) como livros, CDs, DVDs, vídeos, dentre outros materiais.
Com o objetivo maior de evangelizar pelos meios de comunicação, a Canção
Nova qualifica-se como uma comunidade católica brasileira com rede internacional de
difusão. Vários são os fatos dessa magnitude, talvez o Sistema Canção Nova de
Comunicação tenha crescido a partir da contribuição de sócios, ou de pessoas que veem
na Canção Nova uma obra de evangelização. Vale ressaltar que, a cada mês, a
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comunidade possui uma demanda atualmente em torno de mais de 14 milhões de reais,
para a manutenção geral do Sistema Canção Nova de Comunicação. São dados
fornecidos anualmente a partir da Revista Canção Nova (OLIVEIRA, 2010).
A Canção Nova possui as características de um poder hierárquico e burocrático
comum no poder religioso da Igreja Católica Apostólica Romana, centrado no poder do
Papa, no Vaticano. A configuração espacial, em rede religiosa, uma rede hierárquica
proporcionando melhor a difusão e o crescimento da comunidade. Atualmente a Canção
Nova possuí 28 casas de missão no Brasil e exterior, a sede – Cachoeira Paulista, 21
casas de missão no Brasil e seis no exterior – EUA, Portugal, França, Itália, Israel e
Paraguai.
O reconhecimento desse tipo de evangelização por parte da Administração
Vaticana foi proclamado como Reconhecimento Pontifício. Isto possibilitou a aceitação
do poder central, representado pelo Papa, no ano de 2008, endossando ainda mais a
configuração espacial e a importância da fé da comunidade para a Igreja Católica no
Brasil e no mundo.
Dessa maneira a Canção Nova, inserida no movimento da Renovação
Carismática Católica, torna-se objeto de grande interesse aos estudos geográficos e
acadêmicos devido à dimensão espacial do sagrado, na construção e modelação dos
lugares. Tal reconhecimento deve ser interpretado como estratégia de Roma diante da
situação de fé no Brasil, pois é do conhecimento as interferências já feitas pelo Papa em
práticas religiosas brasileiras e aos padres, como exemplo Frei Leonardo Boff e, a partir
das práticas religiosas dos peregrinos, como os agentes modeladores do espaço.
As mudanças político-culturais ocorridas na segunda metade do século XX nos
diferentes segmentos da sociedade e nos diversos grupos sociais marcaram fortes
mudanças culturais. As instituições religiosas tentam acompanhar esse fenômeno
abraçando assim, o meio técnico científico informacional. Sendo assim, Krieger (2007,
p. 9) nos informa que:
Entre os desafios atualmente enfrentados pelo evangelizador,
um de grande peso é a dificuldade do encontro pessoal. Nem
sempre é possível fazer visitas; prédios e condomínios se
fecham sempre mais; o medo aumenta as distâncias. Através dos
modernos meios de comunicação, contudo, tem-se a
possibilidade de “entrar” em muitas casas e corações, para
apresentar a proposta de Jesus Cristo. Essa apresentação deve
ser feita com um grande respeito às pessoas e à verdade.
Pelas ideias de Krieger (2007) e comungando com Silveira (2003, p. 46),
A religião entra também na era da imagem quando
igrejas/grupos religiosos (católico, pentecostal, neopentecostal,
espiritismo e outros) se lançam na TV, internet, na moderna
linguagem de propaganda para a divulgação de suas “propostas”
de experiência a uma multidão de indivíduos e, quando, por
outro lado, é tragada pela “espetacularização”, seus temas e
valores tornam-se espetáculos bons para se olhar, para se
consumir, sem que haja a contrapartida do comprometimento
com o conteúdo. (SILVEIRA, 2003, p. 46).
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A difusão da fé não é mais possível apenas por contato pessoal e, por isso, tem
migrado para uma difusão da fé on-line. Isto é, converge para o uso de meios de
comunicação com destaque para o site www.cancaonova.com, a TV Canção Nova, à
Rádio e o Departamento de Áudio Visual (DAVI). São novas relações de contato
virtuais.
Os meios de comunicação favorecem boa oportunidade na difusão de ideias, de
notícias e de outras informações que interligam o universo virtual com a rede religiosa.
A Igreja, ao ver que essa rede se constitui em um dos inúmeros métodos de
evangelização, apropria-se dos recursos disponíveis para se inserir em uma sociedade
globalizada e, por conseguinte, difundir as ideias religiosas e a palavra de Deus,
mantendo sua hegemonia mesmo diante do crescimento de outras doutrinas. Essa
difusão iniciou-se principalmente a partir do Evangellium Nutiand (PAPA PAULO VI,
1975).
