UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA ÁREA DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DANIELE SANDES DA SILVA O PROFETA E A UMMA: a formação da comunidade político-religiosa de Medina no século VII. 33 NITERÓI 2007 34 DANIELE SANDES DA SILVA O PROFETA E A UMMA: a formação da comunidade político-religiosa de Medina no século VII. Defesa da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em História. Orientador: Prof. Dr. MÁRIO JORGE DA MOTTA BASTOS, do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Fluminense. 35 NITERÓI 2007 36 O PROFETA E A UMMA: a formação da comunidade político-religiosa de Medina no século VII. Defesa da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em História. BANCA EXAMINADORA: ______________________________________ Prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos (Orientador) ______________________________________ Profa. Dra. Leila Rodrigues da Silva _______________________________________ Prof. Dr. Ednar Checon de Freitas 37 Ao meu filho Lucas (Bidungue) pelas lições diárias de amor incondicional. À amiga Elisa por dividir comigo as alegrias e tristezas durante esta jornada. 38 Agradecimentos Ao meu orientador, Prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos, pelo apoio, paciência e dedicação ao longo dos muitos anos de trabalho em conjunto; À Profa. Dra. Leila Rodrigues e ao Prof. Dr. Edmar Checon pela leitura atenta da dissertação e críticas pertinentes; Ao Prof. Manuel Rolph pela amizade e pela primeira aula que assisti na Universidade que selou minha paixão pela História; Ao meu Professor de língua árabe e amigo, Erik Peres, por ter me alfabetizado pela segunda vez; Aos amigos de graduação, Daniele Fialho, Eliane Machado, Bruno Oliveira, Victor Tair e Isaac, pelas discussões sobre História e sobre a vida no “Vestiba”; Ao amigo Guilherme Antunes, pelas fontes que fez para a transcrição dos termos em árabe; Ao amigo Bruno Álvaro (Galubé!) pela companhia no MSN de madrugada; Às amigas Aline Pereira e Luciana Lamblet, “sujeitas históricas excelentes”, por tornarem as aulas do mestrado ainda melhores; À amiga Carolina Fortes (Fofolete!) entre “outras coisas”, pelo sofá aconchegante, pelo Gummy, pela parceria imbatível no jogo de mímica e, sobretudo, pelo ombro amigo em momentos difíceis; À amiga Viviane Negreiros (Vivi) pelos momentos hilários, pelos momentos tristes, de solidariedade e de ódio que fazem parte de toda amizade sincera! Pelo apoio e carinho constantes; À Renata Schittino, que além de grande amiga, foi uma ótima “baby sitter”; À Doldows (Isadora Duarte) por guardar meu lugarzinho, todo sábado às 7 da matina, na “Van do Gilmar”! À Monelisa (Elisa Duarte), amigona de todas as horas, que mesmo distante é uma forte presença em minha vida. Pelo carinho e pelos muitos conselhos que, infelizmente, não segui! 39 À amiga-irmã Valéria de Souza (Val) pela amizade de 20 anos recheada de ótimas risadas; Aos eternos amigos Mariana Carvalho e Reinaldo Lee (e Nicole!) pela ajuda e, principalmente, pelo amor dedicado ao Lucas; Aos meus pais, Dalva Sandes e José Lopes e à minha irmã Gisele Sandes pelo apoio; À minha madrinha, Diva Sandes, pelas pedras que me ajudou a tirar do caminho e pelo incentivo à leitura; Às minhas primas-irmãs Diana Sandes e Luisa Sandes pelo amor; Ao meu ex-marido, Marcello Carvalho, pelo apoio financeiro à “obra”; Ao Lucas pelo maior amor do mundo; E ao Flecha pela companhia nas madrugadas de trabalho! 40 RESUMO Por volta de 622 d.C., Muhammad, Profeta do Islã, migra da cidade de Meca para Medina. O acontecimento também conhecido como Hégira, não marca somente o início do calendário muçulmano, mas também a instauração de uma comunidade política e religiosa, que rompe em alguns aspectos com a sociedade tribal e se apropria de outros elementos, dando-lhes um novo sentido. Esta dissertação tem como objetivo principal analisar as expressões, sobretudo no campo político, de ruptura e continuidade presentes no discurso das nossas fontes de pesquisa: o Alcorão e as poesias pré-islâmicas. Estes aspectos evidenciam-se, principalmente, nas referências sobre religião, guerra e parentesco que constituem os três grandes temas deste trabalho. 