UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
DIRCEU ALVES DA SILVA
A MULHER MUÇULMANA:
Uma Visão Panorâmica de Meca a São Paulo.
SÃO PAULO – SP
2013
S586m Silva, Dirceu Alves da
A mulher muçulmana: uma visão panorâmica de
Meca a São Paulo / Dirceu Alves da Silva– 2014.
169 f. : il.; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014.
Orientador: Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira
Bibliografia: f. 150-158
1. Mulher 2. Islã 3. Religião 4. Identidade 5. Gênero I. Título
LC BP161
DIRCEU ALVES DA SILVA
A MULHER MUÇULMANA:
Uma Visão Panorâmica de Meca a São Paulo.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Ciências da Religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie para a
obtenção do título de Mestre em Ciências da
Religião.
Orientador: Profº Dr. João Baptista Borges Pereira
São Paulo - SP
2013
DIRCEU ALVES DA SILVA
A MULHER MUÇULMANA:
Uma Visão Panorâmica de Meca a São Paulo.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Ciências da Religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie para a
obtenção do título de Mestre em Ciências da
Religião.
Aprovada em:___/___/____
BANCA EXAMINADORA:
______________________________________________________
Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira
(Universidade Presbiteriana Mackenzie)
___________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Lídice Meyer Pinto Ribeiro
(Universidade Presbiteriana Mackenzie)
___________________________________________________________________
Prof.ªDr.ª Margarida Maria Moura
(Universidade de São Paulo – USP)
Dedico este trabalho:
Ao Trino Deus: Pai, Filho e Espírito Santo;
à minha esposa Isamara, certamente a minha
maior incentivadora. Aos meus filhos: Francielle,
Samuel, Karine e Kamilla. Ao Chikito, xodó e amigo
inseparável.
Agradecimentos:
Aos ilustres e competentes membros da banca: prof.º Dr. João Baptista
Borges Pereira, meu digníssimo orientador. À Prof.ª Dr.ª Lídice Meyer Pinto Ribeiro
por co-orientar este trabalho. À prof.ª Dr.ª Margarida Maria Moura, cuja presença
enriquece e honra esta banca.
Em memória das grandes Mulheres do Islã.
Aquelas que lutaram inspiradas em Umm Salamah,
em Aisha, Khadija e tantas outras. Em incentivo
àquelas que lutam agora e que se inspiram nas
que já lutaram. Em legado àquelas que lutarão
na busca de uma relação verdadeiramente igual,
verdadeiramente livre, e verdadeiramente
emancipada em todas as sociedades do mundo.
Dirceu Alves da Silva.
RESUMO
Nesta Pesquisa, volvemos nosso olhar para o mundo da mulher muçulmana,
através de períodos registrados na história que, marcam a trajetória desta mulher
desde o período pré-islamico, nos desertos e oásis da Península Arábica. Sua
epopeia desde Meca até a cidade de São Paulo. Cobrindo um tempo aproximado de
mil e quatrocentos anos. Sua presença e seu desempenho social, religioso e
político. Suas relações com o profeta Maomé, suas relações com as revelações
corânicas e suas lutas pela igualdade de gênero são pontuadas por este trabalho.
Contemplamos, através de um olhar panorâmico, períodos em que esta mulher
deixou suas marcas incontestes e sinais fortes de uma presença marcante de sua
performance. Nossos olhares perscrutadores focaram esta mulher em períodos
distintos, tais quais: o período pré-islamico; o período das novas revelações do
profeta Maomé; o período do califado islâmico; o período da chegada ao Brasil, o
período de escravidão, imigração e de reversão ao Islã, já em solo brasileiro. E, por
fim, coroando este trabalho, um olhar especial sobre o mundo da mulher muçulmana
em São Paulo e sua religiosidade, percorrendo as questões culturais e de
identidade, seus conflitos advindos das relações de gênero muitas vezes balizada
por
relações assimétricas com o gênero masculino. Os conflitos culturais e os
enfretamentos da discriminação e preconceito étnico-árabe e as reivindicações de
um Islã mais brasileiro. A pesquisa se pautou qualitativamente por observações
participantes, depoimentos e entrevistas com mulheres muçulmanas de imigração e
descendentes e revertidas brasileiras, além de visitas a mesquitas da capital
Paulista.
Palavras Chave: Mulheres - Islã – Religião – Identidade - Gênero.
ABSTRACT
In this research, we´ll turn our eyes to the Muslim women´s world, her
trajectory was described in the pre-Islamic period, in the deserts and oases of
Arabian Peninsula. Her epic from Mecca even São Paulo city. This period comprise
one thousand and four hundred years approximately. Her presence and social,
religious and political acting. Her relation with Muhammad, Koran revelation and her
fight to gender equality are appointed in this research. Contemplate periods when
this woman left her undeniable accomplishments and strong signs of her presence.
The research is focused in this woman in different periods: pre-Islamic period, new
revelations of Muhammad period, the Muslim khalifat period, the arrival in Brazil
period, the slavery period; immigration and conversion to Islam in Brazil. And finally,
a special focus to Muslim women in São Paulo city and her religiousness that include
cultural habits and her sameness; her conflicts arising from an unequal relationship
with male gender.
The cultural conflicts and her fight against ethnic-Arabian
discrimination and prejudice, beside an Islam more adapted to Brazilian culture. The
research was based on qualitative observations, interviews with Muslim women
immigrants and descendants, Brazilian women converted to Islam, and visits to
mosques in the São Paulo city.
Keywords: Women - Islam - Religion - Identity - Gender.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES E FOTOS:
Figura 1 – Protótipo da Mulher Muçulmana Malê
Figura 2 – Escravo Muçulmano Malê
Foto 1 – Mulheres Muçulmanas em Oração na Mesquita Brasil – São Paulo
Foto 2 – Mulher muçulmana Brasileira Revertida – Mesquita do Pari – São
Paulo.
Foto 3 – Jovens Muçulmanas de Reversão/Imigração – Mesquita do Pari – São
Paulo.
Foto 4 – Jovens Negros Muçulmanos e Movimento Hip Hop – São Paulo
Foto 5 – Jovens Mulheres Muçulmanas e o Corão na Mesquita do Brás – São
Paulo.
Foto 6 – Mulheres Muçulmanas de Burca.
INDUMENTÁRIAS DA MULHER MUÇULMANA:
Foto 7 – O Niqab
Foto 8 – A Burca
Foto 9 – O Hijab
Foto 10 – O Xador
Foto 11 – O Niqab mais radical.
ABREVIAÇÕES:
1. CDIAL – Centro de Divulgação do Islã para a América Latina (e Caribe)
2. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
3. SBM – Sociedade Beneficente Muçulmana
SUMÁRIO:
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................13
1.
A ORÍGEM DO ISLÃ...........................................................................................16
1.1
A Construção da Ummah Islâmica...................................................................19
1.2
Um Islã, Duas Orientações: Xiitas e Sunitas....................................................22
1.3
A Mulher Muçulmana no Período Pré-Islâmico................................................25
1.4
A Mulher Muçulmana e As Novas Revelações de Maomé..............................30
1.5
A Mulher Muçulmana Na Busca da Igualdade de Gêneros.............................34
1.6
Mulheres e Esposas: A Relação com o Profeta Muhammad...........................41
1.7
A Mulher Muçulmana no Período do Califado Islâmico...................................48
2.
O ISLÃ EM TERRAS BRASILEIRAS.................................................................52
2.1
O Islã em Terras Brasileiras, Oriundo de Escravidão......................................54
2.2
A Religião como Motivação de Liberdade........................................................61
2.2.1 Fugas e Origem dos Quilombos......................................................................63
2.3
Islamismo e Comunidades de Quilombos.......................................................65
2.4
O Islã em Terras Brasileiras, oriundo de Imigração........................................68
2.5
A Mulher Muçulmana nos Primórdios da Imigração Para O Brasil.................71
2.6
A Mulher Muçulmana Revertida no Brasil (São Paulo)...................................74
2.6.1 A Mulher Muçulmana Revertida e o Contato Cultural.....................................76
2.6.2 A Mulher Muçulmana Revertida e a Arabização.............................................79
3.
SINAIS DE UM ISLÃ BRASILEIRO..................................................................81
3.1
Arabização: Obstáculo e Motivação Para Um Islã Brasileiro..........................81
3.2
Fatos que Podem Fortalecer a Idéia de Um Islã Brasileiro............................84
3.3
A Face Possível de Um Islã Brasileiro............................................................89
3.4
A Face Brasileira do Islã Periférico.................................................................95
3.4.1 Sinais da Institucionalização do Islã Periférico Brasileiro...............................98
3.4.2 A Presença da Mulher Muçulmana no Islã Periférico de São Paulo...........103
3.4.3 Islã Brasileiro e Preconceito na Visão Feminina...........................................105
4. A RELIGIOSIDADE DA MULHER MUÇULMANA NA CIDADE DE SÃO PAULO
4.1
Focando a Mulher Muçulmana na Cidade de São Paulo..............................110
4.1.1 A Mulher Muçulmana em São Paulo na Visão de Um Líder Revertido.......113
4.1.2 Contatando a Mulher Muçulmana de Imigração em São Paulo...................117
4.1.3 Contatando a Mulher Muçulmana de Reversão em São Paulo....................126
4.1.4 A Mulher Muçulmana e a Dominação Masculina..........................................130
4.1.5 A Mulher Muçulmana e as Revelações Corânicas........................................137
4.1.6 A Mulher Muçulmana e suas Indumentárias.................................................142
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................146
Referências Bibliográficas.......................................................................................150
ANEXOS..................................................................................................................159
INTRODUÇÃO.
A mulher, o gênero feminino em geral, em todas as partes do globo, ao longo
da história da humanidade, tem travado uma luta, em muitos momentos, luta
inglória, pela sua liberdade e pela sua emancipação frente, principalmente, ao
gênero masculino. Este trabalho sofre de uma restrição que acaba por limitá-lo e
muito, uma vez que, a proposta de investigação do mundo da mulher muçulmana e
sua religiosidade nasceram de um olhar masculino. A maioria dos pesquisadores
desta temática são do sexo feminino, o que admito, levam muita vantagem. Porém,
não me fiz de rogado. Um olhar masculino, ainda que panorâmico, através da
história e pontuado por situações reais de observações participantes, depoimentos e
entrevistas podem ser úteis para o avanço no entendimento deste tema tão
complexo. A bibliografia creio eu, pertinente e adequada ao tema proposto, deram a
consistência e liga necessária ao tecido desta investigação. Portanto, o trabalho se
baseou em uma boa pesquisa bibliográfica e nas pesquisas de campo, junto a
algumas comunidades islâmicas da cidade de São Paulo e mais as participações
observantes e entrevistas com mulheres revertidas e de imigração, além de
brasileiros revertidos que ampliaram o campo de visão do assunto contribuindo com
suas experiências e vivências com a mulher muçulmana nas comunidades islâmicas
de São Paulo e entorno.
Antes de adentrarmos, especificamente, o mundo da mulher muçulmana na
cidade de São Paulo e entorno, buscamos situar a mulher muçulmana e sua
performance através da história, desde Meca até São Paulo. Nosso olhar, ainda que
limitado, procurou abarcar os principais períodos da história islâmica desde o
período pré-islamico até as mesquitas paulistas, e como o Islã chegou em terras
brasileiras, sempre e, principalmente, tendo o cuidado de cavar as pepitas de ouro,
raras e escondidas nessa epopeia, ou seja, as mulheres muçulmanas em cada um
destes períodos históricos.
Qualitativamente, esta pesquisa contou com entrevistas com pelo menos seis
mulheres muçulmanas. Dentre elas, três brasileiras revertidas e três imigrantes de
primeira, segunda e terceira geração de imigrantes sírios e libaneses. Seus
depoimentos, respostas às perguntas feitas foram surpreendentes. Além de um
gerente de uma mesquita (mesquita Brasil) e um Sheik Brasileiro, de outra
comunidade islâmica (mesquita do Pari).
13
Dividido em quatro capítulos e suas respectivas divisões e subdivisões, o
trabalho iniciou no Capítulo 1, com a construção da Ummah islâmica e a
participação fundamental das primeiras mulheres muçulmanas. Suas performances
e cimentação do sistema islâmico mundial. Destaque para Khadija, Aisha e Umm
Salamah. Suas lutas pela igualdade de gêneros já naqueles tempos, e seus papeis
sociais, políticos, religiosos e familiares. Lembrando que o termo religião e
religiosidade são tratados nesta pesquisa como complementos, ou seja, religião
islâmica e religiosidade islâmica, sem a preocupação de definir, separadamente os
termos.
O capitulo 2 descortina, ainda que limitadamente, a chegada do Islã em solo
brasileiro. Destaque para o Islã de escravidão e a presença marcante do sexo
feminino. A formação dos quilombos e comunidades quilombolas e a revolta Malê,
fatos que marcam a resistência contra a desigualdade fortemente influenciada pela
religião islâmica. Volvemos neste capítulo nosso olhar para os imigrantes
muçulmanos que chegam ao Brasil fugindo de conflitos armados étnicos e religiosos
na Grande Síria, Líbano e Egito entre outros. Nessa página da imigração, a
presença feminina muçulmana não só é detectada, como também exerce fascínio
pelo seu desempenho. A mulher brasileira revertida começa a aparecer por aqui.
Seus primeiros contatos interétnicos e as questões da arabização já se encontram
em ebulição.
O Capítulo 3 faz uma alusão com dados verificáveis a um Islã que reivindica
mais cores brasileiras e menos cores árabes. São sinais de um Islã que nasce nas
periferias de São Paulo em movimentos de minorias negras, principalmente. Busca
um entendimento e razões do clamor contra o preconceito e discriminação por parte
das mulheres brasileiras revertidas, quando participantes de comunidade árabes
com forte etnicismo. Além dos movimentos de jovens negros do Hip Hop nas
periferias de São Paulo, incluindo mulheres, reivindicando um Islã brasileiro e não
arabizado, ideológico e político, referenciado por ícones muçulmanos ao redor do
Planeta, como por exemplo, Malcolm X.
Por fim adentramos o capítulo 4 que trata exclusivamente do desempenho
religioso da mulher muçulmana na cidade de São Paulo. Os olhares para essa
mulher e este seu mundo é compartilhado com outros olhares e também com outros
discursos, cujos conteúdos, ajudam na problematização da complexidade desta
realidade que envolve a mulher muçulmana, seja de imigração ou reversão na
14
cidade de São Paulo. As relações de gênero que envolve essa mulher, as relações
dessa mulher revertida brasileira com a mulher de imigração e os conflitos e/ou
fricções interétnicas conforme trata Roberto Cardoso de Oliveira (1976). As relações
dessa mulher com as revelações corânicas especificamente para sua vida religiosa,
social, política e cultural. E o assunto que é discutido quase que interminavelmente,
ou seja, o vestuário da mulher muçulmana desde sua concepção cultural, religiosa
até seu uso já consolidado e as fortes polêmicas que envolvem uma simples
vestimenta.
Por fim dialogamos com outros discursos que polemizam, adequam,
harmonizam e antagonizam este tema tão rico e tão distinto que, a reboque de
pontos de vistas discrepantes ainda não encontrou lugar e acomodação. Dentre
estes discursos, não deixamos de apontar, inclusive, as mídias em geral.
15
1. A ORIGEM DO ISLÃ.
Para adentrar, especificamente, o mundo religioso da mulher muçulmana na
cidade de São Paulo, é necessário, antes, apresentar, historicamente, uma visão
panorâmica da performance da mulher muçulmana a partir
da origem do seu
sistema religioso e as bases gerais que o sustentam, não obstante, sua
complexidade e variações culturais ao redor do planeta. O Islã não é somente um
grande sistema religioso. É, além disso, um fenômeno histórico, social, cultural e
ideológico de alcance mundial. Envolto em uma complexidade tal, que seria
ingenuidade dizer que o Islã é um só.
Existem, neste fascinante e complexo sistema religioso, muitos islãs. Cada
um desses, envoltos em suas próprias convicções e exalando suas próprias
nuances culturais, sociais e ideológicas, embora, o Corão e o Sunnah, e
acrescentado a esses, certas observâncias e ritos religiosos, são os elementos
aglutinadores dessa crença, ou seja, o epicentro de todos os muçulmanos ao redor
do mundo.
Geertz, em sua comparação do modus vivendis de mulçumanos em países de
culturas diferentes, no caso Marrocos e Indonésia, argumenta que, nestas duas
sociedades, apesar das diferenças radicais em seu curso histórico atual e, o
resultado final em seu desenvolvimento religioso, a islamização tem sido um
processo ambivalente. “Por um lado este processo tem consistido em um esforço
para adaptar um sistema de crenças e rituais universais, muito bem integrado
teoricamente, padronizado e relativamente invariável, dentro das realidades de uma
concepção local, inclusive individual, moral e metafísico”. Por outro lado, as
questões interétnicas quando se trata da transposição de fronteiras culturais e sua
assimilação por outros povos elenca outras possibilidades, dentre elas uma espécie
de assimilação e aculturação. (GEERTZ, 1994, p. 78).
Como observamos, historicamente, o islamismo tem penetrado e tem sido
assimilado por povos diferentes. As barreiras culturais são transpostas por
adequações ao novo sistema religioso, como já apontava Clifford Geertz em sua
obra “O Beliscão do Destino”, neste caso, faz-se alusão às vestimentas das jovens
mulheres muçulmanas de Java que, em uma espécie de adequação surpreendente,
16
preferiram utilizar o jilbab1, vestimenta que, por via de regra, está mais associada ao
uso das muçulmanas mais idosas e, religiosamente falando, mais ortodoxas da
região do Oriente Médio, dentro da religião islâmica. O jilbab é, portanto, uma
assimilação e aculturação de um símbolo oriundo do Oriente Médio e adequado ao
Sudeste Asiático pelas jovens muçulmanas javanesas. Verificamos, portanto, que a
religião como outras formas sociais, conforme afirmou Geertz, pode descrever
objetos, instituições, cognições, práticas, experiências, identidades, símbolos,
valores, moralidades dentre outros, cujas propriedades variaram no tempo e no
espaço, contudo, isto não significa que tenha existido em todo tempo nem em todo
espaço. (GEERTZ, 2001, p. 157).
Cabe-nos agora, volver nosso olhar para o Islã e apresentar os contornos
históricos da sua origem e de seu estabelecimento ao redor do mundo, com o foco,
sempre voltado, na atuação do gênero feminino, além de toda a gama de
complexidades inerentes à sua própria estrutura religiosa.
O estabelecimento do islã, primeiro na península Arábica2 e, posteriormente,
nas demais regiões adjacentes, não pode prescindir da construção de uma
identidade que, aos poucos e consistentemente, vai se constituindo na grande
comunidade universal que reúne em torno de si, elementos étnicos, culturais,
sociais, ideológicos, políticos e religiosos. Esses elementos emprestam o que
podemos denominar de tijolos que são assentados nas paredes e que vão
constituindo-se no edifício que culminará na existência da Ummah Islâmica mundial.
Possuidora de elementos identitários que a evidenciam, praticamente, em todas as
partes do globo, onde estão os muçulmanos.
Segundo
Fernand
Braudel3
a
história
do
Islamismo
antecede
as
peregrinações de Mohamed:
“A história do islamismo tem raízes anteriores à pregação de Maomé, pois é
constituída não só pelo que o profeta legou, mas também por toda a herança dos
1
Jilbab: Origem Persa, Do árabe jilbab, Uma peça de vestuário exterior de corpo inteiro,
tradicionalmente cobre a cabeça e as mãos, deixando o rosto à mostra. Parecido com o Hijab,
contudo tem alguns detalhes que o diferenciam. Usado em público por algumas mulheres
muçulmanas. Minha ênfase.
2
A Arábia, também conhecida como península Arábica ou Árabe, é uma vasta península localizada
na junção da África e da Ásia, a leste da Etiópia e ao norte da Somália, ao sul da Palestina, da
Jordânia e da Mesopotâmia, e ao sudoeste do Irã. (escola.britannica.com.br/article/480639/peninsulaArabica). Minha ênfase.
3
O francês Fernand Braudel se formou em História pela importante Universidade de Sorbonne. foi um
destacado Historiador do século XX e importante membro da Escola dos Annales. Nascido em
Luméville-em-Ornois no dia 24 de agosto de 1902 e falecido em 27 de novembro de 1985).
17
povos que anteriormente dominaram a região aonde veio a proliferar o Islão. A
civilização derivada, de segundo grau, não se edificou a partir de uma tábua rasa,
mas na turfa dessa civilização matizada e muito viva que a precedeu no oriente
próximo” (BRAUDEL, 1989, p.56).
Braudel aponta as peregrinações a Caaba e ao monte Arafat, cuja prática
antecedeu à revelação, supostamente, dada a Muhammad, tendo sido por este,
anexadas ao sistema religioso islâmico. O instrumento que viria a dar consistência e
formato à práxis religiosa islamita iniciaria a partir de 610 d.C., quando começou um
novo e decisivo período na história dos muçulmanos em todo o mundo. A partir
desta data e até o ano de 632, ano da morte de Muhammad (Maomé), ocorre,
supostamente, a Revelação a Muhammad por parte do anjo Gabriel, aquilo que seria
a base e constituição do código maior de conduta religiosa de todos os muçulmanos
em todo o mundo: o Corão.
18
1.1 A Construção da Ummah Islâmica.
Observado em seu conteúdo primeiro em Meca e seguidamente em Medina,
a identidade islâmica é definida por volta de 622 em Medina, ou seja, a Ummah 4,
uma comunidade social com identidade definida e que partilha princípios comuns. A
partir desse momento, a força ideológica do movimento islâmico começa a ser
sentida e vivida:
“A filiação a esta associação (Ummah) significa o conhecimento dos seus
estatutos, a crença em seus princípios, a obediência às suas determinações e
uma vida coerente com a mesma [...] Quem entrar no Islã tem de aceitar, primeiro,
os seus fundamentos racionais e crer neles totalmente, até que constituam, para
ele, uma ideologia.” (Ribeiro, 2013 apud ATTANTÁWI, s.d., p.20).
Segundo Ribeiro, além de uma aceitação dos seus fundamentos de maneira
absoluta, também é a assimilação de um conjunto coerente de representações,
valores, crenças, atividades religiosas, princípios morais, estéticos e filosóficos que
amalgamam, ideologicamente, a identidade islâmica.
Desta maneira, a ideologia funciona como uma força que oculta as
contradições, reconstrói em um plano imaginário um discurso relativamente coerente
que vai nortear as relações dos agentes, dando forma e significado a suas
representações, inserindo-os na unidade das relações de uma nova estrutura.
(OLIVEIRA, 1976, p. 40).
Maomé vai organizando e unindo em torno da Ummah mais clãs, mais tribos,
mais povos e mais territórios. Com este franco crescimento, necessário foi, além do
Corão, o surgimento da Shariah e do Sunnah, além de outros escritos para a
regulamentação da prática religiosa e da vida civil muçulmana, ambas as práticas
não se separam, pelo contrário se ajustam e coexistem.
O Corão vai se tornar a mais importante fonte da jurisprudência islâmica,
sendo o Sunnah5, obra que narra a vida e os caminhos do profeta Muhammad, a
segunda fonte mais importante. Não é possível praticar o islã sem consultar ambos
4
Ummah: comunidade islâmica universal. Uma comunidade social com identidade definida e que
partilha princípios comuns em qualquer parte do mundo. http://www.arresala.org.br/dic.ph. Minha
ênfase.
5
Sunnah - narra as experiências próprias, pessoais do profeta. Diferente dos Ahadth, uma vez que
estes narram o que o profeta aprovava e não suas experiências pessoais. Há semelhanças, contudo,
não é igual, ou seja, ambos têm diferentes empregos. Há diferença entre o que se fala e opiniões a
respeito de algo, e o que se faz ou o que se vive pessoalmente. Minha ênfase.
19
os textos. A partir do Sunnah relacionada, mas não igual, vem os Ahadith6, que
significam as narrações do profeta. Um hadith7 é uma narração acerca da vida do
profeta ou o que ele aprovava – já a Sunnah é a própria vida do profeta, suas
experiências de vida. Portanto, apesar das semelhanças, não são iguais em seu
propósito. O ijma8, por sua vez, significa o consenso da comunidade, aceito como
uma fonte menor de autoridade. O Qiyas9 é o raciocínio por analogia, foi usado
pelos intérpretes da religião e leis islâmicas. O Mujtahidun10, usado para tratar de
situações em que as fontes sagradas não fazem referência alguma e não prevêem
regras concretas. Algumas práticas incluídas na Shariah11 têm também algumas
raízes nos costumes locais – Al-Urf12. A shariah é o corpo da lei religiosa islâmica.
O termo Shariah significa “caminho” ou “rota para a fonte de água”, é a
estrutura que regula as questões públicas e privadas de todos os adeptos do
islamismo, ou seja, para todos os muçulmanos que vivem sob um sistema legal
baseado na figh13princípios islâmicos da jurisprudência e também para os
muçulmanos que vivam fora dos seus domínios. Por fim, a Shariah lida com os mais
diferentes aspectos da vida cotidiana dos muçulmanos, tais como a política,
sociedade, economia, sexualidade, higiene, negócios, bancos, contratos, família etc.
Todos estes escritos, tendo como carro chefe o Corão, conferiram uma
identidade ao islamismo. A Ummah estava em plena gestação. Mais tarde, os laços
de sangue, ou seja, a origem étnica seria substituída pelos laços de fé, sem,
contudo, isentar-se dos conflitos interétnicos procedentes de sua iminente
universalização religiosa. Mohamed ansiava pela universalização do novo credo
6
Ahadith - é o plural de hadith. Minha ênfase.
Hadith - significa "discurso". Um provérbio ou da tradição do Profeta Muhammad. Minha ênfase.
8
Ijma - literalmente, significa "consenso". Refere-se o consenso dos estudiosos muçulmanos sobre
um assunto específico. Ijma “está dividido em dois tipos:” Ijma “jaliy" é quando todos os estudiosos
concordam explicitamente sobre um assunto. O segundo tipo é "Ijma” sukuti, onde um estudioso sabe
de um assunto específico e não falou contra ela, por isso é considerado um acordo de silêncio. Minha
ênfase.
9
Qiyas – significa dedução analógica da lei (raciocínio individual). Minha ênfase.
10
Mujtahidun – usado nos casos novos em que não há nenhuma referencias pelas fontes sagradas
e nem jurisprudência. Minha ênfase.
11
Shariah - um abrangente e transmutável sistema de jurisprudências islâmicas, encontrado no
Alcorão e na Sunnah, que cobre todos os aspectos da vida, incluindo as rotinas diárias, higiene,
papéis familiares e responsabilidades, a ordem social e conduta, diretivas sobre as relações com
muçulmanos e não-muçulmanos, obrigações religiosas, transações financeiras e muitas outras
facetas da vida.
12
Al-Urf – Leis motivadas pelos interesses públicos, desde que autorizadas pelas fontes principais na
seguinte ordem: Alcorão, Sunnah, Ijma e Qiyas. Minha ênfase.
13
Figh - significa jurisprudência islâmica. Minha ênfase.
7
20
religioso que unisse o povo e o identificasse numa mesma unidade religiosa, política
e de valores. É o crescimento e avanço do islamismo ultrapassando fronteiras e
tornando-se um sistema religioso mundial com, primariamente, reivindicações de
cunho estritamente religioso e com idéias nobres que seriam disseminadas entre
povos diferentes, de culturas e identidades distintas, porém, considerados todos
iguais pelo novo credo e pelo seu código maior de conduta religiosa, o Corão.
Baptista revela estes ideais apregoados para, entre outras intenções,
cimentar a base pela qual se sustentaria todo o mundo islâmico, independentemente
de fronteiras culturais étnicas, políticas e ideológicas. Assim, foi ordenado por
Muhammad e assim foi se dando a construção daquele que é, hoje, um dos maiores
sistemas religiosos do mundo. Eis os pilares do modus vivendis de cada mulçumano
em qualquer parte do planeta:
“Uma religião simples com a qual os fiéis se identificam e que assenta em cinco
pilares: crer num Deus único, Aláh, de quem Maomé foi mensageiro; orar cinco vezes
ao dia; dar esmola aos pobres; jejuar no Ramadão; e fazer a peregrinação a Meca,
pelo menos uma vez na vida. Uma comunidade em que o predomínio dos laços de
sangue seja substituído por uma união de fé, em que os cidadãos rezam e trabalham,
obedecem a Deus e aos decretos dos homens. Uma comunidade sem limites nem
fronteiras geográficas, regida por princípios de solidariedade interna, porque se trata
de um só povo, porque se trata de uma só comunidade: a Ummah Muslimaŗ. Esta
unidade seria a garantia da sobrevivência dos povos que a ela aderissem, uma vez
que estes, solidários entre si, seriam mais capazes de se proteger contra investidas
de tribos vizinhas. Após a morte de Maomé, em 632, e no cumprimento das ambições
do Profeta, dá-se a expansão islâmica em direcção aos povos vizinhos, levada a cabo
pelos califas inicialmente escolhidos como sucessores de Maomé e que teria por
base os ensinamentos do Alcorão, a difusão da fé islâmica”. (BAPTISTA, 2011, p. 6).
21
1.2 Um Islã, Duas Orientações: Xiitas e Sunitas.
Com a sua identidade constituída e em pleno avanço, o império com base
fundante em uma espécie de teocracia vai experimentar, com a morte de seu
fundador, seu primeiro grande teste de sobrevivência e, provavelmente, sua primeira
grande crise. Com o falecimento de Muhammad e a não indicação de um sucessor
ou mesmo a forma de como este deveria ser escolhido, o império islamico entra em
crise de sucessão e de fonte de autoridade. A escolha do seu sucessor suscitou
grandes e fracturantes questões que ainda prevalecem até hoje, caso do grande
cisma, após a morte de Muhammad, que dividiu os muçulmanos em Xiitas e Sunitas.
O cisma que deu origem as duas orientações islamicas, ou seja, Xiitas e Sunitas,
teve sua orígem na guerra civil de 4 de dezembro de 656. A guerra declarada contra
Ali, iria colocar em lados opostos os partidários de Amir (sunitas) e os partidários de
Ali (xiitas).
Sunitas: grupo majoritário; insistem no sunnah (caminho) que vem do fundador sem
interrupção. Afirmam que os quatro califas foram sucessores legítimos de
Maomé. Xiitas: sustentam que os legítimos sucessores são os familiares de Maomé,
a começar do seu primo e genro Ali. Esses sucessores (em número de 7 ou 12) são
conhecidos como "imãs". Os xiitas estão, principalmente, no Irã e África.
(http://www.mackenzie.br).
Os xiitas (Shiat Ali, que significa facção de Ali), foi formada por apoiadores de
Ali e nasceu ainda no tempo dos três primeiros califas. Veio adquirir com a dinastia
Omíada e por oposição a esta uma força extra. Os xiitas defendiam que o novo líder
da Ummah deveria ser descendente direto do profeta Muhammad e não eleito, daí a
lógica de que a autoridade islâmica caberia, legitimamente, por direito divino, a
Muhammad e aos seus descendentes.
Os xiitas, portanto, consideraram que os três primeiros califas foram
usurpadores, negando a Ali a liderança legítima da Ummah. Os xiitas se apegavam
ao fato de que Ali, segundo relatos, Muhammad designava como seu representante
em suas ausências. Diante da
convicção xiita da usurpação do três primeiros
califas, aqueles (xiitas), rejeitaram o chamado consenso da comunidade, ou seja, o
Ijma. Para os xiitas foi este consenso da comunidade que esteve na base da escolha
dos três primeiros califas. O Sunnah também é rejeitada pelos xiitas. Estes
consideram válidos apenas os Ahadith do profeta Muhammad transmitidos pelos
22
Imãs. Por outro lado, os sunitas consideram o Sunnah importante fonte de direito,
bem como o Ijma.
Para os sunitas, a escolha do califa Abu Bakr Assadik para sucessor de
Muhammad, foi a mais acertada, uma vez que este mantinha uma relação muito
próxima com o profeta. Em seguida, Abu Bakr teria escolhido Omar I pelo fato de
este também ser próximo de Muhammad e também pelo fato de sua antiga e
experiente relação com o mundo do Islã.
As qualidades de Ali e suas características de muçulmano fiel eram
reconhecidas, contudo, a sua pouca idade era apontada pelos sunitas como uma
desvantagem na sucessão, além de considerarem que a sucessão familiar seria
contrária aos ensinamentos islamicos. (BRAUDEL, 1989, p.56).
Segundo Braudel, além do momento cismático que dividiu o islamismo em
duas ramificações internas principais, ou seja, xiitas e sunitas, lembramos ainda do
do sufismo14 que não é, nesta pesquisa, temática principal. Sunitas e xiitas são os
dois grupos majoritários dentro do sistema religioso islamita. Podemos ver que a
base de sua identificação e código de conduta religiosa permaneceu, de modo geral,
intacta, ou seja, sobreviveu sem maiores danos à sua primeira grande crise: Abu
Bakr Assadik, sogro do profeta Muhammad, foi escolhido pelo consenso da
comunidade (Ijma) para a direção da Ummah a partir de 632 até 634, este falece em
fins de 634. Umar ibnal-Khattab (Omar I) assume, como segundo califa, as rédeas
da Ummah, cuja escolha foi antencipada por Abu Bakr, recorrendo ao mesmo
expediente que o levou à liderança máxima do Islão, ou seja, o Ijma, consenso da
comunidade. A antecipação de Abu Bakr na escolha de Omar I teve como propósito
evitar o que seria a segunda grande crise da comunidade islâmica. A unificação da
peninsula Arábica e a conquista da Síria, do Egito, de Jerusalém e da Pérsia se dá
durante o primeiro e o segundo califados. Percebemos a franca expansão e
estabilização da Ummah.
14
Sufismo: Sufis (de suf = veste de lã tosca): místicos com tendência panteísta; concentram-se no
Irã e na Índia. História posterior: Maomé morreu sem deixar um sucessor designado.
(http://www.mackenzie.br) Minha ênfase.
23
Omar I foi assassinado em 644, sem, contudo, nomear um seu sucessor,
como procedeu Abu Bakr, antes de morrer, contudo, um conselho foi designado para
fazê-lo.
Sobe ao poder o terceiro califa Uthman Ibn Affan, este liderou os muçulmanos
entre 644 a 656. Não foi pacífica sua subida ao poder e liderança da Ummah, tanto
que, seu assassinato ocorreu em 656, por muçulmanos insatisfeitos quanto à forma
de sua subida ao poder e quanto à sua maneira de liderar a comunidade
muçulmana.
Sucede ao califa Uthman Ibn Affan o califa Ali Ibn Abu Talib, genro e primo do
profeta Muhammad, casado com Fátima, filha do profeta. Ali é o quarto califa que
sobe ao poder e ao comando da Ummah. Foi nomeado num momento em que a
maioria dos seus apoiantes à liderança da comunidade islâmica estava em Medina.
Ali acaba assassinado em 661 por um muçulmano de nome Amir Muwiya, que não
se conformava com sua nomeação para líder e o acusava de ser o responsável pela
morte de Uthman, o terceiro califa, que pertencia ao clã de Muwiya, os Omiádas.
Fica evidenciado que os primeiros quatro califas, ou seja, Abu Bakr, Omar I,
Uthman e Ali foram escolhidos pelo expediente do Ijma, ou seja, o consenso da
comunidade. Foram considerados os mais virtuosos e mais importantes para a
Ummah e, ainda hoje, como os mais importantes para o mundo muçulmano.
Após a morte de Ali, Muwiya se auto-intitulou califa e chega ao poder sem
passar pelo Ijma. Usa a força para chegar à liderança máxima da comunidade
islâmica. Não havia consenso da comunidade para sua liderança, contudo, lidera a
Ummah entre 661 e 680. Sua truculência criou uma ruptura no mundo islâmico. Daí
por diante é instituído o califado hereditário. Muwiya decide transferir a capital do
Império árabe para Damasco, dando início à dinastia Omíada (661-750) e
posteriormente a dinastia Abássida (750-1258). (BRAUDEL, 1989, p.57).
24
1.3 A Mulher Muçulmana no Período Pré-islamico.
Com base na genealogia árabe pré-islamica15, que remonta às narrativas
bíblicas de Gênesis capítulo dez, supostamente, assinala que os árabes seriam
descendentes de Sem (daí “semitas”), um dos filhos de Noé, que teriam se dividido
em dois grupos principais: o dos “árabes genuínos” (os “kalbitas” ou “iemenitas”),
camponeses sedentários do sudoeste da península, cujo epônimo 16 seria o patriarca
bíblico Qahtan, descendente direto de Sem; e o dos “árabes arabizados” (os
“qaisitas”), habitantes nômades e seminômades do centro e norte da Arábia, cujo
antepassado seria Adnan, descendente de Ismael, filho de Abraão com a escrava
Hagar.
Fica claro que os primeiros árabes eram os, atualmente conhecidos beduínos,
povos nômades, habitantes do deserto e profundos conhecedores da península
Arábica. Estes habitavam esta região bem antes do nascimento e instituição do Islã.
O elemento étnico era e ainda é o elo de reconhecimento nacional do genuíno árabe
pré-islâmico. Por muitos e muitos anos, pastores beduínos nômades da região norte
e da região central da península Arábica se locomoviam para a região do Crescente
Fértil. Com eles veio o seu ethos e sua maneira de organizar-se socialmente.
Além dos árabes beduínos, com característica nômade, havia os árabes
urbanos, ou seja, habitantes sedentários que fizeram com que surgissem cidades
como Meca e Yatrib (Medina). Estas cidades se tornaram grandes centros de
comércio. Não havia, neste período, o que podemos denominar de uma união
política destes povos. Esta união acontece a partir de pontos comuns como, por
exemplo,
o
idioma
árabe
e
a
fé
religiosa
ainda
politeísta.
Existiam,
aproximadamente, mais de 360 divindades cultuadas. Este politeísmo irá ter fim com
a união destes povos em torno da nova fé que surgia no horizonte: o islamismo.
15
Período pré-islamico: Cada clã ou etnia possuía um ou mais deuses que poderiam ou não ter um
correspondente nos demais grupos. Na região de Meca, as principais deusas eram Manat, Uzzah e
al-Lat, adoradas através de estátuas de cerâmica de formato totêmico e antropomórfico, e filhas de
Allâh, um deus hierarquicamente superior aos demais, o que refletiria, talvez, o surgimento de
um monoteísmo rudimentar, pouco antes do início da era islâmica. Revista "História Viva"edição especial "Grandes Religiões n. 4: Islamismo", maio de 2007. Grifos meus – ênfase minha.
16
Epônimo: adjetivo. s. m. Que, ou o que dá seu nome a alguma coisa – no caso Qahtan,
descendente bíblico de Sem, dá seu nome aos “árabes genuínos” , ou seja, aos habitantes
sedentários do sudoeste da península Arábica. (Dicionário Brasileiro Globo. São Paulo: Globo, 1996,
p. 254). Minha ênfase – Grifos meus.
25
Surge a Caaba (casa de Deus, ou melhor, neste período, de todos os
deuses). Também surge a pedra negra, supostamente trazida do céu pelas mãos do
anjo Gabriel. (HOURANI, 1996, p. 25).
Meca e Medina além de fortes pontos comerciais e rota para diversos outros
destinos, possuíam ainda um grande corpo de sacerdotes religiosos, representantes
de vários “deuses” e/ou entidades religiosas.
Esta característica de uma religiosidade acentuada permitia ainda que,
através do fator religião, ideologicamente, os sacerdotes pudessem imprimir um
controle sobre as populações ali fixadas e também sobre aquelas consideradas
flutuantes. Para Meca e Medina concorriam muitas etnias que viviam espalhadas por
toda a Península Arábica e, mesmo de fora dela. Este movimento tinha como
objetivo último, congregar as diversas rotas comerciais para um só centro. A
religiosidade politeísta e a presença de deuses para todos os gostos era o principal
fator de atração e concentração dos povos árabes peninsulares. Este movimento vai
originar, mais tarde, com novo ethos, o que vemos hoje na moderna Meca
monoteísta e unida em torno do Islã.17
Como vimos, na região de Meca e Medina, no período imediatamente anterior ao Islã,
os povos sedentários (agricultores, artesãos e comerciantes) não se consideravam
árabes, e nem eram assim chamados por outras comunidades (tanto nômades como
sedentárias) da península. De fato, os “árabes”, pouco antes da época de Mohamed e
de seus contemporâneos, eram os beduínos nômades, que viviam no deserto e nas
periferias dos oásis e cidades. Para eles, os rebanhos e as terras de pastagens eram
coletivos, pois não existia propriedade individual do solo. Assim, a unidade social era
o grupo, e não o indivíduo. Este tinha direitos e obrigações apenas como membro de
uma coletividade organizada em torno de várias famílias, que, através de relações de
parentesco, formavam clãs, a fim de unirem-se em torno de um núcleo comum mais
amplo, a etnia, o limite do reconhecimento nacional árabe pré-islâmico. (Revista
“História Viva”, edição especial: “Grandes Religiões” nº 4: Islamismo”, maio de 2007).