No pensamento de Abib (2010, p. 30-31), “a Igreja se sentiria culpável diante
de seu Senhor, se ela não lançasse mão desses meios potentes que a inteligência humana
torna cada dia mais aperfeiçoados”. A partir disto, foi possível perceber que os meios
de comunicação estiveram presentes desde o início e durante o crescimento da
comunidade. Afirmamos que o seu principal meio de propagação e divulgação foi a
mídia. A edição comemorativa de 30 anos da Revista Canção Nova (n°94, 2008) afirma
esse desejo da comunidade. Evangelizar é comunicar. Seu objetivo está na citação:
Não apenas vocação, mas instrumento crucial para a missão
evangelizadora – o Sistema Canção Nova de Comunicação
abrange diferentes mídias, que, como a figura da Santíssima
Trindade, se complementam, se completam, seguindo uma linha
única de apostolado. São elas: Rádio (AM e FM), TV, Internet,
Webtv, e outros modernos recursos de comunicação hoje
disponíveis, como móbile (tecnologia que permite a transmissão
de músicas, fotos, imagens, vídeos e pregações pelo celular,
palmtops, iPod, entre outros).
A difusão da fé on-line e os diferentes tipos de expansão da religião em fluxo de
mensagem na mídia permitem atingir inúmeros devotos. Representa um fluxo de
informações da mensagem religiosa por diferentes meios de diferentes novos usos da
informática, vide figura 1. A Canção Nova atualiza-se através das novas tecnologias no
ramo das telecomunicações. Estratégia de sucesso na divulgação de suas ideias, a de
cunho religioso tem sucesso, como exemplo a Webtvcn, primeira webtv católica criada
com mais de 2,5 milhões de acessos mensais. O Chip CN Chama, o primeiro chip
voltado para a evangelização no Brasil em parceria com a operadora Claro, o qual
permite que o sócio ou simpatizante tenha acesso a diferentes conteúdos da comunidade
(CANÇÃO NOVA, 2010). Novas mídias como Podcast, Second Life, Fórum,
WebRádio, Facebook, Twittter, YouTube, dentre outras que são também utilizadas pela
comunidade.
A Instituição Religiosa Católica afirma-se, assim como uma das difusoras da fé
no espaço. Outras instituições religiosas possuem suas redes simbólicas religiosas. O
geógrafo poderá estudá-las aplicando seus conhecimentos teóricos de Rede.
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Figura 1 – Canção Nova e a evangelização pela internet. Fonte: Oliveira, J. R de, 2014.
A relação do homem com a Divindade é variada e diferente em diversas
religiões. A subjetividade faz parte deste diálogo. “Por que as religiões são diferentes?”,
perguntam-se as pessoas e a resposta é “porque as experiências individuais são
diferentes. Quando se reúnem em torno de um denominador comum, configura-se uma
religião” (SKORKA, p.27).
Religião, política e espaço são dimensões em que a geografia da religião
privilegia a experiência religiosa dos indivíduos e dos grupos sociais em suas práticas
espaciais. Na conjuntura atual, a revalorização da cultura - em suas manifestações
materiais e imateriais - nos informa acerca da existência de um novo ciclo, um processo
avançado denominado de hipermoderno, em que a difusão da fé, a escala de atuação e o
tempo favorecem novas mudanças do comportamento do homem.
Referências
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LEVIATÃ: SÍMBOLO DO PODER
Marcina de Barros Severino - PUC- Goiás ([email protected])
Resumo
O objetivo da comunicação é compreender o poder do Leviatã hobbesiano, para tanto,
faz-se necessário descobrir o contexto histórico da vida de Hobbes e da Inglaterra no
século XVII. Busca-se entender as relações de poder que envolvem o soberano e os
súditos. O Leviatã representa o povo com base no contrato social. Um contrato
impulsionado pelo medo da morte violenta e que é mantido com base no medo do poder
coercitivo do Estado. O emprego das Escrituras Sagradas e da imagem do monstro
marinho Leviatã é utilizado como estratégia de dominação. Só a razão não é suficiente
para convencer as massas, é necessário recorrer à linguagem simbólica para reforçar o
poder do Estado hobbesiano.
INTRODUÇÃO
Foi proposta uma reflexão sobre a origem do poder do Leviatã hobbesiano,
procurando saber até que ponto este poder configura-se sagrado e até que ponto
configura-se profano; tomando-se por base a obra Leviatã e outras obras de Hobbes.