41 RESUMEN Aproximadamente sobre el 622 d.C., Mohamed, el Profeta del Islam, migra de la ciudad de Meca a Medina. El hecho también conocido como Hégira, no marca sólo el inicio del calendario musulmán, sino que también marca la instauración de una comunidad política y religiosa que rompe, en algunos aspectos, con la sociedad tribal apropiándose de otros elementos y dándoles un nuevo sentido. Esta investigación tiene como objetivo principal analizar las expresiones, sobretodo en el campo político, de ruptura y de continuidad presentes en el discurso de nuestras fuentes: el Corán y las poesías pre-islámicas. Estos aspectos se evidencian, principalmente, en las referencias sobre religión, guerra y parentesco que constituyen los tres grandes temas de este trabajo. 42 “(...) a experiência dos tempos não tem feito outra coisa que dizer-nos que não há cegos, mas cegueiras” (José Saramago. Ensaio sobre a Cegueira) 43 Sumário Introdução 12 Capítulo I- Península Arábica: Vidas, aromas e caminhos 31 Capítulo II- Muhammad, sua liderança política e legitimidade religiosa 51 Capítulo III- Enfrentamentos bélicos e políticos 74 Capítulo IV- Antigos acordos, novos limites: o casamento 95 Conclusão 115 Bibliografia Geral 119 44 Introdução Lê, em nome do teu Senhor que criou; Criou o homem de algo que se agarra (coágulo). Lê, que teu Senhor é mais generoso, que ensinou através da pena, ensinou ao homem o que este não sabia.1 Ao receber a mensagem divina por intermédio do anjo Gabriel, o profeta do islã tinha, aproximadamente, 40 anos. Segundo a crença muçulmana, a revelação ocorreu por volta de 610 d.c., no monte Hira. De seu topo, Muhammad ibn Abdallah vislumbrava uma das cidades mais prósperas da Península Arábica: Meca. Formada por um aglomerado de comerciantes, a cidade possuía uma localização privilegiada, situada em um entroncamento de rotas que comunicava ao sul com o Iêmen, ao norte com o Mediterrâneo, ao oriente com o Golfo Pérsico e ao ocidente com o porto de Jeda, no mar vermelho, via marítima para a África.2 Em Meca, Mohammad começou suas pregações: Eis aqui o livro bendito que te temos revelado, confirmante dos anteriores, para que admoestes, com ele, a mãe das cidades e todas as cidades circunvizinhas. Aqueles que crêem na Outra Vida crêem nele e são constantes nas suas orações.3 Porém, a constituição da primeira comunidade muçulmana enfrentaria inúmeras oposições. Interesses políticos e econômicos enfrentavam-se e desafiavam a existência da jovem comunidade. As transformações políticas, sociais e econômicas testemunhadas pela Península 1 Alcorão, 96: 1-5 LEWIS, Bernard. Os árabes na história. 2 Ed.Lisboa: Estampa,1996. p.41 3 Alcorão, 6: 92 2 45 Arábica podem nos ajudar a compreender melhor o contexto em que a Umma emerge, pois “foi sem dúvida uma época que determinou a vida de Muhammad e as condições precisas sob as quais fundou uma religião unificadora de homens e povos, criadora e difusora de cultura e civilização capaz de transmutar a história da humanidade.”4 A Península Arábica – limitada, ao norte pelo território denominado Crescente Fértil (Mesopotâmia, Síria e Palestina) e pelos desertos, a leste e a sul pelo Golfo Pérsico e pelo Oceano Índico, e a Oeste pelo Mar Vermelho5 - possuía uma região, situada ao sul, montanhosa e irrigada, e o resto de seu território, locais que poderiam ficar até dez anos sem chuva, constituía-se por estepes áridas e desertos interrompidos por oásis. O reino da Arábia do Sul, sedentário, favorecido pelas monções do oceano Índico, era produtor de cereais, frutas e legumes. Próximo ao oceano, havia árvores de mirra e incenso, sua principal fonte de riqueza. Detentor de portos e praças comerciais, era também local de entrada para produtos que vinham da Índia e África Oriental. Em seus mercados encontravam-se pérolas do Golfo Pérsico, marfim, seda, algodão, tecidos, arroz, ouro e as penas de avestruz da África Oriental.6 Sua produção agrícola foi proporcionada pela construção de diques e canais para a irrigação, fato comprovado pelas inscrições e testemunhos arqueológicos. Comerciantes ativos, os árabes do sul falavam uma língua próxima do árabe, e obtiveram grande prosperidade, em grande parte, pelo desenvolvimento