A ordem social árabe pré-islâmica, especialmente a sedentária, pautava-se
pela hierarquização das relações sociais, em que a possibilidade de ascensão social
era reduzida para quem não fosse cidadão de plenos direitos, isto é, que não
pertencesse à relação “homem-nobre-livre”, superior à da “mulher-plebeu-escravo”.
Embora homens e mulheres ocupassem funções sociais bem determinadas, em que
17
(slamicaforum.blogspot.com.br/).
26
não poderiam imiscuir-se nas responsabilidades uns dos outros, as relações
patriarcais dominavam sobre as matriarcais. Portanto, ao chefe de família aristocrata
(beduíno ou sedentário), era facultado possuir o número de esposas, concubinas e
escravos que pudesse manter, na medida em que possuí-los e ostentá-los era sinal
de riqueza pessoal e da etnia, requisitos para ser considerado “nobre” e, pois,
cidadão pleno. (KEDDIE, 2007, p. 59).
O ambiente feminino deste período se restringia a um ambiente doméstico,
onde as mulheres, além de terem a função de educarem seus filhos e zelarem pela
honra familiar, cultivavam lavouras e cuidavam dos rebanhos coletivos. Havia
aquelas que trabalhavam como pequenas comerciantes e artesãs locais, contudo, o
comércio de longas distancias efetuados pelas caravanas eram restritos aos homens
por via de regra.
Outras questões de grande complexidade social, tais como a poligamia
praticada pelos árabes pré-islâmicos atendia a um objetivo de auto proteção social
contra a desagregação familiar e desestruturação do grupo, além de objetivar um fim
comercial. Os riscos para uma vida nestes moldes eram grandes e imediatos, tais
quais: morte, sequestro, desaparecimento ou mesmo uma fuga de um grupo para
outro.
Por estas e outras situações ameaçadoras da estabilidade e manutenção do
clã, medidas sociais importantes eram previstas, como por exemplo, quando muitos
dos homens do clã ausentavam-se para viagens comerciais, a etnia tinha o dever de
cuidar da viúva, da mulher abandonada e de seus órfãos. Esta realidade social
prevista permitiu que outro homem (às vezes um parente), desposasse a mulher e
adotasse seus filhos. Esta previsão e, assimilação pelo clã, pode e deve ser
considerado o embrião da questão poligâmica no Islã, ainda hoje, em alguns países.
Lembrando que a poligamia nestes tempos, em muitas situações, tinha a
vantagem de aumentar o patrimônio do homem, além de seu prestígio individual e
do seu clã. Isto acontecia, principalmente, nos casos de mulheres de tribos inimigas
prisioneiras de guerra ou mesmo sequestradas. Podiam ser vendidas ou mesmo
aumentar o harén individual dos homens. Mas, contudo, o pior para o sexo feminino,
viria em tempos de crises econômicas que, caso surgissem concomitantemente com
27
muitos nascimentos de bebes do sexo feminino, numa mesma família ou clã, o
infanticídio18 de algumas meninas era praticado com o funesto costume de enterrálas vivas.
Segundo Oliveira, os grupos sociais que se articulam em termos políticos com
base em critérios étnicos, trazem, consequentemente, implicações para a cultura. Os
sinais de identificação e de afirmação são influenciados, diretamente pela cultura,
para dar realce às fronteiras desta relação. Desta forma, pode ocorrer a revitalização
de traços culturais específicos e tradicionais, ou seja, o estabelecimento de tradições
históricas para justificar e glorificar a identidade, no nosso caso, da afirmação de
uma classe social superior, ou seja, do homem-nobre-livre, em detrimento da
mulher-plebeu-escravo. Portanto, os traços culturais herdados de tribos peninsulares
árabes eram usados como estratégias na relação de confronto cotidiano e na
afirmação de uma classe social superior em detrimento da outra. Os valores da
cultura podem ser capazes de dar força nesta confrontação afirmativa. A identidade,
portanto, serve para marcar o lugar do outro grupo, para deixar nítido o contraste
entre eles, para singularizar um em relação ao outro e para marcar diferenças
hierárquicas entre eles. Ou ainda, quando se refere às questões que envolvem
unidades étnicas assimetricamente relacionadas, mas, contudo presas a um sistema
de dominação-sujeição, caso do gênero masculino sobre o feminino, neste período,
a que nos referimos, da dominação da mulher muçulmana pelo homem muçulmano;
pode corresponder, perfeitamente, a uma estrutura de classes, em que as questões
dominação-sujeição obedecem a uma dinâmica social. (OLIVEIRA, 1976, p. 13).
A comunidade islâmica derivada após 622, denominada de segundo grau,
não foi, portanto, construída a partir de uma tábua rasa, mas sobre uma base mais
que embrionária, que já deixava descortinar-se como uma estrutura que, não
obstante, possuir em sua “genética” uma saudável e ávida busca pela existência,
matizada e muito vivaz; evidenciou-se também como um sistema absolutamente
marcado pela dominação masculina que, com momentos de exceção na história,
18
Em épocas de crises econômicas, aliadas a altas taxas de natalidade feminina numa mesma
família ou clã, era permitida a prática do infanticídio feminino, exclusivamente, cuja prática, na maioria
das vezes, consistia no sepultamento da menina ainda viva. http://islamicaforum.blogspot.com.br/.
28
caracterizou-se por ser uma comunidade indelevelmente identificada pelo domínio
patriarcal. (BRAUDEL, 1989, p. 5).
Neste tempo pré-islâmico, sobretudo na Arábia, quando as mulheres eram
contadas com a herança recebida pelos homens. Não só a terra, não só os camelos,
não só o carneiros. As mulheres faziam parte do pacote herdado. A mulher era,
literalmente, tida como um objeto. Terminado o período pré-islamico, ou seja, tempo
de gestação do islamismo, foi criada uma espécie de hiato histórico entre Meca e
Medina. Baptista faz alusão a outras situações prejudiciais à mulher no período,
imediatamente posterior às novas revelações trazidas ao profeta, que davam um
relativo status igualitário às mulheres:
Todavia, a partir do período de Medina surgem versos corânicos discriminatórios em
razão de gênero, constituindo severas limitações aos direitos civis e políticos das
mulheres. O papel de guardião e o exercício da autoridade do marido sobre a esposa
ganha legitimidade através de versículos corânicos como: Os homens são superiores
às mulheres pelas qualidades com que Deus os elevou acima delas e porque os
homens gastam os seus bens a dotá-las. As mulheres virtuosas são obedientes e
conservam cuidadosamente durante a ausência de seus maridos, o que Deus lhes
confiou. Aí vive e é alimentado o dever de obediência das esposas aos maridos,
tornando, consequentemente, lícito o direito dos maridos disciplinarem as suas
esposas sempre que estas não acatem tal dever. Associadas a tal princípio islâmico
que rege a relação entre o casal, surgem outras limitações aos direitos das mulheres.
Como exemplo de tais limitações temos a proibição de a mulher aparecer e falar
publicamente [...]. (BAPTISTA, 2011, p. 109 – grifos meus).
Uso o termo transição, para apontar alguns fatos que deixam à mostra um
espaço maior de atuação das esposas do profeta no que tange ao papel social, civil,
religioso e ideológico antes de Medina. Este é um tempo que antecede o ano de
622, data da fundação definitiva do Islã. Antes, porém, o que denominamos de
período pré-islamico, tem início anterior ao ano de 610. Ao se espalhar, o islã
incorporou costumes tribais de cada lugar. As escrituras islâmicas, que mais tarde
tornam-se códigos de conduta para todos os muçulmanos, começam a ser
interpretadas de uma maneira mais machista com base nas tradições tribais locais.
29
1.4 A Mulher Muçulmana e as Novas Revelações de Muhammad.
Contudo, uma nova revelação é trazida à baila desta realidade, inpensada por
nós ocidentais, a respeito da condição da mulher muçulmana pré-islamica: “Ó vós
que credes! Não vos é lícito herdar às mulheres, contra a vontade delas. E não
as impeçais de se casarem de novo (...)” (Surata 4.19)19.A partir de novas
revelações do profeta Muhammad, as mulheres vislumbram alguns momentos, na
história do Islã, de quase uma mudança de atuação na estrutura social, familiar e
religiosa, sobretudo. Não ficam, por um curto período, a reboque das interpretações
dominantes masculinas e misóginas que, infelizmente, já apontavam, um horizonte
sombrio para o gênero feminino no Islã. Este período sombrio viria com o período
dos califas.
Mas, antes desse tempo, uma esperança, no que tange à performance da
mulher está iniciando. Tudo, relativamente ao período pré-islamico, muda.
Metaforicamente, seria o tempo do desabrochar das flores. Agora as mulheres estão
em pé de igualdade com os homens. Esta igualdade, em pleno século VII, estava
distante, pelo menos uns mil e duzentos anos antes de qualquer idéia, que pudesse
surgir, relativa aos movimentos feministas ocidentais em luta pelos direitos das
mulheres.
Este curto tempo, em que as novas revelações do profeta deixaram para trás
as imposições discriminatórias do período pré islamico e do tempo sombrio do
califado, que se aproximava, foi um tempo em que as mulheres, sequer
mencionadas nas revelações, veem sua condição mudada. Tanto que uma das onze
esposas de Muhammad Umm Salamah Hind bint Abi Omaiyah, perguntou a este:
“por que só se mencionam os homens no Corão e as mulheres não?”. A resposta
conforme relata a socióloga muçulmana Fátima Mernissi (1999), veio algum tempo
depois.
Uma nova surah20 (capítulo do Corão) revelada ao profeta Muhammad
iniciava-se, originariamente por versos para lá de discriminatórios das mulheres, pior
que isso, elas não eram nem lembradas. Sua existência nestas questões era
19
20
Alcorão – Surata 4.19 - Minha ênfase
Surah ou Surata – são os capítulos que compõem o Corão Sagrado. Minha ênfase – Grifos meus.
30
absolutamente negada. As mulheres, até então, tinham sua existência lembrada em
situações pontuadas, tais como: cozinhar, plantar, colher, gerar filhos e entregá-los
aos maridos, uma vez que a estrutura matrifocal de família, só viria a existir com as
novas revelações dadas ao profeta Muhammad. A partir destas novas revelações,
versos com forte ênfase na igualdade de gêneros, praticamente, permeavam todos
os setores da vida, tais como o religioso, civil, e, sobretudo familiar.
A estrutura familiar, agora, é matrifocal. As novas revelações promoveram as
mulheres muçulmanas em geral e, apontavam para uma relação, no mínimo
libertadora, do jugo e do ranço patrifocal: “Os homens submissos, Os homens
crentes, Os homens piedosos, Os homens sinceros, Os homens pacientes, Os
homens que temem a Allâh, Os homens que dão esmola, Os homens que jejuam,
Os homens que custodiam suas partes pudendas, Os homens que invocam muito a
Allâh”. Estas eram antes, as menções do Corão. Após o questionamento de Umm
Salamah ao profeta Muhammad, passaram a mencionar ambos os sexos: e as
mulheres submissas, e as mulheres crentes, e as mulheres piedosas, e as
mulheres sinceras, e as mulheres pacientes, e as mulheres que temem a Allâh,
e as mulheres que dão esmola, e as mulheres que jejuam, e as mulheres que
custodiam suas partes pudendas, e as mulheres que invocam muito a Allâh.
Para eles, (homens e mulheres), Allâh preparou perdão e magnífica
recompensa21. (MACHADO, 2010, p. 84).
A grande maioria daqueles que se debruçam sobre as questões de gêneros
no Islã, são de opinião firmada, de que o Corão é menos discriminatório das
mulheres quando comparados a muitos ahadith. Para os estudiosos do assunto, o
Corão atribui igualdade de direitos a homens e mulheres, contudo, muitos ahadith
contradizem esta perspectiva corânica de igualdade. Exemplo disso são os ahadith
que vieram após o Corão e juntamente com ele, são, respectivamente, as fontes
mais respeitadas como códigos de conduta da Ummah islâmica, contudo, ahadith
entram, não poucas vezes, em contradição com o Corão. Vejamos, por exemplo, no
Bukhari encontramos um hadith que, contrariamente ao Corão, discrimina e rebaixa
o gênero feminino:
21
Corão – Surah 33.35 – Minha ênfase – grifos meus.
31
“O Profeta exortou as mulheres a serem generosas nas suas oferendas, pois
quando vislumbrou as chamas do Inferno, constatou que a larga maioria das
22
pessoas atormentadas eram mulheres. As mulheres ficaram furiosas, tendo-se
uma delas levantado de imediato para saber a que razão se devia aquilo. – Porque –
respondeu ele – as mulheres resmungam muito e são ingratas para com os seus
maridos! Mesmo que os pobres passem a vida a fazer coisas por vocês, basta-vos
estar aborrecidas com qualquer coisa para dizerem: ‘Nunca me fizeste bem nenhum!’
E então as mulheres começaram a tirar as alianças energicamente e atirá-las à capa
de Bilal.” (Bukhari 1.28, Abu Dawud 439). Minha ênfase – Grifos Meus.
Podemos reparar que o tom e o conteúdo do hadith supramencionado esta
repleto de domínio masculino. Em contrapartida, quando comparamos com o
questionamento de Umm Salamah ao profeta, acima citado, percebemos o tom
conciliador e igualitário para os gêneros femininos e masculinos, da nova revelação
corânica, trazida ao profeta Muhammad.
Percebemos, entre outras verdades, que a esposa do profeta tem a liberdade
de questioná-lo quanto ao tom discriminatório contra as mulheres e o poder de fazer
com que Muhammad busque, através de novas revelações corânicas, a contestação
dos escritos dos Ahadith que submetem as mulheres a níveis inferiores em relação
ao gênero masculino. Enquanto ahadith condenam mais mulheres do que homens
ao inferno de fogo, o Corão não faz exigência nenhuma de submissão absoluta da
mulher a seu marido, pelo contrário, exige que os maridos sejam generosos com as
esposas, tratem-nas com gentileza. O exemplo de tratamento, quase simétrico,
dispensado por Maomé às suas esposas, fica evidenciado neste versículo do Corão:
Para os homens e mulheres que se submetem ao Islão, para os homens e mulheres
crentes, para os homens e mulheres obedientes, para os homens e mulheres
verdadeiros, para os homens e mulheres que são pacientes, para os homens e
mulheres que são humildes, para os homens e mulheres que dão para caridade, para
os homens e mulheres que fazem jejum, para os homens e mulheres que preservam
a sua castidade e para os homens e mulheres que se empenham no louvor a Allah,
para todos eles Allah reservou o perdão e uma grande recompensa. (Corão 33.35).
Este é o verso que surge após a intervenção questionadora de Umm
Salamah, o confronto entre narração e revelação, uma tendo como fonte um hadith e
a outra um verso do Corão, deixam patente que, os versos corânicos buscam a
igualdade de gêneros:
Repare como neste versículo o Alcorão trata da mesma forma homens e
23
mulheres, referindo a um igual grau de perdão e iguais recompensas.
No hadith atrás narrado, por outro lado, são condenadas ao fogo do Inferno mais
22
23
Minha ênfase - Grifos meus.
Minha ênfase - Grifos meus.
32
mulheres que homens, devido ao facto de serem ingratas em relação aos maridos. O
Alcorão não exige em parte nenhuma que a mulher seja obediente ao marido. É ao
24
marido que se adverte para que seja generoso para com a esposa .
.
Ao longo da história, as mulheres sofreram preconceitos e violência física e
moral. Na época pré-islâmica, havia vários costumes agressivos em relação às
mulheres. Muito mais por uma questão de interpretações paralelas ao texto
corânico, do que propriamente as prescrições do Corão, com poucas exceções.
Com a revelação do Corão, essas práticas foram quase abolidas por novas
revelações trazidas ao profeta e pela intervenção destemida, heróica, inteligente e
visionária de uma Umm Salamah, de uma Aisha e outras tantas mulheres e esposas
do profeta Muhammad.
24
Alcorão: 4ª Surata, Ân Nissã, versículo 19. É um verso do Sunnah, capítulo especial sobre as
mulheres.
33
1.5 A Mulher Muçulmana na Busca da Igualdade de gêneros.
A mulher agora existe. Sua existencia, sua presença, sua notabilidade por
parte do sexo masculino agora é real. Não foi necessário um movimento de cunho
feminista. Não que fosse injusto ou desnecessário caso houvesse. Mas foram
necessárias a voz e autoridade legítima de uma representante do gênero feminino:
Umm Salamah. Esta foi uma das primeiras vozes do mundo, não só do mundo
muçulmano, a reivindicar igualdade e justiça nas relações de gênero na história da
humanidade. Neste curto período, esta igualdade foi tão acentuada, no aspecto
religioso, a ponto de ser permitido às mulheres islâmicas o acesso direto, sem
intermediação alguma, ao Enviado de Allâh, (profeta Muhammad), ou seja, em
palavras mais diretas, as mulheres não tinham nenhum obstáculo ou mesmo
impedimento no exercício pleno da busca do sagrado:
O Profeta nunca tratou nenhuma das suas esposas como subordinada. Não só se
limitava a tratá-las com dignidade, mas também se aconselhava junto delas
com freqüência acerca de várias questões, seguindo mesmo os conselhos que
elas lhe davam. Com efeito, o conselho de Umm Salamah que consistia no sacrifício
de um animal em Hudaybiya revelou-se muito positivo. (Alcorão – Sura Ãn Nissã cap.
4, verso 19). Minha ênfase
A propósito, a face religiosa do islã está tão amalgamada ao estilo de vida de
seus fiéis, que fica quase impossível entendê-lo separadamente das dimensões
culturais, civis, política e ideologicas. (MACHADO, 2010, p. 85). (Ou seja,
religiosidade, cultura, política, ideologia é uma massa uniforme na concepção dos
fiéis muçulmanos. Vemos isto neste período de novas revelações de Muhammad na
performance de suas esposas). De forma ainda mais clara, podemos resumir que o
secular e o sagrado, o imanente e transcedente, tão marcadamente separados, na
cultura ocidental, praticamente não existiu no mundo islamico, sobretudo, quando se
trata das mulheres do profeta Muhammad e suas atuações religiosas, familiares,
civis e sociais. Isto fica provado e evidenciado após o período pré-islâmico, mais
precisamente neste hiato de transição entre o Islã incipiente e o Islã sob o comando
dos califas. Enfatizamos esta parcial igualdade de gêneros, mais precisamente nas
relações de Muhammad com suas esposas (mulheres), e, entre (estas) suas
esposas, destaque especial para
Aisha, sua performance é ímpar no mundo
muçulmano de seus dias.
34
Segundo Fátima Mernissi, Aisha
possuía em seu quarto uma porta de
comunicação direta com a mesquita. (MERNISSI, 1999, p.131). O fato de que o
lugar das mais íntimas relações entre um homem e uma mulher, ou seja, o leito
nupcial, o lugar da maior cumplicidade entre os gêneros feminino e masculino e, da
conjunção carnal, estar interligado ao lugar da mais intima e profunda relação com o
sagrado, oferece-nos uma ideia, próxima do ideal, de como a nova revelação dada
ao profeta, mudou para melhor, pelo menos neste período, a performance da mulher
muçulmana, além de deixar patente que a vida em sua plenitude e manifestações,
as mais legítimas da humanidade, não estavam dissociadas do sagrado como
argumenta Émile Durkheim: as representações religiosas, ou seja, as crenças
caracterizam-se por impor um certo olhar que divide a realidade entre o sagrado e o
profano, enquanto oposições mais absolutas, ou, mais especificamente, as crenças
são [...] representações que exprimem a natureza das coisas sagradas e a relação
que elas mantêm, seja entre si, seja com as coisas profanas. Neste caso, a
separação entre o profano e o sagrado na performance de Aisha, ou seja, em seu
trânsito entre o quarto de dormir e a porta de acesso à mesquita lar não permite a
separação entre o céu e a terra, pelo contrário, passa-nos a idéia de fusão dessas
duas representações. (DURKHEIM, 2004, p.24).
O real e o eterno, ou seja, neste caso, não há dissociação do secular com o
sagrado. É nesta mescla, nessa fusão, que segundo Durkheim se encontra o eterno.
A fusão do sagrado e do secular (temporal), ou seja, do céu e da terra, isto é, tudo
que existe e, tudo que é concebível por meio da consciência, não é capaz de
esgotar a realidade. Mas o homem, porque possui linguagem, possui também um
portal para o real. Este portal, que é a função designada pelo termo “coração”, é ao
mesmo tempo existente e indefinível. É o lugar em que cada homem é único, sem
identidade, é um lugar de pura criatividade e contato com o misterioso novo.
(MACHADO, 2010, p.79).
Portanto, depois do período pré-islamico e antes do período do califado,
surgiu o tempo e o ambiente favoráveis, ainda que curto, à participação igualitária da
mulher na vida da comunidade de maneira quase plena.
35
Como amostras dessa igualdade de gêneros que floresce e murcha tão
rapidamente, reportamo-nos entre tantas, a três das esposas do profeta: Khadija,
Umm Salamah e Aisha que, entre todas, se destacaram na solidificação do Islã.
Khadija e Aisha representam para o Islã uma espécie de nascimento e
emancipação. Khadija, a primeira esposa de Muhammad, foi uma viúva rica que deu
emprego para Muhammad e em seguida lhe propôs casamento. Esta mulher era da
idade de 40 anos, enquanto Maomé estava com 25. Este foi o único casamento
monogâmico do profeta, a partir daí, a poligamia era praticada pelo mensageiro de
Allâh. Os demais casamentos foram com mulheres viúvas e filhas de amigos. O
apoio de Khadija foi essencial para que o profeta tivesse segurança e tempo para
iniciar a trajetória de suas peregrinações e disseminação da fé islâmica, isento das
preocupações e obrigações diárias de um homem comum. Khadija, muito
provavelmente, tenha sido a primeira mulher muçulmana. Foi a ela que Muhammad,
primeiro, falou sobre as revelações. Após tomar ciência das revelações recebidas
pelo profeta Muhammad, sua esposa (Khadija) se converteu ao Islã e providenciou
tudo o que o profeta precisava para irradiar a nova fé por toda a península Arábica.
(ABD’ALLAH, 1989, p. 29)
Por outro lado, talvez, representando o desfecho, ainda que parcial, mas, sem
dúvida nenhuma, fundamental para a consolidação da estrutura básica do mundo
islamico, Aisha, em especial, torna-se um ícone. Sua história, em particular, é
emblemática quando focamos o gênero feminino em geral. Estas mulheres são
inspirações para as mulheres muçulmanas de hoje. Boa parte delas ainda
emprestam seus nomes às fiéis muçulmanas dos dias atuais, portanto, referir-se a
elas é, no mínimo, fazer justiça a todas as muçulmanas do século vinte e um. Aisha
empresta-nos fatores historicos, culturais, sociais, ideológicos e, sobretudo,
religiosos de sua performance, para uma espécie de comparação com o
desempenho
da
mulher
muçulmana
hodierna.
Vejamos
mais
um
hadith
discriminatório, encontrado no Bukhari25, que discriminou e ridicularizou a mulher
muçulmana, nos dias do profeta Maomé: “As coisas que invalidam as orações foram25
Bukhari – Muhammad Ibn-Ismail AL-Bukhari. Foi um estudioso árabe, nascido em Bukhoro (Hoje
Uzbequistão). Ainda jovem ele começou a viajar por todo o mundo muçulmano e a recolher as
tradições orais do profeta Maomé. Das mais de ¨600000 tradições que ele recolheu, Bukhari compilou
7275 como AL-Sahih (a verdadeira). Estas são consideradas como o Sunnah pelos ortodoxos do Islã.
36
me referidas (referidas a Aisha). Afirmaram: ‘a oração é invalidada por um cão, um
burro e uma mulher26(no caso de passarem à frente de alguém que esteja a fazer
as suas orações)”.
Aisha, indignada e furiosa, responde e contesta este hadith. Ela declara de
maneira irônica: fui transformada (as mulheres) em cães. “Do meu leito, eu via o
profeta rezar, minha cama estava entre ele e o Qiblah27. Caso eu precisasse de
alguma coisa, me levantava em silêncio e de mansinho, pois não gostava de passar
pela frente dele.” A narrativa do hadith é fortemente caracterizada pela dominação
masculina, desrespeitosa em relação ao gênero feminino. Aisha, corajosamente,
desafiou este preconceito e esta visão misógina da mulher por parte deste intérprete
dos ahadith. O agravante desta situação, é o fato de que atribuíam estes
pensamentos maculinos dominantes ao profeta e, se atribuíam ao profeta,
consequentemente, seriam atribuídas ao Corão. Portanto, o Corão, na visão
dominadora masculina, era que ditava e sustentava tais (discriminações) contra as
mulheres:
Estes eram preconceitos sociais dominantes, por parte dos homens, em relação às
mulheres, que os levaram a criar este tipo de ahadith para as poderem subjugar e
para que as mulheres não pudessem usar o Alcorão para reclamar a sua igualdade
em relação aos homens. O Alcorão foi revelado ao Profeta para que ele pudesse
conferir igual dignidade e estatuto às mulheres, mas a sociedade não estava, de
qualquer forma, preparada para tal, tendo tentado rebaixar as mulheres através da
criação destes ahadith. Uma vez que não as podiam controlar através do Alcorão,
28
recorreram a outra arma para denegrir o estatuto das mulheres.
Esta situação era enfrentada e desafiada com gualhardia por uma Aisha,
contudo, nem todo o tempo haverá Aishas e, assim, sem serem desafiados e
confrontados, pensamentos ridículos e discriminatórios como este, vão se tornando
passíveis de aceitação e vão sendo assimilados pela massa étnica, cultural, social,
civil e religiosa, que amalgamam, ao longo dos séculos a comunidade islâmica.
A ausência de uma confrontação, como esta de Aisha, que desafie e critique
a discriminação feminina, deixa a situação da mulher a reboque das vontades
dominadoras dos homens muçulmanos, mascarada por uma pseudo religiosidade e
26
Minha ênfase – Grifos meus.
Qiblah - É a direção da Kaába, a qual os muçulmanos de todo mundo se direcionam no momento
das orações diárias obrigatórias e recomendadas. (http://www.arresala.org.br/dic.php). Minha ênfase.
28
Ibid.
27
37
cultura assimilada e aceita como se fossem verdades absolutas. Uma questão dupla
aflora, emerge desta situação, em que o Corão é usado para dar sustentação
ilegítima a uma situação de domínio e sujeição do gênero feminino. De um lado,
numa ótica política de confronto de consciências, o Corão necessariamente é um
instrumento de tomada de posição e de responsabilidade coletiva, não pode,
portanto, ser interpretado, exclusivamente, à baila de uma vontade dominante
masculina. Por outro lado, a submissão ao Corão passaria a uma discussão política
inclusiva, ou seja, a submissão à lei corânica abarcaria em igualdade de direitos e
deveres toda a Ummah islâmica, ou seja, os gêneros masculino e feminino. Nisto
residiria o exercicio pleno e igualitário da comunidade muçulmana mundial.
(MACHADO, 2010, p. 88).
Segundo Clifford Geertz, a religião é o fator de legitimização e autoridade,
através de sua doutrina (ensino), pelo qual o grupo social é redimensionado e
submetido. Para o Islamismo, e, mais especificamente ainda, para as questões das
relações de gênero, aquilo que é implicitamente praticado pelos contornos do
ethos29 é remetido para a ética sistematizada em normas e regras. Quando ocorre o
fenômeno da transferência do ethos para a norma e/ou regra consagrada, abre-se a
possibilidade real para que a religião se torne legitimadora de um estilo de vida
específico e próprio. O fenômeno da transferência é completado, quando este estilo
de vida normatizado pela religiosidade, bem como por seus códigos de conduta,
apropriados por um determinado grupo social, dá-se o revestimento de uma função
ideológica. Este fenômeno torna-se evidente na Ummah islamica, quando tratamos
das questões que envolvem o Corão, os ahadith e as suas interpretações no que
tange às relações de gêneros. (GEERTZ, 1989, p. 104-105). Este fator da
transferência aventado por Geertz auxilia-nos na compreensão da tendência
dominadora, por parte dos homens muçulmanos, sobre as mulheres. O que se
observa hoje é o resultado histórico de camadas culturais superpostas que formam
um todo contrário às relações igualitárias de gêneros na Ummah islâmica. O código
religioso islâmico, no caso o Corão, equivocadamente, vem sendo utilizado para dar
sustentação a esta relação assimétrica entre homens e mulheres no Islã.
29
Ethos: expressão de um grupo social ou individual que a partir de seus traços identitários:
vestuário, comportamento e costumes, religiosidade e cultura, indica que seu portador é proveniente
de determinado grupo étnico, ou classe social. Minha ênfase – Grifo meu.
38
Fica marcado, para referência, na história da mulher muçulmana, o
relacionamento das esposas do profeta e a coragem, determinação, gualhardia e
visão de futuro, com as quais elas enfrentaram os desafios da dominação masculina
predominante de seu tempo. Nesta ocasião, em especial, elas foram , em certa
medida, beneficiadas pela liderança de Maomé.
No tempo da transição entre Meca e Medina, profundamente marcado pela
revelação do Corão, não são poucas as argumentações de que as mulheres, entre
elas as mulheres do profeta Muhammad, ocupavam lugares de proeminência,
chefiavam e dirigiam, tendo como base uma estrutura matrifocal.
O que predominava era o modelo de uma linhagem matrifocal, ou seja, a
continuidade da linhagem originava-se do nome da mãe para a família e para os
filhos e não do pai. (AHMED,1992, p.41). Segundo Zakia Daoud, no período de
liderança de Muhammed, as mulheres detinham uma grande independência e um
trânsito praticamente livre em face do poder masculino. Elas podiam escolher com
total liberdade os seus maridos e com a mesma liberdade podiam repudiá-los sem
qualquer interferência ou mesmo retaliação. A poligemia30 era permitida e praticada.
Aisha, esposa do profeta Muhammad, é exemplo desta prática. Os filhos
pertenciam à sua mãe e à sua tribo, diferentemente dos dias atuais, em que a
pertença dos filhos é do pai e da família deste. (DAOUD, 1993, p. 15).
É historicamente certo dizer que o período entre o pré-islamismo e o califado
foi o período de relações quase igualitárias de gênero. Tempo em que a mulher
muçulmana podia transitar com liberdade nas questões políticas, religiosas,
familiares e civis em geral.
Para Machado está claro que uma igualdade perfeitamente harmoniosa, total
e irrestrita, provavelmente, nunca tenha sido alcançada, porém, as bases para uma
futura reivindicação, o testemunho da história e a experiência vivida pelas, podemos
30
Poligemia. A mulher podia ter mais de um marido. É o contrário da Poligamia masculina, quando o
homem podia ter mais de uma esposa. Note como é o inverso de antes das novas revelações dadas
ao profeta Maomé. Esta prática vai durar por apenas este período que denominamos de
transição entre Meca e Medina. (nota do autor).(DAOUD, 1993, p. 15). Minha ênfase – Grifos
meus.
39
assim denominar, mães do Islã, ou seja, boa parte das mulheres do profeta
Muhammad, estão plantadas como um memorial eterno diante do mundo
muçulmano, dominado pelo gênero masculino. Os homens e mulheres muçulmanos
de nosso tempo, século vinte e um, perderam, em larga escala, o acesso a este
lugar de relações igualitárias, não obstante, o Islã já ter sido, neste curto período de
tempo, um lugar de beleza e conhecimento. Não é, em absoluto, necessário colocar
uma cortina sobre a mesquita-lar – e que basta inclinar-se sobre as páginas dos
amarelados livros de nossa história para ver aparecer as risadas de uma Aisha, seus
momentos de entrega ao céu e à terra. Os arrebatamentos e múltiplos
questionamentos de uma Umm Salamah, e presenciar as suas reivindicações
políticas ao profeta Muhammad, nos dias que antecederam a vida em Medina.
(MACHADO, 2010, p. 85-86).
40
1. 6 Mulheres e Esposas: a Relação com o Profeta Muhammad.
Historicamente, as mulheres muçulmanas marcaram de forma notável e
admirável, a construção da Ummah e a sua identidade no mundo. A participação
fundamental e indispensável tem início, já nos primórdios da gestação da
comunidade islâmica.
A maioria dos estudiosos e historiadores do tema, que tratam das mulheres
do profeta, apontam o número de treze esposas na seguinte ordem: Khadija bint
Khuwaylid, Ela foi a primeira mulher com quem ele se casou. Ela foi a única esposa
que ele teve, até que ela morresse. Ele teve filhos e filhas com ela. Nenhum de seus
filhos viveu muito. Todos eles morreram. Suas filhas foram Zainab, Ruqaiya, Umm
Kulthum e Fátima. Zainab foi casada com seu primo por parte de mãe, Abu Al-‘As
bin Al-Rabi e isto foi antes da Al-Hijra (Hégira)31. Ruqaiya e Umm Kulthum foram
ambas casadas com ‘Uthman bin ‘Affan, sucessivamente (i.e. ele se casou com uma
após o falecimento da outra). Fátima casou-se com ‘Ali bin Abi Talib, e isto foi no
período entre as batalhas de Badr e Uhud. Os filhos e filhas que Fátima e ‘Ali
tiveram foram Al-Hasan, Al-Husain, Zainad e Umm Kulthum.É bem sabido que o
Profefa foi, excepcionalmente, autorizado a ter mais do que quatro mulheres por
diversas razões. As esposas com que ele se casou foram treze. Nove delas
continuaram vivendo após ele. Duas morreram durante sua vida: Khadijah e a Mãe
dos pobres (Umm Al-Masakeen) — Além delas, houve Zainab bint Khuzaima com
quem ele não consumou seu casamento.
Sawdah bint Zam’a: Ele se casou com ela em Shawwal, no décimo ano de
seu ofício profético, poucos dias após a morte de Khadijah. Antes disso, ela foi
casada com um primo por parte de pai, chamado As-Sakran bin ‘Amr.
‘Aishah bint Abu Bakr: Muhammad se casou com ela no décimo primeiro
ano de seu ofício profético, uma ano após se casar com Sawdah, e dois anos e
31
Hégira: do árabe Hijra, o que significa cortar as relações, renunciara uma tribo, ou migrar. Referese à partida do profeta Maomé de Meca, em 622 d.C. Mais precisamente em 16 de julho de 622, pelo
calendário Juliano. O termo se aplica a qualquer muçulmano de imigração, pois marca a proclamação
da era muçulmana. Minha ênfase – Grifo meu.
41
cinco meses antes da Al-Hijra. Ela tinha seis anos de idade quando se casou com
ele. Entretanto, não consumou seu casamento com ela até sete meses após a AlHijra, e isso, foi em Medina. Ela tinha nove anos então, quando seu casamento se
consumou, ou seja, houve o contato conjugal. Aisha, para o profeta, foi a mais
amada das criaturas e como mulher ela foi a mais entendida em jurisprudência
islâmica. Mesmo não convivendo com Khadija, a primeira das esposas do profeta,
Aisha tinha forte ciúme desta, pelo fato de Muhammad ter tido uma relação de
fidelidade conjugal somente com Khadija. Em Medina, Muhammed construiu
apartamentos de tijolo para cada uma das esposas. O local onde ficava o de Aisha,
hoje, é a Mesquita de Medina. Ninguém imagine um palácio. “Os apartamentos das
mulheres de Muhammad eram tão pequenos que mal se podia ficar de pé dentro
deles. Ele não tinha casa. Passava cada noite com uma esposa e o apartamento
dela virava a sua residência durante o dia”. (ARMSTRONG, 2002, s. p.).
Hafsah bint ‘Umar bin Al-Khattab: Ela estava Aiyim (i.e. sem marido). Seu
ex-marido foi Khunais bin Hudhafa As-Sahmi no período entre as batalhas de Badr e
Uhud. O Mensageiro de Allâh casou-se com ela no terceiro ano da Al-Hijra.
Zainab bint Khuzaimah: Ela era de Bani Hilal bin ‘Amir bin Sa'as’a. Teve o
nome mudado para Umm Al-Masakeen por causa de sua bondade e zelo para com
os seus próximos. Ela foi a esposa de ‘Abdullah bin Jahsh, o qual foi martirizado em
Uhud. Casou-se com o Profeta no quarto ano da Al-Hijra, mas morreu dois ou três
meses depois do casamento com o Mensageiro de Allâh.
Umm Salamah Hind bint Abi Omaiyah: Ela foi esposa de Abu Salamah, o
qual morreu em Jumada Al-Akhir, no quarto ano da Al-Hijra. O Mensageiro de Allâh
casou-se com ela no mesmo ano. Destacou-se por ser uma mulher com visão de
futuro nas questões de igualdade entre os sexos. Questionou abertamente o profeta
sobre questões de desigualdade entre os gêneros e a tendência machista dos
ahadith.
Zainab bint Jahsh bin Riyab: Ela foi de Bani Asad bin Khuzaimah e era
prima do Mensageiro por parte de pai. Casou-se com Zaid bin Haritha — o qual era
então considerado filho do profeta. Entretanto, Zaid divorciou-se dela. Allâh enviou
alguns versos do Alcorão a respeito disso:“Porém, quando Zaid resolveu dissolver o
42
seu casamento com a necessária (formalidade), permitimos que tu a desposasses”.
(Alcorão 33. 37).
Juwairiyah bint Al-Harith: Al-Harith foi o cabeça de Bani Al-Mustaliq de
Khuza’ah. Juwairiyah estava entre os despojos que caíram nas mãos dos
Muçulmanos de Bani Al-Mustaliq. Ela foi uma porção da parte de Thabit bin Qais bin
Shammas’. Ele fez uma aliança de que a libertaria após um certo tempo. O
Mensageiro de Allâh consumou a aliança e casou-se com ela em Sha’ban no sexto
ano da Al-Hijra.
Umm Habibah: Ramlah, a filha de Abu Sufyan. Ela foi casada com
‘Ubaidullah bin Jahsh. Ela migrou com ele para a Abissínia (Etiópia). Quando
‘Ubaidullah se apostatou e se tornou Cristão, ela se manteve inabalável à sua
religião e recusou-se a se converter. Entretanto, ‘Ubaidullah morreu na Abissínia
(Etiópia). O Mensageiro de Allâh enviou rapidamente ‘Amr bin Omaiyah ad-Damri
com uma carta a Negus, o rei, pedindo a ele a mão de Umm Habibah — isto foi em
Muharram, no sétimo ano da Al-Hijra. Negus concordou e a enviou ao profeta em
companhia de Shahabeel bin Hasnah.
Safiyah bint Huyai bin Akhtab: Dos filhos de Israel, ela foi parte do despojo
obtido da batalha de Khaibar. O Mensageiro de Allâh tomou-a ele próprio. Ele a
libertou e casou-se com ela após esta conquista no sétimo ano da Al-Hijra.
Maimunah bint Al-Harith: A filha de Al-Harith e irmã de Umm Al-Fadl
Lubabah bint Al-Harith. O Profeta casou-se com ela após ‘Umrah compensatória
(peregrinagem inferior). Isto foi em Dhul-Qa’dah no sétimo ano da Al-Hijra.
Estas foram as onze esposas com que o Mensageiro de Allâh se casou e
consumou o casamento. Ele viveu mais que duas esposas — Khadijah e Zainab,
nove delas viveram mais do que ele.
Rayhana bint Zayd e Mariyah al-Qibtiyya: são consideradas por alguns
historiadores como concubinas, outros as consideram esposas. Importante ressaltar
que, dentre estas treze esposas, somente uma veio do cristianismo, a saber,
Mariyah, a Copta (uma cristã do Egito), que foi um presente dado ao profeta
Muhammed por Al-Muqauqis, vice-administrador do Egito. Mariyah teve um filho com
43
Maomé que se chamou Ibrahim. Este morreu em Medina enquanto criancinha, em
27 de janeiro de 632 d. C. (http://www.sautulisslam.com).