Hobbes recorreu à imagem do monstro bíblico para reforçar o poder do seu Leviatã.
Diferentes culturas absorveram o mito do monstro Leviatã. O mito é uma
narrativa que remete às origens. Ele serve de fundamentação para fornecer sentido para
o que se vive atualmente. Na mitologia fenícia, o Leviatã apresenta-se como um
monstro marinho de sete cabeças que representa as forças maléficas. Segundo a
mitologia babilônica, o Leviatã representa o mar e foi vencido e submetido a Deus. Na
mitologia bíblica, o Leviatã é o rei dos soberbos. Hobbes empregou a imagem do
monstro bíblico Leviatã para simbolizar um Estado poderoso capaz de promover a
preservação da vida. A intenção de Hobbes foi apropriar-se do temor que inspira o
monstro bíblico para impor a obediência dos indivíduos ao Estado soberano.
O poder, tal como aparece no Leviatã, é uma mescla do profano e do sagrado. A
imagem do Leviatã bíblico inspira temor. Hobbes se apropriou deste temor para
dominar os súditos e impor a obediência. A força do símbolo Leviatã serviu para
reforçar o poder do Estado hobbesiano, transpondo um poder profano para a dimensão
sagrada.
CONTEXTO HISTÓRICO
A Inglaterra no século XVII estava em plena expansão, com destaque para o
expansionismo colonialista ultramarino.Embora seja um período regido pela razão e
pelas descobertas da ciência, o medo do desconhecido relacionado à navegação permeia
o imaginário popular. A maior parte da Inglaterra está localizada na ilha da GrãBretanha, o país possui também uma série de pequenas ilhas. O mistério de monstros
está associado à geografia da Inglaterra. Nesse período, eram muito comuns histórias de
monstros marinhos, como o Leviatã, atacando embarcações. Segundo Chevalier (2007,
p. 592), o mar simboliza a dinâmica da vida, de onde surgem monstros das profundezas:
imagem do subconsciente.
A quebra da unidade teológico-política da Cristandade veio desencadear
conflitos religiosos (MACHADO, 1996, p. 60). O século XVII foi marcado pela
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lembrança de massacres provocados por seguidores de credos conflitantes. A Inglaterra
estava abalada pelos conflitos religiosos e políticos.
Hobbes sofreu influência da reforma anglicana que ocorreu em 1534. O Rei
inglês Henrique VIII instituiu a Igreja Anglicana. O rompimento do rei com a Igreja
Católica contribuiu para o fortalecimento do poder da monarquia. Nesse período, o rei
passou a ser o chefe supremo da Igreja da Inglaterra. O clima de conflitos fez com que a
Espanha interviesse nos assuntos ingleses com o envio da Invencível Armada, um
acontecimento que ficou na lembrança de Hobbes e foi narrado por ele em sua
autobiografia, influenciando sua obra. Logo após o começo da guerra que se
desenrolava no continente europeu, disputas políticas entre o rei inglês e o parlamento
geraram a guerra civil na Inglaterra, que durou dez anos. Hobbes experimentou “guerras
civis, religiosas e políticas, e via num Estado forte a resposta adequada contra a
desordem e o caos” (MACHADO, 1996, p. 63).
Mais tarde, Hobbes brilhantemente criou a teoria do Estado, que põe fim à
problemática da representação e da legitimidade do Estado neste período. Ele forneceu a
base para o Estado moderno, um contrato baseado na anuência e legitimação de todas as
vontades.
VIDA DE HOBBES
Thomas Hobbes (1588-1679) foi um filósofo contratualista inglês, que nasceu na
Renascença em Wiltshire, Inglaterra.
Em 1629, Hobbes, traduziu uma obra de Tucídides, que era um historiador grego
analista da política e da moral da guerra do Peloponeso. Nesse momento, Hobbes
iniciou seu interesse por política e diz, em sua autobiografia, da importância do livro, ao
demonstrar as fraquezas da democracia ateniense, subvertida pela ambição de políticos
demagogos (LIMONGI, 2002, p. 12).
Hobbes escreveu sobre o cidadão, sobre o corpo e sobre o homem. Em 1640,
ele redigiu a obra Os Elementos da Lei Natural e Política, primeira versão de sua teoria
política, em inglês, que circulou em manuscrito (LIMONGI, 2002, p. 12). Quando a
possibilidade de uma guerra civil na Inglaterra já estava claramente definida, em 1640,
Hobbes, conhecido defensor da monarquia, com medo e inseguro por sua vida, viajou
de volta para Paris, onde mais uma vez foi recebido pelo círculo dos intelectuais
franceses (RODRIGUES, 2013).