das civilizações mediterrânicas7, o que lhe gerou o título legendário de “Arábia Feliz”. As influências e 4 GUERRERO, Rafael Ramón. Filosofías Árabe e Judía. Madrid.Editorial Síntesis, 2001. p.20 LEWIS, op. cit, p.27 6 RODINSON, Máxime. Maomé.Lisboa. Caminho,1992. p.38 7 RODINSON, op. cit., p.40 5 46 contatos dos quais foi protagonista refletem-se na arquitetura e na arte, descritas pelos pesquisadores como portadoras de refinada elegância. Algumas vezes são imitações ou importações romanas, helenísticas e indianas. Em contraste com a opulência do Iêmen, encontramos a região dos Sarracenos8 em meio a estepes e vales que interligam as áreas desérticas.O Hedjaz9 era habitado por tribos nômades que controlavam os pontos estratégicos nas rotas comerciais. Esses grupos não estavam isolados, nem geografica, muito menos culturalmente. Além de manterem contatos com grupos sedentários que ocupavam os oásis, a região estava situada entre dois grandes impérios, o Bizantino e o Sassânida. A guerra, ou a atividade bélica, sempre foi um fator presente, chegando algumas das vezes a constituir um “modo de vida”10. Entre as próprias tribos, era comum a prática do ghazu quando, por questões de sobrevivência, uma tribo atacava a outra e roubava-lhe os bens, camelos, rebanhos, etc. sempre evitando o derramamento de sangue para que não houvesse a vendeta ou vingança privada.”Ficaria marcado por uma vergonha indelével o vingador designado pelos usos e que deixasse viver um homicida. A vendeta, em árabe tha’r, é um dos pilares da sociedade beduína”11. Assim, as brigas ou disputas pelos escassos recursos poderiam provocar ciclos de vingança.12 Em decorrência de sua vida rude e da carência de meios naturais, muitas vezes prestaram serviços como mercenários aos povos do sul, em tropas auxiliares. “Cada Estado 8 Aqueles que se chamava em grego Sarakênoi, em latim Saraceni, o que nos deu a palavra Sarracenos, eram anteriormente chamados Árabes scenitas, os Árabes que vivem debaixo da tenda (em grego skênê). 9 Que significa “barreira”, menção a cadeia de montanhas que separa a planície costeira do planalto de Nadj, mas tarde incorporando também boa parte do litoral. 10 Ao criticar as teorias acerca da guerra de Clausewitz, o autor John Keegan, enfatiza que não foi levada em conta as guerras endêmicas de povos sem Estado, e em fase pré-estatal, nos quais não havia distinção entre portadores legais e ilegais de armas, uma vez que todos os homens eram guerreiros. Essa forma de guerra teria prevalecido durante longos períodos da história da humanidade. Desta maneira, para algumas civilizações a guerra seria uma expressão de cultura, um modo de vida. 11 RODINSON, op. cit., p.34 12 DEMANT, Peter. O mundo mulçumano. São Paulo. Editora Contexto, 2004. p.25 47 tinha ‘seus beduínos’”13. Possuidores de uma superioridade militar devido à sua montaria rápida, os beduínos acabaram dominando os sedentários dos oásis, que ali se fixavam criando rebanhos e cultivando tamareiras, em razão da técnica desenvolvida para a construção de poços. Estes chegavam a 170 metros de profundidade, proporcionando o aparecimento da vegetação em meio ao deserto. Os cultivadores, em sua grande maioria, compravam a proteção dos beduínos por meio de serviços ou trocas. A comunicação entre as diversas regiões era feita por meio dos wadis (vales) e as principais rotas de comércio eram a do Hedjaz, que ia dos portos do Mar Vermelho e postos fronteiriços da Palestina e Transjordânia, ao longo do flanco interior da cordilheira costeira do Mar Vermelho, até o Iêmen. Outra rota atravessava o Wadi d-Dawasir, desde o extremo nordeste do Iêmen até a Arábia Central, onde se unia a uma outra rota, a Wadi r- Rumma, para o sul da Mesopotâmia, que constituiu nos tempos antigos a principal via de comunicação entre o Iêmen e as civilizações da Assíria e da Babilônia. A última, entre as mais importantes, era a Wadi s-Sirhan, que ligava a Arábia central ao sudoeste da Síria através do oásis de Jawf.14 As caravanas que interligavam a Arábia do Sul e o Crescente fértil, transportando os produtos produzidos pelas respectivas regiões e outros que por elas chegavam, eram obrigadas a pagar aos beduínos pela passagem nos territórios