O fato de ter entre as suas esposas e concubinas uma cristã copta, caso de
Mariyah,
possivelmente,
tenha
influenciado
Muhammad
a ser, em parte,
condescendente com judeus e cristãos nas relações civis e religiosas. Além de que,
Muhammad incorporou muito do judaísmo e do cristianismo na construção da
Ummah islâmica. Há indícios de que havia recomendações do profeta para que os
muçulmanos dessem proteção aos cristãos e judeus (dhimmis)32, que vivessem
próximos de suas tribos.
Apesar de empreenderem uma guerra (Jihad) pela difusão da nova religião,
os árabes foram tolerantes com cristãos e judeus nos territórios conquistados, pois
eram considerados os “Povos do Livro”, indicando uma herança religiosa comum,
conforme relata Braudel:
Maomé anexou a antiga instituição justificando-a a posteriori por uma espécie de
lenda cultural: Abraão, pretendia ele, organizara em seu tempo, juntamente com seu
filho Ismael, o ancestral dos árabes, o culto da Santa Caaba e as cerimônias da
peregrinação. Fundava-se assim a prioridade do Islã em relação ao judaísmo, criado
por Moisés, e ao cristianismo, ligado a Jesus. O Corão saúda em Abrãao o primeiro
dos muçulmanos, o que é verdadeiro, teologalmente verdadeiro. (BRAUDEL, 2004, p.
61).
Entre as 13 esposas de Muhammad, Aisha era a predileta, porém, não a
exclusiva. Ciumenta e inteligente, seus relatos da vida conjugal viraram modelos de
conduta e influenciaram a tradição muçulmana. Aisha, segundo tradições islâmicas,
era uma menina perspicaz e questionadora direta do profeta Muhammad. Seu
casamento é abruptamente anunciado quando esta ainda agia como uma criança.
Uma infância interrompida violentamente. Uma nova atuação estava a sua espera,
ou seja, Aisha irá se tornar, antes e depois da morte de Muhammad, uma das
principais referencias femininas na interpretação da lei islâmica de seus dias. Diz a
tradição islâmica que uma mulher compareceu a um encontro de estudiosos de
ahadith, entre estes estudiosos estavam Yahyâ ibn Ma`in, Abû Khaythama, Khalaf
ibn Salim e outros. Esta mulher ouviu-os dizer: “o Profeta disse e assim foi narrado”,
e “nada além do que este narrou para aquele”, etc... e, então a mulher perguntou-
32
Dhimmis – Significa literalmente “Protegidos”, termo árabe para designar judeus e cristãos que,
além de receberem proteção, não podiam ser escravizados. Contudo, há indícios de que esta regra
tenha sido ocasionalmente, quebrada. Minha ênfase – Grifos meus.
44
lhes: “uma mulher em sua menstruação pode lavar os mortos?” por que aquela era a
sua ocupação. Ninguém em toda a reunião pode responder ao questionamento
daquela mulher. Os estudiosos começaram a se entreolhar. Nesta altura dos
acontecimentos, chegou um especialista na figh islâmica, Abû Thawr. Falaram do
questionamento da mulher para ele. A mulher lhe fez a mesma pergunta anterior e
ele respondeu: “sim, ela pode lavar os mortos, de acordo com o hadith de Al
Qasim, que por sua vez ouviu dos lábios de Aisha: “Sua menstruação não está
em sua mão”. E a sua narração aconteceu porque ela iria escovar os cabelos
do profeta no momento em que ela estava menstruada. Se a cabeça dos vivos
pode ser lavada (por uma mulher em sua menstruação), então pode também a
dos mortos”. Ouvindo isto, os estudiosos de ahadith disseram: “Certo! A
mulher então disse: “Onde vocês todos estavam até agora”?33 O seu legado (de
Aisha) e a sua performance para o mundo islâmico, principalmente nas questões do
gênero feminino é valiosa e será sempre um marco referencial e de forte inspiração
para o mundo feminino e para a mulher em geral.
A performance de Aisha inicia-se muito cedo. Por um lado, justificados por
questões culturais, políticas e ideológicas. Algo que, por via de regra, seria um
absurdo para os valores e pensamentos ocidentais. Por outro, era aceitável e, até
certo ponto, normal para o contexto de vida desta que se tornará um ícone na
história e fundamentação do Islã:
Aisha bint Abu Bakr tinha 6 anos e estava se divertindo num balanço, no quintal,
quando soube que ia se casar. A mãe da menina deu a notícia e avisou que, a partir
daquele dia, estava proibido "brincar fora de casa". O futuro marido era o melhor
amigo do seu pai e tinha 51 anos. Em uma cerimônia sóbria, na casa da família da
noiva, em Medina, Arábia Saudita, a união foi oficializada em 623 d.C. Ela contava 9
anos e se tornava a terceira mulher de Maomé, o criador do islamismo. Foi, para
sempre, a preferida do seu harém. Quando perguntaram ao profeta a quem mais
amava no mundo, ele foi direto: Aisha. Nos braços dela, morreu nove anos depois, e
no quarto da favorita foi enterrado. (ABBOTTI, 1942, p. 35).
A união de Aisha com Muhammad aconteceu logo depois da mudança de
Meca para Medina (antes Yatrib), fugindo da perseguição dos judeus. Chamado de
hégirai, o êxodo de Muhammad e de seus seguidores, inaugurou o islamismo, em
622 da era cristã. A fuga deu início ao calendário maometano e fim à infância de
Aisha: “Nenhum camelo ou ovelha foi sacrificado no meu casamento”, contaria ela.
33
http://www.arresala.org.br/- Minha ênfase – Grifos meus.
45
Todas as atenções estavam concentradas em consolidar a nova religião. (ABBOTTI,
1942, p. 4). Aisha, a terceira das esposas de Muhammad, Além de ser a única
virgem, entre todas, desempenhou algumas funções que lhe deram destaque e
distinção na história do islamismo. Talvez, a única esposa do profeta que tenha
pegado em armas e marchado para o campo de batalha, Aisha lutou contra Ali Ibn
Abu Talib. Foi a protagonista, em 4 de dezembro de 656 da última experiência militar
de uma esposa do profeta. Este confronto ficou conhecido como a Batalha do
Camelo. Aisha foi ao campo de guerra sob condução de seu camelo de nome Askar,
para dar apoio aos aliados. Escondida por trás dos véus da sua howdah (assento
alto usado sobre a sela), mas, descoberta por Ali, este ordenou a todos os seus
homens que atacassem Askar. Morreram o camelo e centenas de soldados. Aisha
acabou presa. A partir deste evento, os muçulmanos iriam se dividir entre xiitas,
partidários de Ali, e sunitas, do rival Amir Muwiya. (ABBOTTI, 1942, p.57).
Segundo John Esposito, esta participação direta de Aisha na batalha do
Camelo, contra seu antigo desafeto Ali Ibn Abu Talib, trouxe, posteriormente,
consequencias ainda mais trágicas para as mulheres muçulmanas. A mulher,
literalmente, seria embalada em suas vestimentas como se fosse um brinquedo do
homem muçulmano. Os dias de quase igualdade, durante a vida de Muhammad,
estavam, praticamente, pulverizados e relegados ao passado:
O desastre no campo de batalha afastou Aisha da política e serviu de pretexto para
que, no século 10, os muçulmanos atribuíssem à mulher um papel desbotado,
escondida sob véus da cabeça aos pés. Na época de Maomé não era assim. Suas
esposas usavam véus discretos, cobrindo o colo e apenas parcialmente a cabeça.
Aisha morreu em 678, de doença desconhecida. Segundo as feministas, ela foi
absolutamente relevante para a construção da tradição islâmica, como demonstram
os seus muitos relatos que, mesmo vindos de uma mulher, foram incorporados à
Sunnah. (ESPOSITO, 1992, p.5).
A maioria das esposas do profeta Muhammad eram viúvas. Talvez a mais
importante destas viúvas, tenha sido Khadija. Cada uma delas teve seu destaque,
nenhuma, de acordo com o testemunho da história, superou Aisha, contudo, todas
desempenharam um papel importantíssimo: dar credibilidade aos ahadith, ou seja,
segundo a biógrafa e historiadora Nabia Abbotti, Muhammad ditou o Corão, livro
sagrado dos muçulmanos, porém, quando ele morreu, muitas normas de conduta
não estavam estabelecidas, e as suas viúvas eram consultadas para desfazer
dúvidas de caráter ético e moral.
46
Dentre as viúvas, Aisha foi a que mais colaborou. Possuidora de excelente
memória lembrava com detalhes, de situações pelas quais o profeta passara, o que
ele dissera e como agiu em cada situação. Os ahadith (que significa “ditado” em
árabe) formam o Sunnah, o código mais importante dos muçulmanos, depois do
Corão. Dos 7275 Ahadith considerados autênticos pelo Islã, 2.225 ahadith,
aproximadamente, são atribuídos a Aisha. (ABBOTTI, 1942, p. 63).
Medina vai marcar o período de novas revelações corânicas. Essas
revelações vão mudar de maneira substancial a performance da mulher em relação
ao homem muçulmano. Se por um lado, em Meca, os versos corânicos promovem a
quase igual dignidade de todos o seres humanos, idependentemente de gênero,
religião ou etnia; por outro lado, Medina vai marcar a história dessa relação, pelo
surgimento
de
versos
corânicos
discriminatórios
em
relação
à
mulher,
principalmente. O período de Medina é marcado por severo cerceamento aos
direitos civis e políticos da mulher. Isto por conta da expansão do islamismo levado a
cabo, principalmente pelos califas. A mulher muçulmana irá ver tolhida a sua
liberdade, igualdade e participação na vida da Ummah, conquistadas pelas novas
revelações do profeta Muhammed (AN-NARIM, 1996, p. 52). Essa drástica mudança
fica patente quando lemos alguns versos corânicos, revelados neste período tais
como:
Os homens são superiores às mulheres pelo que Allah preferiu alguns a outros, e
pelo que despendem de suas riquezas. Então, as íntegras são devotas, conservam
cuidadosamente durante a ausência de seus maridos o que Deus lhes confiou. E
àquelas de quem temeis a desobediência, exortai-as, pois, e abandonai-as no leito, e
34
35
batei-lhes. (Surata 5.34)
34
35
Minha ênfase – Grifos meus.
Corão – Surah 5.34. Minha ênfase.
47
1.7 A Mulher Muçulmana no Período do Califado Islâmico.
As pesquisadoras e historiadoras do islamismo, com enfase na performance
da mulher muçulmana, Fátima Mernissi e Leila Ahmed são do mesmo parecer de
que as relações de gênero da mulher muçulmana, no período do califado 36, foram
menos igualitárias do que foram na liderança do profeta Muhammad. Com base nos
pressupostos destas pesquisadoras, o império Abássida foi um dos grandes
responsáveis pela perda de status da mulher devido às incorporações de novos
costumes de tribos dominadas e aculturadas ao novo sistema do islamismo. As
mulheres neste período foram introduzidas, obrigatoriamente, ao uso de vestimentas
ainda mais conservadoras e austeras. Se antes podiam usar apenas o véu (Hijab) e
dançar a dança do ventre, agora são obrigadas a usar a purdah37 e não podem
mais dançar. As leis eram interpretadas, com intenções claras, para favorecer um
sistema de sociedade masculina legal. Comparativamente, nos tempos de
Muhammad, como vimos anteriormente, as mulheres gozavam de uma relativa
liberdade. Elas tinham uma participação ativa na vida pública e se envolviam até
mesmo nas batalhas. Lideravam a família, tinham direitos diretos aos filhos e
atuaram decisivamente no processo de expansão do Islã. Tais asseverações dão
base para se acreditar que Khadija, a primeira esposa do profeta, foi a primeira
pessoa a crer que as experiências transcendentais de Muhammad eram reais.
(RUTHVEN, 1997, p. 116).
Se nos dias do profeta Muhammad, os direitos das mulheres atigiram o que
podemos chamar de apogeu, nos longos séculos do califado islâmico eles foram
erodidos aos poucos. Foi o que aconteceu nas dinastias Omíadas e Abássidas a
partir de 661. Estas dinastias transformaram o Islã num verdadeiro caldeirão de
culturas, que incluía indianos, chineses, europeus e africanos. Neste início da
expansão, o progresso militar, econômico e filosófico foi tão grande que ficou
conhecido como Idade de Ouro da religião. Porém, as mulheres foram
36
Segundo Braudel, os principais califas foram: Abu Bakr Assadik (sogro do profeta Maomé e pai de
Aisha, terceira esposa do profeta.Umar ibn al-Khattab, o segundo califa. Uthman Ibn Affan, o terceiro
califa. Ali Ibn Abu Talib, é o quarto dos mais importantes califas para o Islã. Ali era genro e primo do
profeta Maomé, casado com Fátima.
37
Purdah – Literalmente significa “cortina”, vestimenta muito semelhante à Burca. As mulheres eram
obrigadas a se cobrirem inteiras para saírem de casa e em público, ficando seu corpo à mostra
somente para o marido e diante de pessoas da família e, certamente com aquelas que, jamais
poderia se casar. Minha ênfase – Grifo meu.
48
progressivamente excluídas da vida pública. “A partir do século 8, os califas
(sucessores de Muhammad) começaram a isolar suas esposas e criar haréns com
elas e com as escravas. O véu (Hijab)38 virou regra. No período do profeta
Muhammad, o véu era usado somente por suas esposas. A adoção se generalizou
por uma combinação de fatores: a conquista de áreas onde ele era comum na
classe alta, o influxo de riqueza, a elevação do status dos árabes e o fato de que as
mulheres do profeta eram exemplo” (AHMED, 1992, p.5).
Ressaltamos que o uso do véu remonta a milhares de anos antes de sua
obrigação disseminada pelo Corão. Segundo Paula Holmes Eber, pesquisadora e
especilista em estudos da mulher muçulmana, o uso do hijab já era ostentado por
civilizações mesopotâmicas havia pelo menos 4 mil anos. No princípio, o véu estava
mais associado com a classe do que com a religião – obrigatório para mulheres ricas
e proibido para mulheres pobres e escravas, portanto, cobrir o cabelo e partes do
corpo e da face era símbolo de status social.39
A pesquisadora Leila Ahmed tem mais explicações para a opressão das
mulheres no Islã, sobretudo no tempo dos califas. Os muçulmanos, diz ela,
costumavam manter os hábitos das regiões, onde se firmavam, desde que esses
estivessem em sintonia com seu pensamento. O restante era descartado. Na Arábia,
por exemplo, eliminaram as outras formas de casamento para que prevalecesse
apenas o patrifocal. Quando conquistaram a região que hoje abarca o Irã e o Iraque,
assimilaram a prática de formar haréns, o uso disseminado do véu para as mulheres
e, principalmente, os mecanismos de repressão feminina que eram uma
característica
marcante
dos povos locais. Foi
nesse ambiente
altamente
misógino40que, nos séculos seguintes, o direito islâmico foi elaborado. Separado em
escolas que diferem em vários pontos, mas se apresentam como sendo timbres
diversos de uma só voz, esse direito é dado como absoluto e imutável. Seus
princípios não podem ser questionados nem relativizados à luz de traços culturais.
38
Hijab – Véu utilizado pela mulher muçulmana que cobre a cabeça e deixa o rosto à mostra. Cobre
também o todo o corpo, portanto, não se reduz como indumentária feminina a cobrir apenas a
cabeça. Minha ênfase.
Toda a peça inicia cobrindo a cabeça e desce até os pés.
39
Revista Aventuras na História, Editora Abril, edição nº 84, julho de 2010, p. 30. Minha ênfase.
40
Misógino: basicamente aversão ao gênero feminino ou mesmo desprezo. Característica que
marcou o período dos califas e que resultou na coisificação das mulheres. Minha ênfase.
49
Por isso são, até hoje, um instrumento útil para calar as mulheres em países
nos quais vigora o regime teocrático. Um dado complicador é que as muçulmanas
têm até hoje
um conhecimento muito
vago
da
lei divina.
Aderem
ao
fundamentalismo, atraídas pelos ideais de pureza da religião e, quando ele é
instaurado, são surpreendidas por seus rigores - a exemplo do que ocorreu no Irã
dos aiatolás. (AHMED, 1992, p. 6).
O casamento não tem mais as bases matrifocais dos dias do profeta
Muhammad e de suas revelações favoráveis às mulheres. As bases patrifocais
estão de volta e com tonalidades trágicas para o sexo feminino. Nenhum califa se
destacou por pensar ou legislar em favor da mulher muçulmana.
Se com o califado, a situação da mulher variava entre ruim e caótico, ficaria
pior com o fim deste período: Segundo Noah Feldman, em 1517, uma nova potência
islâmica surgiu tomando as rédeas e direção do mundo muçulmano: o Império
Turco-Otomano. Um governo composto por sultões otomanos ergueram o último
califado (estado islâmico centralizado) que abarcava a região que ia do norte da
África até ao sul da Rússia. (FELDMAN, 2008, p. 167).
Ao longo de aproximadamente quatrocentos anos, a situação da mulher
variou bastante, como já mencionamos, transitando entre o ruim e o caótico, porém,
precariamente “protegida” por uma espécie de equilíbrio entre os sultões (chefes da
política e da guerra) e os eruditos e intérpretes da Lei islâmica (Shariah), a mulher e
todos os demais cidadãos muçulmanos possuíam uma espécie de proteção ante os
governantes que não podiam violar as leis de Allâh (Corão), portanto, não podiam
oprimir os muçulmanos em geral, mas, o Império Otomano foi derrotado e o califado
chegou ao fim. As terras islâmicas se tornaram colônias dos países ocidentais e, à
medida que estas colônias foram alcançando independência, tornavam-se ditaduras
islâmicas. Foi neste cenário, que o ruim se tornou pior para o gênero feminino. 41
Hoje, esta região da antiga península Arábica, dividida, possui sistemas políticos que
preservam, em muitos aspectos, os tempos das relações assimétricas a que foi
submetido o gênero feminino durante período do califado. A península Arábica,
portanto, abarca sete países, ou seja, Arábia Saudita, Kuwait, Bahrein, Qátar,
41
Revista Aventuras na História, São Paulo: Editora Abril, edição nº 84, 2010, p. 32.
50
Emirados Árabes Unidos, Omã e Iêmen. Sua geografia se estende por
aproximadamente três milhões de quilômetros quadrados, cercados por três mares e
formado por quatro principais desertos.
51
2. O ISLÃ EM TERRAS BRASILEIRAS.
A presença muçulmana como abordamos, anteriormente, irradiou-se ao longo
dos séculos para todo o globo. Seu epicentro básico de irradiação foi,
historicamente, Meca e, posteriormente Medina. Quando tratamos de sua presença
em terras brasileiras, verificamos que existem reivindicações históricas anteriores ao
ano de 1500:
Trabalhos, de revisão histórica, têm apontado vários indícios de presenças anteriores.
Como exemplo, verifica-se que as negociações para estabelecimento do Tratado de
Tordesilhas, que dividiu as novas terras entre Portugal e Espanha, em 1494, não
poderiam avançar se não houvesse informações sobre a distribuição das terras do
novo continente no hemisfério sul. Também há indícios da chegada ao Brasil, já em
1498, de uma caravela comandada pelo navegador Duarte Pacheco Pereira.
Ainda que incipientes, pelo menos, dois registros da presença islâmica no
Brasil são dignos de nota. O islã teria chegado ao Brasil já na época do seu
descobrimento. Este dado histórico pode ser considerado uma estratégia visando
criar e marcar um lugar na história do descobrimento e na fundação do Brasil, além
de conferir legitimação de sua presença. Este registro histórico tem como objetivo
principal tornar a presença muçulmana em solo brasileiro tão antiga, quanto a
presença do cristianismo que, também havia desembarcado com as caravelas de
Cabral.
Cristina Maria de Castro, em sua pesquisa da construção de identidades
muçulmanas no Brasil, levanta alguns dados sobre esta questão, que nos ajudam no
entendimento desta origem islâmica em solo brasileiro:
O Sheikh Muhammad Ragip al-Jerrahi, de Brasília, aponta a presença de
muçulmanos já na expedição de Pedro Àlvares Cabral para o Brasil: Chuhabidin Bin
Májid e o navegador Mussa Bin Sáte teriam feito parte da tripulação que chegou ao
Brasil em 1500. Com o início da colonização, muçulmanos portugueses e espanhois
teriam se dirigido ao país, porém, foram forçados pela Inquisição a converterem-se e
a mudar de nome, daí a dificuldade em se encontar registros de sua presença no
Brasil. O Sheikh Jerrahi aponta como prova de suas presenças, processos e relatos
do Santo Ofício, descrevendo suas práticas e costumes (CASTRO, 2007, p. 19).
Nas informações apresentadas por Castro, podemos observar a presença de
dois muçulmanos, sendo que um deles era navegador, fato que, por sua vez,
aumenta a credibilidade desta informação. São eles: Chuhabidin Bin Májid e o
navegador Mussa Bin Sáte. Fato comum naquela época, devido à importância dos
navegadores e cientistas muçulmanos, como pode ser atestado pelos arquivos da
52
Escola de Sagres,42 em Portugal. O comércio com as Índias, em particular, tornava
imprescindível a presença de navegadores que dominavam a língua árabe, muitos
deles muçulmanos.
O fator Inquisição, é outro dado coerente que pode dar crédito a essa
presença islâmica, logo nesta chegada das caravelas de Cabral no Brasil. Espanhóis
e portugueses muçulmanos foram forçados a uma conversão ao cristianismo
católico romano e foram forçados a mudarem seus nomes para sobreviverem à
suposta perseguição religiosa.
A dificuldade gerada, a partir de então, está diretamente relacionada a
ausência de registros oficiais do “Santo Ofício”, que, supostamente, mascararam um
fato histórico pela força, escondendo a verdadeira religiosidade de muitos
muçulmanos que aportaram em terras brasileiras. Contudo, um determinado Sheikh
Jerrahi aponta, como prova que confere verificabilidade da presença muçulmana no
Brasil, já neste período do descobrimento, o próprio “Santo Ofício”, cujos relatos
descrevem as práticas religiosas e os costumes muçulmanos. A ausência de
registros pode ser atribuida a pelo menos dois fatores. Por um lado os muçulmanos
desta época não conservaram seus costumes e suas práticas religiosas, abdicandose delas para não correrem risco de morte ou manifestaram-nas tão ocultamente
que não foi possível verificar ou mesmo observar qualquer indício de uma prática
religiosa muçulmana.
42
Fundada em 1417, pelo Infante Dom Henrique, filho de Dom João I, a Escola de Sagres, é um
acontecimento importante, representa a mudança radical e definitiva do rumo da expansão
ultramarina de Portugal.
53
2.1 O Islã em terras Brasileiras, Oriundo de Escravidão.
Importante registrar, nesta altura do desenvolvimento deste trabalho, as
minguadas referências relevantes ao nosso principal objeto de pesquisa, ou seja, a
mulher muçulmana no período do islamismo de escravidão no Brasil. Porém, ainda
que poucas, algumas boas referências ajudam-nos a perceber a sua importante
presença neste período.
Algumas dessas poucas, mas importantes referências sobre a mulher
muçulmana de escravidão, fazendo alusão principalmente à sua religiosidade e
mesmo às suas indumentárias e como transitavam em um contexto adverso e hostil,
são fundamentais para situar a mulher muçulmana de nosso tempo.
Mesmo sem registros históricos de ações memoráveis femininas, não quer
dizer que elas não tenham realizado ações que lhes confiram destaque nesta fase
do Islã de ecravidão no Brasil. Contudo, o contexto e o período fizeram-nas
mulheres quase “sem nome”. Registros, como estes que relataremos abaixo,
evidenciam a importância destas mulheres: supostamente, uma mulher Malê de
nome Luiza Marrin (Mahim)43. Segundo a tradição oral, esta foi a genitora do então
poeta Luiz Gama.
Luiza aparece em alguns relatos orais como uma das líderes da revolta Malê
de 1835, atuando com outros líderes. Sua base, supostamente,
era um belo
43
Marrin é uma corruptela de Mahim. Segundo Reis, Mahim é um nome de procedência Nagô.
No campo da historiografia, autores como Sud Menucci, Etienne Ignace, Luiz Vianna Filho,
José Honório Rodrigues e João José Reis, forneceram o embasamento teórico para o desenho
do painel historiográfico que permitiram a idealização desta personagem à revelia da História.
A “criação” de uma identidade nacional e a “invenção” de uma memória para o país foram os pilares
do discurso ideológico fundador de parte significativa da produção historiográfica brasileira. Tratavase de um modelo de escrita da história – atualmente contestado – que enaltecia e mitificava os
grandes homens seus feitos. Neste sentido, a introdução no universo da historiografia de técnicas
geralmente associadas ao mundo das Letras, como o uso da narrativa, influenciado pela emergência
da Nova História Cultural, têm fornecido elementos para a compreensão do presente a partir do
destaque ao indivíduo comum e a recomposição de trajetórias de vida. Luiza Mahin é uma
personagem presente em segmentos da memória brasileira, lembrada como símbolo de luta feminina
e referência na resistência ao escravismo. A análise de representações e a percepção de distintas
(re)construções discursivas acerca desta personagem em narrativas literárias e/ou historiográficas é o
ponto de partida para compreender os mecanismos que permitiram a sua idealização e o que tais
representações revelam sobre o contexto no qual foram (re)elaboradas. Apesar de comumente
relacionada a levantes escravos e rebeliões libertárias, no campo da historiografia Luiza Mahin é uma
personagem que suscita polêmica, principalmente em decorrência da carência de registros
documentais que assegurem a sua existência. Em tempos de exaltação da herança cultural afrobrasileira e de busca de representantes históricos que traduzam os ideais de resistência, liberdade e
identidade do negro no Brasil, o nome Luiza Mahin surge como sinônimo de valores essenciais às
conquistas dos descendentes de africanos que aqui foram escravizados por quase quatro séculos.
(GONÇALVES, 2009, p. 1-2).
54
sobrado onde hoje funciona um centro cultural negro: a Casa de Angola 44. Luiza
Marrin, supostamente, viveu neste casarão, denominado de Solar do Gravatá, no
Largo do Veteranos, localizado ao sopé da Ladeira da Praça. Segundo a tradição
oral, deste sobrado ela teria participado ativamente da elaboração da revolta Malê.
Uma de suas principais tarefas teria sido o despacho contínuo de mensagens
escritas em árabe. Esta informação foi dada pelos informantes de Antonio Monteiro.
Numa carta de 1880, o poeta abolicionista Luiz Gama, filho de Luiza com um
rico fidalgo português, relatou a um amigo que era filho natural de uma africana livre,
procedente da Costa da Mina (Nagô de nação Malê), de nome Luiza Mahim, pagã
que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Ele a descreveu como “de baixa
estatura, magra, bonita, altiva, geniosa, insofrida e vingativa”. Sobre a tendencia
revolucionária da mãe, ele informou: “Mais de uma vez na Bahia, foi presa como
suspeita de envolver-se em planos de insurreição de escravos que não tiveram
efeito. E, em 1837, veio para o Rio de Janeiro e nunca mais voltou”, contam os
registros deixados por Gama, que foi vendido como escravo pelo próprio pai aos dez
anos de idade. (REIS, 2003, p. 351-359). Buscando pistas, que indicassem uma
direção de como se comportavam as mulheres muçulmanas negras, como estas
desempenharam seus papéis neste período tão difícil para os negros em geral,
especula-se que Luiza Mahim e por inferência, outras tantas mulheres negras foram
articuladoras do movimento Malê.
O contexto favoreceu o trânsito das mulheres, uma vez que trabalhavam nas
ruas, vendendo e por serem menos vigiadas que os homens escravos, as mulheres
podiam, facilmente, formar uma rede de solidariedade e comunicação, que tanto
serviu para espalhar mensagens das revoltas, quanto para formar irmandades cuja
missão era juntar recursos em dinheiro para a compra de alforrias. Embora as
mulheres tivessem uma maneira muito delas, peculiar de organização, elas são
colocadas em pé de igualdade com os homens na articulação da liberdade. Suas
armas mais fatais, supostamente, eram muitas vezes a sedução e a proximidade
com a casa-grande, porque gozavam de maior confiança dos patrões e, assim
articular seus planos. (REIS, 2003, p. 270).
44
Casa de Angola: Supostamente, antiga morada de Luiza Mahim, denominada de Solar do Gravatá.
Hoje, um museu e centro de promoção e divulgação da história, cultura e atividades negras. Localizase na Praça dos Veteranos nº5, Salvador – Bahia – Brasil.
55
Outro importante registro fala de uma muçulmana escrava de nome Carmen
Teixeira da Conceição, nascida em 1877. Saindo da Bahia, foi para o Rio de Janeiro
em 1893. No Rio de Janeiro ela continuou a praticar a religião islâmica, porém, na
idade adulta, por questões de perseguição religiosa, teve que abrir mão das práticas
corânicas e mudar-se para o cristianismo católico romano. A solidão e a
religiosidade islâmica sempre mantida em segredo, podem ter exaurido as forças
desta mulher muçulmana. Tornou-se uma católica romana fervorosa, contudo,
momentos antes de morrer, numa conversa de fim de vida, os seus olhos
marejaram-se de lágrimas, ao recordar a sua crença de menina moça e os velhos
muçulmanos do Rio de Janeiro. Segundo Rodrigues, os muçulmanos nunca foram
tão numerosos no Rio de Janeiro quanto em Salvador, na Bahia, onde, um em cada
três dos velhos africanos, antes da inssurreição de 1835 (revolta dos Malês), era
praticante do Islã. (RODRIGUES, 1932, p. 96).
Tanto no Rio de Janeiro quanto na Bahia e noutros lugares do Brasil,os
muçulmanos, na época, denominados de muçulmis, desprezavam as práticas
religiosas dos orixás e de seus seguidores. Por outro lado, os orixás desprezavam a
prática religiosa daqueles a quem denominavam moslins. Os muçulmanos eram
respeitados e temidos, porque uma áurea de mistério os envolvia. O que na verdade
era a necessidade de manter em segredo sua religiosidade islâmica, por isso eram
austeros e discretíssimos. Contudo, não se isolavam socialmente. Participavam,
mulheres e homens de rodas de samba, iam aos bailes, embora nunca tomassem
bebidas alcoólicas e nem comiam feijoadas por causa da presença da carne de
porco. Um dado interessante, os muçulmanos escolhiam mulheres e maridos dentre
estas outras denominações religiosas.
Muitos costumes muçulmanos passaram a fazer parte do culto afro-brasileiro.
O uso do turbante por homens e mulheres é um dos mais visíveis. Foi introduzido
pelos muçulmanos na África, que desconheciam essa indumentária. Esse costume
acabou sendo trazido para o Brasil. O uso da roupa branca e a sexta-feira sagrada
(consagrada a Oxalá) foram outros costumes muçulmanos trazidos ao Brasil. Para
os muçulmanos, a sexta-feira é um dia para se rezar em congregação, assim como
o sábado para os judeus e o domingo para os cristãos. (DO RIO, 1976, p. 23).
Roger Bastide faz uma alusão aos muçulmis (mssurumis, mussurumins,
muslins) travestidos de muçulmanos, contudo, não muçulmanos legítimos, pois
praticavam, sobretudo as mulheres, rituais pagãos que haviam trazido da África.
56
Contudo, Bastide deixa claro que o sincretismo religioso era aceito e, mesmo
assimilado por ramos do islamismo, como por exemplo, a feitura de grigris, as
pequeninas bolsas de couro contendo versículos do Corão, a oração pela chuva, a
crença nos jinns (gênios) e as tabuinhas de escrever, contendo escritos versículos
do Corão grafados com giz (ou efum) que lavavam, sendo a água em seguida,
bebida pelos fiéis. Essa mesma prática era realizada pelos Babalaôs ao rabiscarem
algum caractere em árabe, quando faziam consultas a alguém que precisava.
(BASTIDE, 1971, p. 2005).
As indumentárias femininas e masculinas, principalmente, hoje, das mulheres
baianas, remetem-nos à herança cultural e também religiosa que vieram das regiões
africanas dominadas pelo Islã. Estes povos dominados sofreram um processo de
aculturação e assimilação por parte dos muçulmanos dominantes. Estes costumes
assimilados, possivelmente, mesclaram-se com aqueles que já faziam parte do
capital cultural anterior, sofrendo uma espécie de acomodação. Uma das mais
citadas, e ainda válidas, definição de assimilação como sendo um conceito
sociológico é aquela de Milton Gordon (1964).
Nos Estados Unidos no início da década de 1960, Gordon distinguiu, dentre
outros processos, a assimilação cultural (comportamental) da assimilação estrutural. A
assimilação comportamental inclui a aquisição de padrões linguisticos, sociais,
rituais e culturais da sociedade hospedeira enquanto permite a manutenção de certo
sentido de alteridade. Assimilação estrutural, a grande porta de entrada nos clubes e
instituições da sociedade receptora, incluindo, eventualmente, inter casamentos,
leva ao desaparecimento final do particularismo (GORDON, 1964, p. 60-83).45
Para Oliveira, a assimilação passa a ser possível quando um grupo deixa seu
habitat e vão residir em outra localidade cujos residentes são de outra etnia. Nestes
novos habitats se adequam a uma estrutura nova e novos costumes são
incorporados. (OLIVEIRA, 1976, p. 111).
A influência islâmica de escravidão que ainda sobrevive, sincreticamente, no
figurino das mulheres negras da Bahia e de algumas regiões do Rio de Janeiro é
resultado direto desta espécie de assimilação.
As “baianas” atuais, descendentes de africanos, mais precisamente das tribos
Ioruba, Nagô, Fula e Haussá, são as que mais se esmeram e capricham nas suas
45
Tradução Minha.
57
indumentárias. Há uma diferença notável entre as mulheres baianas e suas
vestimentas. O grupo pertencente ao Candomblé é de estatura baixa e gorda. Estas
mulheres se destacam por usar vestimentas de cores vivas e berrantes. As saias
são amplas e estampadas. Por outro lado, o grupo que pertence ao das mulheres
muçulmanas, cujos ascendentes foram os africanos sudaneses, são de estatura alta
e esguia, usam o traje branco imaculado. Pode ser visto, às vezes, no ombro desta
mulher descendente de negros muçulmanos sudaneses, um “pano da Costa” de cor
preta, originário da Costa da África.
As demais peças que completam seu traje típico e aludem à herança islâmica
são: a saia rodada, com muitas anáguas rendadas, engomadas. A bata (blusa de
rendas) solta. Pano da Costa46, com um xale sobre o ombro, o turbante,
essencialmente, uma peça típica muçulmana. Chinelas ou sapatos de salto baixo e
os adereços extras, tais como: pulseiras, brincos de ouro, prata, coral. Algumas, nos
dias de festa, usam uma penca de balangandãs47 na cintura: (ANEXO 1 – Figura1).
Segundo Bastide, a vestimenta era outro distintivo islâmico na Bahia, juntamente
com amuletos. A ideia islâmica de pureza ritual, (tahara) está intimamente ligada
com a cor branca imaculada da indumentária da mulher muçulmana sudanesa, sem
a qual não se pode orar ou mesmo tocar o Qur’na (Alcorão). Tanto as mulheres
quanto os homens muçulmanos malês usavam vestimentas brancas para os rituais
religiosos, denominadas de abada do ioruba agbda, que se trata de um camisolão
comprido, habitualmente feito de pano da Costa. Diferentemente de seu uso na
África, na Bahia, devido à perseguição das autoridades, os abadás ficaram restritos
a ritos religiosos. Eram usados pelos Malês em suas casas para as orações diárias e
outros rituais da fé islâmica. Esses ritos religiosos seguiam as normas trazidas do
Islã na África. O dia começava por orações pronunciadas sobre uma pele de
carneiro. Era a Salat, que na linguagem popular se tornou fazer sala. Cada oração
46
O pano da costa é assim chamado por ter sido um tipo de tecido vindo da costa dos escravos,
Costa Mina, Costa do Ouro.O tecido original foi substituído por outros tipos de tecidos, o que não
diminui em nada as funções do pano-da-costa.
O pano-da-costa identifica a mulher feita, mesmo que ela não esteja de roupa de santo completa.A
situação do pano-da-costa é de maior importância, se colocarmos a presença da mulher como
símbolo do poder sócio religioso e arquétipo dos valores mágicos da fertilidade, isso motivado pelas
formas anatômicas características da mulher.
47
Balangandã: diversas peças em um tipo de argola decorada. Cada peça é um amuleto. Seu nome
é uma onomatopéia ao som que os objetos pendurados emitem quando em movimento.
(http://www.saberglobal.com.br/).
58
era precedida de uma ablução em que, tanto as mulheres e homens negros,
deixavam suas vestimentas comuns e vestiam o abadá. (BASTIDE, 1985, p. 212).
Lídice Meyer Pinto Ribeiro,48 em seu minuncioso trabalho de pesquisa,
“Islamismo: nem conversão, nem adesão. Reversão!”
Trata com informações
precisas da questão da presença islâmica no Brasil. Segundo Ribeiro, o Islã foi
trazido ao Brasil, com registro oficiais e dados históricos verficáveis, no final do
século XVIII pelos escravos originários das regiões africanas já islamizadas. Como
abordamos anteriormente, em subtítulo do capítulo um desta pesquisa, o período do
califado e a expansão do Islã executada pelos califas, chegou até a África. Não
havendo resistência que pudesse deter o avanço maometano, as populações
africanas foram aderindo ao novo credo religioso, ou seja, assimilando e sofrendo
um processo de aculturação conforme os pressupostos de Oliveira (1976), quando
trata do fenômeno observado nos Terenas e outras tribos indígenas brasileiras.
Contudo, o islamismo africano é uma massa amalgamada por uma mistura de
cultura árabe trazida pelos governantes do califado e práticas animistas e fetichistas
provenientes de culturas tribais indígenas ancestrais. (RIBEIRO, 2013, p. 148-149).
O islamismo de escravidão tem, portanto, seu início com a chegada ao Brasil,
principalmente na Bahia, de milhares de prisioneiros advindos de guerras políticoreligiosas na região do Sudão Central, que hoje equivaleria ao norte da Nigéria. Estes
prisioneiros tinham em comum além da pele negra, a crença islamica, apesar de
algumas diferenças nas práticas e dogmas. (RIBEIRO, 2013, p. 149).
Originariamente, os muçulmanos no Brasil foram denominados em sua
totalidade, ou seja, em seu conjunto, como Muçulmi Malê49 em terras baianas e,
Alufá em terras cariocas. Estes, os primeiros a praticar o Islã no Brasil.
Trazidos à força, eram Haussás, os primeiros muçulmanos a chegarem no
Brasil. Tendo suas fileiras seguidas por cativos dos reinos Gurma, Borgu, Borno,
Nupe e outras etnias de reinos vizinhos dos Haussás, situados no Sudão Central
(REIS, 2003, p. 159-163). Segundo Bastide o grupo Haussá50 destacou-se na
48
Doutora em Antropologia Social Pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Pós
Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Escola Superior
de Teologia desta Universidade
49
Ramos apresenta a origem dos temo Muçulmi Malê com os seguintes significados: Muçulmi como
uma corrupção lingüística de Muçulmano e Malê com o significado de má lei, em outras palavras,
aqueles que não pertencem e não seguem a boa lei de Deus. (RAMOS, 1971, p. 129). Minha ênfase.
50
51 “Haussá – o termo serve, segundo Seligman, para designar a) a língua Haussá; b) o país onde
se acha o grupo principal de povos de fala haussá c) todos os povos sudaneses centrais e ocidentais
59
introdução e prática do Islã no Brasil, pois seus adeptos constituíram o elemento
mais importante do negros islamizados. O islã não chegou ao Brasil em sua forma
pura. Sofreu um processo de aculturação-assimilação inicialmente por: negros puros
e negros mestiçados com Hamitas51. Antigos animistas islamizados e não
originariamente muçulmanos, portanto, um Islã fetichista. (BASTIDE, 1971, p. 204).
Os Haussás foram introduzidos em grande número, principalmente na Bahia.
Chegando em número elevado provenientes da região norte da Nigéria. Verificou-se
neste grupo o fenômeno “Contra-aculturativo”, manifesto pelas issurreições levadas
a cabo por eles, são as denominadas rebeliões Nagôs, historicamente, registradas
no início do século XIX, e marcadas por uma seqüência de revoltas denunciando o
clima de tensão crescente e o inconformismo com a situação de escravidão. As
principais ocorreram nos seguintes meses e anos: maio de 1807; 4 de janeiro de
1809; fevereiro de 1810; fevereiro de 1814; janeiro e fevereiro de 1816; junho e
julho de 1822; agosto e dezembro de 1826, abril de 1827; março de 1828; abril de
1830. Culminou com a grande revolução de 1835, fatos que exerceram uma grande
influência sobre os outros grupos negros.