Hobbes foi confrontado com a guerra civil inglesa quando já havia elaborado
as grandes linhas do seu sistema. Agredido pelos acontecimentos escreveuo De Cive, no
ano de 1642, propondo que, para sair da guerra civil, era necessária a instauração de um
poder absoluto (BOBBIO, 1998, p. 81). Refugiado em Paris por temer por sua
segurança após ter publicado De Cive, Hobbes escreveu sua obra-prima, Leviatã, ou
Matéria, Forma e Poder da Comunidade Eclesiástica e Civil, um estudo filosófico
sobre o absolutismo político que sucedeu a supremacia da Igreja medieval (CAIXETA,
2012). Essa publicação custou-lhe a perda do apoio dos realistas refugiados na França
(LIMONGI, 2002, p. 13).
Em 1651, dois anos depois da decapitação do rei Carlos I, Hobbes decidiu
retornar para a Inglaterra, com o fim da guerra civil e o começo da ditadura de
Cromwell. Nesse ano publicou Leviatã, o qual provocou o início de sua disputa com
John Bramall, bispo de Derry, seu principal acusador o apontava como sendo um
materialista ateu (RODRIGUES, 2013). Hobbes escreveu sua principal obra – Leviatã –
já na maturidade.
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Em 1655, Hobbes publicou o De Corpore, a primeira parte de seu sistema,
compreendendo uma lógica e uma física (LIMONGI, 2002, p. 13). Nesse ano, ainda em
Paris, tornou-se professor de matemática do Príncipe de Gales, o futuro Carlos II que
também estava exilado em Paris por causa da guerra civil inglesa. Hobbes publicou o
De Homine, a segunda parte de seu sistema, em 1658. Seu sistema seria composto pelo
De Corpore, o de Homine e o De Cive (LIMONGI, 2002, p. 14).
Hobbes soube captar e descrever os problemas sociais de sua época e, levado
pela paixão, pelo desejo de escapar dessa sensação de insegurança e de medo
permanente, que lhe perseguiu desde o tempo de nascituro até maturidade, construiu,
por meio do contrato e de elementos simbólicos, sua teoria política.
AS CATEGORIAS DE SAGRADO E DE PROFANO
Para analisar a origem do poder do Leviatã de Hobbes é necessário entender as
categorias de sagrado e de profano. Ao recorrer a Eliade (1992) entende-se a palavra
sagrado como oposto ao profano. Ele aborda o sagrado numa perspectiva mais ampla,
na sua totalidade. A manifestação do sagrado é vista como algo “absolutamente
diferente do profano”. Segundo ele (1992, p. 16) “[...] para o homem de todas as
sociedades pré-modernas, o sagrado equivale a poder e, em última análise à realidade
por excelência. O sagrado está saturado de ser”. O sagrado fornece sentido, confere
significado e qualifica. O profano é o oposto, a diluição dos significados. Logo, há dois
modos de ser no mundo: sagrado e profano, que dependem das diferentes posições que
o ser humano conquistou no Cosmos. O sagrado, a priori, se dá a conhecer e o faz
através da hierofania. Esta é algo diferente do natural (ELIADE, 1992, p. 18). O espaço
sagrado destaca-se do resto do existir.
Para Croatto (2010, p. 59), o sagrado é “em si mesmo, parte do profano [...],
mas é recebido pelo homo religiosus como mediação significativa e expressiva de sua
relação com o divino”. O profano é o que não está associado ao divino, só ascende ao
divino por meio de sua sacralização. “O objeto sagrado é mundano, está ao lado do ser
humano, mas a hierofania (teofania) sacraliza-o” (CROATTO, 2010, p. 60). Croatto
(2010, p. 61) associa a noção do sagrado à ideia de relação:
O sagrado é essencialmente uma relação entre o sujeito (o ser
humano) e um termo (Deus), relação que se visualiza ou se
mostra em um âmbito (a natureza, a história, as pessoas) ou em
objetos, gestos, palavras etc.. Sem essa relação nada é sagrado.
Em sua estrutura essencial, o sagrado é sempre o mesmo ato misterioso, a
manifestação de algo ‘totalmente Outro’, que não pertence a esta ordem natural e
profana (CROATTO, 2010, p. 71).