por eles controlados, como os oásis que, sobretudo pela água, tornavam-se pontos estratégicos para as caravanas. Podemos, por conseguinte, imaginar as freqüentes e acirradas disputas pelo controle das rotas, especialmente entre os grandes centros de cultura e civilização da época: os impérios Bizantino e Sassânida; moldando, direta e indiretamente, o desencadeamento histórico da região. Com o declínio dos reinos da Arábia do Sul - em função de disputas internas, invasões estrangeiras, e do contínuo avanço das tribos do norte - e a busca terrestre por uma 13 14 RODINSON, op. cit. p.41 LEWIS, op. cit., 1996, p.28 48 nova rota que escapasse ao controle persa, os beduínos conquistaram uma grande relevância no cenário comercial. Munidos do privilégio de cobrarem por seu papel de intermediários ou de guias para o tráfico terrestre, revelaram-se hábeis homens de negócios. Organizavam caravanas, negociavam o transporte de produtos preciosos, culminando na formação de “centros de operações”15, o que implicou em sua progressiva sedentarização. A ascensão da cidade de Meca deu-se neste contexto. Afortunada, a cidade possuía uma vasta clientela atraída pelos seus frutos, legumes e vinhos e a vantagem de estar situada a meio caminho entre a Arábia do Sul e a Palestina bizantina.16 Constituiu-se uma aristocracia de comerciantes, cuja tribo mais expressiva foi a dos Quraysh. Os vários clãs que a formavam partiam da perspectiva, de que possuíam um passado mítico comum. Como ressalta Le Goff, nas culturas sem escrita a acumulação de elementos da memória faz parte da vida cotidiana, e seriam nos mitos de origem, que lhe dão um fundamento aparentemente histórico, que se evidenciaria a memória coletiva.17 A tradição posterior conta que os quatro principais filhos de Abd Manaf (um dos filhos de Qoçayy) tinham dividido entre si as regiões a prospectar comercialmente. Um deles tinha ido para o Iêmen, o outro para a Pérsia, o terceiro para a Etiópia e o último para a Síria bizantina.18 Assim sendo, a tribo dos Quraysh teria se estabelecido em Meca no fim do século V, e a ela pertencia Muhammad, que fazia parte do clã dos Hashim. Na noite de 26 para 27 do mês do Ramadã, que posteriormente foi chamada de noite do destino, Muhammad convenceu-se de que estava sendo incumbido de admoestar as pessoas. As mensagens, por ele recebidas, não cessaram durante os vinte anos que se seguiram e teriam sido coletadas por seus companheiros e escritas em pedaço de pergaminho, ossos de omoplata de camelos e 15 RODINSON, op. cit., p.50 Ibid. 17 LE GOFF, op.cit., p.16 18 RODINSON, op. cit., p.57 16 49 guardadas na memória. O que mais tarde resultaria na compilação de um livro chamado Alcorão que significa literalmente “ler” ou “recitar” (Qur’an)19 que é a fonte de nossa pesquisa. Porém, em sua época, o profeta enfrentou acusações como a de ser mais um dos adivinhos da Arábia ou, até mesmo, um poeta, já que a eloqüência era um de seus dons. Suas primeiras pregações preocupavam-se, basicamente, com questões eminentemente religiosas, despertando somente a curiosidade de alguns. Podemos notar que, a princípio, durante as revelações feitas em Meca, as suras se caracterizavam pela sua brevidade e linguagem eloqüente, “Os capítulos do Alcorão relativos a Meca ocupam-se fundamentalmente de questões como a unidade de Deus, a iniqüidade do espírito idólatra e a iminência do julgamento divino.”20 A vida social de Meca é abalada quando as revelações passam a atacar os ídolos e a afirmar o monoteísmo, passando a usar uma linguagem mais inflamada, rompendo com a indiferença por parte dos Quraysh, nos remetendo diretamente ao contexto histórico do profeta. Contudo, apesar dos versículos estarem vinculados a diferentes fases da vida de Muhammad, trata-se de uma única revelação, base essencial do Islã. O conflito teria de desencadeado por razões econômicas, pois a pregação do monoteísmo poria em xeque o estatuto do santuário de Meca (Caaba), já que além de local de culto era também um centro de negócios.21 Outra hipótese considera que Muhammad, mais do que um simples refúgio, tentava encontrar uma nova rota comercial independente, livrando-se assim das sanções comerciais impostas pelos seus opositores.22. 