As inssurreições não eram somente contra os “brancos”, mas, também contra
os negros que se recusassem aderir às suas causas. Neste caso, negros eram tidos
como inimigos. O caráter religioso destas inssurreições sobrepujavam o caráter
étnico. (RAMOS, 1971, p.139).
que falam o haussá como língua mãe e, conhecidos também sob a designação Haussáuá” (RAMOS,
1971, p. 137). Minha ênfase.
51
Hamitas – Animistas com forte característica islâmica, porém, não puros muçulmanos. Minha
ênfase.
60
2.2 A Religião Como Motivação de Liberdade.
A revolta de 1835, em especial, com forte conotação islâmica, realizada no
fim do mês do Ramadã, deixa claro a organização dos negros muçulmanos e a sua
forte ligação com o islamismo. Como as escritas sagradas do islamismo proibiam a
escravidão dos muçulmanos, esse grupo, conhecido como “malês”, acabou
promovendo vários levantes contra os senhores escravocratas e teve papel
determinante no sucesso de vários quilombos do país.
O mais conhecido desses movimentos revoltosos contra a escravidão, foi a
“Revolta dos Malês”, consequencia direta da expansão da religião islâmica entre os
escravos africanos, principalmente na Bahia.
Esta revolta dos Malês contou com a participação apenas de negros
africanos, os negros que eram nascidos no Brasil eram chamados de crioulos e não
participaram do levante, por isso Reis acredita que se o levante tivesse dado certo, a
Bahia provavelmente seria uma nação islâmica na America Latina controlada pelos
africanos, tendo à frente os muçulmanos. Reis não para por aí, vai além e diz que
talvez a Bahia se transformasse em um país islâmico ortodoxo ou até num país onde
as outras religiões fossem toleradas. (REIS, 2006, p. 145).
O Islã de escravidão, portanto, não obstante, sua constituição e presença no
Brasil ser fato indiscutível, também é fato inegável que este Islã, sofreu o que
podemos denominar de aculturação e assimilação face a influência animista,
fetichista. Houve uma mescla e, concomitantemente, uma tentativa em manter o Islã
distinto destas intervenções e manifestações de outros credos religiosos e seus
ritos.
Juntamente com o Islã de escravidão, a religião muçulmana desapareceu
quase que completamente em toda Bahia. Segundo Baptista (1971), em 1937, a
União de Seitas Afro-brasileiras da Bahia tinha ainda um Candomblé de uma nação
muçulmana. No entanto, apenas traços dessa religião eram mantidos com algumas
palavras, expressões e orações inteiras usadas nos rituais como eram usadas nos
momentos de oração dos Malês. Autores como Artur Ramos (1979) concordam em
algumas razões para o desaparecimento do islamismo de escravidão na Bahia.
Segundo Ramos, os Malês constituiam minoria dentre os negros de outras
crenças religiosas; não desejavam e evitavam a convivência com outros escravos
61
por não serem maometanos; falavam a língua do país de orígem usando termos
árabes e evitando a língua portuguesa. O olhar, portanto, dos outros grupos negros
para os muçulmanos era o olhar de estranheza e de não pertença; não os
consideravam nem irmãos e nem companheiros e suas crenças foram aos poucos
sendo subistituídas ou incorporadas pelos cultos gegê-nagô que predominavam na
Bahia.
62
2.2.1 Fugas e Origem dos Quilombos.
Uma vez reprimida a revolta, muitos participantes, para fugir da perseguição
implacável empreendida pelas autoridades na Bahia, vieram para a capital, o Rio de
Janeiro. A resistência à escravidão já se manifestou desde o início do tráfico, em
meados do século XVI. Os escravos escapavam de seus senhores e formavam
comunidades de fugitivos que se protegiam mutuamente. O governo português
denominava como quilombo52 qualquer agrupamento com mais de seis escravos
fugitivos. O primeiro quilombo de que se tem registro surgiu na Bahia em
1575. Estes agrupamentos, com forte presença Malê, podem ser considerados as
origens do sincretismo religioso tão marcadamente presente nas práticas dos negros
islamizados deste período, quanto nas manifestações de credos religiosos afrobrasileiros de hoje, como defende Ramos:
Para Artur Ramos, “o islamismo dos negros malês do Brasil sempre esteve eivado
das práticas religiosas africanas”, fenômeno que havia iniciado na própria África.
Adoravam Alá, Olorun-uluá (sincretismo de Olurum do Yorubá e Alá) e Mariana (Mãe
de Deus).” Ramos acredita, portanto, que as sobrevivências malês acham-se diluídas
nas práticas e cultos gege-nagôs ou bantus, das macumbas e candombles do Rio de
Janeiro, Bahia e outros pontos do Brasil, tendo a cultura Malê se amalgamado às
outras culturas africanas, criando sincretismos, podendo hoje só serem detectadas
por meio de alguns termos, vestuário e práticas rituais (RIBEIRO, 2013 apud RAMOS,
1951, p.332-333).
Os anseios de liberdade e a capacidade intelectual e administrativa dos
escravos muçulmanos, sobretudo os sudaneses, foram elementos muito importantes
no fomento e organização destas comunidades. A partir do ano de 1600 inicia-se a
formação de um enorme quilombo, o Quilombo dos Palmares que, formado por
escravos fugitivos das fazendas e dos engenhos, chegou a reunir mais de 20 mil
habitantes, podendo este número ter chegado a 50.000 habitantes em seu apogeu.
Há documentos que registram o papel e importância dos negros muçulmanos de
52
O termo “quilombo” vem das palavras “kilombo” da língua Quimbundo e “ochilombo” da língua
Umbundo. Há ainda outras línguas africanas com palavras similares que designam a mesma coisa.
Em alguns lugares do nosso país, os quilombos também recebiam o nome de “mocambos”. Em seu
significado original, “quilombo” se referia a um lugar de repouso utilizado por populações nômades.
No Brasil, a palavra tomou uma nova dimensão: chamava-se quilombo uma comunidade de
escravos fugitivos. Nessas comunidades vivia-se de acordo com a cultura originalmente africana –
seja em âmbito cultural, religioso ou social. Em alguns quilombos, inclusive, tentou-se até mesmo a
nominação de reis tribais. (http://www.historiabrasileira.com/brasil-colonia/quilombo/). Minha ênfase Grifo meu.
63
origem sudanesa, na estruturação dos quilombos53, como, por exemplo, a de certo
Karim Ibn Ali Saifudin, considerado o construtor das fortificações do Quilombo dos
Palmares54. Assim foram descritos por Ramos: “Eram altos, robustos, fortes e
trabalhadores: (ANEXO 2 – Figura 2). Usavam como os outros negros muçulmanos,
um pequeno cavanhaque, de vida regular e austera, não se misturavam com os
outros escravos. "Eram denominados ‘malês’, que significa professores, educadores
em árabe. Organizaram a recuperação da religião islâmica entre os escravos, a
partir dos registros em memória do Sagrado Alcorão e das tradições do Profeta
Muhammed. Promoveram, ainda que de forma secreta, atividades de alfabetização e
memorização do texto sagrado. Mesmo enfrentando oposição e perseguição dos
proprietários de escravos, escreviam panfletos, se comunicavam em árabe, e se
organizavam constituindo conselheiros e juízes em suas comunidades. (RAMOS,
1971, p. 138).
53
“Palmares” remete ao fato da região escolhida ter muitas palmeiras. No começo de sua existência,
Palmares era habitado por poucos quilombolas. Contudo, após o início da invasão holandesa em
Pernambuco (1630 a 1654), os senhores de engenho voltaram suas atenções para os holandeses, o
que proporcionou a oportunidade de fuga para muitos escravos. Vários negros fugiram para
Palmares, o que fez com que no início da invasão – em 1630 – o número de habitantes de palmares
subisse para 3.000 e no final dela – em 1654 – Palmares abrigava entre 23 e 30 mil pessoas (cerca
de 13% da população brasileira na época).http://www.historiabrasileira.com/brasil-colonia/quilombo/).
Minha ênfase – Grifos meus.
54
Quilombo dos Palmares foi o mais destacado quilombo entre todos. Na ordem de importância
temos quilombo dos Ambrósios e quilombo de Campo Grande. Em 1694 o Quilombo dos Palmares foi
ocupado e destruído. Com um exército de mais de 8.000 homens munidos até com canhões, Caetano
Mello e Castro (governador da capitania de Pernambuco) e seu braço direito Domingos Jorge
Velho (o comandante-geral) atacaram por 22 dias até a vitória. Contudo, os palmarinos continuaram a
resistência por meio de ataques surpresa, saques e libertação de escravos. Mesmo com a morte de
seu líder, Zumbi, o povo de palmares lutou até 1716.Muitos quilombos, por estarem em locais
afastados, permaneceram ativos mesmo após a abolição da escravatura em 1888. Eles deram
origens às atuais comunidades quilombolas (quilombos remanescentes). Existem atualmente cerca
de 1.500 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Palmares, embora as estimativas
apontem para a existência de cerca de três mil. Grande parte destas comunidades está situada em
estados das regiões Norte e Nordeste. Minha ênfase – Grifos meus.
64
2.3 Islamismo e Comunidades de Quilombos.
Nos quilombos, organizavam-se governos, com rigorosas leis punindo com a
pena de morte furtos, roubos, adultério, assassinatos e deserção no âmbito da
comunidade. Com a consolidação, desenvolveram a agricultura e mantiveram
relações comerciais com povoados vizinhos. Composto por negros de diversas
origens étnicas e culturais e também índios, principalmente mulheres, uma vez que
a fuga de mulheres negras para os quilombos era em menor proporção que a fuga
de homens.
Não houve imposições ou predominância de qualquer das culturas, uma vez
que o ideal de liberdade e as necessidades de manter a segurança da comunidade
sobrepujaram as diferenças55. Desta forma, tudo que era motivo para divisão era
descartado.
Houve misturas de idiomas e sincretismo religioso, inclusive assimilando do
cristianismo aquilo que convinha e era aceitável. Destacamos que, em certo sentido,
o Quilombo dos Palmares, o mais destacado de todos, pode ser considerado como o
primeiro governo livre do continente americano, uma vez que, embora não
reconhecido, constituiu-se num estado organizado que não se submeteu à coroa
portuguesa. Assediado e sofrendo diversos ataques organizados pelo governo
português, acabou sucumbindo por volta de 1694, sendo totalmente destruído.
Esta assimilação e aculturação do Islã de escravidão no Brasil, ultrapassou as
fronteiras religiosas e culturais, alacançando também as questões linguísticas,
tornando a desembocar na questão religiosa. Exemplo deste fenômeno, é o termo
linguístico dando orígem à seita religiosa, como aconteceu com o termo Isha
Alláh56, (Oxalá), que literalmente significa “tomara!”, “Queira Deus!” “Quem Dera!”. O
termo pronunciado sem pausa, foneticamente falando, fica muito próximo, quase
55
Kabengele Munanga, ao recuperar a relação do quilombo com a África, afirma que o quilombo
brasileiro “é, sem dúvida, uma cópia do quilombo africano reconstituído pelos escravos fugitivos para
fazerem oposição à estrutura escravocrata, pela implantação de uma nova estrutura política de
igualdade e liberdade ansiada por todos. (LEITE, 2000 apud Munanga, 1995, p. 335)
56
Isha Alláh – Na língua Portuguesa Oxalá significa: Quem Dera! Tomara! Queira Deus! (Dicionário
Brasileiro Globo. São Paulo: Globo, 1996, p. 447). Minha ênfase – Grifos meus.
65
semelhante a Oxalá. O termo Oxalá, uma corruptela do termo Isha Alláh, tornou-se a
orígem de uma seita religiosa que leva o seu nome (RIBEIRO, 2013, p. 156).
Este Islã negro, marcado pelo sincretismo religioso afro-brasileiro, não é mais
visto no Brasil. Seu desaparecimento só não é total, porque ainda restam sinais de
sua presença em solo brasileiro através de escassas citações na literatura brasileira
e, supostamente, alguns escritos em árabe que resistem ao tempo. Contudo, é
importante lembrar que este processo de assimilação de outros credos religiosos,
sobretudo dos afro-brasileiros, foi, também, um meio de se protegerem da extinção
ou mesmo da conversão, sobretudo para o catolicismo romano. Inclusive, a
possibilidade de conversão ao protestantismo pode ter sido outra maneira de alguns
negros islâmicos escaparem da perseguição religiosa católica romana.
Essa presença islâmica e seus primeiros representantes no Brasil foi
documentada por muitos historiadores e folcloristas, dentre estes destacamos Nina
Rodrigues (1977, Etiènne Brasil (1909), Arthur Ramos (1951), Gilberto Freyre
(1980), João do Rio (2006), Abelardo Duarte (1958) e Waldemar Valente (1976).
Somados a estes estudos e pesquisas históricas, verificam-se achados tais como os
fragmentos de escritos árabes em porta-amuletos e o relato de Francis de
Castelnau, do século XIX.
A participação direta e intensa dos primeiros muçulmanos brasileiros nas
revoltas armadas do recôcavo baiano, minunciosamente relatada por João José dos
Reis e mais recentemente por uma descoberta importante de um registro árabe
datado do seculo XIX, tudo isto somado, projetou mais luz sobre os fatos já
existentes, já que se trata de um relato feito por um muçulmano que visitou o Brasil
entre os anos de 1866 e 1869. É um diário de viagem do imã Abdurrahman al
Baghdadi, que levava o nome de Deleite do estrangeiro em tudo o que é espantodo
e maravilhoso. Este diário se encontra na biblioteca de Istambul e foi traduzido para
a língua portuguesa por Paulo Daniel Farah. Atribui-se a este texto uma grande
importância como fonte histórica, antropológica e religiosa sobre a presença islâmica
em solo brasileiro no século XIX. (RIBEIRO, 2012, p. 108-109).
A presença islâmica de escravidão, irrefutável, em solo brasileiro e com fatos
históricos, não se discute, porém, neste período ainda não temos um sistema
66
religioso muçulmano
com matriz definida, enraizado e forte no Brasil. Um Islã,
especificamente negro ou com ideologia de negritude não existe por aqui, ainda.
Somente com o fim da segunda guerra mundial e com a chegada de
imigrantes árabes-sírio-libaneses no Brasil e com a assegurada garantia pelo
governo brasileiro de liberdade religiosa, através da constituição de 1949, é que
passaremos a ter o estabelecimento de um islamismo no Brasil como o que
conhecemos hoje. Quanto ao destino dos grupos malê, não há referencia ou registro
de seu paradeiro. (RIBEIRO, 2013, p.157).
67
2.4 O Islã em Terras Brasileiras, Oriundo de Imigração
‘O Imperador D. Pedro II, após efetuar uma viagem diplomática ao Oriente
Médio, mostrou-se fascinado pela cultura local e pela cordialidade do povo árabe.
Consta que, por meio do Imperador, as primeiras levas de imigrantes árabes foram
atraídas para o Brasil. Há séculos dominados pelo Império Turco-Otomano, os
árabes viram na emigração uma forma de fuga da violenta dominação turca. Os
turcos, de fé islâmica, perseguiam as comunidades cristãs árabes.
Em fins do século XIX, os árabes cristãos, e, dentre estes, muçulmanos
também, em sua maioria partindo da Síria e do Líbano, passaram a se espalhar pelo
mundo: os destinos principais foram a América do Norte, América do Sul – em
especial, o Brasil. O estabelecimento de um islamismo em solo brasileiro, portanto,
se dá com a imigração de sírios, libanesses e turcos que portavam documentos de
identificação emitidos por autoridades do Imperio Turco-Otomano57.
A orígem do termo “turco” que passa a ser designativo para todos aqueles
que procediam da Síria, do Líbano e da Turquia, é uma herança dos resquícios do
Império Turco Otomano, daí o termo turco ser usado até mesmo para aqueles que
tinham ascendencia grega.
Embora sírios e libaneses tenham sido a grande maioria dentre os povos de
origem árabe que vieram para o Brasil, houve uma ampla e confusa generalização
que, por sua vez, negligenciou a presença de outros grupos menores como egípcios,
palestinos, iraquianos. Além disso, diluía sua importância numérica em relação a
outros grupos de maior expressão, levando também ao problema da análise
estatística, pois os dados não coincidem, uma vez que, para um mesmo censo,
foram usados duas ou mais categorias. Dentre as muitas denominações que estes
grupos receberam por parte dos nativos brasileiros, de longe mais popular foi a de
“turcos”. Não levando em consideração as diferentes procedências do mundo
57
Ele começou a nascer no século 11, quando tribos turcas nômades se fixaram na Anatólia, região
que hoje é parte da Turquia. Tais tribos ajudaram a difundir a religião muçulmana em terras que até
então estavam sob o domínio de outro império, o Bizantino. "O termo otomano deriva do nome
Osman, ou, em árabe, Uthman", diz o historiador inglês Malcolm Yapp, da Universidade de Londres.
Osman, ou Otman I (1258-1324), foi um chefe turco que transformou essas tribos nômades em uma
dinastia imperial. Durante os séculos 15 e 16, o Império Otomano tornou-se um dos estados mais
fortes do mundo, englobando boa parte do Oriente Médio, do Leste Europeu e do norte da África.
Além do poderio militar, o que ajudou a garantir essa expansão foi a tolerância dos otomanos com as
tradições e as religiões dos povos conquistados.
68
oriental. O maior número, seguramente, procedeu da Síria, do Líbano e da
Palestina. Quando iniciou-se a imigração, o Império Turco Otomano era ainda
respeitado. Os passaportes dos imigrantes eram emitidos pela autoridade TurcaOtomana; fato que, do ponto de vista dos imigrantes, era positivo, contudo, do ponto
de vista dos nativos era fator negativo, haja vista que ser turco era sinônimo
daqueles que “faziam qualquer negócio”. A estgmatização pelo olhar do outro,
intensificada pela generalização do termo “turco” acabava por fazer emergir
preconceitos étnicos em relação aos imigrantes. (OSMAN, 2011, p. 23).
Os primeiros sírios e libaneses chegaram em solo brasileiro nos anos 186058.
Não há estatíticas precisas, mas as pesquisas sobre esse tema mostram que o fluxo
de imigrantes não cessa de crescer até próximo do início da primeira guerra
mundial. Dados registrados indicam que aproximadamente onze mil pessoas, entre
homens, mulheres e crianças foram registrados em 1913. Registra-se que nos anos
1920 e até a Grande Depressão contava-se em torno de cinco mil entradas de
imigrantes por ano. Os dados do recensseamento de 1920 do Estado de São Paulo,
apresentava cerca de vinte mil sírios e libaneses, aproximadamente quarenta por
cento do total nacional. Note-se que esta tendência vai se confirmando ao longo das
décadas seguintes e fazendo de São Paulo, o Estado da união com maior presença
de muçulmanos de imigração do Brasil. Em seguida, vem o Estado do Rio de
Janeiro seguido pelo Estado de Minas Gerais. A cidade de São Paulo se destacou
por acolher seis mil imigrantes muçulmanos que se instalaram, principalmente, nos
bairros da Sé e de Santa Ifigênia. Além da capital paulista, numerosos grupos se
estabeleceram em São José do Rio Preto, Santos, Barretos e Campinas. ( TRUZZI,
1993, p. 186).
Na continuidade do processo imigratório, houve um segundo
movimento,
digno de nota, a partir de 1945 a 1955; 1956 a 1970 e o de 1971 até hoje.
Importante destacar que de 1860 até 1938, a grande maioria de imigrantes eram
cristãos. A partir de 1945 em diante, a imigração dividiu-se entre cristãos e
muçulmanos. Segundo Ribeiro, apesar do número de muçulmanos serem,
inicialmente, minoria no meio destes grupos de imigração, são eles, portanto, que
irão iniciar o estabelecimento de uma comunidade islâmica sólida em terras
58
Pelas linhas históricas convencionais, registra-se a primeira leva imigratória em 1860 a 1870, porém, há um
relato ainda que impreciso, da presença libanesa já com a chegada da família real portuguesa em 1808. (NAME,
2009, p.14).
69
brasileiras. Entre os muçulmanos imigrantes, a maioria eram de orientação sunita,
uma parte menor de xiitas e ainda a presença de alawitas.59 Hoje, podemos
identificar alawitas na Síria, inclusive no governo deste país.
Como ponto de partida, a SBM teve a sua primeira sede instalada em 1928,
com 62 pessoas arroladas, localizada à Rua da Mooca, porém, as orações eram
realizadas em algumas salas alugadas na Avenida Rangel Pestana e Barão de
Duprat. Em 1929 inicia-se a construção da primeira mesquita do Brasil, que será
inaugurada em 1960, no bairro do Cambuci, em São Paulo. Esta mesquita levará o
nome de Mesquita Brasil (RIBEIRO, 2013, p. 157).
59
A doutrina alauíta - uma variante heterodoxa e esotérica do xiismo - foi elaborada no Iraque no
século IX por Mohammad bem Nusseir, discípulo do 10º imã Ali Hadi, que entrou em dissidência.
Assim como os xiitas, que veneram Ali, primo e genro do profeta Maomé, os alauítas o idolatram.
Para eles, Mohamed não é mais que um véu que esconde "a essência" encarnada por Ali. Seus
seguidores acreditam na reencarnação, em geral carecem de mesquitas, ignoram o jejum e a
peregrinação a Meca, toleram o álcool e suas mulheres não utilizam véu.
70
2.5 A Mulher Muçulmana nos Primórdios da Imigração Para o Brasil.
São raros, escassos, quase inexistentes os registros da performance da
mulher muçulmana de imigração neste período inicial. No Brasil, a presença da
mulher síria ou libanesa ou mesmo egípcia ou iraquiana não possui registros que
realcem a sua atuação e a sua importante participação na construção da identidade
muçulmana brasileira. Segundo Truzzi, a presença de uma cultura patriarcal tão
forte e tão intensa e menos pragmática em termos de ganhar a vida, contribuiu para
que as mulheres persistissem na esfera do lar ou do trabalho anexo a casa.
Atividades secundárias, que neste contexto cultural patriarcal do Brasil, foi
assimilado e praticado pelas famílias de imigrantes, neste caso, relegando às
mulheres um papel subalterno, secundário, em relação às atividades masculinas.
(TRUZZI, 1993, p. 187).
A dificuldade para entender ou mesmo encontrar um registro da atividade
feminina nesta época foi e é tão grande, que alguns pesquisadores, convictos da
importância da participação da mulher muçulmana de imigração na construção da
comunidade islâmica brasileira, iniciaram um processo de registros, com base
histórica,
a
partir
de
entrevistas
com
gerações
de
mulheres
imigrantes
descendentes. É o caso de Osman. A pesquisadora, em seu trabalho “Imigração
Árabe no Brasil”, vai colher depoimentos que assumem a forma de registros
históricos e realçam a participação feminina nesta fase da imigração para o Brasil e
em fases posteriores. Vejamos segundo Osman, o depoimento de uma mulher
muçulmana, nascida no Líbano em 11de maio de 1939, Sara Toufic Abou Jokh. Esta
mulher chegou ao Brasil com 16 anos. Sara é a típica mulher muçulmana da cidade
de São Paulo, imigrante do Líbano: “Criamos nossos filhos na tradição islâmica.
Fazíamos questão de ensinar a língua árabe e as tradições e cultura de nosso povo.
A educação dos filhos era tarefa quase que totalmente minha, uma vez que meu
marido Adel se dedicava diariamente ao comércio mascate. Quando me casei,
enfrentei muita dificuldade, ainda não havia uma mesquita organizada. Meu
casamento foi oficiado por um patrício, conhecido nosso, que leu a Surah da
abertura do Alcorão, que é o que basta para realizar um casamento”. (OSMAN,
2011, p. 42-43).
Neste ponto do depoimento de Sara Toufic, uma constatação de Hamid, em
sua pesquisa sobre a imigração de mulheres muçulmanas para o Brasil, vem
71
corroborar para nosso entendimento de outras questões tais como casamento e
saída do país de origem para terras brasileiras:
Assim, ao apontar que as mulheres palestinas são “migradas” não pressupomos uma
falta de agência feminina na decisão de deslocar-se. Como bem ponderou Jardim
(2007), principalmente no que toca à segunda geração de imigrantes, as mulheres
(tias, avós) seriam as responsáveis por tramar os casamentos entre parentes que
moram em países distantes, “vindo primeiro” no processo imigratório. No relato de
Sadíe, por exemplo, fica claro como sua avó já tecia os encontros entre primos do
Brasil e da Palestina. Não obstante, é preciso reconhecer que as palestinas não
“migram sozinhas”. A possibilidade do deslocamento feminino somente ocorre
diante de uma presença masculina. (HAMID, 2007, p. 6). Ênfase minha – Grifos
meus.
Podemos inferir, portanto, que de acordo com Hamid, a saída de uma mulher
seja ela palestina, síria, egípcia etc. para o Brasil, ficava de certa forma,
condicionada ao casamento com um homem de sua região, tribo, clã ou com algum
parentesco com sua família; era quando este pretendente voltava ao seu país para
trazer para o Brasil sua esposa. Portanto, a imigração de mulheres muçulmanas
para o Brasil passava, em grande parte, por este expediente.
Continua Sara Toufic: “o meu marido sempre que podia me ajudava muito
com as atividades do lar. Meus filhos todos nasceram de parteira, mas, muitas vezes
a parteira só chegava para terminar o trabalho, porque os bebês já tinham nascido
sem ajuda nenhuma. Quando a situação financeira ficou boa, meu marido Adel fez
grande surpresa para mim: Uma viagem à Meca e Medina, sagradas para nós. Era o
mês do Ramadã. Rezei nas mesquitas e dei as sete voltas em torno da Caaba.
Depois dessa experiência, fundamental para um muçulmano, minha vida se revestiu
de mais retidão, ausência de maldade, mentiras, vícios, vaidade pessoal e maior
dedicação a Deus” (OSMAN, 2011, p. 46-47).
O desempenho das mulheres muçulmanas deste tempo, afora características
pessoais próprias, caso de Sara Toufic, exceção à regra, acaba por revelar
situações quase semelhantes que clareia nosso entendimento deste período da
mulher muçulmana de imigração na cidade de São Paulo. O caso de Sara foge à
regra geral pela qual transitaram as demais mulheres neste período. Em outras
palavras, a mulher atuou, salvo poucas exceções, como deveria atuar em um
contexto de dominação masculina e modelado socialmente pela matriz patriarcal
trazida em sua bagagem cultural e intensificada pela matriz patriarcal brasileira.
72
Contudo, se compararmos a mulher muçulmana com a mulher cristã, ambas
procedentes do Líbano e ambas vivendo em um ambiente de dominação masculina
predominante, para nossa admiração, a mulher muçulmana vai evidenciar uma
performance muito superior no que tange a participação direta na construção da
comunidade islâmica, na estrutura familiar, nas questões de sustento da família e
auxílio ao marido, nas questões de cunho econômico, social e religioso em geral. A
mulher muçulmana, com base nestes depoimentos, deixa transparecer que não se
contentou com uma existência submissa ao extremo e que não se sujeitou a um
papel de mera coadjuvante social, quando vista na relação com o gênero masculino.
Sara Toufic Abou Jokh, imigrou para São Paulo e veio se estabelecer na
Freguesia do Ó, mais precisamente na Rua Antonio Blasques. Sara se dedicava ao
trabalho doméstico a princípio. Seus irmãos, seguindo a tendência dos homens
árabes de imigração, dedicavam ao comércio mascate. Contudo, Sara vai se
envolver em outras áreas de domínio exclusivo do sexo masculino, tais quais
comércio, direção na criação dos filhos e estruturação da família, responsabilidade
em manter as tradições culturais e os valores da religião, além da economia do lar.
São indícios de que uma igualdade de gêneros é possível no mundo islâmico, sendo
que este fator de igualdade vai ser matéria de grandes discussões e debates na
busca de uma visão mais equilibrada, se possível, de tema tão polêmico, sobretudo
quando visto e assimilado pelo viés cultural e religioso.
A partir deste segundo movimento imigratório para o Brasil, iniciando em
1945, e com o aumento da presença muçulmana em vários pontos do território
nacional, vem surgindo, aos poucos, uma identidade islâmica, ainda que incipiente
e, como consequencia, vai surgindo uma maior necessidade de uma estrutura tanto
ideológica quanto física para a afirmação e referência deste povo. É neste período
que se iniciam as construções de mesquitas pelo Brasil afora: (ANEXO 3 – Foto 1).
Neste período, será construída uma das mesquitas mais suntuosas do Brasil,
em Foz do Iguaçu, PR e, em 1969, a Escola (Colégio) Islâmica (o) é inaugurada na
Vila Carrão, São Paulo, SP, como importante centro divulgador da cultura
muçulmana. O Crescimento da comunidade islâmica progride a ponto de que em
1970 realizassem o primeiro Congresso Internacional Islâmico dos muçulmanos no
Brasil, com participação do Iran e da Turquia. (RIBEIRO, 2013, p.158).
73
2.6 A Mulher Muçulmana Revertida no Brasil.
A presença de brasileiros revertidos ao Islã é notória, já a partir dos
movimentos de imigração supramencionados. Logo que desembarcaram em terras
brasileiras, a partir da segunda metade do século XIX, os imigrantes islâmicos
tornaram-se, potencialmente, instrumentos para reversão60 de nativos brasileiros.
A presença feminina merece destaque. Sua presença nas mesquitas espalhadas
pelo Brasil é muito grande. No caso desta pesquisa, enfatizamos a cidade de São
Paulo, eleita como nosso foco principal de observação da performance, sobretudo
religiosa, da mulher muçulmana paulistana: (ANEXO 4 – Foto 2).
Antes, de adentrarmos diretamente no foco principal desta pesquisa, ou seja,
o desempenho feminino muçulmano e sua religiosidade, com ênfase na cidade de
São Paulo, julgamos necessário entender o surgimento de uma espécie de
identidade que surge por oposição, implicando a afirmação do “nós” diante dos
“outros”, jamais se afirmando isoladamente. É preciso que os sujeitos possam se
dar conta das fronteiras que marcam o sistema social ao qual pertencem e para
além das quais eles identificam outros sujeitos implicados em outros sistemas
sociais. Ou seja, as identidades étnicas só se mobilizam com referência a uma
alteridade, e a etnicidade implica, sempre, a organização de agrupamentos
contrastantes Nós/Eles.61 Ela não pode ser concebida senão na fronteira do “Nós”
em contraste com “Eles” (POUTGNAT e STREIFF FENART, 1998, p. 152).
Percebemos uma cultura do contato, ou seja, o resultado de ganhos e de
perdas (aculturação), entre sistemas culturais em conjunção. Os fatores que
envolvem imigração e reversão constituem-se, portanto, em trocas de bens
simbólicos, uma vez que no trânsito religioso da reversão dá-se o fenômeno da
construção/desconstrução e ressignificação de símbolos religiosos.
Em nossa pesquisa, especificamente nesta questão do encontro de duas
culturas diferentes, mulheres brasileiras muçulmanas revertidas e mulheres
60
Reversão: Dentro do islamismo o termo usado para se referir e identificar um novo adepto é o
termo “revertido. No islamismo há um entendimento de que todos os seres humanos nascem
muçulmanos, portanto, uma conversão, na verdade, é um retorno ao estado original. Revertido é
aquele que retorna a Deus. (FERREIRA, 2009, p. 2). Utilizaremos o termo “reversão” e não
“conversão”, como tem sido comumente utilizado.
61
Nós/Eles – A estigmatização está presente na construção de identidade. O outro pode ser
construído pela estigmatização que eu atribuo a ele. (nota do autor). Minha ênfase – Grifos meus.
74
muçulmanas de imigração, cujos valores e capital cultural, em parte, serão
assimilados pelas primeiras e em parte pelas segundas. Pode-se afirmar, então, que
somente os fatores socialmente relevantes, que têm um significado, tornam-se
próprios para diagnosticar a pertença. Pouco importa quão dessemelhantes possam
ser os membros em seus comportamentos manifestos – se eles dizem que são A,
em oposição à outra categoria B da mesma ordem, eles estão querendo ser tratados
e querem ver seus próprios comportamentos serem interpretados e julgados com de
As e não de Bs; melhor dizendo, eles declaram sua sujeição à cultura compartilhada
pelos As. (BARTH, 1998, p. 195).
Importante neste caso das mulheres brasileiras revertidas, a priori, é observar
como se dá sua reversão, ou seja, os aspectos mais palpáveis de uma mudança
que, possivelmente irá convergir para os conflitos interétnicos quando se trata do
contato com os elementos constitutivos de outra etnia e de outra cultura.
75
2.6.1 A Mulher Muçulmana Revertida e o Contato Cultural.
Ao deparar-se com outro grupo social de cultura diferente da sua e detentor de
outras nuances étnicas, o fator comparação irá surgir, naturalmente, entre os dois
grupos confrontados, ou seja, mulheres revertidas ao Islã em confronto com
mulheres muçulmanas de imigração. Cada um destes grupos avaliará as
manifestações culturais do outro, o que servirá de critério a ambos, naturalmente, os
padrões da própria cultura. (WILLEMS, 1940, p. 95). Oliveira, por sua vez,
argumenta que sendo as categorias étnicas componentes de um sistema ideológico,
estão, portanto, carregadas de valor; e os valores são fatos empíricos, passíveis de
serem descobertos e vivenciados, uma vez que não são frutos de meras análises,
mas sim o ponto de vista dos próprios agentes em questão, ou seja, da mulher
revertida e da mulher de imigração. Temos uma questão de valores em jogo e, neste
caso, se a identidade étnica é um valor, enquanto categoria ideologicamente
valorizada, ela se torna passível de certa escolha ou opção em determinadas
situações. Este é o caso deste contato interétnico: de um lado uma revertida
brasileira, de outro uma muçulmana de imigração, nesta relação entre A e B, ambos
ou ambas tentam assegurar que o valor ganho seja sempre maior ou pelo menos
igual ao valor perdido. (OLIVEIRA, 1973, p. 21-22).
A diferença étnica e cultural entre brasileiros convertidos e os imigrantes de
origem árabe e seus descendentes é fato notado entre a maioria dos pesquisadores
do Islã no Brasil. A dificuldade dos revertidos no convívio entre os dois grupos é
manifesta pelos revertidos. É o que, em certa medida, constatou Ribeiro:
Há claramente uma dupla face no crescimento numérico dos muçulmanos no Brasil.
Tem havido recentemente um movimento de volta de alguns “nascidos muçulmanos”,
filhos de árabes e conjuntamente, um fenômeno de reversão de brasileiros sem
ascendência árabe. Percebe-se também uma diferença clara no tratamento dado nas
mesquitas a estes dois grupos. Existem mesquitas que se preparam com afinco para
receber e manter estes revertidos brasileiros, com cursos em português e atividades
diversas e atrativas. Outras mesquitas, mais tradicionais, atêm-se à língua árabe e a
atividades culturais apenas, numa clara etnificação do Islã. Nestas mesquitas, é
freqüente a queixa de brasileiros que se sentem excluídos por não dominarem a
língua árabe e não serem “muçulmanos de nascimento”. Os revertidos vão então
buscar espaços onde se identifiquem. E, onde muitas vezes a presença árabe é
menor que a de brasileiros. (Ribeiro, 2013, p. 161).
Esta dupla face do contato da cultura e seus desdobramentos estão
presentes também e, especificamente, nas relações entre o gênero feminino quando
76
analisamos a performance religiosa da mulher muçulmana de imigração, no mesmo
ambiente em que, se encontra também a mulher muçulmana de reversão. Aqui dáse o contato cultural. São espaços em que a cordialidade, receptividade e harmonia
variam. Este fator deve ser levado em consideração, uma vez que, sete em cada
dez revertidos ao islã são mulheres, ou seja, aproximadamente setenta por cento
dos revertidos que frequentam as mesquitas do país são mulheres com idade
variando entre 20 a 40 anos, portanto, um islã com cara feminina e jovem. Na cidade
de São Paulo, o percentual pode ser ainda maior.62 (ANEXO 5 – Foto 3).
A mulher muçulmana revertida, necessariamente, vai se defrontar no mínimo
com um estranhamento ao defrontar-se com uma cultura diferente, código religioso
diferente, residentes no outro, ou seja, no confronto com a mulher muçulmana de
imigração;
é
aprioristicamente,
o
encontro
de
mundos
diferentes.
Este
estranhamento inevitável, procedente das diferenças que emergem do confronto
entre culturas e identidades étnicas distintas, terá que ser negociado para que uma
massa, a mais uniforme possível, seja produzida, fazendo com que os primeiros e
tensos momentos do estranhamento surgidos possam adequar-se. A diferença de
duas culturas e de duas origens étnicas não deve ser vista como a negação da
semelhança, seu oposto, seu contrário e sua contradição. Ao contrário, deve ser
vista como abarcando-a, situando-a, concretizando-a, dando-lhe um formato. Os
blocos já se foram e com eles tudo o que era hegemônico, portanto, a unidade e
identidade em que permanecem terão que ser negociadas, produzidas a partir da
diferença. (GEERTZ, 2001, p. 198).
Por outro ângulo, com base nos pressupostos de Clifford Geertz, a
similaridade ritualística da vida religiosa alicerça os sentimentos de afinidade entre
uma mulher muçulmana de imigração e outra muçulmana de reversão. Mas
afinidade não significa a não existência de diferenças. Nas complexas relações entre
as muçulmanas de imigração e as muçulmanas de reversão, que nutrem
sentimentos de afinidade, contudo, esbarram em profundas diferenças, ou seja, a
distância no interior da relação significa que o próximo é distante, ao mesmo tempo,
porém que o próprio fato da alteridade significa que o distante é próximo (SIMMEL,
1984, p. 53-54).
62
Revista ISTO É – Independente. Os Caminhos do Islã no Brasil. Edição nº 2309 de 21 de fevereiro
de 2014.
77
Essa dupla face, especificamente identificada nas questões que envolvem
tratamentos diferenciados para os muçulmanos de imigração e para os revertidos,
encontrada em determinados ambientes, sobretudo os de culto, reflete em parte, a
questão étnica, ou seja, uma possível supervalorização da língua árabe, associandoa ao fator religioso e produzindo um islamismo exclusivo e arabizado.
78
2.6.2 A Mulher Muçulmana Revertida e a Arabização.
O Islã, como já temos conhecimento, originariamente procede de entre os
árabes, ou seja, ainda é reconhecida como uma religião árabe, contudo, esta faceta
não deve ser a verdadeira face do sistema religioso islâmico. No Brasil, o Islã é
basicamente formado e seguido por imigrantes e seus descendentes, cuja
identificação se faz com sua etnia, atrelando sua origem étnica à tradição da sua
religião.
Neste
contexto,
a
identidade redesenhada e
aceita
através do
comprometimento ao Islã difere dos nascidos muçulmanos árabes; o brasileiro será
muçulmano,
comprometido
com
a
religião,
porém
será
sempre
revertido
(MARQUES, 2000, p. 162). O contato dos revertidos com a comunidade não é
contínuo, nem íntimo, sendo permeado por conflitos, o que também pode provocar
uma assimilação deficitária do ethos religioso (RAMOS, 2003, p. 186).
Embora exista um discurso de semelhança entre os muçulmanos no contexto
brasileiro, o que de fato se estabelece, em última instância, é a diferença na
diferença. E a diferença gera conflito. Entretanto, o conflito deve ser visto como
normalidade, pois ele destina-se à resolução dos dualismos divergentes; é um
caminho para atingir alguma unidade (SIMMEL, 1984, p. 56). Além das forças de
união que o conflito pode gerar, em oposição a outros grupos, Simmel reforça a idéia
de que não importa qual é a diferença na configuração e no sentimento de
integração, própria das competições, pois sempre existirão o mais forte e o mais
fraco. No entanto, o antagonismo ou a concorrência desempenham papéis na
integração que serão positivos. A oposição é parte integrante da relação, havendo
um sentimento de interdependência, o que resulta numa “certa comunidade entre as
duas partes” – isto é, para que exista o conflito é necessário que exista
reciprocidade (PEREZ, 2003, p. 7).
Os brasileiros e brasileiras revertidos reconhecem sua “subordinação” atual a
uma estrutura religiosa marcada por aspectos culturais árabes bastante manifestos,
mas não perderam a esperança de ver a religião islâmica assumir uma face mais
brasileira no país, com o aumento do número de reversões. Esta esperança que
permanece de um Islã com cores brasileiras, possivelmente já tenha se revestido de
algo mais concreto em nossos dias. (CASTRO, 2007, p.142).