No capítulo XXXV do Leviatã, Hobbes (1997, p. 303-4) define o que é sagrado
e o que é profano:
[...] a palavra profano geralmente é usada nas Escrituras com o
sentido de comum, consequentemente seus contrários, santo e
próprio, no Reino de Deus devem significar também o mesmo.
Mas em sentido figurado também se chama santos àqueles
homens cujas vidas foram tão retas como se eles tivessem
renunciado a qualquer propósito mundano, e se dedicado e dado
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inteiramente a Deus. Em sentido próprio, do que é tornado santo
quando Deus de tal se apropria e separa para seu próprio uso
diz-se que é santificado por Deus, como o sétimo dia no quarto
mandamento, tal como se diz no Novo Testamento que os
eleitos são santificados no momento em que são ungidos pelo
espírito de piedade. E o que é tornado santo pela dedicação dos
homens, e entregue a Deus, a fim de ser usado unicamente em
seu serviço público, é também chamado sagrado, e diz-se está
consagrado, como os tempos e outras casas de oração pública,
assim como seus utensílios, padres e ministros, vítimas,
oferendas e a matéria externa dos sacramentos.
Para Hobbes, a dedicação dos humanos entregue a Deus, a fim de ser usada
unicamente em seu serviço público é considerada sagrada, será consagrada para o
serviço de Deus. Percebe-se, assim, que Hobbes considerou o Estado hobbesiano como
sagrado. O sagrado, para existir, necessita do crente. Hobbes, no capítulo XXXI (1997,
p. 264), fala do reino natural de Deus e explica a necessidade de conhecer as leis de
Deus para o completo conhecimento do dever civil. Segundo ele, os súditos de Deus
não podem ser ateus, pois, não reconheceriam suas palavras, nem acreditariam em suas
recompensas e não temeriam suas ameaças. Só os que acreditam haver um Deus que
governa o mundo são considerados súditos, o restante é compreendido como inimigo.
O caráter sagrado não está restrito a determinados grupos e objetos. Por mais
indiferente que seja o ser, ele pode ganhar participação na característica do sagrado. É o
mito que tem a capacidade de introduzir nesse ser determinadas diferenças de valor
(CASSIRER, 2004, p. 138-9).
Todo ser e acontecer, ao ser projetado sobre a oposição
fundamental entre o sagrado e profano, ganha nessa mesma
projeção um novo teor – um teor que simplesmente não tem
desde sempre, mas que só lhe surge nessa forma de
consideração, de certa maneira nessa iluminação mítica
(CASSIRER, 2004, p. 139).
A definição que Hobbes fez de profano e de sagrado se aproxima dos conceitos
expostos de Croatto (2010) e de Eliade (1992). O Leviatã é sagrado porque é algo
separado dos demais, não é subordinado a nenhuma lei civil. Todos os súditos devem
obediência às leis civis, somente o Leviatã não deve tal obediência. Segundo Villanova
(2007, p. 52-3), o sentido do direito natural é deturpado, o pacto em direção ao todopoderoso Estado consiste no pacto de parceria e sujeição. Para o soberano, direitos e
poderes e, para o cidadão, apenas obrigação. O soberano está acima dos demais, dita as
regras para que os outros obedeçam. É uma autoridade mundana que se sacraliza ao
apropriar-se do sentido do mito do Leviatã. No livro de Jó, ele é descrito como rei dos
soberbos, uma autoridade com poderes de proporções gigantescas, separados dos
demais. Hobbes considerou o Leviatã um deus mortal.
Hobbes comparou a obediência a Deus à obediência ao poder civil. Ao tratar
do emprego de citações bíblicas por Hobbes, Ribeiro (2003, p. 18) afirma que:
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O uso frequente da metáfora e citações bíblicas deve ser levado
muito a sério na obra de Hobbes – a sua ambição compara-se à
missão de Cristo e consiste em trazer aos homens esta espécie de
salvação terrena que é a paz dentro do Estado.
Concorda-se com Ribeiro (2003) que Hobbes fez uma tentativa de comparar a
missão do Leviatã com a de Cristo, acredita-se que sua intenção era buscar no sagrado
um reforço para a soberania do Estado. Ao tentar comparar o poder de salvação do
Estado e de Cristo percebe-se a intenção de apropriar do caráter divino de Cristo.
Segundo Hobbes, o Estado deve obediência apenas ao deus imortal, com essa
afirmação, ele transmitiu a ideia de que o Estado é um mediador do ente divino. Além
do medo da punição civil, fica implícito também um temor ao Deus Imortal.