19 Não há um consenso entre os autores sobre quando começou a compilação do Alcorão, porém há uma tendência em aceitar que a forma final se deu com o terceiro califa: Otmam (644-656). 20 LEWIS, op. cit., 1996, p.46 Ibid., p.47. 22 Segundo Karen Armstrong esta hipótese é fruto do trabalho de estudiosos ocidentais. 21 50 De qualquer forma trata-se, aqui, de uma decisão política, que o transforma em um “magistrado supremo de uma comunidade”23, na qual colocaria em prática o que pregava em Meca. A formação da nova comunidade, assim como o papel político desempenhado por Muhammad são, neste trabalho, nosso principal alvo de investigação. A formação de alianças políticas e os meios pelos quais o profeta estabeleceu estas alianças, ocupam um papel de destaque na pesquisa, cujo recorte temporal está demarcado a partir da migração do profeta e seus seguidores (622) até seu retorno a Meca (630). A partir de sua migração para Medina a Umma dos crentes passou a estar submetida às decisões de Muhammad, formando uma nova concepção de autoridade. Configurando-se como um organismo político, possuía, também, contudo, um caráter essencialmente religioso.24 Um dos cinco pilares da fé consiste em realizar, ao menos uma vez na vida, caso o crente tenha condições financeiras e físicas, a peregrinação (hajj) a Meca. Realizada em meses determinados, um de seus ritos consiste em vestir o ihram,duas peças de tecido não costurados e que, nas mulheres, cobre todas as partes do corpo exceto o rosto, as mãos e os pés. Por dias seguidos marcham juntos, em horas prefixadas. Nesta ocasião a igualdade e a unidade devem se sobrepor a nacionalidade, raça, economia ou sexo, pois todos esses ritos simbolizam – ainda que idealizada -a unidade da Umma, ou a comunidade dos crentes. O termo Umma que significa “povo” ou “comunidade” foi muitas vezes relacionada com a palavra árabe umm, ou “mãe”. Trata-se, possivelmente, de um equivoco e acredita-se que seja um empréstimo do hebreu ou aramaico. Em um período anterior, na Arábia antiga um termo “aparentado” com este (lumiya) era utilizado para designar uma “confederação tribal” e, provavelmente, era este o sentido atribuído ao termo que vigorava na época do profeta.25 23 LEWIS, op. cit., 1996, p. 49. 24 Ibid., p. 51. Ver LEWIS, Bernard. A linguagem política do Islão. Lisboa: Colibri, 2002. 25 51 Quanto a utilização deste termo no alcorão, Bernard Lewis destaca que Aparece várias vezes no Alcorão, com variações interessantes. Pode ser étnico, uma vez que o alcorão fala da umma dos árabes. Pode ser religioso, uma vez que o Alcorão fala da umma dos cristãos. Pode ser moral uma vez que o Alcorão fala da umma das pessoas boas, oposta da umma daqueles que fazem o mal. Pode ser ideológico, uma vez que o Alcorão fala daqueles que fazem o bem e se 26 comportam justamente entre os cristãos. Na nossa perspectiva, a comunidade formada em Medina é uma comunidade étnica, religiosa e política, não havendo, portanto, como não mencionar os três níveis, ou ao menos tentar relacioná-los. Nosso enfoque, direcionado para os aspectos políticos, não minimiza, nem exclui os outros dois. Usado durante muito tempo para designar obras que se dedicavam ao estudo do Estado, na época moderna, o termo política foi ganhando outros significados como “ciência do Estado”, “Doutrina do Estado”, “Ciência Política”27, etc. Sempre relacionado a atos de proibir ou ordenar algo a um determinado grupo social, o conceito de política está intimamente relacionado ao de poder. Bobbio chama atenção para a especificidade do “poder político” que “se baseia na posse dos instrumentos mediante os quais se exerce a força física (as armas de toda a espécie e potência): é o poder coator no sentido mais estrito da palavra.”28 O poder, ou a capacidade de agir ou produzir efeitos sobre um grupo de pessoas29, pode ser exercido por vários meios, riqueza, força, informação, prestígio, legitimidade, popularidade, etc. Contudo, a capacidade daquele que exerce o poder em converter os recursos a sua disposição em poder, ainda é fundamental.30 Assim, o profeta desempenhou seu poder por meio da influência de suas idéias, expressas em certas circunstâncias, que foram difundidas por ele, pessoa