Por outro lado, algumas revertidas dizem ter encontrado barreiras dentro da
própria comunidade. Elas passaram a serem vistas pelas muçulmanas de imigração,
79
como “concorrentes”, dentro de um “mercado matrimonial” e serem prejulgadas por
outras muçulmanas, como mulheres que se converteram ao Islã com o propósito de
encontrarem um marido, de preferência árabe e rico. (CASTRO, 2007, p.147) Esta
constatação é, provavelmente, um sinal dos conflitos interétnicos existente entre os
dois grupos que, de uma maneira ou outra, buscam uma forma de sobreviver,
mesmo sendo, de alguma maneira, marginalizadas e consideradas outras.
Estes conflitos vão, aos poucos, sinalizando para uma possibilidade que, vai
se despontando no horizonte como real, ou seja, a reivindicação, por parte dos
revertidos de um Islã composto por brasileiras e brasileiros. Porém, as opiniões a
respeito divergem ou mesmo colidem em alguns pontos, quando se trata de um Islã
nacional, uma vez que emerge a questão da exclusão dos elementos arabizados do
Islã, sem comprometer a integridade do Corão: se o Corão é um produto da cultura
árabe, como desarabizá-lo? Ou ainda: retirar os elementos da cultura árabe se
constituiria numa mutilação dos preceitos islâmicos? Estas questões estão em
ebulição quando se trata de um Islã desarabizado, com rosto mais brasileiro.
Contudo, esta reivindicação, por parte de revertidos brasileiros, parece ganhar força,
mesmo em face a um Corão como produto da cultura árabe.
80
3. SINAIS DE UM ISLÃ BRASILEIRO.
3.1 Arabização: Obstáculo e Motivação para Um Islã Brasileiro.
Para falar de um Islã com cores nacionais, antes é necessário entender as
razões e/ou motivações que movem e sinalizam para esta possível tendência.
Entender, historicamente, a partir dos registros da chegada de Cabral, da presença
islâmica em solo brasileiro, iniciando pelo Islã de escravidão e, por último, dos
movimentos de imigração procedentes em sua maioria da Grande Síria, Líbano e
outros; até que cheguemos ao estágio atual do islamismo em solo brasileiro;
extraindo, portanto, desta base histórica, uma visão mais ampla e segura, fator que
certamente oferecerá importantes subsídios para entender a legitimidade ou não de
um Islã brasileiro.
Hoje, diante dos olhares perscrutadores dos pesquisadores do Islã no Brasil,
estão patentes duas realidades que nos desafiam a entendê-las em sua
complexidade e variantes culturais, políticas, ideológicas e étnicas, para não falar de
outras categorias, quase sem fim, ou seja, a imensa colcha de retalhos que
envolvem o islamismo de imigração e sua intricada relação com o islamismo de
reversão. E, ainda neste desafio, desta pesquisa, situar o nosso objeto principal de
investigação: a mulher muçulmana e seu desempenho, com ênfase para o aspecto
da religiosidade em São Paulo.
Entendemos que há, a priori, conflitos nesta relação. Se há conflitos, o desejo
de resolvê-los se torna latente. Para que dois grupos com sistemas interétnicos
definidos possam coexistir, as categorias ideológicas, culturais, políticas e étnicas
deverão sofrer uma adequação sob a regência da categoria maior, neste caso, a
religião. Quando esta adequação e por assim dizer acomodação, não acontece e
persiste o que Oliveira denomina de fricções interétnicas, eivadas de conflitos,
latentes ou manifestos, é criada, na perspectiva de um grupo e de outro, uma visão
própria de mundo que se estrutura a partir da visão particular de cada um, ou seja,
surge o fenômeno da estigmatização do outro pela visão que eu estou atribuindo a
ele e pelo que eu identifico nele. (OLIVEIRA, 1976, p. 72).
A arabização, possivelmente, seja o epicentro do terremoto que abala e ao
mesmo tempo alimenta o sonho, por parte de muçulmanas e muçulmanos
revertidos, de um Islã brasileiro.
81
No Brasil, a comunidade muçulmana é basicamente formada por uma maioria
de imigrantes árabes e seus descendentes, o que propiciou traços daquela cultura.
Assim como o “particularismo árabe predominou sobre o “universalismo Islâmico”.
No Brasil, os árabes, na maioria das vezes, têm ditado os rumos do Islã conforme
seus traços culturais e étnicos. Essa “arabização” tem gerado conflitos entre esses
dois grupos.
Os brasileiros, de modo geral, que reverteram ao Islã, buscam, antes de tudo,
o conhecimento sobre a religião islâmica, “a religião pura”, o “Islã verdadeiro” ou
ainda um “Islã brasileiro” ou um “Islã com rosto mais brasileiro” (MARQUES, 2008, p.
4) Os revertidos, segundo Marques, estão mais interessados na categoria religiosa e
a buscam com esmero. Por outro lado, encontramos em São Paulo, possivelmente o
maior contingente de árabes e descendentes da religião islâmica, no Brasil, uma
realidade que parece indicar uma preocupação maior destes com a cultura árabe
propriamente dita, do que com o Islã, religiosamente falando.
Observamos ali que as instituições islâmicas mais numerosas e mais atuantes
não se separam de uma identidade árabe. Em visita pessoal à mesquita Brasil63,
localizada na Avenida do Estado, em São Paulo, de orientação sunita, pude
perceber que o “arabismo” está impregnado no ar. O etnicismo não é, em hipótese
alguma, nem mesmo disfarçado. Fui recebido pelo gerente da mesquita Alli
Majdoub. Conversou comigo em português, porém, seu sotaque era claramente
perceptível. Fui tratado cordialmente. Acontecia um grande almoço comunitário e fui
gentilmente convidado para tal. Não aceitei, pois havia almoçado momentos antes.
Notei que homens e mulheres se misturavam às mesas e que algumas
estavam sem o hijab. Pude, também, em instantes, sentir que estava sendo
observado por muitos olhares que se dirigiam das mesas em minha direção e na de
minha filha Kamilla, que nesta ocasião me acompanhou. Houve mais discrição por
parte das mulheres que dos homens. Alli Instruiu-me como transitar pelas
dependências da mesquita, enquanto aguardava a possibilidade de ser recebido por
mulheres membros daquela comunidade e que seriam entrevistadas por mim, com
intermediação de S. F., secretária da mesquita e muçulmana imigrante de terceira
geração. O hall de circulação e as paredes do salão de festas estavam repletos de
cartazes de fino acabamento e com frases em árabe transliteradas para o
63
Mesquita Brasil – Orientação Islâmica Sunita. Absoluta maioria dos membros são imigrantes árabes libaneses
Localiza-se na Avenida do Estado, 5382 - Cambuci – CEP: 01516-000 São Paulo – SP. Minha ênfase – Grifos Meus.
82
Português. Algumas já eram minhas velhas conhecidas, tais como: Hajj, que
anunciava o período de peregrinação a Meca. Salah, que indicava as cinco orações
diárias. Qu´rãn, algo que fazia referência ao livro sagrado do Islã e o Ramadã, talvez
o mais fácil, por ser transliterado como se pronuncia em português, referindo-se ao
nono mês do calendário lunar e o mês sagrado dos muçulmanos. Ainda observando,
pude notar que havia várias fotos de personalidades masculinas em pontos
diferentes do salão contiguo a mesquita. Perguntei quem eram aquelas pessoas. Alli
me disse que eram árabes que se destacaram em algumas áreas das ciências, tais
como medicina, farmácia, engenharia e outros.
Não havia nenhuma foto de mulher. Vou falar mais desse encontro, porém, o
que relatei até aqui, revela que eu estava inserido em um ambiente arabizado.
Momentos depois, de iniciar a conversa com o gerente Alli Majdoub, chegou o Sheik
Abdelhamed Metwally, egípcio que vive há seis anos no Brasil e há três lidera
religiosamente a mesquita Brasil em São Paulo . Este nem olhou para mim. Apenas
se dirigiu a Alli em uma conversa rápida e em árabe. Em seguida se retirou para
realizar um ofício fúnebre de alguém que pertencia àquela comunidade. Só soube
que era o Sheik porque Alli me disse.
Vamos considerar, hipoteticamente, que eu me revertesse ao Islã e elegesse
como minha comunidade a mesquita Brasil, teria muitas dificuldades para me
ambientar e adaptar. Primeiro com a arabização e em seguida com a questão étnica.
Experiências como esta, pela qual passei, está bem aquém daquelas que a maioria
dos revertidos brasileiros tem experimentado. Daí, agasalhar no peito, por parte das
revertidas e revertidos brasileiros, um desejo por um islã não arabizado.
Essas dificuldades poderiam ser vencidas. Porém, levaria tempo. Há ainda a
questão, talvez a mais difícil de todas: a aceitação, o sentimento de pertença. Neste
caso hipotético, não bastaria a religião para conferir-me este sentimento de pertença
ao grupo. Não bastaria o islamismo, teria que aderir também ao arabismo. Neste
caso, as questões étnicas sobrepõem às questões religiosas.
83
3.2 Fatos que Podem Fortalecer a Idéia de Um Islã Brasileiro.
A diferença étnica e cultural entre brasileiros revertidos e os imigrantes de
origem árabe e seus descendentes fica evidenciada na maioria das comunidades
muçulmanas no Brasil. Não somente na mesquita Brasil. A exceção, fica para a Liga
da Juventude Islâmica Beneficente do Brasil – LJIB, ou mais conhecida como
mesquita do Pari e, talvez para a mesquita Abu Bakr Assidik64, que fica em São
Bernardo do Campo. Nesta comunidade, temos grande presença de revertidos,
sendo que o número de mulheres revertidas é considerável quando comparado com
as imigrantes e descendentes. A grande presença de revertidos, provavelmente a
maior, dentre as comunidades islâmicas de São Paulo, pode ser um passo seguro
para se chegar a uma confirmação de que o fato da presença maior de revertidos
modela o ambiente e retira do mesmo a impregnação étnica e o arabismo.
A constatação, por parte dos revertidos, tanto mulheres quanto homens, é
uma só: ainda que não haja consenso entre os imigrantes e descendentes árabes
sobre a tensão entre os dois grupos, alguns convertidos sentem dificuldades com
relação a esse convívio. Por isso, um novo quadro começa a se delinear e um
movimento de emancipação, por parte dos revertidos e muçulmanos de origem não
árabe, direciona-se para a formação de uma comunidade muçulmana que atenda à
diversidade cultural.
Percebemos que um fato já é verificável, ou seja, a recorrência das
dificuldades encontradas por brasileiros revertidos no convívio com muçulmanos de
procedência árabe. Esta dificuldade ganha mais intensidade quando se trata de
árabes imigrantes sírios, libaneses e palestinos.
Segundo Montenegro, existe, por outro lado, uma tendência de atrelar o
islamismo ao arabismo, fato que deixa algumas comunidades muçulmanas
deliberadamente conservadoras dos vínculos étnicos:
Vimos, quando nos referimos às diferentes zonas do Islã no Brasil, que algumas
comunidades também sunitas, como as de São Paulo e as do estado do Paraná,
ressaltam em suas publicações o legado de uma cultura árabe comum como traço
estreitamente vinculado ao islamismo professado em terras brasileiras. O conteúdo
de publicações tais como a da Sociedade Muçulmana de São Paulo, que em seu
64
Mesquita Abu Bakr Assidik. Colônia islâmica em São Bernardo é uma das maiores da América
Latina. A mesquita, por meio da sociedade cultural, também oferece ensino da religião e ações
culturais. Localiza-se à rua Henrique Alves dos Santos, 205, Jardim das Américas Tel: (11) 43373434.
84
jornal denominado de Al Urubat faz alusões à “pátria árabe”; a inclusão de títulos tais
como “O Legado da Civilização Árabe” em sites de organizações do estado do
Paraná; a visita de Sheikhs estrangeiros a essas organizações – tudo isto constitui
um conjunto de indícios que tornam evidente que alguns destes grupos não se opõem
ao estabelecimento de um vínculo entre os termos “árabe” e “Islâmico”.
(MONTENEGRO, 2000, p. 68).
Nas observações de Montenegro, principalmente das questões que vinculam
arabismo e islamismo em São Paulo, evidenciou-se o que continua recorrente entre
os revertidos hoje, aproximadamente treze anos após os apontamentos acima
citados, os mesmos conflitos étnicos continuam. A permanência destes conflitos
deixa claro duas questões: aquela que mostra que o arabismo continuou sendo
veiculado, principalmente pelas comunidades de imigrantes e seus descendentes. E,
aquela que é conseqüência direta da primeira, ou seja, a clara reivindicação por
parte dos revertidos brasileiros de um Islã menos arabizado.
Em suas pesquisas de campo em São Paulo, Ferreira relata que uma nova
comunidade muçulmana foi criada, fruto de uma dissidência ocasionada pelo conflito
étnico sustentado pelo arabismo exarcebado por parte de alguns imigrantes árabes.
No caso em destaque, um brasileiro muçulmano rompeu com sua comunidade, cuja
maioria era de muçulmanos imigrantes e criou a “Comunidade da República”. Este
brasileiro foi nomeado “Presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana dos
Brasileiros”. Este é mais um fato que vai dando sustentação a uma tendência de um
Islã Brasileiro. (FERREIRA, 2007, p. 18).
Os sinais que vão, como que conduzindo para um Islã com rosto mais
brasileiro, se tornam mais fortes e evidentes. Os conflitos e mesmo as intolerâncias
entre os árabes e não árabes no Brasil têm sido gerados pelas suas diferenças
étnicas e culturais. Nas reivindicações dos revertidos brasileiros de um Islã com
cores brasileiras, a alusão a um forte etnocentrismo e arabismo tem sido a pedra de
toque deste problema. Este fator, na visão dos revertidos, elevam os árabes para
uma posição de pretensa segurança e sentimento de superioridade. Segundo os
revertidos, existe um grande preconceito por parte daqueles que já nasceram em
berço muçulmano com relação àqueles que se tornaram muçulmanos. Os árabes,
no entendimento dos revertidos, acham que têm o monopólio do Islã. Como não há
tradição islâmica no Brasil, a tendência é importar o estilo árabe. Esta foi a fala de
um revertido brasileiro: “Não quero ser um muçulmano árabe, quero ser um
muçulmano brasileiro”. (MARQUES, 2010, p. 129). Por hora, podemos afirmar que,
85
embora haja uma aproximação por parte de árabes e brasileiros, também,
proporcionada pela religião, devemos ficar atentos ao fato de que essa aproximação
tem sido produtora de desconfortos, desconfianças e conflitos. Até mesmo entre
revertidas, no caso de mulheres brasileiras, tem havido alguns conflitos:
“Mesmo algumas revertidas mais antigas às vezes fazem algum tipo de crítica com
relação a algumas recém-chegadas. De uma delas ouvi que “um monte de mulheres
se reverteram naquela época (da novela O Clone), procurando por um Said para
casar. “Maquiadas, cheias de pedrarias, foram para a mesquita procurar um marido
como o da novela: rico e que desse muito ouro para sua esposa”. Segundo a
informante, a mesquita de São Bernardo ficou cheia destas mulheres, para quem o
Sheikh teria precisado dizer que não procurassem a mesquita com esse objetivo.
(Castro, 2007, p. 90).
Pode parecer algo sem muita importância, mas o fato é que situações como
esta vivenciada por Castro são recorrentes entre mulheres muçulmanas revertidas e
entre revertidas e de imigração nos ambientes das mesquitas.
Dando sequencia à minha pesquisa, entrevistei A. F.65 de vinte e dois anos,
jovem mulher muçulmana da mesquita do Pari em São Paulo. Uma imigrante de
segunda geração de libaneses, estudante de pedagogia na UNICAPITAL. Numa
certa altura da conversa, quando falamos das questões que envolvem o casamento
de uma muçulmana e as considerações em torno deste assunto, A. F. de maneira
quase abrupta disse: “Para mim é bastante estranho o fato de um imigrante
muçulmano casar-se com uma revertida quando nenhum deles fala a língua
um do outro. Para mim, é puro interesse pessoal”.66
Esta questão, do casamento muçulmano, envolve várias outras nuances que
perpassam pela religião e seu código de conduta, o Corão, principalmente quando
se compara o tratamento dado aos gêneros masculino e feminino, portanto, será
tratada com mais detalhes e informações em outro capítulo deste trabalho. Por hora,
neste momento, fica a forte impressão de que, afora, as opiniões pessoais de A. F.,
evidencia-se um conflito originado, a priori, pelas questões do arabismo,
desembocando em outras tais como cultura e etnicismo. Observa-se que a língua é
o primeiro obstáculo que se apresenta na visão de A. F., remetendo, ainda que
65
Pesquisa de Campo – A. F. São as iniciais da jovem muçulmana entrevistada. Pesquisa realizada
por meio de entrevistas e participação observante na Mesquita do Pari – Liga da Juventude Islâmica
Beneficente do Brasil - Rua Barão de Ladário – 922 – Brás – São Paulo, SP. Dia 17 de setembro de
2013, às 10H30.
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Minha ênfase - Grifos meus.
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hipoteticamente, o relato de A. F. Para a dimensão das relações de revertidos com
imigrantes árabes, sem a necessidade de distinguir os gêneros nestas relações,
possivelmente, teremos a possibilidade de um conflito interétnico ampliado.
Neste ponto de nossas observações, é importante considerar a questão por
outro ângulo, ou seja, um dificultador que surge, nesta discussão, de um possível
Islã Brasileiro: as mídias em geral, veiculam a idéia ou o questionamento acerca de
como poderia funcionar um islamismo que tivesse sua origem a partir do marco da
pluralidade religiosa brasileira, onde a tolerância e o alto trânsito religioso dos
brasileiros em geral,
seriam motivos culturais socialmente reconhecidos? Há
ainda,outro problema a ser resolvido, a questão da adjetivação, também veiculada
pela mídia em geral, em que uma suposta rigidez do islamismo de imigração vem
sustentando esta tendência representada por esta terminologia “tropical”, ou seja,
um Islã tropical. Aqui está o centro do problema.
Quando este assunto é ventilado nos meios muçulmanos, ele gera
desconforto e reações no mínimo curiosas. Para os muçulmanos, principalmente de
imigração e descendentes, a adjetivação de um Islã tropicalizado, ou seja, mais
brasileiro, a reação é negativa e transita por argumentações contrárias. Para eles,
seria o mesmo que pensar em um Islã negro, um Islã árabe etc. Do ponto de vista
dos nativos, portanto, o Islã não parece admitir adjetivações que se vinculam às
culturas nacionais ou a identidade étnicas. (MONTENEGRO, 2000, p. 81).
Contudo, o problema ganha um complicador, ou seja, o arabismo acentuado e
exalado por comunidades de imigrantes e descendentes, em alguns casos, de forma
deliberada, de certa forma, é o combustível para um Islã com cores brasileiras. Uma
vez que a rejeição por parte de nativos da adjetivação de um Islã tropical, um Islã
com cores mais brasileiras, um Islã nacional ou mesmo um Islã com rosto brasileiro
ou como queiram adjetivar, pode tornar-se uma grande incoerência por parte dos
nativos, uma vez que estes continuam adjetivando o Islã de imigração, conferindo a
este a arabização deliberadamente ou não.
Por outro lado, o Islã, segundo o próprio Islã, não pode ser reduzido a uma
categoria cultural, ainda que admitíssemos que ele tenha sido submetido a esta
categoria mundo afora, contudo, o Islã é antes de tudo uma categoria religiosa. Se
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ele é uma categoria religiosa como ele próprio se declara, ele pode sim ser um Islã
brasileiro e não árabe.
O viés religioso deve ser aquele que norteia o principal ideal do Islã, caso
contrário ele se desfaz pelo viés cultural. Tomando como análise comparativa: existe
o
protestantismo
alemão,
existem
protestantes
na
Alemanha.
Existe
o
protestantismo brasileiro, existem protestantes no Brasil. Logo, o protestantismo é
um só, porém, ele é brasileiro e é alemão. A matriz e o fundamento que o sustenta é
um só: é religiosa e é protestante e tem a bíblia como seu código de conduta e
práxis maior. As variações que advêm daí é que serão vistas pela ótica cultural de
cada país. Não poderia acontecer o mesmo com o Islã arabizado? Não poderia
existir o Islã brasileiro fincado na mesma raiz do Islã universal na perspectiva da
Ummah?
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3.3 A Face Possível de Um Islã Brasileiro.
Ao tratarmos da possibilidade de Islã brasileiro, tomamos consciência do
envolvimento de muitas questões efervescentes, dentre elas a questão étnica,
cultural e ideológica. Vejamos o que Oliveira diz:
As ideologias étnicas exprimam elas movimentos sociais de caráter reformista,
separatista, revolucionário ou messiânico, remetem-nos todas a um estado crítico,
isto é, de crise, do grupo ou dos grupos sociais envolvidos. A identidade étnica, como
uma ideologia altamente “etnocêntrica”, torna-se de tal forma um marco de referência,
de modo a contaminar todas as relações sociais contidas no sistema interétnico e, por
conseqüência, o comportamento dos agentes nele inseridos que, por sua vez, ganha
“visibilidade” nestas situações de crise, a ponto de permitir uma apreensão
privilegiada da etnia, como foco substantivo de análise. Embora a etnia se atualize
num grupo “adjetivando-o” ou, em outras palavras, definindo-o, atribuindo-lhe tal
identidade (ao grupo e, por conseguinte aos seus membros), ela o faz na medida em
que se constitui como um conjunto de atributos ideativos e valorativos, impregnando
de um “nós” que, em sua forma típica, resplandece em autolatria, concebendo-se
igualmente autógeno e senhor de seu destino. (OLIVEIRA, 1976, p. 101).
A partir dos pressupostos de Oliveira, quando se pensa na possibilidade de
um Islã brasileiro, somos, imediatamente, remetidos às questões dos conflitos, já
identificados, palpáveis e verificáveis entre os grupos arabizados e os brasileiros
revertidos. Uma crise se instala mediante a existência de conflitos que vão desde as
questões ideológicas, passando pelas questões culturais e desembocando nas
questões puramente religiosas. Situações em que as diferenças étnicas e culturais
dos imigrantes muçulmanos árabes e seus descendentes manifestam-se de forma
mais deliberada, têm, em grande medida, se tornado um dificultador para a inserção
dos brasileiros revertidos nestas comunidades.
Como já demonstramos anteriormente, nas comunidades muçulmanas de
São Paulo é uma realidade a ser trabalhada. Por exemplo, uma das maiores
comunidades muçulmanas de orientação xiita do Brasil, está localizada no bairro do
Brás, conhecida como mesquita do Brás, tem forte arabismo, o que contribui não só
para a exclusão de brasileiros revertidos, mas também para o distanciamento de
outras etnias, tais como os iranianos e outros. Enfim, a necessidade de preservação
cultural entre a comunidade de muçulmanos de origem árabe, vem-se constituindo,
ultimamente, em um dos combustíveis que sustenta o fogo dos indícios de um Islã
com rosto brasileiro. Esta situação recorrente nas mesquitas de São Paulo vem
proporcionando uma visão de mundos próprios, ocasionando uma relação circular
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entre estes mundos, cujo resultado imediato é a marginalização dos brasileiros,
segundo Oliveira, considerados “outros”.67(GEERTZ, 1989, p. 143-144).
Nesta perspectiva de identificar os sinais de um Islã brasileiro, passarei a
relatar mais uma de minhas experiências de campo. Nesta ocasião, entrevistei um
muçulmano da mesquita do Pari. A entrevista evoluiu após algum tempo, para uma
conversa um pouco mais descontraída, porém, com o mesmo propósito inicial de
entender como mulheres e homens, muçulmanos brasileiros revertidos, transitam em
seu mundo religioso e como dialogam com este mundo que não é só deles, é
compartilhado por outro grupo, os muçulmanos de imigração.
O nome deste muçulmano revertido brasileiro é R. O. R. de trinta e seis anos,
de idade. Revertido há mais de vinte anos, casado com uma muçulmana brasileira
revertida P. O. de trinta e um anos, revertida no ano 2000, portanto, treze anos de
reversão ao Islã. O casal tem três filhos. O que me deixou ainda mais curioso, foram
as revelações de R. O. R: disse ele: sou um Sheik68muçulmano brasileiro revertido.
Fiz meus estudos de teologia islâmica durante cinco anos. Estudei em Riyadh, na
Arábia Saudita na King Saud University of Riyadh. Visitei, com objetivo de entender
a cultura árabe, o Líbano e o Qatar. Minha esposa estudou a língua árabe por dois
anos.
O Sheik passou a pontuar situações no Brasil e no exterior, que influenciaram
o mundo islâmico em solo brasileiro. Perguntei quando foi que começou a reversão
de brasileiros ao Islã ou pelo menos quando ela foi notada e registrada? Foi em
1970. Disse ele. 1970 é o marco da primeira geração de muçulmanos revertidos
brasileiros e em 1975 foi feita a primeira tradução do Corão. Em 1990, houve um
crescimento notável por parte de revertidos no Brasil, mais construções de
mesquitas e maior acesso de brasileiros ao mundo islâmico, proporcionado por uma
espécie de abertura e divulgação do Islã no Brasil. Isto foi desencadeado em grande
parte pela guerra do Golfo. Perguntei sobre a questão dos imigrantes, sobre o
relacionamento de revertidos brasileiros e sobre a recorrência da questão étnica.
67
Minha ênfase -Grifos meus.
Sheik ou Shaikh ou Shekh , ou transliterado como Shaykh -se um título honorífico na língua
árabe que significa literalmente "ancião" e carrega o "líder e / ou governador" significado. É
comumente utilizada para designar o homem de frente de uma tribo que tem esse título depois de seu
pai, ou um estudioso islâmico que tem esse título depois de se formar na escola islâmica
básica. Sheikha é o equivalente feminino do termo. Minha ênfase.
68
90
O Sheikh foi categórico: Para ele a segunda e terceira gerações de imigrantes
muçulmanos não conheciam ou não deram muita importância ao árabe, daí inicia-se
a propagação da doutrina islâmica entre eles e brasileiros que chegaram
aprendendo os ensinamentos islâmicos em língua portuguesa. Lembrei-lhe o fato de
ser maioria cristã, os imigrantes. Possivelmente, não dariam atenção ao mundo
muçulmano. Ele respondeu que havia, também, muitos muçulmanos nestas
gerações. Indaguei-o porquê de estudar a língua árabe e a teologia islâmica. A
resposta foi melhor do que o esperado. O Sheikh respondeu que para ser
muçulmano fiel aos princípios da doutrina islâmica não tem que, necessariamente,
ser árabe. E, que o fato de estudar teologia islâmica e falar árabe descortina para
ele uma gama de possibilidades, inclusive a de ser um líder da comunidade
muçulmana (sheikh).
Perguntei se existem, em sua opinião, sinais de um Islã brasileiro, ou menos
arabizado. Sua resposta foi surpreendente: Possivelmente, disse ele, eu sou o
primeiro sheikh legitimamente brasileiro. Eu saí do Brasil para estudar na Arábia
Saudita, o contrário normalmente é a regra, ou seja, um sheikh árabe qualquer, vem
e assume a liderança da mesquita aqui no Brasil, eu quebrei esta regra. O número
de revertidos e revertidas aqui na mesquita do Pari, possivelmente seja o maior na
cidade de São Paulo. Temos, hoje, a maior relação, socialmente falando, com
brasileiros revertidos ou não. Nossas relações com as gerações de imigrantes que
são membros da comunidade, quase não possuem nenhum conflito étnico.
Questionei sobre aulas de árabe para brasileiros e se isto não era uma espécie de
arabização. O Sheikh respondeu que conhecer a língua árabe não é,
necessariamente, arabizar-se. Mas antes aumentar o arcabouço cultural e adentrar
via língua árabe até mesmo nas questões religiosas do islamismo. Olhando
fixamente para mim, disse: estas realidades, talvez, respondam a sua pergunta.
Passei a inquirir sobre o papel da mulher muçulmana e sobre as questões tão
discutidas pela mídia ocidental a respeito do vestuário feminino islâmico e se os
conflitos étnicos entre brasileiras revertidas e muçulmanas de imigração eram uma
realidade palpável. O sheik iniciou suas observações, talvez, pela indumentária
91
feminina mais radical do ponto de vista da cultura ocidental e do ponto de vista do
próprio islamismo em algumas situações: a Burca69.
Segundo o Sheikh, há divergências entre os sábios da jurisprudência
islâmica, para alguns não é obrigatório que a mulher cubra todo o rosto, contudo,
caso ela queira ou caso ela esteja debaixo de um sistema cultural que exija isso
dela, aí é permitido que ela se cubra por inteiro. Perguntei o porquê dessas
diferenças no uso de indumentárias de países para países onde o Islã está presente.
A resposta veio na forma de uma aula etimológica e de conteúdo étnico. O Sheikh
foi buscar na raiz uma das questões mais incompreendidas pelo viés da cultura
ocidentalizada.
A origem da burca está fincada em uma etnia denominada Pashtum70, de
procedência afegã-pasquitã. Para a etnia Pashtum, além do fator cultural existe o
fator religioso. A etnia Pashtum identifica na burca os fatores cultural, social e
religioso, fato que não é visto ou reivindicado por outras etnias que não a Pashtum.
O Corão determina o uso desta ou daquela indumentária para a mulher?
Perguntei. Não. Respondeu o Sheikh. Podemos ver lado a lado uma mulher usando
a burca e outra usando o Hijab. O que determina o uso desta ou daquela peça de
roupa feminina é a questão cultural, social e religiosa. Então o Islã não é um só?
Perguntei. Sim. O Islã é um só, contudo, apesar de universal, o Islã é interpretado
também pelo viés cultural, ou seja, a cultura, na qual ele está inserido é assimilada
pelo viés religioso. Podemos identificar essa realidade quando verificamos que em
69
A burca: indumentária, veste feminina que cobre todo o corpo, da cabeça aos pés. O rosto e os
olhos, porém, na direção dos olhos existe uma rede que permite, precariamente, a visão. É usada
pelas mulheres do Afeganistão e do Paquistão, e em áreas próximas à fronteira com o Afeganistão.
Ela é um símbolo do Talibã. O seu uso deve-se ao fato de muitos muçulmanos acreditarem que o
livro sagrado islâmico, o Alcorão, e outras fontes de estudos, como Ahadith e Sunnah, exigem que
homens e mulheres se vistam e comportem modestamente em público. No entanto, esta exigência
tem sido interpretada de diversas maneiras pelos estudiosos islâmicos e comunidades muçulmanas;
a burca não é especificamente mencionada no Corão e nem nos Ahadith. A comunidade
religiosa Talibã, que comandou o Afeganistão nos anos 2000, impôs seu uso no país. Minha ênfase Grifo meu.
70
Os Pashtuns (em pachto: transliteração: Pashtūn ou Pakhtūn;em urdu:transliteração: Paṭ hān;
em hindi: transliteração: Paṭ hān), são um grupo etnolinguistico localizado principalmente no leste e
no sul do Afeganistão e, no Paquistão, nas províncias da fronteira Noroeste e do Baluchistão e nas
áreas tribais administradas pelo governo federal. Os pashtuns caracterizam-se pela sua língua
(opachto), pelo seu código de honra religioso pré-islâmico e pela prática do islã. No Paquistão, sua
natureza migratória e o hábito de isolar as mulheres complicam a tarefa de contagem. Minha ênfase.
92
algumas regiões africanas, a extirpação do clitóris das moças em parte ou total é
uma questão cultural e religiosa. Volvendo o olhar para o Afeganistão temos a
obrigatoriedade do uso da burca pelas mulheres. O Corão não prevê nem uma, nem
outra situação. Então podemos concluir que toda indumentária da mulher possui um
significado religioso?
A princípio não. Respondeu o Sheikh. Contudo, mesmo que originariamente
uma vestimenta feminina tenha conotação cultural, necessariamente ela vai
convergir para o religioso. Tudo isto, dizia o Sheikh, tem origem nas recomendações
do Corão de que a mulher deve cobrir o corpo para não atrair olhares masculinos
maliciosos. A partir desta recomendação, várias culturas interpretaram as
vestimentas femininas de acordo com suas realidades contextuais. Algumas
interpretaram e assimilaram de maneira radicalizada, caso do Afeganistão, como
mencionei anteriormente. Nesta altura da conversa com o Sheikh, voltamos para a
questão do uso da burca e sua origem étnica. A etnia Pashtum determinou o uso da
burca para as mulheres, pelo fato de que estava havendo muitos estupros nas
aldeias, ocasionados pelas longas ausências dos homens que saíam para a guerra
contra outras tribos e deixavam as mulheres desprotegidas dos outros invasores.
Daí por diante se instituiu o uso da burca para todas as mulheres. Debaixo da burca,
ninguém pode distinguir formas femininas. Seria uma espécie daquilo “o que não é
visto não é cobiçado”? Perguntei ao Sheikh. Sim. É por aí mesmo. Com o uso da
burca a violação das mulheres diminuiu consideravelmente, porém, isolou a mulher
debaixo desta cortina. Este procedimento ganhou contornos religiosos, sociais e
políticos. A mulher muçulmana afegã, só pode-se desvencilhar desta vestimenta na
presença do marido e dos parentes, aqueles com os quais, em hipótese alguma, ela
poderia contrair matrimônio, ou seja, dos irmãos e dos pais.
Após um intervalo para um breve café, a propósito, o Sheikh aprecia um
cafezinho de tempos em tempos. Aproveitando a pausa, deixando a questão das
indumentárias femininas por hora, já que é um assunto que será tratado mais
adiante e com mais detalhes por esta pesquisa, tratei logo de reconduzir a conversa
e meus questionamentos para o assunto de um Islã com rosto mais brasileiro, uma
vez que percebi que o Sheik estava inteirado dos sinais que indicavam uma
reivindicação de um Islã com cores mais nacionais. Perguntei se ele sabia ou
93
mesmo observava através de alguns movimentos em São Paulo e adjacências, uma
reivindicação por parte de revertidos e revertidas brasileiros de um Islã mais voltado
para uma ênfase da religiosidade inerente ao mesmo e menos arabizado étnica e
culturalmente.
O Sheikh, a priori, reconheceu que uma tensão envolvendo esta questão da
arabização de algumas comunidades que congregam revertidos brasileiros é real.
Admitiu também que esta tensão se encontra em estágio de incubação, ou seja, não
há, ainda, uma manifestação vigorosa a ponto de eclodir uma revolução ou mesmo
uma cisão de proporções notadamente grandes. Contudo, dizia o Sheikh,
movimentos periféricos já estão acontecendo e entendo que as mudanças
substanciais não iniciam pelo centro e sim pelas bordas, ou seja, dificilmente, não
que seja impossível, uma mudança radical que tenha início no meio de comunidades
islâmicas tradicionais, iria acontecer, no sentido de dar ao Islã no Brasil cores mais
nacionais, é improvável que ocorra nos meios dominados pela cultura árabe e pelo
Islã arabizado. Em resumo, o que eu quero dizer é que as grandes mudanças vão
chegando de fora para dentro e não de dentro para fora.
94
3.4 A Face Brasileira do Islã Periférico.
Falar da face de um possível Islã brasileiro desafia-nos a mostrar essa sua
face, ainda que seja periférica, mas é uma face.
Após conversa com o Sheikh R. O. R., da mesquita do Pari em São Paulo,
quando questionei se em sua opinião já existem sinais de um Islã brasileiro;
chamou-me a atenção quando ele sinalizou para os movimentos periféricos de
jovens negros islâmicos em São Paulo e adjacências. Algumas questões surgiram:
qual a origem e/ou base de sustentação destes movimentos? Qual ou quais são os
seus propósitos? A busca de uma religião que atenda seus anseios? Um movimento
que mude alguma realidade social, cultural e mesmo ideológica? A busca de uma
identidade própria ou quiçá tudo isto junto?
Iniciamos pelo depoimento de I. M. V. K.: Esta senhora de cinqüenta e três
anos pode ser considerada uma das pioneiras no movimento islâmico afro-brasileiro
na cidade de São Paulo. Revertida há mais de duas décadas, recebe tratamento
respeitoso de toda vizinhança e de todos da comunidade. Não possui o estereótipo
da mulher árabe muçulmana submissa (segundo veicula a mídia ocidentalizada,
expondo a submissão e o recolhimento social como única realidade do gênero
feminino no Islã). Não fica sempre dentro de casa. I. M. V. K. orienta-se pela cartilha
das mulheres malês (segundo ela, conhecedora da revolta Malê na Bahia), ativas no
levante escravo de 1835. Para ela “o Continente Americano foi edificado sobre os
ombros dos homens negros e o ventre das mulheres negras”. “E o Islã é o espelho
em que eu me vi refletida”.
Filha de uma tradicional família negra, de origem matriarcal. Até aos seis anos
foi criada numa área de quilombo, em Minas Gerais. Tem lembranças da mãe e da
avó sempre vestidas de preto. Vestidos longos, rezando com a janela aberta e
dando ordens aos homens (estrutura social matriarcal) e tocando a vida. A mãe
morreu de parto, foi quando o pai se mudou. Ela ainda hoje, se diverte quando se
lembra dos primeiros brancos que ela viu: “Eu e meu irmão pensávamos que eram
lobisomens” diz ela. “eles nos convidavam para brincar, e a gente se escondia
pensando que iam nos comer”.
95
Este depoimento de I. M. V. K. é altamente revelador. Ele liga o tempo e o
atualiza em nossa memória. Não há dúvidas de que esta mulher tem vivas as
origens étnicas às quais ela pertence ou pelo menos, culturalmente se sente
pertencer. Creio que, em parte, a origem dos movimentos de jovens negros
islâmicos nas periferias de São Paulo começa a ser respondido.
Um número considerável de jovens brasileiros revertidos ao Islã são ao
mesmo tempo atuantes do movimento negro Hip Hop.71 Sua ideologia política
baseia-se fortemente no movimento negro ao redor do mundo e principalmente no
legado Malê, com ênfase para a insurreição Malê de 1835, em Salvador, na Bahia,
onde a revolta dos malês, liderada por negros muçulmanos, foi a rebelião de
escravos urbanos mais importante da história do país. Pouco citada nos livros
escolares. Depois de um largo hiato ela chegou às periferias pela rima do rap.72Lá,
uniu-se ao legado do ativista americano Malcolm X73 assimilado pela versão do
filme de Spike Lee. E por fim ao onze de setembro, que irrompeu na TV, mas foi
colado às teorias conspiratórias que se alastram na internet.
Este é o Islã com cores brasileiras que chega para os novos revertidos.
Enfatizamos sua presença mais forte em São Paulo. A capital paulista foi o berço do
Hip Hop no Brasil, portanto marcou, historicamente, a afirmação de uma identidade
71
O termo Hip Hop tem na sua etmologia as danças da década de setenta, em que se saltava (hop) e
movimentava os quadris (hip). Mas também há registros de que tenha sido criado por Afrika
Bambaataa (Kevin Donovan). Outra expressão artística marcante no movimento Hip Hop é o “Graffiti”,
que em parte tem a ver com a pichação, isto porque no surgimento do Hip Hop o graffiti servia para
demarcar becos, muros e trens nas grandes metrópoles. Com a essência do movimento Hip Hop, nos
anos oitenta, essas demarcações foram se transformando em verdadeiros murais de obras de arte.
Hoje há uma nítida diferença entre o graffiti e a pichação, inclusive pela ilegalidade e vandalismo do
segundo. O movimento Hip Hop tem sido respeitado por uma grande parcela da sociedade
brasileira. (http://www.infoescola.com/artes/hip-hop/). Minha ênfase – Grifos meus.
72
Rap: Abreviatura em Inglês, significa Rhime and Poetry (Rima e Poesia). Nos últimos vinte anos, a
palavra rap se encontra, atualmente, "online" sendo um neologismo popular, porém, apesar da
associação com poesia e ritmo, o significado da palavra rap não é um acrônimo em si, mas descreve
uma fala rápida que precede a forma musical (de ritmo e poesia),e significa "bater".A palavra (rap) é
usada no Inglês britânico desde o século XVI, e especificamente significando "say" ("dizer", ou "falar",
"contar o conto"). Hoje, está associada, musicalmente, aos ritmos dos movimentos negros em todo o
continente americano. No Brasil está, entre outros, associada ao movimento de Jovens negros
muçulmanos nas formas de letras musicais ideológicas. (http://www.infoescola.com/artes/hip-hop/).
Minha ênfase – Grifos meus.