A FORÇA DO SÍMBOLO LEVIATÃ
O símbolo refere-se à união de elementos que se inter-relacionam. Ele é
remissivo, pois, envia para outra realidade que é a que importa existencialmente. As
coisas deste mundo são captadas e vivenciadas analogicamente, que por algum motivo
são elevadas ao plano simbólico. A vivência do sagrado mediando uma relação com o
objeto mundano (CROATTO, 2010, p. 84-9). Segundo Croatto (2010), o símbolo é uma
espécie de lente que possibilita ver o que sem ela não se vê. Ele diz que as palavras que
expressam a experiência convertem-se em palavras simbólicas.
Falar de Deus, que ‘está no céu’, não é usar uma linguagem
objetiva, nem uma metáfora, mas um símbolo da transcendência
e da soberania que ‘diz’, uma maneira de experimentar Deus
religiosamente. Está-se expressando a percepção do
transcendente mediante uma de suas manifestações cósmicas
(uma hierofania), porém a vivência é humana e histórica
(CROATTO, 2010, p. 90).
Hobbes empregou a palavra Deus como instrumento para sacralizar o poder do
Estado. Embora diferencie o reino de Deus do reino da terra, deixa que o próprio Deus
diga que não é deste mundo. Logo, induz a pensar que, aqui na terra, o rei cristão é um
Deus mortal.
Segundo Terrin (2004), a história da humanidade e os mundos simbólicoreligiosos estão em mútua dependência e em recíproca interação. Para Geertz (1989)
cultura é composta por um conjunto de símbolos que permitem interpretar a realidade.
Os símbolos articulam e veiculam uma rede de significados. Os símbolos religiosos são
uma modalidade específica. Eles funcionam produzindo uma visão realista do mundo e
um estilo premente de vida. Os símbolos culturalmente construídos modelam
disposições e motivações religiosas e inserem tais disposições e motivações em um
arcabouço cosmológico. Ao interpretar os símbolos entende-se a própria cultura em
questão. “Os seres e espíritos sagrados, [...] serão tomados como expressão simbólica de
relações sociais a serem remetidas às estruturas sociais e aos sistemas culturais de cada
sociedade singular” (TEIXEIRA, 2003, p. 150-1). Segundo Terrin (2004) o símbolo
quer ser “algo além do racional, mas não além do razoável”.
Racionalidade concebida como um conceito aberto que não
pode se explicitar de uma vez por todas. Ora, somente neste
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quadro têm possibilidade de existência também o rito e mito,
como explicações em igualdade de direitos com outras visões do
mundo e como vetores de uma racionalidade que lhes é própria,
não sempre nem imediatamente possível de verificar (TERRIN,
2004, p. 47).
Quando a imagem adquire o papel de representação, nasce o símbolo. Os
símbolos são parte do mundo humano de significado e racionalidade. A partir da
consciência religiosa, as imagens míticas se tornam expressões simbólicas da realidade
espiritual (AVENS, 1993, p.117). A imagem do Leviatã bíblico representa o poder
soberano, um símbolo do poder. O símbolo sagrado permitiu a passagem para uma
realidade que realmente importava para as pessoas. Uma realidade de ordem e paz. A
vivência do símbolo sagrado revelando a possibilidade de coesão social.
CONCLUSÃO
Foi possível concluir que o poder do Leviatã hobbesiano é uma mescla de
profano/sagrado legitimado de alguma maneira na anuência de todas as pessoas. O
poder se configura das duas maneiras. Inicia-se pela delegação voluntária de poder,
onde as pessoas livremente optam pelo contrato social, configurando-se como um poder
profano. Posteriormente, esse ato é sacralizado por meio do mito e do símbolo. O
símbolo atua fornecendo o que é realmente essencial à pessoa humana. As pessoas
buscavam paz e segurança que o símbolo Leviatã poderia proporcionar. Hobbes
apropriou-se do poder irresistível do mito do Leviatã para reforçar o poder do soberano.
O uso do símbolo religioso permitiu que Hobbes estruturasse os conceitos que refletiam
os interesses da classe que dominava em sua época. Para reforçar sua teoria, Hobbes
busca elementos nadimensão sagrada, com isso, consegue a obediência dos súditos.
Logo, o símbolo do Leviatã bíblico tem importante papel na teoria hobbesiana. O
símbolo serviu de reforço no controle da ordem social.
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Orgs.: ALBERTO DA SILVA MOREIRA CAROLINA TELES