73
Malcolm X: foi um dos maiores representantes na defesa dos direitos dos negros nos Estados
Unidos. Nascido no dia 19 de maio de 1925 na cidade de Omaha, Malcolm Little era filho de Earl
Little e de Louise Little. Malcolm X se destaca na história dos Estados Unidos no século XX por ser
um negro líder de um movimento de cunho libertário de grande repercussão e que defendeu os
direitos da comunidade negra. Adepto ao islamismo acreditava que a violência poderia ser usada
para se defender. Percebeu que a questão do negro não estava ligada apenas a um fator religioso,
mas tinha relação com a estrutura do capitalismo. Minha ênfase – Grifos meus.
( http://www.infoescola.com/biografias/malcolm-x/).
96
da juventude negra e periférica. Cada novo revertido acredita ter dentro de si um
pouco dos ideais de liberdade ampla e irrestrita dos Malês. Para seus poetas
marginais (poeta do meio do movimento islâmico de jovens negros), a periferia de
São Paulo é a senzala moderna.
Para estes jovens negros islâmicos, a experiência religiosa como
muçulmanos é equivalente a prostar-se diante de Allâh e voltar para casa depois de
um longo exílio, pois as raízes do Islã negro estão fincadas no Brasil. Agora, para
desabrocharem no Brasil de hoje, percorreram um caminho de sofrimento. O novo
Islã negro brasileiro, portanto, tem suas origens evocadas pelos seus adeptos aos
seus ancestrais negros Malês: de modo geral. São fortemente influenciados pelas
lutas dos direitos civis dos afro-americanos nos anos sessenta. Seu caminho
converge então com o Hip Hop do metrô São Bento, em São Paulo nos anos oitenta
e noventa. Infelizmente, pelo fato ocorrido, foi impulsionado, também, pelo onze de
setembro de 2001.
Os adeptos e membros do Hip Hop consideram a passagem dos Malês e
outros muçulmanos negros como os Haussás de fundamental importância, pois este
fato na história, revela o tipo de luta que tem como base essencial o ideal da busca
pela liberdade ampla. Segundo os muçulmanos do Hip Hop a insurreição Malê é
vista por eles como uma das primeiras e mais importantes revoltas contra a injustiça
social em solo brasileiro. Com base nesta revolta Malê, na busca de liberdade e
igualdade na esfera social, religiosa e política, o islamismo brasileiro apregoado no
movimento de jovens negros do Hip Hop acredita que pode mudar, iniciando pela
periferia, a imagem de que, no Brasil, os negros estão ligados apenas às religiões
afro brasileiras tais como: Candomblé, Umbanda, Quimbanda e demais variantes
não institucionalizadas. (http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/).
97
3.4.1 Sinais da Institucionalização do Islã Periférico brasileiro.
Abdullah Malik Shabbazz (jovem negro de 25 anos), um nome fictício para
preservar a verdadeira identidade deste jovem muçulmano brasileiro. Ele é
responsável por presidir o Núcleo de Desenvolvimento Islâmico Brasileiro - NDIB.
Esta jovem organização mal nasceu e já despontou com uma característica que a
distingue entre outras, ou seja, é reconhecida como a organização mais combativa e
mais radical do novo Islã negro brasileiro. Um dado tão importante quanto
interessante e, provavelmente lança mais luz no nosso entendimento desta
característica que torna esta organização tão combativa e radical em seus ideais,
pode estar no fato de que seu vice-presidente está estudando, há pelo menos um
ano e meio, formação islâmica no Paquistão. Com apenas oito integrantes, já foi
capaz de promover em fins de 2007, um encontro entre o americano Fred Hampton
Jr., o rapper Mano Brown e lideranças do movimento negro e de jovens muçulmanos
na cidade de São Paulo:
No dia 19 de novembro de 2007, na ONG Ação Educativa situada no centro da
Capital Paulista encontravam-se membros do movimento hip-hop, movimento
negros/sociais engajados na luta por uma mudança em nossa sociedade, para um
encontro que tinha por objetivo dialogar saídas e socializar experiências vividas com
um dos mais respeitados líderes afro Americanos da atualidade, Fred Hampton JR.
Filho de Fred Hampton fundador do movimento Black Panthers. A mesa também
contou com a presença do irmão Honerê Al-amin Oadq do Centro de Divulgação do
Islam para América Latina, MNU e Posse Hausa, Mano Brown dos Racionais MC’S,
Anderson 4p, vereador de Francisco Morato pelo Movimento Hip-Hop, Eugênio da
Frente 3 de fevereiro, e posteriormente a quilombola Kathiara do coletivo Kilombagem
de Sto. André.(http://possehausa.blogspot.com.br/).
Estes fatos demonstram a seriedade e um determinado nível de organização
deste Islã negro brasileiro. Eles não param aí. Intencionam, com medidas sérias, o
início da construção do que denominam de uma nova Medina. Sonham com uma
comunidade muçulmana brasileira que seja estruturada a ponto de poder receber e
acolher os novos revertidos de vários pontos da periferia de São Paulo. Essa idéia
de ajuntamento aponta para um nível primário de organização social e, vai
legitimizando e conferindo, além de estrutura, uma identidade brasileira ao
movimento. O fato de estarem espalhados, segundo Malik, dificulta a organização
que eles tanto almejam. Sempre aludindo à força inspiradora da revolta Malê, muitos
sonham com um estado islâmico no Brasil. Segundo eles, ainda que seja um estado
dentro do Estado. Acreditam que em mais ou menos duas décadas, isso será
98
possível. Afirmam que há uma geração de jovens muçulmanos entre mulheres e
homens tentando fazer isso de forma organizada. Outros dados que fazem aflorar a
idéia de institucionalização do Islã com face brasileira, por parte dos jovens negros
muçulmanos do Hip Hop, são os sinais de uma consciência religiosa, cujos ecos são
provenientes das observações corânicas:
Diz Malik: "Sonhamos com um bairro muçulmano onde não existam bares com
bebidas alcoólicas nas esquinas, os açougues não vendam carne de porco, nossas
crianças possam estudar em escolas islâmicas e nossas mulheres não sejam
chamadas de mulher-bomba." Para isso, pensam em adquirir um pedaço de terra e
fazer um loteamento. Alguns já se mudaram para a periferia de Francisco Morato, um
dos municípios mais pobres da Grande São Paulo. Eu e minha esposa queremos
estudar para divulgar o islã. Porque ninguém melhor do que a gente, que sobe o
morro, tem acesso à periferia e conhece a massa, para falar a eles. Porque, se
chegar um cara lá vestido de árabe, os 'negos' vão dar risada." Leandro desenvolve
há um ano, numa favela da Zona Leste de São Paulo, o projeto Istambul Futebol e
Educação, com 25 garotos em situação de risco. Os recursos vêm de um ativista
islâmico
da
periferia
paulista
que
hoje
estuda
na
Síria.
(http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/).
Outras constatações vão dando cimentação a esta possibilidade. Existem
conexões bem vivas, em andamento, por parte de membros do movimento negro de
jovens muçulmanos de São Paulo, com países muçulmanos numa espécie de
intercambio cultural e, sobretudo religioso. Há uma busca organizada e com certo
planejamento do conhecimento da doutrina islâmica, com o propósito claro e
definido de divulgação do islamismo entre os brasileiros. Estudar o islamismo e
divulgar o islamismo, está entre as principais razões da Jihad74 Islâmica, ou seja, a
expansão do Islã. No nosso caso, uma motivação extra para a expansão do Islã de
origem negra em São Paulo e entorno da cidade: (ANEXO 6 – Foto 4).
Para que haja uma institucionalização, a busca de raízes, no caso da revolta
Malê de 1835, como base fundante e, mais recentemente, após um considerável
hiato entre a base histórica do levante Malê, acontece agora, nos dias atuais, a
incorporação das rimas do rap, o legado ativista do negro norte-americano Malcolm
X, assimilado, principalmente pela influência do filme Spike. Além, é claro, do já
mencionado anteriormente, ou seja, as influências recebidas e internalizadas, de
que cada novo revertido trás dentro de si mesmo, um pouco da identidade Malê. Isto
74
Jihad: Primariamente significou (em algumas regiões do Oriente Médio ainda significam), guerra
santa em nome de Allâh, ou seja, a expansão do islamismo, mesmo que seja pela luta armada. Na
maioria das regiões do globo, portanto, o caráter belicoso de sua origem é suavizado pela idéia de
divulgar o Islã de maneira pacífica. Minha ênfase.
99
fica evidente nas letras mais importantes do rapper brasileiro, que não é muçulmano,
contudo é simpatizante do movimento de jovens negros muçulmanos em São Paulo:
mano Brown, tais como: “No princípio eram trevas, Malcolm foi Lampião/Lâmpada
para os meus pés/Negros de 2010/Fãs de Mumia Abu-Jamal, Osama, Saddam, Al
Qaeda, Talibã, Iraque, Vietnã/Contra os boys, contra o GOE, contra a Ku-Klux-Klan”.
(http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/).
Com uma takiah75 verde-amarela na cabeça, emblemática e reveladora das
intenções que estão no sonho acalentado destes jovens muçulmanos brasileiros,
que, neste caso especial, não aceitou nem mudar o nome, V. G. entrega tudo nas
mãos de Allâh. Para ele a utilização da takiah passa a ser símbolo de um discurso
anexado ao corpo. Da mesma forma que algumas mulheres usam o hijab não só
para cumprir um desígnio divino, mas também como uma tentativa de atribuir um
discurso político ao corpo.
Os muçulmanos do movimento Hip Hop utilizam a takiah não só por questões
religiosas, mas também por motivação política, para contestar a proibição do véu em
alguns países como a França ou em jogos como a Copa feminina de futebol e a
causa Palestina, pois acreditam que assim estão transmitindo e exteriorizando
ambos os valores – religiosos e políticos. Portanto, a takiah passou a ser um
símbolo de resistência, engajamento político e apoio à causa palestina. (TOMASSI,
2011, p. 90).
Seus olhos lacrimejam quando afirma “Allâh diz no Corão que para cada povo
há um profeta que fala a sua língua. Então, quem sabe não vai aparecer um
negrinho cheio de ginga e de rima na periferia e profetizar a vontade de Allâh”? V. G.
deixa
transparecer,
consciente
ou
inconsciente,
três
elementos
que
são
fundamentais na institucionalização do Islã brasileiro, ou seja, seu código religioso
maior, o Corão e seu mensageiro (profeta), na língua nativa (língua portuguesa);
uma cultura própria, ou seja, cheio de dança e de rima, que nada mais é do que o
Hip Hop e Rap em suas mais primitivas manifestações.
75
Takiah: Indumentária masculina para homens muçulmanos. Parece um pequeno gorro sem aba e
pode ter cores variadas dependendo, às vezes da cultura, etnia e mesmo do país.
(http://amulhereoislam.wordpress.com/).
100
A questão de identidade, que inconsciente, transparece por parte de V. G.,
manifesta-se em sua fala, ao considerarmos que o termo etnia abrange duas séries,
uma envolvendo identidades; outra, padrões culturais. Na série de identidades,
encontramos dois tipos diferentes de mecanismos de identificação, ou seja, um
primeiro tipo compreende identidades assumidas por membros de grupos
minoritários, entre eles índios, negros, árabes etc. que estejam inseridos em
sistemas sociais globais (como as sociedades nacionais). No caso de V. G. trata-se
de uma identidade assumida e envolve o segundo tipo quando se trata de uma
assimilação cultural que envolve padrões de conduta sejam eles social, político e
religioso etc. (OLIVEIRA, 1976, p. 102).
Segundo N. F. L., agora conhecido por Muhammad, de trinta e três anos,
casado com uma branca e pai de cinco filhos, defende, com entusiasmo, um Islã
para todas as cores e raças. Visitou a Líbia e lá conheceu Louis Farrakhan76,
porém, segundo ele, não se alinhou com as ideias radicais do líder muçulmano.
Perguntado sobre sua visão do Islã no Brasil, responde que o Brasil vive “uma
nova revolução islâmica”. “Há focos do Islã borbulhando em toda parte”. “Existem
hoje, brasileiros estudando na África, na Ásia e no Brasil com o propósito definido de
inserir lideranças muçulmanas em órgãos-chave da sociedade brasileira”, e emenda:
“Já iniciamos a base com os mais pobres da periferia de São Paulo, brevemente
marcharemos para a região central; estamos aguardando um líder para nos guiar
num levante, não armado, mas cultural”. N. F. L. é da zona leste de São Paulo, filho
de uma mulher, que no censo do IBGE77, se declarou “branca” e de um pai que se
declarou “pardo”, ele, por sua vez, sempre teve certeza de que eram todos “negros”.
Em 1922, Muhammad trocou a bebida, as drogas e os pequenos crimes pelo
Alcorão. Algum ano mais tarde se formou em teologia islâmica na Líbia; em 2002
desembarcou na cidade gaúcha de Passo Fundo, de colonização européia onde
loiras naturais são tão corriqueiras como chimarrão. Muhammad, com uma Takiah
76
Louis Farrakhan, nascido em 11 de maio de 1933, em Bronx, Nova Iorque, foi criado em uma
família altamente disciplinado e espiritual em Roxbury, Massachusetts. A Nação do Islã, sob a
liderança do senhor Ministro Louis Farrakhan é o catalisador para o crescimento e desenvolvimento
do Islã nos Estados Unidos. Minha ênfase – Grifos meus.
77
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Islamismo no Brasil: Total: 35.167. Brancos:
29.248. Negros 1.336 Amarelos: 268. Pardos: 4.300. Índios:15. IBGE – Censo Demográfico Religioso
2010.
101
na testa, desembarcou em Passo Fundo com duas metas principais em sua mente:
arranjar um trabalho numa multinacional de abate de frangos halal78 (abatidos
segundo as prescrições islâmicas) e divulgar a doutrina e religião muçulmana.
78
Halal: lícito. Significa uma especificação islâmica para o que é lícito, aceitável e que está de acordo
com as prescrições do Islã. Neste caso, a multinacional de abates de frangos trabalha segundo as
especificações dos muçulmanos, de acordo com os preceitos islâmicos, para garantir aos
consumidores muçulmanos a procedência e abate do animal.
102
3.4.2 A Presença da Mulher Muçulmana no Islã Periférico de São Paulo.
A mulher muçulmana em São Paulo, sua performance religiosa e a
complexidade que a envolve neste ambiente, é nosso assunto principal. Rumamos
para ele. Estamos chegando ao mar, porém, atravessar os rios que dão no mar é
necessário. Afinal todos os rios correm para o mar.
Um olhar para esta mulher nas fileiras dos muçulmanos negros do Hip Hop de
São Paulo é parte importante e integrante do olhar que lançamos sobre a mulher
muçulmana na cidade de São Paulo de modo mais generalizado, não importando
sua
etnia,
cultura,
status
quo,
aprioristicamente,
mas
sim,
sobretudo
e
principalmente, sua religiosidade e toda a gama de variantes que a envolvem neste
ambiente.
Uma constatação que se traduz em números não oficiais, contudo, com
razoável credibilidade, é aquela que aponta a grande quantidade de mulheres que
estão revertendo ao Islã. Segundo as próprias lideranças de algumas mesquitas de
São Paulo e adjacências, entre dez revertidos ao Islã, sete são mulheres. Muitos são
os motivos que levam uma mulher, independentemente de sua cor, etnia, status quo,
estado civil, político e ideológico, à reversão ao Islã, porém, aquele que se destaca é
o motivo religioso. O estigma criado em torno da religião islâmica em relação à
performance da mulher muçulmana e o seu suposto papel subalterno pode não
corresponder à total realidade. Suposta realidade propalada, principalmente, pela
mídia norte-americana.
Iniciamos este olhar, com o depoimento de E. R., de trinta e três anos.
Segundo ela, a mídia brasileira quando trata dos padrões de comportamento e
exposição da mulher brasileira em geral, tenta impor uma idéia de que a mulher
brasileira tem que andar de minissaia ou de shortinho, meio pelada. Para ela, a
mídia fabrica um estereótipo e as mulheres seguem-no desde criancinhas, sem se
dar conta de que são produtos não de sua própria cultura e às vezes nem das
próprias convenções sociais, mas de um poder midiático que não respeita fronteiras
sociais, culturais e, principalmente religiosas. E. R. faz um contraponto com a sua
própria indumentária de mulher muçulmana, dizendo que sua roupa de mulher
islâmica chama a atenção dentro de um ônibus, trem, metrô ou mesmo em um
103
ambiente público qualquer. E continua: por que uma brasileirinha qualquer, seminua
não chama a atenção? A própria E. R. responde: “Porque estou fora dos padrões
impostos pela mídia, nesta batalha pela mente das pessoas em geral, formando
opiniões e padrões culturais, numa clara violência contra os valores opostos. Talvez,
a mídia não suporte uma identidade própria, uma escolha própria. Percebe-se, que o
discurso de E. R. é balizado por um conteúdo político e ideológico próprio, originado
nas questões culturais, políticas, ideológicas e religiosas do Islã. E. R. está sempre
presente nos principais eventos que envolvem o movimento de jovens negros
muçulmanos
em
São
Paulo.
Diz
que
faz
questão
de
acompanhar
os
desdobramentos das reuniões e mesmo congressos, ou seja, deixa claro que sua
participação é ativa.
Outra mulher ativa na vida religiosa islâmica e presente nos encontros que
reúnem os jovens negros muçulmanos em São Paulo e entorno é L. A. Em seu
depoimento, diz que se reverteu há cincos anos, trocando, abruptamente a vida
voltada para encontros casuais, baladas e festinhas, embalada num figurino Hip
Hop, para se tornar uma jovem mulher muçulmana. L. A. se converteu em 2007, no
mesmo dia em que tomou outra decisão abrupta, ou seja, se casou com um rapper
de nome L. A., as mesmas iniciais de seu nome.
Perguntada sobre sua religiosidade diz que este é outro fator que
redimensionou a sua vida. Observa e pratica as recomendações religiosas do Islã,
isto é, as cinco orações diárias. Tem a mesma opinião de E. R. quando se refere às
questões das indumentárias femininas de uma mulher muçulmana, ou seja, as
opiniões e os pontos de vista divergentes sobre este assunto e outros que envolvem
a mulher muçulmana são, na sua maioria, oriundos de uma propagação tendenciosa
da mídia brasileira e mundial em sua grande parte. Semelhantemente aos jovens
negros muçulmanos, também busca sua identidade fundante na revolta Malê de
1835, ocasião que, segundo ela, as mulheres tiveram uma atuação muito
importante, porém, sem registros de grande destaque na história.
104
3.4.3 Islã Brasileiro e Preconceito na Visão Feminina.
Se por um lado, identificamos desde o início deste trabalho, a questão étnica,
que tem levado às questões preconceituosas e consequentemente a arabização do
Islã no Brasil, por parte dos imigrantes em geral, por outro lado, identificamos que
entre os próprios revertidos brasileiros o preconceito entre grupos existe.
Em conversa com um casal de revertidos na mesquita do Pari em São Paulo,
tive a excelente oportunidade de conversar de forma mais descontraída, sem
nenhuma formalidade ou mesmo academicismo. Observei que a esposa ficou
aguardando no salão que fica abaixo do primeiro andar da mesquita, local onde
funciona a secretaria. Ela cumprimentou formalmente o Sheik e, com um pouco mais
de liberdade, a secretária, que é uma brasileira revertida de nome islâmico adotado:
Khadija.
O Sheik R. R. subiu para o andar superior, local das orações. R. K. , o
acompanhou, era o momento de uma das cinco orações diárias. Khadija, momentos
depois, me informou que se tratava da oração do meio dia, ou seja, Salát Addohr79,
oração que vai do meio dia até o por do sol, o que significa que qualquer
muçulmano, mulher ou homem, pode adequar o horário para realizar estas e as
demais orações diárias. O Sheik me convidou para acompanhar a oração. Subi com
ambos, o Sheik e o revertido brasileiro R. K. Sua esposa, F. U. permaneceu próxima
a uma estante de literatura islâmica, aguardando, provavelmente o tempo da oração.
Observei que havia muitos outros homens no local, alguns sentados, outros
deitados e mesmo outros em posição genuflexa. Acima deles havia, em outro andar,
que mais tarde conheci, por gentileza do Sheik,
o local das orações diárias,
destinado às mulheres. Fiquei ainda mais atento, quando percebi que algumas
mulheres subiam e adentravam o local. Não pude ver mais nada, além da subida e
entrada das mulheres no local de oração a elas destinado, contudo, fiquei com os
ouvidos mais aguçados nas manifestações sonoras femininas durante as orações.
Elas recitavam algumas frases entre um período e outro, o que para mim, eram os
momentos de genuflexão.
79
Salát Addohr: é a segunda das cinco orações diárias. Deve iniciar no limiar do meio do dia (12H00). Deve ser
observadas as abluções. No caso da Salát Addohr, é necessário quatro genuflexões, cada uma destas
genuflexões são seguidas de uma expressão de adoração a Allâh. Minha ênfase – Grifo meu.
105
Fiquei em um canto, observei os homens, contudo minha atenção maior
estava acima da minha cabeça, ou seja, o desempenho das mulheres no momento
da Salát Addohr.
Passados o período de recitações e quatro genuflexões, os homens, não
todos, começaram a deixar o que denomino de salão de oração da mesquita. As
mulheres que estavam acima de nós por lá ficaram, pelo menos até onde pude
constatar. O Sheik e R. K. vieram em minha direção e descemos para a secretaria.
Foi neste momento, aproximadamente meio dia e trinta, que R. K. e sua esposa F.
U. iniciaram uma conversa mais informal comigo.
Entre outros assuntos, que retomarei mais à frente, falaram do preconceito
existente entre os grupos de revertidos e entre os imigrantes e revertidos em geral.
Disseram eles “somos um casal classificado pelo censo do IBGE, de brancos.
Somos revertidos, conhecemos, em parte, o movimento de jovens negros
muçulmanos e suas ligações com o Hip e Hop. Acho até que é um movimento
interessante, contudo, é um movimento majoritariamente de negros e afrodescendentes. Eles não dão bola para brancos, creio que mesmo que quiséssemos
tomar parte, não seríamos bem recebidos, é minha opinião”. Após a fala de R. K.,
perguntei se F. U. , sua esposa, concordava com seu esposo, ela disse que sim.
Perguntei se tinham relações com algum casal de imigrantes. Disseram que
esporadicamente sim. Contudo, deixaram claro que relações mais amplas e
duradouras são quase impossíveis. Perguntei sobre a possibilidade de um Islã com
rosto brasileiro e liderado por brasileiros. R. K.
respondeu que na sua humilde
opinião até é possível, mas vai ser um Islã fragmentado por grupos de brasileiros,
em sua maioria, revertidos e, com o profundo problema étnico, cultural e ideológico
para ser tratado. Sua esposa F. U. , intervindo na conversa, disse que o problema do
preconceito é o maior entrave para um Islã mais brasileiro. Diz que vai levar um bom
tempo, e, ainda assim se as partes interessadas iniciarem um enfrentamento dos
problemas mais graves, dentre eles, o preconceito e a discriminação.
F. U. me pareceu muito bem informada sobre estas questões. Deixou
transparecer que, em sua opinião, existem dois polos que, aparentemente, são
106
antagônicos. Para ela negros e árabes polarizam, antagonicamente, as questões de
preconceito, que na verdade transita sobre as questões étnicas.
Tomassi em seu trabalho de campo identificou este preconceito entre
revertidas brasileiras que, vão de uma simples refeição até as questões étnicas,
sociais e ideológicas. Para Tomassi, existe uma liminaridade, cujos agentes se
encontram, ou seja, R. A. e R. B., são duas mulheres muçulmanas que participam
do evento que envolve islamismo e Hip Hop. Elas são parte de uma espécie de
intersecção entre Islã e periferia. Embora não participem do movimento Hip Hop,
contudo, transitam e possuem uma determinada relação com estes. Numa
determinada ocasião, R. A. fez parte ativa de um evento, tomando parte na
organização do mesmo. R. B., outra jovem mulher revertida, estava acompanhando
a amiga nesta ocasião. Ambas reparavam nas jovens descendentes de imigrantes
muçulmanos, que, nesta ocasião usavam roupas decotadas e justas e jogavam
baralho na mesa ao lado. Para R. A., essas garotas muçulmanas de imigração
ostentavam uma postura superior em relação às revertidas. Se achavam mais
muçulmanas que as revertidas. Contudo, religiosamente falando, estavam mais
descaracterizadas que as brasileiras revertidas, uma vez que não estavam vestidas
com o hijab e, pior, estavam com vestimentas que, normalmente seriam usadas por
brasileiras nativas e não por muçulmanas descendentes de imigrantes. O fato de ser
brasileira revertida e ser da periferia eram fatores de discriminação e preconceito por
parte das muçulmanas de imigração, na visão de R. A. (TOMASSI, 2011, p. 93).
As questões de discriminação e preconceito existem em, praticamente, todos
os segmentos sociais e religiosos. A questão é saber até que ponto esta
discriminação e preconceito pode impedir a estruturação e institucionalização de um
Islã mais brasileiro? O que fica evidenciado é uma manifesta incoerência por parte
desses grupos. Se por um lado, os jovens muçulmanos negros do Hip Hop buscam
a construção de uma identidade com base fundante e inspiradora na revolta Malê,
cujos
ideais foram
igualdade e
liberdade
entre
outros, parece-nos que,
aparentemente, navegam contra a correnteza daquilo que é a sua bandeira, ou seja,
a inclusão social, política, religiosa que tanto apregoam. Volvendo nosso olhar para
outro grupo, os imigrantes e descendentes muçulmanos, evidencia-se a questão da
107
arabização, tão reclamada e considerada como discriminação pelos revertidos
brasileiros, sejam negros, brancos ou pardos, esta não é a questão.
Dessas realidades conflitivas, que envolvem questões culturais, questões
sociais, questões ideológicas entre outras questões, ainda temos os conflitos entre
os próprios revertidos brasileiros. Entre estes, os próprios jovens negros
muçulmanos do Hip Hop e os brancos, pardos, amarelos, como queiram, revertidos
e revertidas brasileiros que não se enquadram na categoria “negros”. Estes conflitos
acabam por se constituírem em um critério que envolve além da questão cultural, a
questão de identificação com o grupo.
Segundo Oliveira, este critério de identificação é questionável também pelo
fato de que as características culturais são variáveis no tempo e no espaço. Elas vão
se modificando diante de situações concretas. Elas não são um conjunto fora do
tempo e imutável transmitidos da mesma forma de geração em geração na história
do grupo. Por isso, não há como encontrar um conjunto total de traços culturais que
permitam a distinção entre um grupo e outro, e a variação cultural de um grupo não
permite, por si própria abranger, o traçado dos limites étnicos. Neste sentido, Oliveira
pergunta: “Até onde esse critério dá conta da persistência da identificação étnica de
pessoas e de grupos, quando praticamente não se observam ‘traços culturais
manifestos diferenciais’?” (OLIVEIRA, 1976, p. 2). Portanto, mesmo que haja
modificação nos traços culturais, um grupo pode continuar afirmando sua pertença a
um determinado grupo étnico. Daí a incoerência das ideologias de grupos como
negros e árabes e às vezes revertidos não se aceitarem como iguais ou mesmo
resistirem a inclusão de outros.
Há, segundo Ferreira, uma tendência dos revertidos brasileiros em geral, sem
ascendência árabe, de negar o árabe e tudo o que procede dessa cultura.
(FERREIRA, 2009, p. 17). Fica mais uma vez evidenciado que nestes dilemas
identitários há, sempre, por parte de um grupo ou de outro, a tentativa de uma
descaracterização cultural do outro, como se isso fosse a solução para estes
conflitos ou como denominou Oliveira, fricções interétnicas. (OLIVEIRA, 1976, p. 86).
Fiquei grato e surpreso ao mesmo tempo ao perceber que F. U. , revertida
brasileira há pelo menos oito anos, usava um hijab de cores discretas. Demonstrou
108
estar atenta e conhecer de modo geral as manifestações e movimentos sociais e
religiosos que envolvem os muçulmanos no Brasil. O que para mim significou que
ser mulher e ser muçulmana não significa estar alienada do mundo que as cerca.
Pude perceber, numa certa medida, não conclusiva, sua liberdade para decidir, uma
vez que ela não subiu para o local destinado às orações femininas. Ficou esperando
seu marido, que subiu para orar, voltar para onde estava ela. Suas indumentárias
exalavam, em parte a cultura árabe, seu discurso não reivindicava exclusividade
para este ou para aquele grupo. Sua visão deixou antever uma religiosidade sem
preconceitos.
109
4. A RELIGIOSIDADE DA MULHER MUÇULMANA NA CIDADE DE SÃO PAULO.
4.1 Focando a Mulher muçulmana na cidade de São Paulo.
Nosso propósito maior, bem como nosso desafio agigantado, sempre foi o de
observar e entender, da melhor maneira possível, o desempenho da mulher
muçulmana na cidade de São Paulo. Buscamos, certamente com muitas limitações,
uma visão, a melhor possível para este propósito. Entender ou mesmo classificar as
variantes e a complexidade de seu modus vivendis religioso, confesso ser, para um
homem, tarefa inglória, mas não impossível. Porém, com humildade investigativa e
observação de algumas nuances que envolvem a performance desta mulher, foi
possível detectar algumas características e entender as razões de determinados
procedimentos e práticas que as envolvem em seu mundo e na sua religiosidade
islâmica.
Para iniciar este capítulo, que na minha humilde opinião, é o coração deste
trabalho, foi necessário antes, entender, ainda que parcialmente, esta trajetória
histórica, fascinante e de uma riqueza incalculável da mulher muçulmana de todos
os matizes, sejam eles étnicos, culturais, sociais.
A Mulher muçulmana, sempre às voltas com a tentativa de cerceamento
cultural, político, religioso entre outros, agiu como água, não puderam contê-la.
Sobrepujou as muralhas erguidas pelos blocos monolíticos da dominação masculina
e abriu caminho, rompendo na e pela história. Sou mineiro, em minha região tem um
ditado popular que diz: “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. Esta
água, à qual me refiro, metaforicamente, é a mulher muçulmana de todos os tempos,
passado, presente e futuro. A pedra é a dureza de sistemas erguidos ao seu redor,
como muralhas, sejam eles ideológicos, políticos, culturais, religiosos, que ignoram,
estupidamente, que estas são mulheres, antes de serem muçulmanas.
Agora, vamos afunilando para algumas experiências em contatos com
exemplares desta mulher na cidade de São Paulo. A propósito, poucas cidades do
mundo podem oferecer um laboratório cultural e um campo de pesquisa tão
multifacetado e rico como a cidade de São Paulo. Possivelmente, o maior reduto de
110
muçulmanas revertidas do país. Em minhas idas e vindas, não era raro, encontrar
muçulmanas a caráter nas estações de trem, metrô e andando pelas ruas.
Cheguei mesmo à ousadia de abordar uma jovem muçulmana no Lago da
Concórdia, para perguntar se estava na direção certa da mesquita do Pari. A
princípio ela ficou um pouquinho assustada, mas como estávamos no meio de um
grande movimento de pessoas e havia policiais por perto, percebi que ela se
tranquilizou e acabou caminhando ao meu lado até certa altura do meu destino. No
caminho, ela se identificou como filha de imigrantes libaneses. Esta é uma amostra
de uma das características da cidade de São Paulo.
Estima-se, que a cidade de São Paulo abriga pelo menos um milhão de
muçulmanos.80 Sendo que no Bairro do Brás trabalham e residem milhares deles.
No meio deste grande contingente de muçulmanos, o número de mulheres é
considerável, fato este, que justifica nosso olhar para esta mulher muçulmana e seu
modus operandis religioso, em algumas mesquitas da cidade de São Paulo.
Neste mundo envolvente da mulher muçulmana no Brasil e na cidade de São
Paulo, destacam-se muitas pesquisadores importantes, dentre eles alguns que
trataram de uma maneira ou de outra a categoria de performance desta mulher de
um modo geral, dentre estes: Vera Lúcia Maia Marques (2000, 2011), Silvia
Montenegro (2000, 2002), Vlademir Lúcio Ramos (2003) Claudia Voigt Espínola
(2000, 2005), Cristina Maria de Castro (2007), Sônia Cristina Hamid (2007),
Francirosy Campos Barbosa Ferreira (2007, 2009, 2010), Lídice Meyer Pinto Ribeiro
(2013). Outros pesquisadores tão bons quanto os acima citados poderiam constar
nesta relação, contudo, faço alusão aos nomes acima por terem sido os mais citados
em questões pontuais elencadas por este trabalho.
Passarei a descrever alguns contatos que foram possíveis com mulheres
muçulmanas que vivem na cidade de São Paulo. Nestes contatos dentro e fora das
mesquitas, procurei enfatizar aquilo que foi proposto por esta pesquisa, ou seja, sua
religiosidade, as relações com o gênero masculino na perspectiva religiosa, sua vida
social, profissional, sua visão de mundo numa perspectiva de mulher muçulmana,
80
CDIAL – Centro de Divulgação Islâmica Para a América Latina. Dados não oficiais, apenas
estimativa dos próprios muçulmanos. Segundo as mesmas estimativas do CDIAL, no Brasil deve ter
um contingente de aproximadamente 1,5 milhões de muçulmanos.
111
sua vida familiar e mesmo as questões da mulher muçulmana e o Corão, os conflitos
culturais nas relações entre revertidas e imigrantes e descendentes, suas
particularidades rituais religiosas dentro do islamismo, Enfim, quase tudo que
vivencia esta mulher no seu dia a dia de muçulmana, com o cuidado de olhar
sempre pela ótica da sua religiosidade.
112
4.1.1 A Mulher Muçulmana em São Paulo na Visão de um líder revertido.
Retomo aqui, uma conversa, sob minha ótica, muito proveitosa entre mim e o
Sheik R. O. R., líder na mesquita do Pari em São Paulo, a respeito especificamente
da mulher muçulmana e seu desempenho no ambiente religioso nesta mesquita.
Perguntei para o Sheik sobre o vestuário das mulheres muçulmanas, observadas
por ele em sua experiência na mesquita do Pari. Qual tipo de vestuário prevalece e
se há regras para esta ou aquela indumentária. O Sheik respondeu que o uso desta
ou daquela peça de vestuário passa, portanto, também por uma escolha pessoal da
própria mulher. Quando se trata, especificamente de brasileiras revertidas. Neste
caso, as brasileiras têm preferência pelo hijab. Uma vez que a mulher usa esta ou
aquela peça de vestuário, dificilmente irá substituir por outra. Se esta mulher usou
pela primeira vez o hijab, vai usá-lo, por via de regra, sempre. Se utilizar o niqab, vai
sempre optar por ele, se utilizou o purdah vai sempre optar por ele e se utilizou a
burca ou chador vai sempre optar por ela e assim por diante. Contudo, há casos em
que a burca é deixada e substituída pelo hijab.
Perguntei se a burca não se reveste de radicalização e imposição sobre a
mulher. Emiti minha opinião dizendo que a burca é medonha e que não conseguia
entender como aquele “saco” de ponta cabeça pudesse esconder uma mulher. O
Sheik riu e disse que alguns regimes de exceção como no Afeganistão e Paquistão,
as mulheres continuam usando a burca, mesmo com a derrota do regime Talibã.
Perguntei se o Corão exige que a mulher use esta ou aquela peça de roupa.
A resposta foi que o Corão em suas Suras XXIV e XXXIII possui recomendações,
em geral, de que a mulher não deixe à mostra seus ornamentos. Portanto, que deve
cobrir seu corpo, não especificando se deve ser o hijab, o niqab ou mesmo a burca.
O uso em uma ou outra região do planeta que difere de outras está mais
voltado para as questões políticas, culturais e mesmo ideológicas, chegando em
alguns casos, às questões religiosas. Aqui na mesquita do Pari, São Paulo, a mulher
muçulmana revertida tem preferência por alguma peça de vestuário feminino e quais
seriam as suas motivações? A esta pergunta o Sheik respondeu que a brasileira
revertida usa o hijab de preferência e que a motivação desta mulher revertida é o
fator religioso, e segundo ele, somente religioso. Explica que para a revertida
113
brasileira, o hijab é de simbologia religiosa. Em seguida perguntei sobre a mulher
muçulmana de imigração. Qual a motivação ou motivações principais do uso do
hijab? Segundo o Sheik, para a mulher muçulmana de imigração e descendentes, a
motivação é dupla, ou seja, de identificação religiosa e de identificação étnica. Ele
diz ainda que podemos ver mulheres muçulmanas de imigração, sem o hijab nas
ruas de São Paulo, porém, nunca as veremos sem o hijab nos cultos, nas orações e
nas práticas religiosas em geral, inclusive nas orações diárias nos lares, segundo o
Sheik, por uma razão muito forte, o Corão: (ANEXO 7 – Foto 5).
O Sheik R. O. R. ainda explicou nesta conversa que a questão cultural varia
de país para país, por isso, em países mais liberais, a mulher usa o hijab de maneira
mais branda, ou seja, menos cobertura no corpo. Qual, portanto, seria a veste mais
usada pelas mulheres muçulmanas no mundo? Perguntei. Respondeu-me que o
hijab é unanimidade para as mulheres no islamismo mundial. Em São Paulo,
arrematou, não é diferente. Dialogamos mais um tempo sobre as mulheres
brasileiras revertidas. Estas, segundo o Sheik, não utilizam, às vezes, o hijab fora do
ambiente religioso, por questões sociais, ou seja, o despreparo de usá-lo em família,
em grupos de relacionamentos ou mesmo em público. Este é um fator recorrente na
cidade de São Paulo.
Observei que toda sexta-feira, um grande número de mulheres brasileiras
revertidas e engajadas na religiosidade islâmica se encontram nas dependências da
Liga da Juventude Islâmica, na mesquita do Pari, uma das mesquitas pesquisadas
por mim. Na sexta-feira e no sábado, registrei a presença de pelo menos cinquenta
mulheres brasileiras revertidas; todas trajando o hijab e participando de uma
programação pré-estabelecida pela liderança religiosa da mesquita, iniciando pelo
Sheik, que passo a descrever: a) Ouvem um sermão em língua portuguesa. Quando
alguma frase ou expressão é utilizada em árabe, há uma tradução simultânea em
língua portuguesa. O sermão dura aproximadamente vinte a trinta minutos. b) Oram,
em seguida, por aproximadamente cinco a dez minutos. c) Após as orações,
reúnem-se com o Sheik para um diálogo, momento em que as dúvidas são dirimidas
sobre as questões da religiosidade islâmica e outros assuntos que vão da questão
cultural à social. Observei que neste momento as mulheres estão misturadas com os
homens. Somente no momento do culto, mulheres ficam separadas dos homens.
114
Após este momento dialógico com o Sheik, essas mulheres vão, em grupos,
para as ruas da capital, fazer compras, tomar café juntas, ao cinema, teatros. Soube
desses destinos variados, após a saída delas para as ruas, quando perguntei para o
Sheik para onde elas estavam indo. Na minha observação, esta prática caracteriza
uma vida social intensa dessas mulheres além de um dado interessante e digno de
nota: essas mulheres revertidas, através de suas atividades sociais, abrem espaços
para um convívio com outras mulheres não muçulmanas, ou seja, não há, por via de
regra, um exclusivismo entre elas e as mulheres não muçulmanas. Observei também
que esta inclusão do outro se dava mais entre as brasileiras revertidas.
Após mais algum tempo de conversa com o Sheik, ambos, eu e ele,
chegamos a uma conclusão sobre a mulher brasileira revertida, ou seja, a conclusão
de que esta mulher possui uma forte necessidade de estar presente no seu mundo
religioso. Por outro lado, isso não acontece com tanta intensidade com a mulher
muçulmana de imigração. Essa constatação revela a busca da identidade islâmica
por parte das mulheres brasileiras revertidas. O sentimento de pertença ao novo
credo religioso e a todas as nuances deste novo mundo que se descortina após sua
reversão é muito forte na mulher revertida.
Num dado momento, após a saída das mulheres em grupos para as ruas da
capital paulista, perguntei ao Sheik, quais seriam os sinais observados por ele que
definiam a verdadeira reversão ao Islã por essas mulheres brasileiras e se havia
sinais de uma não reversão. Na minha experiência, diz o Sheik, todas passam por
uma fase fantasiosa no princípio. Surgem no imaginário destas mulheres as
idealizações de um casamento baseado nos contos de fadas, novelas tipicamente
islâmicas em seu enredo, filmes baseados em lendas e as famosas histórias árabes
de príncipes e princesas.
Pasmemo-nos, mas a verdade é que essas idealizações fantasiosas acabam
por ser fator de aproximação com o Islã. A maioria dessas mulheres rapidamente
sofre o processo desilusório e atingem a realidade. Deixando as fantasias que, em
princípio, aproximaram-nas do mundo muçulmano. O processo desilusório é dual.
De um lado, a maioria percebe a realidade e, mesmo assim permanecem na fé
islâmica. A minoria não consegue desfazer-se da fantasia inicial, portanto,
abandonam a fé islâmica. Digo, então, que a reversão da mulher brasileira ao Islã
115
passa pelas trocas simbólicas, passa por fases que se complementam e vão dando
sustentação para a vivência religiosa no novo credo. Essas fases oferecem uma
relativa segurança de verdadeira reversão. Digo, portanto, que uma reversão
verdadeira passa pela regularidade nos cultos; por um interesse em observar as
regras voltadas para o gênero feminino. As questões do lícito e do ilícito, do que eu
posso e do que eu não posso fazer para ser considerada uma verdadeira
muçulmana. Essa questão do interesse pelas regras que regulamentam a conduta
feminina no Islã é, talvez, a primeira fase e o primeiro sinal seguro de uma reversão
autêntica. Observa o Sheik.
Outra fase, sequencialmente, é aquela do desejo de pertencer ao novo grupo.
Essa mulher vai, necessariamente, percorrer uma vereda cultural e social, até
culminar com o fator que irá sedimentar e caracterizar de vez, que essa ou aquela
revertida é uma muçulmana de fato, ou seja, o fator religioso. Quando essa fase é
completada, uma assimilação do ethos da comunidade muçulmana receptora está
em fase de conclusão, levando em seguida à identificação, ou seja, uma identidade
está em fase de acabamento.
Segundo o Sheik, após perguntá-lo se para essa identidade o vestuário seria
fundamental, ele respondeu afirmativamente. Disse ele que na mesquita do Pari,
essa constatação tem sido por muitas vezes experimentada por ele. O desejo da
mulher revertida em usar o hijab vai conferir a esta, o sentimento de pertença e
imprimir-lhe a identidade de mulher muçulmana identificando-a como tal. Ela se
sente incluída em definitivo e sua performance religiosa coroa sua condição de
mulher muçulmana. Observei que esta realidade dos sinais que identificam ou
mesmo apontam para uma reversão autêntica é típico das mulheres e mais intenso
nelas, do que nos homens revertidos. Essa mulher faz questão de revelar-se como
tal, deixa-se mostrar.
116
4.1.2 Contatando a Mulher Muçulmana de Imigração em São Paulo.
Fui recebido por uma mulher muçulmana filha de imigrantes, em seu local de
trabalho. Nessa ocasião, tivemos uma conversa muito enriquecedora a respeito de
todas as questões acima listadas. Passarei a descrever esta experiência que se
revestiu de um pouco mais do que uma entrevista, mas de um diálogo franco sobre
sua performance de mulher muçulmana.
No dia nove de setembro de 2013, precisamente às dez horas (10H00), fui
recebido pela professora muçulmana de imigração, filha de Libaneses, A. M., em
seu local de trabalho. Fui muito bem recebido por ela. Convidou-me para adentrar a
sala de aula e enquanto suas alunas envolviam-se com um trabalho acadêmico, sua
atenção voltava-se para minhas indagações.
Perguntei para A. M. com ela se via e como ela imaginava diante dos olhares
dos outros sobre ela e como ela se identificava como mulher que professa a fé
islâmica em um país ocidental como é o caso do Brasil?
De pronto ela respondeu, dizendo: “Olha para mim. Como você pode ver,
estou usando um hijab. Por si só, esta vestimenta feminina, que envolve o corpo
todo, uma vez que o hijab não é somente o lenço que envolve o rosto da mulher, é,
sem dúvida nenhuma, o primeiro fator que identifica uma mulher muçulmana onde
quer que esta esteja. Eu me vejo como uma mulher emancipada. Ser muçulmana
para mim não significa ser cerceada ou mesmo alijada da vida em sociedade de
modo geral. Tenho uma conduta de vida e de crença como qualquer outra mulher,
contudo, os outros podem olhar de maneira diferente. Esse olhar, dos outros,
depende do ponto de vista deles mesmos, ponto de vista que pode ou não
determinar o que é falso e o que é verdadeiro sobre quem sou eu”.
A. M. continuou explicando como o hijab deveria ser usado e afirmou que o
mesmo poderia ser usado com outras peças de roupas que não façam,
necessariamente, parte do Hijab, ou seja, podem ser combinadas com o hijab.
Segundo A. M., o cuidado em combinar o hijab com outras peças de roupas tais
como uma saia, uma calça jeans etc., está na observação de que estas peças sejam
largas o suficiente para não marcarem o corpo da mulher e principalmente não
117
mostrar suas formas femininas. As peças curtas e/ou apertadas não deverão, em
hipótese alguma, ser utilizadas. Segundo A. M., peças curtas e apertadas atentam
contra o pudor, a moral e, sobretudo é um ato que descaracteriza a mulher
muçulmana em sua fé e em sua conduta.
Perguntei sobre as implicações e/ou significados do hijab para as questões
religiosas que envolvem a mulher muçulmana. A. M. afirmou, categoricamente , que
o Hijab é sinônimo de proteção, identificação religiosa, moral e espiritual da mulher
muçulmana, além de resguardar o corpo da mulher, haja vista que este é “sagrado”
na perspectiva dos ensinamentos do Corão e da fé islâmica. Em seguida indaguei
de A. M., qual a principal vestimenta da mulher muçulmana, em qualquer parte do
planeta. A. M. respondeu dizendo que “o hijab, por via de regra, é a principal
vestimenta da mulher muçulmana em qualquer lugar do mundo. Exceção feita a
alguns países onde, por questões culturais, políticas e ideológicas, mais do que por
questões religiosas, as mulheres usam outras vestimentas”. Segundo A. M. em
países islâmicos com regimes políticos radicais, outras vestimentas femininas tais
como a burca, niqab e outros, são obrigatórios. Ainda sobre o hijab, perguntei sobre
as cores, se havia algum significado especial na cor ou mesmo uma mensagem
visual sendo transmitida. A. M. afirmou que não. Segundo ela, as cores variam pelas
preferências pessoais das mulheres muçulmanas.
Neste momento, há uma interrupção de nossa conversa, quando adentra a
sala de aula, uma brasileira revertida ao Islã, funcionária da instituição e, pelo que
pude observar, ela é uma discípula de A. M., seu nome é B. K. Foi apresentada a
mim e informada do propósito da minha presença naquele ambiente, ou seja, de
minha pesquisa, cujo objeto principal é a mulher muçulmana na cidade de São
Paulo. Percebi que B. K. não usava o hijab. Mais tarde, após sua saída da sala de
aula, A. M. confirmou minhas suspeitas: B. K. era mesmo recém revertida ao Islã e
estava sendo doutrinada por ela. Este fato explicou o não uso do hijab por B. K.
Voltamos ao nosso diálogo. Indaguei sobre a adequação cultural e social de
A. M., em uma cidade tal qual São Paulo, a maior cidade do Brasil, de culturas
multifacetadas e fortemente identificada com a cultura ocidental. A resposta de A. M.
revelou-se de certa forma surpreendente: “Minha adequação é mais cultural e social
do que religiosa. Não há como não se adequar, em parte, ao mundo ocidental. Basta
118
ver que estou falando com um homem (algo muito restrito no mundo feminino
islâmico, sobretudo quando se trata de uma mulher muçulmana de imigração), de
outra orientação religiosa; estou trabalhando em uma instituição de ensino,
historicamente fincada nas ideologias ocidentais, contudo, estou aqui de hijab, com
identidade muçulmana explicitamente declarada e educando ocidentais”. Em que
momento
você
percebe-se
influenciada
pela
cultura
ocidental?
Perguntei.
Respondeu A. M.: “não há como ficar totalmente isenta da influência cultural e social
que nos rodeia. O que eu quero dizer é que a influência cultural e social é
minimizada pelo viés religioso, ou seja, minha religião é base para minha conduta
e/ou minha performance que transita entre as categorias culturais e sociais. Sou
uma mulher que fala o árabe e o português em um país ocidental, contudo,
mantenho minha religiosidade dentro daquilo que se espera de uma mulher
muçulmana”.
Após a resposta supra citada de A. M. , perguntei se diante de sua afirmação
eu poderia concluir que sua formação religiosa se equipara a qualquer mulher
muçulmana independentemente de estar aqui em São Paulo ou no Líbano. Sim.
Respondeu A. M., “Como mulher muçulmana de imigração tenho meu capital
cultural, social e religioso. Destes, o capital religioso é semelhante ao de qualquer
mulher libanesa que professa a fé muçulmana”. Qual sua orientação religiosa dentro
do Islã e quais as observações estritamente religiosas são esperadas de uma
mulher muçulmana? Emendei. “Sou de orientação sunita. Pratico o que é esperado
de uma mulher muçulmana fiel na medida do possível. Realizo as cinco orações
diárias. Para a prática dessas orações, acabo por fazer uma adequação cultural e
social, ou seja, uma vez que os compromissos de trabalho não permitem observar
os horários “oficiais” busco a alternativa de outros horários, sem, contudo, deixar de
cumprir as exigências de minha religião”.
Antes que eu perguntasse, A. M. listou as cinco orações diárias e os horários
destas. Ela descreveu-os na seguinte ordem: “São cinco orações: a) o Fajr que deve
ser a oração das 04H54 (inicio da aurora até nascer do sol); b) o Zuhr 12H04 (logo
após o meio dia); c) o Asr 15H27(oração entre o meio dia e o por do sol); o Maghrb
17H59 (oração do por do sol, sem que o sol se ponha); e, por fim, o Ishá que deve
ser a oração das 19H09 (oração da noite). Ressaltando que esses horários não são
119
fixos, dependem dos horários do nascer e do pôr do sol”. Você tem que freqüentar
alguma mesquita e cumprir horários de orações nas mesmas? Perguntei. A. M.:
“Não. A mulher muçulmana não tem a obrigatoriedade de freqüentar as mesquitas. É
facultativo. Por outro lado os homens são obrigados, no cumprimento de sua
religiosidade, a freqüentar uma mesquita toda sexta feira no horário do Zuhur. As
mulheres, contudo, não podem prescindir das cinco orações diárias e das
observações que estas exigem”. Perguntei a A. M. quais seriam estas observações
que antecedem os momentos das orações diárias. Ela disse que “basicamente se
restringe à higienização de partes do corpo. A realização das cinco orações diárias,
nos horários definidos, é um dever de todo muçulmano saudável, uma vez entrado
na adolescência, e, no caso das mulheres, quando livres do fluxo menstrual e do
sangramento pós-parto”.
Quanto à relação de A. M. com o Corão, perguntei em que intensidade ela
medita e como ela interpreta as questões da dominação masculina, ainda presentes,
em alguns versos corânicos em relação à mulher. A. M., por alguns instantes
silenciou. Em seguida respondeu que sempre medita em algumas suratas, não em
todas: “procuro ter maior assiduidade na leitura de algumas. O Corão em geral deve
ser lido por todos os muçulmanos. Quanto à dominação masculina, supostamente
endossada por versos corânicos que submetem a mulher; penso que é mais uma
questão de óticas culturais com focos distintos. Alguns fatos isolados envolvendo,
talvez, mulheres muçulmanas em países com regimes políticos radicais, são
tomados e generalizados como se fossem normais em todo o mundo muçulmano.
Esta não é a verdade. Em minha opinião, até acredito que haja excessos e
sobreposição do gênero masculino sobre o feminino, porém, o Corão não fomenta
uma relação desigual entre homens e mulheres, pelo contrário, o Corão fomenta a
igualdade entre os gêneros. O que acontece ou pode acontecer, são interpretações
radicais de alguns versos corânicos, tendenciosos e não coerentes com a verdade, o
que favorece uma visão distorcida para a cultura ocidental”.
Percebendo um leve desconforto por parte de A. M. após a conversa acima
citada procurei dar uma nova direção, ainda que por um breve tempo, ao assunto.
Nesta altura perguntei sobre sua fé islâmica e se a sua família foi a base de sua
formação religiosa. Ela respondeu afirmativamente. E acrescentou: “meus pais M. S.
120
M. e K. G. M. foram os transmissores da fé em Allah para mim. Minha fé, portanto,
foi estruturada em uma base familiar islâmica sólida. Minha família de origem e
minha família constituída são fundamentais para minha fé. Sou casada com M. Y. M.
e temos um filho de nome Y. M., que também é um fiel muçulmano”. Perguntei sobre
as relações e convivência com o seu esposo M. Y. M. Nesta altura ela perguntou:
“você quer saber se nossa relação é de igualdade e em que termos ela acontece?”
Sim! Respondi meio surpreso. A. M. continuou: “não tenho nenhum problema nesta
área. Minha relação com meu marido é satisfatória. Não tenho nenhuma dificuldade
quanto às questões relativas à dominação masculina no Islã. Não sou cerceada em
minha liberdade. Não sou forçada a nada. Meu marido não exige nada que não seja
dele por direito nas relações de um casal temente a Allah e fiéis aos ensinos do
Corão”.
Houve uma pequena pausa. Em seguida perguntei se fosse o caso, se ela
casaria com um brasileiro muçulmano. A resposta de A. M. foi a seguinte: “não sei.
Iria depender muito de alguns fatores tais como o cultural, familiar e social.
Sinceramente acho difícil que acontecesse. Muitas peças deste xadrez teriam que
ser mexidas. O Jogo seria muito intricado. Apesar de considerar algo não
impossível, eu diria que a dificuldade para adequar todo o necessário para este fim
seria uma tarefa muito pesada”.
Nesta fase da conversa, A. M. pediu licença para orientar algumas alunas
sobre uma pesquisa. Aproveitei para reelaborar uma questão importante sobre
gênero e voltar para o assunto, talvez, mais delicado de se conversar com uma
mulher muçulmana: a assimetria ou simetria nas relações de gênero. A. M. retornou.
Pedi para ela falar um pouco sobre como a mulher muçulmana vê as relações de
gênero. Esta foi a sua resposta: “Eu vejo uma relação entre homens e mulheres
muçulmanos balizada pelos fatores religioso, cultural e social. Para mim estes são
os principais fatores que norteiam e regulamentam as relações de gênero. Se a sua
pergunta pretende chegar às questões de submissão da mulher, sua vida desigual
pelo olhar dos outros e mesmo se sou cerceada em minha vida social, a resposta
continua sendo aquela em que minha religião e minha cultura ditam, em muitos
setores e momentos da minha vida: como devo ser e como devo agir. Isso, aos
olhos dos outros pode ser uma relação de desigualdade. Para mim, uma relação
121
normal dentro dos meus parâmetros culturais e religiosos. A dominação masculina
vista pelo olhar do outro em relação a sexo feminino no islã é, talvez, o resultado da
estigmatização como produto imediato do olhar alheio”.
Percebendo que a conversa agora fluía para os temas mais polêmicos,
aproveitei para inquirir como ela explicaria a visão midiática ocidental, principalmente
em relação à mulher muçulmana em geral, ou seja, uma visão de que a mulher
muçulmana é subjugada e cerceada em sua liberdade de modo geral. A. M. disse
que “a mídia veicula o que quer e como quer. Estes estereótipos da mulher
muçulmana e do mundo muçulmano em geral, veiculados pela mídia ocidental, não
refletem e não condizem com a verdade dos fatos. Contudo, volto a repetir: fatos
pontuais e isolados ou mesmo estados políticos de exceção em que mulheres são
subjugadas, oprimidas e cerceadas em seus direitos os mais legítimos, não podem e
não devem ser tomados como representativos do todo”. Respondeu ela. Em seguida
perguntei se A. M. então concordava que existem relações desiguais e subjugação
do sexo feminino dentro do Islã. Ela disse que “sim, porém, não de forma
generalizada como propaga a mídia ocidental, principalmente”.
Dando sequencia a nossa conversa, falei de que tinha conhecimento de
alguns depoimentos e mesmo de pesquisas sobre relações desiguais entre os
gêneros masculino e feminino, mesmo em países muçulmanos onde os regimes
políticos não são radicais. Perguntei se alguns homens muçulmanos são
tendenciosos e manipuladores do texto corânico para se beneficiarem no
relacionamento com as mulheres muçulmanas e mantendo-as em subserviência e
sob domínio masculino. A. M. disse que “sim. Existem exageros por parte de alguns
homens muçulmanos ao relacionarem-se com suas mulheres. E concluiu: esta
maldade não é privilégio só do Islã. Homens de outros sistemas religiosos fazem o
mesmo com suas mulheres e isto no mundo ocidental. Estes conflitos existem em
todas as sociedades do mundo. Continuou ela: em todas as relações de gênero
existem conflitos. Contudo, estes conflitos devem ficar em níveis perfeitamente
suportáveis. Quando ultrapassam o nível do suportável já não são mais meros
conflitos, mas uma relação que já está deteriorando e se tornando perigosa,
principalmente para a mulher”.
122
Ainda sobre as questões midiáticas ocidentais, principalmente, perguntei se
em sua opinião a mídia ocidental é míope ou carece de conhecimentos reais e
consequentemente de fundamentação sobre a complexidade do mundo islâmico e,
principalmente no que tange a mulher muçulmana? A. M. respondeu: “Sim. Como já
mencionei anteriormente a mídia, de modo geral, baseia suas informações em casos
isolados e polarizados do mundo islâmico. Por exemplo: as mulheres muçulmanas
no Afeganistão estão sob um regime radical, portanto, sujeitas a determinadas
situações que, na visão equivocada da mídia ocidental, todas as muçulmanas,
indistintamente, estão submetidas. Isto não é verdade. Enquanto as mulheres
afegãs usam a burca, eu estou aqui, usando a hijab e trabalhando e conversando
com um homem quase sem nenhuma formalidade. Em outros países o que está
acontecendo aqui seria expressamente proibido, enquanto em outros é possível”.
Satisfeito com a resposta acima citada, quis saber a opinião de A. M. sobre a
recorrência dos erros da mídia em geral. Por que esta continua errando em veicular
uma imagem da mulher muçulmana submissa, infeliz, subjugada, cerceada em sua
liberdade, sujeita a uma relação de gêneros assimétrica. A resposta foi curta e
direta: “a mídia em geral erra e muito, quando não busca fundamentar suas
informações pelo viés religioso, cultural, social e em certa medida o político. Não
conhecendo estes fatores, não conhecerá o modus vivendis da mulher muçulmana
em sua realidade”.
Nesta altura de nossa conversa, passei para outra temática que vai ganhando
corpo e que se reveste de certa polêmica, ou seja, a questão de um Islã arabizado.
Fala-se muito e pesquisa-se muito sobre essa questão de desarabizar o islamismo
no Brasil. Em sua opinião para ser muçulmano é necessário ser árabe? “Não.
Respondeu A. M. Ser muçulmano não significa necessariamente ser árabe ou falar
árabe. A religião pode ser vivida, praticada, sem que o fator linguístico seja
obstáculo, porém, a língua árabe irá facilitar muito a assimilação e a aculturação de
um revertido ao Islã. E, ainda há o fator cultural do Islã. O Islã está fundado sobre a
cultura árabe em geral. Tirar isso poderia ser traumático. Talvez, sejam necessários
mais experimentos ou mesmo mais tempo”. Esse é um dos motivos pelos quais se
oferecem aulas de árabe gratuitamente em algumas das mesquitas em São Paulo?
Perguntei. “Sim. Respondeu A. M. Uma vez que o revertido tem contato com a
língua árabe e passa a entendê-la, o fator cultural realça e descortina uma gama de
123
outros conhecimentos do mundo islâmico, uma vez que o islamismo está alicerçado,
culturalmente falando, no mundo árabe. Porém, o fato de não falar o árabe não
prejudica em nada o conhecimento do islã, tem muitos países muçulmanos que não
falam o árabe, como é o caso da Indonésia e do Irã”.
Antes de adentrar outro assunto importante, ou seja, o islamismo de
imigração, perguntei a opinião de A. M. sobre um possível islã mais brasileiro, mais
nacionalizado. Já que o número de revertidos brasileiros e crescente, sobretudo de
mulheres. “Eu vejo um crescimento do Islã no Brasil sim. Quanto a um Islamismo
mais brasileiro é uma possibilidade que parece estar apontando no horizonte”.
Respondeu A. M.
Em seguida procurei inquirir de A. M. sobre as questões puramente culturais
e, talvez étnicas, uma vez que ela, apesar de ter nascido no Brasil, é filha de
imigrantes libaneses. Perguntei se ela como mulher muçulmana de imigração já
vivenciou algum tipo de constrangimento ou discriminação, ainda que mínimo, por
parte de brasileiros nativos não muçulmanos. A. M. respondeu que “graças a Deus
não. Já fui alvo de curiosidades, mas não de constrangimentos. O Brasil é um país
maravilhoso no que tange a liberdade de religião. As pessoas até podem estranhar,
porém, não interferem na sua doutrina religiosa e nem em sua maneira de se vestir e
se conduzir”.
Como é sua relação no ambiente da mesquita. Sua conduta no ambiente de
culto e mesmo na relação com as outras fiéis muçulmanas. Perguntei. A. M.
respondeu: “eu, como qualquer mulher muçulmana não sou obrigada a freqüentar a
mesquita. Como disse em outra ocasião, eu mesmo não frequento nenhuma
mesquita”. Insisti neste tema e perguntei se o fato da mulher muçulmana não ser
obrigada a frequentar uma mesquita não agasalhava certa discriminação em relação
à obrigatoriedade do homem muçulmano de frequentá-la. A. M. respondeu: “Eu
nunca parei para pensar desta maneira. Sei que uma das razões da não
obrigatoriedade das mulheres em frequentar as mesquitas está relacionada às
questões de nossa própria religiosidade, ou seja, a disposição de homens e
mulheres no mesmo espaço, dependendo da ocasião pode ser constrangedor e até
mesmo atentar contra a adoração pessoal de alguém. As mesquitas possuem
124
espaços destinados às mulheres. É um espaço menor, o que faz sentido com a não
obrigatoriedade das mulheres em frequentar as mesquitas”.
Voltei, agora, nossa conversa para a questão das outras vestimentas da
mulher muçulmana. Perguntei o que A. M. teria a dizer sobre as mulheres afegãs,
entre outras, do fato de usarem, obrigatoriamente a burca. E se ela concorda com o
radicalismo exercido sobre as mulheres daquele país. Mulheres que se encontram
debaixo de uma severa condição de dominação masculina. Dominação esta,
mascarada por uma suposta religiosidade, que na verdade é um estado político
radical. Respondeu A. M.: “Eu digo que é uma questão cultural, mais que religiosa,
ainda que o fator religioso esteja também presente. Quanto a obrigatoriedade do uso
da burca, o cerceamento dos direitos das mulheres e a excessiva dominação
masculina, sou totalmente contra. Quanto à burca, eu não usaria”. (ANEXO 8 – Foto
6).
Ao fim de nossa conversa, percebi através da observação da fala de A. M.,
que mais uma vez está claro que o Islã tem muitas coisas em comum, como por
exemplo, o Corão, Meca, e Muhammad, porém, as questões culturais, ideológicas,
políticas e religiosas fazem deste sistema religioso mundial um sistema plural e
complexo ao redor do mundo. Não há um só Islã, mas muitos islãs.
125
4.1.3 Contatando a Mulher Muçulmana de Reversão em São Paulo.
O contato que fiz em seguida foi com uma jovem de 22 anos, técnica em
laboratório e estudante da última etapa do curso de farmácia. B. K. , brasileira,
revertida há aproximadamente oito meses. Disse que desde criança sempre foi
fascinada pela cultura do Oriente Médio. Dizia ela: “eu nunca entendi ao certo, o
porquê do meu interesse, uma vez que não tenho nenhuma ascendência, seja
libanesa, síria ou árabe em minha família. Minha mãe se converteu à igreja
protestante evangélica quando eu ainda era criança, portanto, cresci praticamente
dentro da denominação Congregação Cristã no Brasil. Eu frequentava a igreja ao
menos uma vez por semana e tinha envolvimento e responsabilidades lá.
Perguntei se houve algum motivo que tenha feito com que deixasse a sua
primeira denominação religiosa. Ela disse o seguinte: “Entrei numa fase muito difícil
da minha vida. Minha mãe ficou doente e eu não recebi nenhum apoio daqueles que
falavam tanto do amor entre seus próprios irmãos. Após essa fase de doenças da
minha mãe, chegou minha vez de ficar doente também. Mais uma vez eu percebi a
grande hipocrisia destas pessoas que me rodeavam. Juntei estes acontecimentos ao
fato de eu estar agora crescida e com mais maturidade, foi então que muitas
questões começaram a fervilhar em minha mente. “Ali, naquela igreja, não estavam
as respostas de que eu precisava”.
Perguntei quais eram estas questões que tanto mexiam com sua cabeça?
“São muitas”, disse ela. E começou a enumerá-las. Eu tinha muitas dúvidas
relacionadas à criação, ao papel da mulher, à importância da família, etc., mas,
acima de tudo, eu não me sentia mais um membro daquela igreja, embora eu me
vestisse como todos eles e estivesse no meio deles, eu me sentia diferente, sentia
que minha crença não me levava a adorar a Deus como deveria num lugar como
aquele. “Esta era uma questão que me preocupava muito”.
Você deixou de frequentar a igreja? Perguntei. “Sim. Foi quando comecei a
estudar sobre o Islã. Na faculdade, tive uma professora muçulmana. Sua conduta,
seus exemplos e a bondade do seu coração desencadearam em mim, a vontade de
conhecer mais sobre o islamismo, entender os motivos, aqueles, em que a mídia
dizia coisas tão ruins a respeito do povo muçulmano. Eu percebia que nada daquilo
que a mídia dizia se encaixava com o que realmente eu estava vendo”. Perguntei se
126
ela sabia se sua professora era uma muçulmana de imigração ou se era uma
revertida? B. K. respondeu: “que era uma descendente de libaneses, nascida no
Brasil e que dominava o idioma árabe e o Português”.
Como você chegou à convicção de que no islamismo você encontraria seu
equilíbrio religioso? Perguntei. B.K: “Estudei durante seis meses, aproximadamente.
Pesquisei e li muito sobre o Islã na internet. Muitas dúvidas que eu tinha foram
sanadas através de ótimos sites que divulgam o Islamismo com muita seriedade e
clareza. Por outro lado, eu tirava minhas dúvidas mais íntimas com minha
professora, que agora é minha amiga”.
Perguntei se ela estava ciente das opiniões veiculadas e tidas como certas de
que as mulheres muçulmanas são submetidas e dominadas pelos homens, numa
relação de gêneros totalmente assimétrica. B.K: “Nesse meu período de buscas e
conhecimento do Islã, percebi que muitas opiniões e atitudes radicais e extremistas
não eram fundamentadas na religião, mas sim na cultura dos países orientais.
Percebi ainda que outros países também podem ter uma visão estereotipada de
nossa realidade brasileira. Somos conhecidos lá fora pelo carnaval, pelo samba e
por mulheres seminuas, mas isso não quer dizer que todos os brasileiros andem
seminus, participam de carnaval e gostam de samba etc”.
Perguntei se B. K. já estava praticando os rituais religiosos do Islã e se ela
estava feliz com sua nova religião muçulmana. B.K: “A cada dia mais eu percebo
que tudo o que estava estudando, de alguma forma, respondia às minhas mais
íntimas questões e me trazia uma sensação de paz interior que eu não encontrava
antes. Foi quando tomei a decisão de iniciar minha vida religiosa muçulmana,
propriamente dita. Iniciei com o jejum do mês do Ramadã, quando minha reversão,
pelo menos para mim, ainda não era total”.
Por que alguém não revertido ainda, ou pelo menos não, totalmente, faria o
jejum do Ramadã? Perguntei para B. K. Ela olhou para mim meio desconcertada,
mas respondeu com firmeza: “foi a maneira de tentar me aproximar de Deus, uma
experiência incrível! Comecei a frequentar a Mesquita sunita do Pari. Era a mais
acessível para mim, e lá encontrei um ambiente acolhedor, tanto por parte das
revertidas quanto por parte de algumas descendentes de imigrantes muçulmanos.
Foi fácil encontrar o endereço e o telefone da mesquita.
127
Como foi sua experiência? Chegar sozinha em uma mesquita pela primeira
vez, sem nenhuma orientação prévia, ainda mais para uma brasileira revertida e
mulher? B. K: “na minha primeira visita fui com a cara e a coragem, literalmente
sozinha, mas recebi muita atenção e orientações da minha amiga, principalmente de
como me vestir. Minha recepção foi muito boa como já disse. Depois dessa visita,
comecei a frequentar as aulas de religião todos os sábados. Trinta dias depois,
decidi realizar minha Shahada (reversão na qual se declara que há um único Deus
digno de louvor e que Muhammad é seu profeta e mensageiro)”.
Perguntei se as relações com sua família estavam boas. Como eles aceitaram
esta reversão ao Islã? B. K: “Minha Família aceitou muito bem minha decisão,
exceto minha mãe. Estava difícil para minha mãe entender os meus motivos, no
entanto, minha essência não mudou, mas sim minha maneira de adorar a Deus.
Perguntei para B. K. sobre a questão das Indumentárias femininas no Islã e
se ela já estava usando o hijab? B. K: “Ainda não uso o hijab, por enquanto. Após a
minha reversão, ainda há muitas mudanças que vão ocorrer, as vestimentas que
caracterizam uma muçulmana é uma delas. Tento, ao máximo, adequar minhas
roupas à minha nova religião, pois tenho convicção de que a mulher deve se
preservar como forma de valorizar e guardar sua beleza para aqueles que ela ama.
Quanto ao uso do hijab, sei que vai chamar muito a atenção, mas para mim será
mais um passo, algo muito importante, pois faz parte da minha religião e de minha
nova vida e estarei seguindo aquilo que foi preconizado por Deus”.
E quanto às orações diárias? Você já está praticando e realizando as
abluções? B. K: “Não. As orações diárias ainda não estou fazendo. Minha reversão
foi uma decisão muito importante e sei que ainda tenho muito o que aprender. Por
isso mesmo, continuo frequentando as aulas na mesquita, adequando minhas
roupas e também a minha rotina para iniciar as cinco orações diárias. Minha rotina
de trabalho e estudos ainda não foi organizada e muitas vezes eu não tenho um
lugar adequado e disponível para realizar as orações diárias como determina o Islã.
Você espera iniciar um namoro ou mesmo um casamento com um
muçulmano ou ainda não pensou sobre isso? B. K. “Ainda não parei para pensar
neste assunto. Mas penso que o melhor seria mesmo casar com alguém do mesmo
credo religioso”.
128
Você imagina um marido que seja atencioso, amável e que lhe trate com
igualdade? B. K. “É o que eu espero e creio que terei. Pois confio que Deus honrará
minha fé”.
Você tem consciência de que o Corão preconiza, por via de regra, uma
relação de submissão da mulher ao homem e que por esta razão, há uma polêmica
muito grande envolvendo as relações de gênero no meio do islamismo? B. K. Já
ouvi falar e já li bastante sobre esta questão. Há muito exagero por parte dos que
estão de fora. Por outro lado, há uma tendência de minimizar por parte dos que
estão do lado de dentro do Islã. Preciso, quando chegar a hora, adequar esta
questão à minha realidade de mulher muçulmana brasileira revertida.
129
4.1.4 A Mulher Muçulmana e a Dominação Masculina.
A partir de uma análise comparativa, dos pontos de vista e argumentações,
de vários trabalhos e pesquisas dos últimos dez anos pelo menos, podemos, com
certa segurança, afirmar que a relação entre gêneros são pontuadas pela assimetria.
Contudo, a recorrência destas assimetrias transita em caminhos, que na visão dos
outros (ocidentais), possuem diferentes ângulos de visão, porém, não são só os
olhares dos outros que apontam estranhamentos, mas, também, os olhares dos
próprios e das próprias muçulmanas. A relação entre gêneros é, historicamente,
assunto recorrente em grande maioria das investigações nacionais e estrangeiras,
quando se trata da performance da mulher muçulmana em, praticamente, todas as
regiões do planeta onde se faz presente o islamismo. Segundo Espínola, devemos
refletir sobre olhares e discursos que tendem a desqualificar, pela estigmatização, o
outro:
[...] o quanto somos levados a pensar sobre o Outro de uma forma que o desqualifica
e usamos os princípios dos direitos humanos para legitimar verdades incontestáveis
de forma a impedir o olhar até para Nós mesmos. [...] Falar sobre o islamismo,
mulheres muçulmanas, países muçulmanos, cultura árabe gera vários estereótipos:
desde tendas do deserto, dança do ventre, “feiticeiras”, uso do véu, até extremismos
e atentados, mas percebo que principalmente vem à tona a situação das
mulheres considerada de extrema submissão, vítimas de “violências bárbaras”.
(ESPÍNOLA, 2000, p. 1). Minha ênfase – Grifos meus.
Esta
questão
de
gêneros
encontra-se
no
meio
de
uma
disputa
denotativamente ideológica e política, intensificada e fortemente polarizada por parte
da visão ocidentalizada e, por outro lado, por parte daqueles que enxergam pelo viés
cultural o modus vivendis das mulheres muçulmanas. De qualquer modo, os
primeiros, supostamente, consideram a mulher muçulmana engessada no tempo,
presa a um modo de vida ultrapassado, arcaico e destituído de igualdade quando
pensado na relação com o gênero masculino. Os segundos, saindo em defesa da
mulher muçulmana, defendem-na a partir do seu contexto cultural, oposto ao
contexto do mundo ocidental. No olho do furacão desta questão encontra-se o
vestuário feminino muçulmano, suas polêmicas de uso, com ênfase para o hijab, que
parece encontrar maior aceitação entre as mulheres islâmicas, sobretudo em países
como o Brasil.
Mesmo o hijab, do vestuário feminino, talvez, o mais adequado do ponto de
vista estético, é visto pela ótica ocidentalizada como símbolo de opressão e relação
130
desigual da mulher com o sexo masculino islâmico. Porém, do ponto de vista da
cultura e religiosidade da mulher que o usa, é símbolo de dignidade moral,
identidade religiosa, pureza e identidade étnica.
Para Castro, este tema que envolve as relações de gênero e sua
complexidade nas sociedades e comunidades islâmicas é, portanto, profundamente
marcado por batalhas ideológicas e políticas que envolvem dois ângulos principais
de visão. (CASTRO, 2007, p. 153). Além do fato de que, no meio destas duas
correntes de opiniões antagônicas, é possível observar, por outros ângulos de
investigação do tema, um considerável número de argumentos e opiniões que
divergem influenciados por uma visão orientalista e etnocêntrica por um lado. Por
outro lado, interpretações corânicas específicas deste tema da relação de gêneros e
os respectivos direitos e deveres de homens e mulheres, convergem para uma
relação notadamente assimétrica quando comparamos os direitos de um em relação
ao outro. Neste caso, as mulheres, de modo geral, são vítimas da desigualdade.
Percebemos que a dominação masculina é o resultado de uma violência
simbólica, sutil, invisível às próprias vítimas (mulheres muçulmanas), exercida
principalmente pelas vias simbólicas. A força da ordem masculina se evidencia no
fato de que ela dispensa justificação, ou seja, a visão androcêntrica de mundo se
impõe como neutra sem a necessidade de enunciados e/ou discursos prévios que
tencionam legitimá-la. Segundo Bourdieu, os atores sociais interagem por meio de
estratégias,
sem
normas
explícitas.
Estas
estratégias,
supostamente
são
empregadas a partir de escolhas e a partir do seu habitus, ou seja, o caminho
percorrido para alcançar seus objetivos.
Porém, neste caminho, no nosso caso, da igualdade de gêneros, com foco na
mulher islâmica, os fatores econômicos, políticos, culturais e sociais conspiram
contra ela. São vistos como pilares de sustentação e legitimação de sua condição
desigual face ao sexo masculino no Islã. Possivelmente, o que vemos, observamos,
participamos e apreendemos dessa relação de gêneros, é uma adequação
“conveniente” do sexo feminino mediante suas “escolhas livres” daquilo que, na
minha observação empírica, é o menos traumático para a existência desta mulher
131
muçulmana em seu sitz im leben81, ou seja, em seu contexto vivencial, sobretudo o
religioso, dominado pelo sexo masculino. (BOURDIEU, 1999, p. 18).
Segundo Castro, no caso das mulheres brasileiras muçulmanas, com base
experimental, principalmente nas relações das mulheres muçulmanas da cidade de
São Paulo, estas mulheres vêem a definição de sua identidade pelo olhar dos
outros. O olhar estgmatizante do outro, ou seja, neste caso, o olhar da mídia
brasileira que, nesta questão midiática pode ser considerada um subproduto da
mídia norte-americana e européia.
A realidade das mulheres muçulmanas brasileiras sofre alterações em dose
dupla, pelo olhar, supostamente míope das mídias em geral. No caso das relações
de gênero, o efeito midiático tem sido devastador e recorrente na questão da
dominação feminina muçulmana pelo masculino muçulmano. Para a mulher
muçulmana brasileira, em especial, na cidade de São Paulo, locus de nossa
investigação, parece-me que a luta inglória contra os estereótipos dessa mulher, na
maioria das vezes fabricado pelo olhar estgmatizante da própria mídia, é pura perda
de tempo e de energia. Diante dessa realidade, a mulher muçulmana em São Paulo,
busca canalizar esta energia “preciosa” em negociações e conquistas de espaços
junto ao grupo masculino de seu próprio ambiente social, político, ideológico e
religioso.
Neste caso, o fator religião é aquele que descortina ante os olhos desta
mulher muçulmana em São Paulo (minha observação em pelo menos duas
mesquitas paulistas), as maiores e mais concretas oportunidades para a busca
deste espaço e trânsito que, como consequência pode lhe garantir uma relação mais
igual perante o sexo masculino. Outros fatores que são elencados por Castro, tais
quais, flexibilização da tradição muçulmana e suas leis; o grau de instrução destas
mulheres; o grupo étnico ao qual pertence, a faixa etária em que se situam e a
classe social; devem ser levados em consideração na busca deste espaço maior de
igualdade. O fator religioso está na baila desta questão, uma vez que as
investigações
efetuadas,
focando
especificamente
esta
questão,
apuraram
81
Sitz im leben – Expressão alemã utilizada a princípio para evidenciar criticamente um determinado
contexto de uma passagem da Bíblia. Contudo, seu uso mais geral trata do contexto vivencial de uma
pessoa, grupo etc. Nota do autor.
132
parcialmente, que a dependência feminina ao domínio masculino, tem sido, em boa
parte das vezes, na visão das mulheres brasileiras revertidas em São Paulo,
atribuídas a uma exigência cultural árabe e não de uma exigência do próprio sistema
religioso Islâmico. Portanto, emerge, outra vez a questão étnica e o arabismo voltam
à cena. Contudo, o problema não para por aí, temos as reclamações de abusos
masculinos de autoridade sobre as mulheres apresentados por imigrantes de outras
etnias, tais quais indianas, egípcias e africanas, como conseqüência direta da
exacerbação da cultura árabe em detrimento do Islã. (CASTRO, 2007, p. 89).
Por fim, outro fator desta desigualdade de gêneros foi identificado pelo
cumprimento parcial e não integral do Corão, Shariah e Ahadth, quando se trata dos
direitos e deveres envolvendo as relações entre mulheres e homens no Islã.
Certamente, os ditos abusos masculinos passam por esta vereda, uma vez que as
interpretações das leis corânicas, e conseqüentemente da Shariah e Ahadth são
realizadas por líderes religiosos masculinos do Islã, não só em São Paulo, no Brasil,
mas no mundo todo.
Talvez, entre todos os abusos masculinos verificados contra a mulher
muçulmana, a violência física cometida contra ela ao redor do mundo, seja o apelo
midiático mais veemente e manipulador das massas ao redor do globo. Espínola faz
referências pontuais a respeito desta violência em algumas regiões do globo: “Em
Bangladesh, as mulheres são atacadas com jato de ácido no rosto. As vítimas são
quase sempre garotas pobres que recusaram casamentos arranjados, investidas
sexuais ou a clausura que querem impor os pais ou maridos” No Afeganistão, as
mulheres passaram a ter que usar a burqa, um vestido longo com uma carapuça que
esconde a cabeça e tem uma tela por onde elas podem enxergar. São apedrejadas
em público se não usam o traje formal. Uma mulher apanhou até a morte de um
grupo de fundamentalistas por expor o braço dela acidentalmente enquanto estava
dirigindo. Outra foi apedrejada até a morte por ter tentado deixar o país com um
homem que não era seu parente. No Irã, das mulheres é exigido o uso do véu para
esconder os cabelos. Seu testemunho vale metade do de um homem. A lei concede
ao marido o direito de repudiar a esposa, sem que ela possa contestar ou pedir
pensão.
133
Na Arábia Saudita, as mulheres não podem dirigir automóvel ou sentar-se
sozinha num restaurante. Neste país existem cerca de 300 mil motoristas
particulares, número ainda distante de poder fornecer a cada mulher saudita a
locomoção desejada. Mulheres que não tem motoristas só podem sair de acordo
com a vontade de seus maridos ou filhos. Em vários países africanos e do Oriente
Médio, ou mesmo na Indonésia, Malásia, Paquistão e Índia, mais de dois milhões
de jovens e mulheres adultas sofrem anualmente a mutilação genital. (ESPÍNOLA,
2000, p. 1-2). As questões que envolvem essa violência e alijamento das mulheres
muçulmanas ao redor do mundo, passam por questões culturais, regimes de
exceção, ditaduras e imposição pela dominação masculina da submissão feminina
entre outros.
A ambigüidade corânica nas suas prescrições relativas à mulher pode ser
outro fator de peso e força nas desigualdades perpetuada entre os gêneros: “E elas
(as mulheres) têm direitos sobre eles, como eles os têm sobre elas, condignamente;
mas os maridos conservam um grau (de primazia) sobre elas.’’ (Alcorão 2. 228).
Este famigerado “um grau sobre elas” é a ambiguidade corânica que os
dominadores precisam. O que eu denomino de ambiguidade corânica possui pontos
de vistas divergentes do meu. Visto pelo olhar de boa parte dos muçulmanos, não
todos, o grau de primazia do homem é uma questão de liderança que a ele foi
atribuída por Deus nas relações com a mulher, portanto, simbolizado pela religião.
Visto pelo olhar da mídia ocidental, é um forte indício da revelação machista do
Corão e interpretadas como tal pelos líderes religiosos muçulmanos e meio de
manter o gênero feminino em submissão e alienação. Visto pelas feministas torna-se
uma violência e negação dos direitos da mulher.
Um dos objetivos, segundo os apontamentos de Espínola, desta pontuação
de situações que evidenciam a violência contra a mulher muçulmana, entre outros, é
realçar algumas situações extremadas às quais está sujeita a mulher muçulmana e
ao mesmo tempo deixar claro e evidente que esta violência não se encontra restrita
aos arraiais islâmicos e nas relações das mulheres islâmicas com o sexo oposto,
mas disseminada em todas as sociedades de qualquer canto do mundo e em todo o
tempo. Se por um lado, nas relações de gênero, as situações de conflito entre
mulheres e homens fazem aflorar a violência contra as primeiras, muito em razão do
134
domínio masculino sobre o feminino, e, em certa medida, fundamentada,
supostamente, em bases religiosas e culturais entre os povos muçulmanos; por
outro lado, entre os povos não muçulmanos, cristãos, por exemplo, a violência
contra a mulher tenta se justificar na busca de outras argumentações injustificáveis e
tão cruéis quanto àquelas. As formas da violência ou mesmo de suas justificativas
injustificáveis podem até mudar de atores e contextos, mas sua essência permanece
a mesma em qualquer parte do mundo e nos mais variados palcos contextuais
mundo afora, sem distinção de credo, cultura e sociedade.
Quando conversei com o Sheikh R. O. R, em pesquisa de campo na mesquita
do Pari, no bairro paulistano do Brás, fiz algumas indagações sobre as relações de
gênero que envolvem as mulheres muçulmanas revertidas e as de imigração, além
daquelas de outras etnias que não árabes.
O Sheikh disse que: “nas questões de gêneros, especificamente entre homem
e mulher muçulmanos, na minha visão, a questão cultural e interventora, ou seja,
interfere nas dimensões sociais indo até à dimensão religiosa. Vou tentar mostrar
exemplos em que a cultura vai intervir: se pensarmos numa relação de uma mulher
e um homem, brasileiros revertidos, as questões culturais irão possuir determinadas
e específicas nuances. Se pensarmos nas relações de gênero entre uma mulher
revertida brasileira e um homem muçulmano de imigração e etnia árabe vamos
observar que as questões culturais serão vistas por outro ângulo, diferente do
primeiro exemplo. Por último, se pensarmos em uma mulher muçulmana de
imigração com um homem revertido (caso mais raro) o viés cultural terá outra
dimensão.
Quero dizer também que, para a mulher muçulmana, apesar das diferenças
culturais existentes, a partir de sua etnia, a sua identidade, em geral, vai se definir
na dimensão religiosa. Em outras palavras, quero dizer que o fator religioso é o que
irá determinar sua realização maior nas relações com o sexo masculino, contudo,
esta definição de identidade, que é absolutamente relevante nas questões de
gênero, passou antes, pela vereda cultural e social”. Quando o Sheikh se refere ao
fator religioso, como determinante nas relações entre homens e mulheres nas
comunidades islâmicas o véu da ignorância é retirado de sobre nós. Nosso
entendimento, da ambiguidade corânica, nas relações de gênero fica mais claro: “Os
135
homens tem autoridade sobre as mulheres, pelo que Allâh preferiu alguns a outros
[...]”. (Corão, Surata An-Nissã 5. 34).
136
4.1.5 A Mulher Muçulmana e as Revelações Corânicas.
Ainda Hoje, século vinte e um, os direitos conquistados e que mais deram à
mulher muçulmana certa igualdade nas relações com o homem, datam de 610 d.C,
ou seja, 1400 anos atrás, aproximadamente. Essa igualdade, ainda que parcial,
ocorreu no tempo de Muhammad e suas esposas, dentre elas, destaque para Umm
Salamah e Aisha. Ambas, nesta reivindicação de igualdade de gêneros, estavam à
frente de seu tempo. Elas conquistaram o direito de dizer não a um casamento que
não lhes agradavam, e não foram vítimas de apedrejamento; conquistaram o direito
à herança e não foram levadas às praças públicas para serem chicoteadas;
conquistaram o direito aos filhos e não foram levadas diante de tribunais, onde seu
testemunho vale a metade do testemunho de um homem.
Contudo esses direitos conquistados, aprioristicamente, pela ousadia, força,
feminilidade e determinação destas mulheres, devem servir de inspiração para as
mulheres muçulmanas de hoje, em países tidos como estados de exceção e regimes
políticos radicais, tais como Afeganistão, Paquistão, Irã, Arábia Saudita, Bangladesh,
Indonésia, Malásia, Índia etc.
Ainda que regulamentados como novas revelações trazidas ao profeta
Muhammad e integradas ao texto sagrado do Corão e tendo se tornado leis com teor
religioso, muito próprio do mundo islâmico, continuam, estas revelações, aquém
daquilo que comunicam ao sexo feminino em termos dos seus direitos. Passados
pelo menos quatorze séculos, as conquistas de Aisha e Umm Salamah ficaram
relegadas à história. Então o Corão também ficou relegado à história? Não, o Corão
é, aparentemente, ambíguo nesta questão dos direitos das mulheres, e para piorar é
objeto de hermenêuticas tendenciosas e manipuladoras por parte de líderes
religiosos muçulmanos (não todos), em São Paulo, no Brasil e no mundo todo,
negando o que é de direito ao sexo feminino. Infelizmente, não existe um corpo de
interpretações corânicas que dê a este um padrão para toda a Ummah islâmica.
Esta ausência de um corpo padronizado de leis que regulamentem de forma
padrão as questões de gêneros e mais especificamente a questão dos direitos da
mulher vem dando sustentação a muitas interpretações que se fundamentam em
outras interpretações, gerando injustiças e desigualdade mais notadamente contra o
137
sexo feminino. Baptista, trabalhando esta questão do direito feminino no mundo
muçulmano, argumenta em relação à falta de uma autoridade religiosa central que
evite estas interpretações corânicas altamente prejudiciais às mulheres:
Todavia, uma vez que não existe, relativamente ao mundo islâmico, uma autoridade
religiosa central, que defina a hermenêutica dogmática da religião, a promoção dos
direitos das mulheres muçulmanas não é feita ao mesmo ritmo em todos os países
muçulmanos. Se, por um lado, vamos assistindo, em determinados países, a uma
crescente abertura ao respeito pelos direitos das mulheres na vida privada e pública,
por outro lado, não podemos deixar de notar uma contínua, e crescente, resistência a
tais movimentos de mudança. Muitos muçulmanos, os que lutam por um regresso a
um Islão fechado à modernidade, receiam que a promoção dos direitos das mulheres
provoque mudanças na família e na sociedade. (BAPTISTA, 2011, p.108).
As revelações corânicas, a princípio, buscam a igualdade de gêneros.
Podemos constatar esta verdade através dos versículos abaixo:
“Ó humanos, em verdade, Nós vos criamos de macho e fêmea …Sabei que o
mais honrado, dentre vós, ante Deus, é o mais temente. Sabei que Deus é
Sapientíssimo e está bem inteirado.” (Alcorão 49: 13).
“A quem praticar o bem, seja homem ou mulher, e for fiel, concederemos uma
vida agradável e premiaremos com uma recompensa, de acordo com a melhor das
ações.” (Alcorão 16: 97).
“Aqueles que praticarem o bem, sejam homens ou mulheres, e forem fiéis,
entrarão no Paraíso e não serão defraudados, no mínimo que seja.” (Alcorão 4:
124).
“Entrai no jardim (Paraíso), vós e vossas esposas e alegrai-vos.” (Alcorão 43:
70)
“Jamais desmerecerei a obra de qualquer um de vós, seja homem ou mulher,
porque procedeis uns dos outros.” (Alcorão 3: 195).
Os cinco versículos conferem igualdade a mulheres e homens. O problema
surge quando as interpretações encontram as variantes hermenêuticas em
diferentes países. No Brasil, mais precisamente em São Paulo, conversei com uma
brasileira revertida de nome W. D. S. F. de 19 anos de idade, cujo nome muçulmano
adotado após a reversão é Khadija. Perguntei se ela, que é solteira, quando se
138
casar espera ter os mesmos direitos que seu marido baseado nas revelações
corânicas. W. D. S. F. respondeu que “o Corão nas revelações sobre os direitos e
deveres das mulheres muçulmanas é igual ao cristianismo e a Bíblia. (ela soube de
minha procedência religiosa), Na Bíblia, as mulheres têm direitos e deveres. Como
dever, eu devo ser obediente ao meu marido. Devo observar minha vida religiosa e
as obrigações que ela exige de mim”. Ousei provocá-la, quando perguntei se esta
obediência a que ela se referia era uma submissão cega ao marido. Khadija
respondeu que “o Corão não fala de submissão cega, fala de submissão da mulher
ao seu esposo, como prova de que ela confia na proteção e cuidados dele para com
ela”.
Forcei um pouco a barra e fiz uma afirmação e uma pergunta que estava em
ebulição: O Corão recomenda, em alguns casos bater na mulher, se esta for
insubmissa e desobediente ao marido. Você concorda que a mulher tem que
apanhar? W. D. S. F. olhou para mim com serenidade e respondeu: “apanhar não é
uma coisa boa para ninguém, nem para os animais, quanto mais para um ser
humano. Se uma mulher chegar a ter que apanhar por causa da desobediência ou
insubmissão ao seu marido, essa mulher é um caso extremado, não é fiel, não é
cuidadosa com suas obrigações religiosas e não tem caráter”. Após esta resposta
que, confesso ter me surpreendido, preparei outra pergunta para W. D. S. F.: Mesmo
que uma mulher seja tudo isto que você apontou, você concordaria que ela sofresse
violência física de seu marido? “Creio que se for um homem temente a Deus e fiel
aos princípios do Islã, ele vai, em lugar de usar de violência, pedir o divórcio”. O
Corão lhe assegura este direito, em situações radicais como essa. “Eu não concordo
que ela deva apanhar”. Respondeu.
Como deve ser sua conduta enquanto solteira, jovem e mulher brasileira
revertida em face do Islã? W. D. S. F.: “O Islã é rigoroso. Não podemos ter nenhum
contato físico com nenhum homem enquanto não casar com ele. Nem mesmo um
aperto de mão. Só é permitido conversar em locais públicos e com outras pessoas
presentes no local, não podemos ficar isolados em nenhum ambiente, sobretudo
fechado”. Você sabe quando é que uma jovem muçulmana deve se casar? W. D. S.
F.: “Quanto mais cedo melhor, uma vez que a mulher deve preservar sua pureza.
Hoje, num país como o Brasil, preservar a pureza é sinônimo de atraso cultural,
139
intelectual. Casando mais cedo, ajudamos a equilibrar moral, religiosa e
psicologicamente a nós mulheres e aos homens”.
Houve um intervalo nesta conversa, quando W. D. S. F., educadamente me
pediu licença e juntou-se a outras três mulheres que caminhavam em direção à
parte superior da mesquita. Uma delas era A. F., percebi que caminhavam para a
sala destinada ao exercício espiritual das mulheres, pelo horário, passava das
15H00. Era o momento apropriado para a oração do Asr82 15H27(oração entre o
meio dia e o pôr do sol). Perguntei ao Sheikh R. O. R., como era a prática do wudu83
e por que tinha que ser observada? Em resposta, o Sheikh recitou a parte do Corão
que prescreve o ritual do wudu que precede as orações: ”Ó vós que credes! Sempre
que vos dispuserdes a observar a oração, lavai o rosto, as mãos e os antebraços até
aos cotovelos, esfregai a cabeça, com as mãos molhadas e lavai os pés, até os
tornozelos. E, quando estiverdes polutos, higienizai-vos.” (Alcorão 5.6).
Perguntei sobre a higienização caso estiver poluto, o que significava na
prática? O Sheikh disse que a base do wudu ou abluções são aquelas
recomendadas pelo Alcorão em situações normais da mulher e do homem. Contudo,
quando envolve outras situações em que a mulher se encontra menstruada, ou após
relações sexuais praticadas por ela e mesmo do sangramento pós-parto ou de
intervenção médica; as observações de higiene são consideradas mais profundas e
é denominada de ghusl84, ou seja, deve ser realizado antes das orações, como
limpeza profunda, toda vez que houver liberação de fluidos corporais tanto da
mulher como do homem. Para o Sheikh R. O. R, as abluções são uma resposta de
fé segundo o Corão. “Verdadeiramente, Deus estima os que se arrependem e
cuidam da purificação”. (Alcorão 2.222). Este versículo do Alcorão foi recitado pelo
82
Asr: Uma das cinco orações diárias de todo o muçulmano, mulher ou homem. Deve ser realizada à
partir das 15H00, conforme prescrição do Alcorão, sempre precedida do Wudu, que significa
higienização do corpo ou partes do corpo da mulher e do homem. São chamadas de abluções.
Variam de acordo com as circunstâncias vivenciadas pela mulher ou homem muçulmano ou por
ambos. Minha ênfase – Grifo meu.
83
Wudu: geralmente conhecido como abluções, é a higienização, lavagem com água de partes dos
membros do corpo, tais como: rosto, mãos, braços e antebraços e os pés. É uma higienização mais
superficial em condições em que não há perda de fluidos do corpo, provenientes de relações sexuais
ou menstruação, em geral. Pode ser realizada com terra limpa ou areia seca, onde não houver água
ou esta for escassa. Minha ênfase – Grifo meu.
84
Ghusl: Significa limpeza profunda. É a higienização das impurezas maiores. Deve ser realizada,
antes das orações diárias, sempre após relações sexuais, perda de sangue por menstruação e de
sêmen e fluidos femininos após o coito. Minha ênfase – Grifo meu.
140
Sheikh em árabe, e traduzido para mim em seguida. Segundo o Sheikh, existem
mais algumas implicações do wudu para as mulheres especificamente. Elas variam,
segundo o Sheikh, de comunidade para comunidade islâmica. Outros fatores tais
quais os geográficos, culturais e mesmo de hermenêutica islâmica, podem
influenciar, contudo, sua base será sempre esta que acabamos de relatar.
141
4.1.6 A Mulher Muçulmana e Suas Indumentárias
As migrações de muçulmanas podem ser uma das causas principais da
introdução de novos véus em diversos países diferentes, portanto, nem sempre o
tipo de véu utilizado por uma mulher muçulmana está ligado à cultura local.
Em São Paulo, não vi nenhuma indumentária feminina diferente do Hijab.
Este mesmo variou pouco em sua forma. Perguntei para A. F. J. , imigrante de
segunda geração libanesa, qual o significado principal do hijab para ela. Esta foi a
resposta: “para mim e creio eu para todas as mulheres muçulmanas, o hijab possui
antes de tudo um valor simbólico que vai do aspecto religioso até a definição da
identidade feminina islâmica, passando por aspectos sociais”. Você se sente
reprimida ou mesmo alienada usando o hijab? A. F. J: Pelo contrário, o véu não é
esconderijo para nós. Representa nossa identidade de mulheres muçulmanas
comprometidas com sua religiosidade, com sua pureza e com sua moralidade.
Você sabe que existem muitas muçulmanas pelo mundo afora que não usam
o hijab e nenhum outro véu e ainda lutam pelo não uso deles pela mulher
muçulmana? A. F. J: Já li alguma coisa sobre isto. Extremismo e postura radicais
existem em todo lugar, inclusive dentro do próprio Islã. Não fico surpresa de
existirem mulheres muçulmanas que combatem o uso do Hijab. Ouvi de um
muçulmano na mesquita Brasil, absoluta maioria de imigrantes e descendentes
muçulmanos, de que o Hijab significa “sem comunicação”, “isolar”, ou seja, sem
comunicação com o mundo exterior, entenda “gênero masculino”. Você concorda
com esta definição? A. F. J. Eu creio que o Hijab significa proteção, segurança,
respeito, pudor e moralidade. O significado de isolar pode estar ligado à idéia de
isolar o corpo da mulher dos olhares maliciosos e lascivos dentro e fora do nosso
ambiente, ou seja, de nosso contexto de vida:
Partindo dessa possibilidade do isolamento do corpo feminino da lascívia
masculina, o hijab se constitui, portanto, numa barreira natural, inibidora dos
avanços do homem? A. F. J. Com certeza! Qualquer tentativa de desrespeito por
parte do gênero masculino encontrará no hijab um forte obstáculo. Os véus são
muitos e variam em seus formatos, cores e usos. Existe aquele que toda mulher
muçulmana deve usar? A. F. J. Sim! À partir do treze anos de idade, toda mulher
142
muçulmana necessita fazer uso do hijab. Se o hijab é, em sua opinião, quase
unanimidade para as mulheres muçulmanas, por que algumas usam outras
vestimentas tais quais, burca, niqab, Xador, Khimar, Shayla, Al-Amira? A. F. J. “Eu
sei que o hijab está ligado às questões religiosas e morais. Além do que representa
para a mulher muçulmana como vimos antes. Os outros véus são opções de uso ou
obrigações impostas por regimes de exceção, cultural e étnico, não sei se nesta
ordem”. Aqui em São Paulo, observei que na mesquita Brasil e na mesquita do Pari
o hijab é a vestimenta tanto de mulheres brasileiras revertidas quanto de mulheres
muçulmanas de imigração. Você já viu uma muçulmana com outra vestimenta? A. F.
J: “Uma vez vi uma mulher muçulmana usando o niqab. Niqab significa ‘máscara’ ou
o véu que cobre o rosto”. As cores do Hijab têm algum significado especial? A. F. J:
“Pode até ter. Eu mesma não sei de nenhum”. (ANEXO 9 – Niqab e Burca – Foto 7e
8).
Parece claro que uma minoria dentre as mulheres muçulmanas usam os véus
mais conservadores do ponto de vista ocidental. O Khimar, o Niqab e a Burca estão
entre as vestimentas femininas mais conservadoras, portanto seu uso se restringe
às mulheres muçulmanas que vivem em países com fortes ideologias políticas, como
já foi mencionado Afeganistão e Paquistão. Na Arábia Saudita, um véu conhecido
por tarha deve ser usado em combinação com o Khimar ou Niqab, ambos significam
os véus que escondem a cara, deixando apenas os olhos visíveis. Já o termo
Jilbab85 significa roupas longas. (BAPTISTA, 2011, p. 114).
O véu sempre foi uma prescrição corânica, contudo, nunca foi especificado.
Diz a Sura An-Nissã: ”E se tiverdes de pedir qualquer coisa às mulheres do Profeta,
pedi-lho por detrás de um véu (hijab). Assim permanecerão puros os vossos
corações e os corações delas (mulheres). Evitai causar desgostos ao enviado de
Deus. Nunca desposarei as suas mulheres. Na verdade, isso seria grave aos olhos
de Deus. Ó profeta! Dize às tuas esposas e às tuas filhas e às mulheres dos crentes
que deixem cair até abaixo os véus exteriores (Jilbab). Será mais fácil assim não as
reconhecer e não as ofender. Mas Deus é tolerante e misericordioso”. (Sura AnNissã).
85
Jilbab: (plural Jalabib) é uma manta comprida, folgada e sem recortes, com cores sóbrias. Pouco utilizado no
Brasil.
143
Ante tais versículos corânicos, parece-nos, à partida, que o vestuário que as
mulheres devem usar na presença de homens estranhos à sua família está, de certa
forma, definido pelo Alcorão. Todavia, a questão do véu islâmico e da obrigação do
seu uso, não está diretamente regulada por qualquer passagem do Livro Sagrado.
Importa então apresentar as diferentes terminologias para os diferentes tipos de véu,
atentando ao facto de que não existe um acordo, no mundo islâmico, quanto à
designação e significado dos vários tipos de véus islâmicos. A simples existência de
regionalismos torna impossível tal homogeneidade. Muito embora, de uma forma
geral, queira referir vestuário islâmico sem definir que partes do corpo são deixadas à
vista, hijab significa para alguns jordanianos o lenço que cobre a cabeça e os cabelos
da mulher, muito embora sirva também para referir as longas túnicas que as
muçulmanas habitualmente usam. (BAPTISTA, 2011, p.113).
Na conversa com A. F. J. , ela revelou que a convivência entre mulheres
muçulmanas e homens faz surgir, quase que espontaneamente, a questão do véu
islâmico. Cercado de polêmicas, seu uso ou não uso divide opiniões entre feministas
ocidentais com o ponto de vista de países orientais islâmicos. Segundo A. F. J. , são
várias as opiniões defendidas quanto à questão da obrigação do uso do véu. Ela me
disse que não há nada impondo o seu uso na Shariah, contudo seu uso remonta às
sociedades pré-islamicas.
O uso do véu, de modo geral, sempre esteve e estará ligado às questões
religiosas. Neste caso, a questão do vestuário da mulher muçulmana está
praticamente ligada à sua religiosidade, portanto, a religião é o fator que dita e
regulamenta a vida da mulher islâmica: (ANEXO 10 – Hijab - Foto 9).
A Sura An-Nissã recomenda às mulheres: “Diz às crentes que baixem os
olhos e observem a continência, que não mostrem os seus ornamentos (além dos
que normalmente aparecem) que cubram o peito com seus véus e não mostram os
seus atrativos, a não ser aos seus esposos, seus filhos, seus enteados, seus irmãos,
seus sobrinhos, às mulheres suas servas, ou aos escravos ou servos varões sem
desejos carnais, ou às crianças que não ligam à nudez das mulheres; que não
agitem seus pés enquanto andam, para que não chamem a atenção sobre seus
ornamentos ocultos (Sura An-Nissã XXIV). Além desta sura, o Corão ainda prevê
outras recomendações quanto ao vestuário feminino. Todas as recomendações
estão intimamente ligadas ao pudor, moral, e comportamento das mulheres
muçulmanas em qualquer lugar do planeta. Entre elas destacamos a Sura XXIV,
versículo 31 e a Sura XXXIII versículos 53 e 59.
144
Outras importantes alegações a respeito do uso do véu estão diretamente
ligadas à dignidade da mulher muçulmana. O véu, na visão daquelas que defendem
o seu uso, se reveste de valorização da mulher pelas suas qualidades intelectuais e
morais e não pela sua aparência. Diz que a mulher não suscitaria ciúmes às outras
mulheres e não cometeria o erro da vaidade. Nesta linha de raciocínio podemos
inferir que o pecado da carne teria origem na mulher que estaria sujeita a pecar por
vaidade e ciúmes. Portanto, é a partir do comportamento dela que deve procurar as
causas de assédio sexual e de atividade sexual ilícita. Podemos dizer que
implicitamente, assume-se uma fraqueza natural e por isso menos condenável no
homem, para quem os cabelos das mulheres é fonte de tentação. Neste caso, o véu
intervém para proteger as mulheres dos olhares masculinos impertinentes. Este uso
do véu, deixando evidenciar que se trata de ocultar uma suposta fonte de pecado, a
mulher muçulmana, é assunto polêmico e de acaloradas discussões mundo afora.
Portanto, por ora deter-nos-emos na questão religiosa e moral: (ANEXO 11 – Xador
e Niqab mais radical – Fotos 10 e 11.)
145
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A história descortina diante de nós, uma mulher forte que cimentou as bases
fundamentais para o estabelecimento da Ummah islâmica mundial. Sua performance
desde Khadija, considerada a primeira mulher muçulmana, atravessou os séculos.
Desde 610 a.C. Desde Meca até sua atual condição hoje, século XXI.
Mulheres como Aisha, Umm Salamah entre outras, marcadamente estiveram
à frente de seu tempo na reivindicação pela igualdade de gêneros, no mínimo 1400
anos atrás. Influenciaram o próprio profeta Muhammad nas questões das revelações
corânicas, buscando com isso aliviar a carga do domínio masculino sobre seus
delicados ombros. Assistiram resignadas a pulverização de suas conquistas e dos
seus direitos diante da instituição do califado islâmico. A igualdade conquistada foi
requisitada violentamente pelo sexo masculino. Tornaram-se objetos de negociação
e despojos de guerra. Elas Perderam, aos olhos masculinos, sua dignidade de ser
humano. Fizeram parte dos pacotes de herança destinados ao sexo masculino,
vítimas de uma cultura em que o domínio masculino prevaleceu sem ser contestado
de forma sistemática. Esta mulher foi coisificada. Tornaram-se troféus guardados em
haréns. Contudo sua busca por uma relação simétrica continuou.
No
Brasil,
a
mulher
muçulmana
chegou
através
da
imigração
e,
possivelmente através do tráfico de escravos. Atravessando por veredas, não menos
doloridas que aquelas dos primórdios do Islã, escravizada, violentada no seu mais
primário e fundamental direito: ser livre. Atravessou mares e juntamente com
aquelas que deixaram seus países, marcaram a história do mundo e a história do
Brasil e a história da Bahia, de Minas Gerais, de São Paulo etc...
“Deram as mãos” e assumiram a condição de mulheres “ocultas”, uma vez
que o estigma da coisificação feminina produzida pela insensibilidade do domínio
masculino prevalecia e ainda impregnava as vestes desta mulher negra de
escravidão e desta mulher branca de imigração, etnias que buscaram e buscam na
sua religiosidade latente, sua identificação e sua igualdade frente ao gênero
masculino. Estas mulheres muçulmanas, fugindo de guerras, sendo violentamente
arrancadas de suas origens e de sua terra, ou seja, a mulher muçulmana de
escravidão e de imigração e sua epopeia, quase uma mulher anônima, marcaram e
146
marcam presença nos redutos islâmicos espalhados pelo país e com forte presença
na cidade de São Paulo. As revoltas ou insurreições, marcadamente em terras
bahianas, pela histórica e pouco propalada revolta Malê, contou com sua presença,
aliás, presença importante, contudo, por razões escusas, não tão bem registradas.
As formações de quilombos e o nascimento de comunidades quilombolas
possuem a sua marca. Hoje, seus remanescentes se encontram nos movimentos
negros de jovens muçulmanos do Hip Hop, nas periferias da cidade de São Paulo.
Nas revertidas brasileiras, negras, brancas, amarelas, pardas ou qualquer que seja a
cor da pele, não é isto que importa o que importa é a sua busca por igualdade de
gêneros e pela religiosidade desprovida da marca etnicista.
Juntam-se a elas as mulheres brasileiras revertidas, não obstante os conflitos
étnicos que emergem desta relação, fortalecendo a idéia polêmica de uma
desarabização do Islã no Brasil, concomitantemente com a possibilidade de um Islã
adjetivado como Islã brasileiro ou com rosto mais brasileiro.
Existem ou começam a existir sinais de um Islã brasileiro, com a tão
reivindicada e crescente idéia da desarabização, uma vez que esta mulher reclama
de discriminação e preconceito por parte das muçulmanas de imigração e
descendentes. Outros fatores que incluem minorias tais como os jovens negros do
movimento Hip Hop, os “Sem Terras“ “Indígenas”, todos, de alguma maneira,
fazendo parte de movimentos políticos e ideológicos, sempre inspirados em alguma
personalidade internacional que sirva como ícone na luta pelos direitos humanos e
pela igualdade; mobilizam-se para a institucionalização de um Islã brasileiro e para
brasileiros. Contudo, a tarefa para a concretização de um Islã nacional é árdua e vai,
segundo nossas constatações, percorrer caminhos que não poderão prescindir de
uma negociação contra a discriminação, preconceitos, confrontos culturais e, após
tudo isto cunhar uma identidade nacional, sem, contudo, descaracterizar a
identidade Islâmica mundial, ou seja, sem fugir da Ummah Islâmica Mundial.
Na baila destes acontecimentos, se encontra a mulher muçulmana de
imigração e reversão em sua performance religiosa, social e cultural na cidade de
São Paulo, vivenciando uma gama de situações que vão desde reversão e suas
implicações até os relacionamentos com a mulher de imigração e seus conflitos e
suas adequações, objetivando sua pertença ao grupo. Sua vida não é separada de
147
sua religiosidade. Sua busca do sagrado se complementa com a sua realidade
temporal e secular, envolvendo com intensidade sua vida toda em todo o tempo.
Sua prática diária da religião passa pelo simbolismo do vestuário e traduz-se em
identidade, pertença e identificação.
Diante dessas constatações a que esta investigação conseguiu apurar e
apreender podemos, parcialmente, concluir que a mulher muçulmana de reversão e
imigração vê suas vestimentas, no caso da maioria absoluta o hijab, como símbolo
de sua identificação muçulmana e como referencia de sua dignidade moral. Assunto
que possui, quando visto pela mídia ocidental e por algumas militantes muçulmanas
feministas, bastante polêmicas e gerando outros pontos de vistas antagônicos. Que
o fator étnico tem sido visto como uma arabização do Islã, principalmente pelo olhar
de brasileiros revertidos. Este fator tem gerado um sentimento de discriminação por
parte dos árabes imigrantes e descendentes muçulmanos e, ao mesmo tempo, dado
força a idéia de um Islã para brasileiros. Constatamos também, que comunidades
(mesquitas) possuem diferentes tratamentos para revertidos. Algumas estão bem
aparelhadas e preparadas para receber novas revertidas e incluí-las, sem
discriminação, em seu meio. Outras nem tanto. Fato que alimenta a chama da
reivindicação de um Islã nacionalizado.
A língua árabe é ensinada, uma vez que o Corão não deve ser traduzido para
evitar adulteração de seu conteúdo. Fato que tem contribuído também para uma
arabização e gerado reclamações por parte de revertidas e revertidos brasileiros. As
mulheres muçulmanas em São Paulo, tanto revertidas quanto imigrantes e
descendentes consideram que há sim conflitos nas relações culturais e de gêneros,
contudo, esta é uma realidade que ganha contornos sensacionalistas e irreais
através da mídia em geral, que toma por base acontecimentos isolados ou restritos a
um ou outro país com estados políticos radicalizados.
Detectamos uma movimentação intensa dentro e fora do Brasil, para que
brasileiros revertidos assumam posição de liderança religiosa nas comunidades
islâmicas de São Paulo e do Brasil. Estes líderes em potencial estão realizando
estudos da teologia Islâmica em países de forte tradição muçulmana, como por
exemplo, Riyad na Arábia Saudita. Esta constatação sinaliza para a possibilidade
real de um Islã com total liderança brasileira.
148
Por fim, não podemos fazer vista grossa e minimizar a realidade dura da
desigualdade que teima em permanecer mantendo o sexo feminino sob dominação
do sexo masculino. São sinais quase que imperceptíveis, sutis, nesta relação de
gêneros, contudo, deixam pistas de que a mulher muçulmana em qualquer parte do
mundo pode e deve receber um tratamento mais justo por parte dos homens
muçulmanos. Afora os extremos e os radicalismos existentes, o que prevalece é a
continuidade da luta desta mulher por uma existência livre e igual.
149
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158
ANEXOS: FOTOS E FIGURAS. Suas respectivas páginas e conteúdos referentes.
FIGURA 1. Islamismo de Escravidão. Mulher Brasileira Negra Muçulmana com
Indumentárias Típicas da Herança Muçulmana na Bahia.
A influência islâmica de escravidão que ainda sobrevive,
sincreticamente, no figurino das mulheres negras da Bahia e de algumas
regiões do Rio Janeiro é resultado direto desta espécie de assimilação. As
“baianas” atuais, descendentes de africanos, mais precisamente das tribos
Ioruba, Nagô, Fula e Haussá, são as que mais se esmeram e capricham nas
suas indumentárias. Há uma diferença notável entre as mulheres baianas e
suas vestimentas. O grupo pertencente ao Candomblé é de estatura baixa e
gorda. Estas mulheres se destacam por usar vestimentas de cores vivas e
berrantes. As saias são amplas e toda estampada. Por outro lado, o grupo
que pertence ao das mulheres muçulmanas, cujos ascendentes foram os
africanos sudaneses, são de estatura alta e esguia, usam o traje branco
imaculado. Pode ser visto, às vezes, no ombro desta mulher descendente de
negros muçulmanos sudaneses, um “pano da Costa” de cor preta, originário
da Costa da África. As demais peças que completam seu traje típico e alude à
herança islâmica são: a saia rodada, com muitas anáguas rendadas,
engomadas. A bata (blusa de rendas) solta. Pano da Costai, com um xale
sobre o ombro, o turbante, essencialmente, uma peça típica muçulmana.
Chinelas ou sapatos de salto baixo e os adereços extras, tais como:
pulseiras, brincos de ouro, prata, coral. Algumas nos dias de festa usam uma
penca de balangandãsi na cintura.
159
FIGURA 2. Escravo Malê Muçulmano de origem sudanesa. Segundo Artur
Ramos eram de estirpe superior aos demais negros.
Descritos por Ramos: “Eram altos, robustos, fortes e trabalhadores. Usavam
como os outros negros muçulmanos, um pequeno cavanhaque, de vida regular e
austera, não se misturavam com os outros escravos. "Eram denominados "malês",
que significa professores, educadores em árabe. Organizaram a recuperação da
religião islâmica entre os escravos, a partir dos registros em memória do Sagrado
Alcorão e das tradições do Profeta Muhammad. Promoveram, ainda que de forma
secreta, atividades de alfabetização e memorização do texto sagrado. Mesmo
enfrentando oposição e perseguição dos proprietários de escravos, escreviam
panfletos, se comunicavam em árabe, e se organizavam constituindo conselheiros e
juízes em suas comunidades. Organizavam os quilombos.
160
FOTO 1. Mulheres Muçulmanas de Imigração participam da oração que
antecede a quebra do jejum durante o Ramadã; o mês sagrado do islamismo.
O local da foto é da mesquita Brasil, em São Paulo. É observada a tradição
corânica que diz que as mulheres só podem entrar na mesquita de véu, no
caso da foto o hijab e ficar separadas dos homens.
A cidade de São Paulo se destacou por acolher seis mil imigrantes
muçulmanos que se instalaram, principalmente, nos bairros da Sé e de Santa
Ifigênia. Além da capital paulista, numerosos grupos se estabeleceram em São José
do Rio Preto, Santos, Barretos e Campinas. ( TRUZZI, 1993, p. 186).
FOTO 2. Mulher muçulmana brasileira revertida. Faz a leitura do Corão.
Mesquita do Pari – São Paulo. Ela se encontra na sala de orações e meditações
reservadas às mulheres. Fica acima do salão dos homens.
161
FOTO 3. Mulheres Muçulmanas de Reversão e Imigração. Mesquita do Pari –
São Paulo. À esquerda, brasileira revertida Khadija. À direita descendente
Sírio-Libanesa A. Fayed. À frente delas um exemplar do Corão. Foram
entrevistadas e fotografadas pelo autor da pesquisa. (foto: Silva, Dirceu
Alves).
A mulher muçulmana revertida, necessariamente, vai se defrontar no mínimo
com um estranhamento ao defrontar-se com uma cultura diferente, código religioso
diferente, residentes no outro, ou seja, no confronto com a mulher muçulmana de
imigração;
é
aprioristicamente,
o
encontro
de
mundos
diferentes.
Este
estranhamento inevitável, procedente das diferenças que emergem do confronto
entre culturas e identidades étnicas distintas, terá que ser negociado para que uma
massa, a mais uniforme possível, seja produzida, fazendo com que os primeiros e
tensos momentos do estranhamento surgidos possam adequar-se.
162
FOTO 4. Reuniões de jovens negros brasileiros. Boa parte são muçulmanos da
periferia paulista e adeptos do Hip Hop. Entre eles muitas mulheres.
Um número considerável de jovens brasileiros revertidos ao Islã são, ao
mesmo tempo, atuantes do movimento negro Hip Hop.i Sua ideologia política
baseia-se fortemente no movimento negro ao redor do mundo e principalmente no
legado Malê, com ênfase para a insurreição Malê de 1835, em Salvador, na Bahia,
onde a revolta dos malês, liderada por negros muçulmanos, foi a rebelião de
escravos urbanos mais importante da história do país. Pouco citada nos livros
escolares. Depois de um largo hiato ela chegou às periferias pela rima do rap.iLá,
uniu-se ao legado do ativista americano Malcolm Xi assimilado pela versão do filme
de Spike Lee, de 1992. E por fim ao onze de setembro, que irrompeu na TV, mas foi
colado às teorias conspiratórias que se alastram na internet. Este é o Islã com cores
brasileiras que chega para os novos revertidos. Enfatizamos sua presença mais forte
em São Paulo.
163
FOTO 5. Jovens mulheres muçulmanas em seu espaço de expressão religiosa.
No caso realizam a leitura meditativa do Alcorão. Fotografia de K. G. S.
São muitas as atividades religiosas praticadas pelas mulheres muçulmanas.
Dentre elas se destacam as orações diárias, as meditações no Alcorão, como esta
da foto.
164
FOTO 6. Mulheres de Burca. Suas cores podem variar, contudo, a cor azul é
predominante. (www.fotosearch.com.br/fotos-imagens/burka).
Vestimenta considerada a mais radical entre as indumentárias femininas na
visão da mídia ocidental e também pela ótica de muitas mulheres e comunidades
islâmicas ao redor do globo. Associada à discriminação e a regimes políticos de
exceção. Com a Predominância do Hijab, dificilmente vemos uma mulher de burca
pelas ruas de São Paulo ou mesmo em outro reduto islâmico no Brasil.
165
FOTO 7 - INDUMENTÁRIAS DA MULHER MUÇULMANA – NIQAB
As diferenças estão nos detalhes de cada um. Porém, todos, basicamente, só
deixam os olhos descobertos. É menos radical do que a Burca
FOTO 8 – INDUMENTÁRIAS DA MULHER MUÇULMANA – BURCA
A mais radical das vestes da mulher muçulmana. (na ótica ocidental pelo
menos). Só uma tela, na frente dos olhos, permite o contato com o mundo
exterior quando em locais públicos. As cores raramente variam. A azul é
predominante. Exigida sua utilização pelas mulheres no Afeganistão,
Paquistão e algumas regiões do norte da África, considerados regimes
políticos radicais.(www.fotosearch.com.br/fotos-imagens/burka).
166
FOTO 9 – INDUMENTÁRIAS DA MULHER MUÇULMANA – HIJAB
Possivelmente, a mais democrática das vestimentas da mulher islâmica em
todo o mundo (na ótica ocidental pelo menos). Em São Paulo,
aproximadamente de cada dez mulheres, nove usam o hijab.
167
FOTO 10 – INDUMENTÁRIAS DA MULHER MUÇULMANA - XADOR
Pouco Utilizada em São Paulo. Muito utilizada no Oriente Médio.
FOTO 11 – INDUMENTÁRIAS DA MULHER MUÇULMANA – Niqab Radical.
Raramente se vê em São Paulo. Contudo, é muito utilizado em países de regimes
políticos mais radicais. Significa separar de, por sobre. A mulher fica separada como
se o purdah fosse uma cortina sobre ela. (www.fotosearch.com.br/fotos-imagens/burka).
168
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