investida de certa autoridade: era um mensageiro divino. Por isso, podemos dizer que Muhammad exerceu poder ideológico e político31 (em seu sentido mais estrito), pois tinha a posse dos instrumentos, por meio dos quais poderia exercer a força física. No entanto, a sociedade em questão possui especificidades que não estão necessariamente ligadas à concepção de Estado. Trata-se de uma sociedade na qual as relações políticas ainda são fundamentadas no parentesco, pois rege a relação entre grupos sociais e não entre pessoas, regulando o acesso aos cargos que conferem poder ou autoridade.32 Baseando-se em pesquisas de campo, Georges Balandier, contrapõe-se a estudiosos como Morgan e teóricos marxistas que vêem a completa dissociação entre os laços de pessoais de sangue e a emergência do político. 26 Ibid., p.53 BOBBIO, Norberto. Política In ________; Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 12 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. p.954 28 Ibid., p.955 29 STOPPINO, Mario. Poder. In BOBBIO, op. cit., p 933 30 Ibid., p.937 31 BOBBIO, op. cit., p.955 32 BALANDIER, Georges. Antroplogia Política. Lisboa: Editorial Presença, sd. p.87 27 52 Balandier, ao contrário, demonstra que em muitas sociedades - ditas de linhagem, segmentarias ou acéfalas — é o parentesco que “ fornece ao político uma linguagem”, em alguns casos as manipulações do parentesco são um dos meios de “estratégia” política. No entanto, nem sempre as relações de parentesco em sua totalidade possuem funções ou significados políticos. Deve-se, portanto, atentar para seus mecanismos internos e externos que encerram relações políticas, como por exemplo, a descendência unilinear ou formações de redes de alianças, fruto de trocas matrimoniais. Na tentativa de perceber tais mecanismos, já que em algumas sociedades os limites não são totalmente claros, é necessário em primeiro lugar buscar o princípio que determina a vinculação a uma determinada comunidade política. Ou seja, nas palavras de Balandier, o que “condicionaria a ´cidadania`” nestas sociedades. Em nossa fonte o que definiria a “cidadania” seria a religião. Ser crente ou não-crente define o acesso a direitos e a proteção. A dicotomia entre “crentes e “não-crentes”, marca o discurso que envolve a comunidade e sua relação com as duas categorias. Ao crente, por exemplo, é vedado o casamento com uma mulher que não o seja : “Não desposareis as idólatras até que elas se convertam, porque uma escrava crédula é preferível a uma idólatra, ainda que esta vos apraza.”33. Um crente ser assassinado por outro é inadmissível, e tampouco deve-se tomar um incrédulo por confidente: “Ó crentes, não tomeis por confidentes vossos pais e irmãos, se preferirem a incredulidade a fé; aqueles dentre vós, que os tomarem por confidentes, serão injustos.”34 As categorias “recompensa” e “punição” estão diretamente vinculadas com esta separação. Aos crentes está destinado o paraíso: jardim abaixo do qual correm os rios, onde desfrutarão de uma densa sombra, acomodados em almofadas, estarão enfeitados com braceletes de ouro e pérolas e vestidos com seda. Aos incrédulos, caso não tenham se convertido, ainda em vida, estará reservado o fogo infernal. 33 34 Alcorão, 2: 221 Alcorão, 9: 23 53 Na tentativa de apreender o político, tarefa extramente difícil, principalmente, em sociedades de “ fraca diferenciação”, devemos nos ater, sobretudo, aos seguintes aspectos: segmentação/hierarquia, poder/autoridade e que “a vida política se revela, em primeiro lugar, pelas alianças e defrontações, pelas fusões e fissões que interessam aos grupos de linhagem”35 Assim, nossa atenção deve estar centrada nas estratégias e manipulações em relação ao poder e autoridade. Pretendemos, portanto, analisar os caminhos e formas que tornam possível a expressão da vida política. Se podemos vislumbrá-la nas situações em que esta se manifesta, em nossa pesquisa circunscrevemos três principais campos que, em nosso entender, são reveladores da dinâmica e manipulações políticas: o casamento, a guerra e a religião, que deram origem a três capítulos da dissertação de mestrado. Com relação à questão do casamento podemos afirmar que “as estratégias matrimoniais – a dimensão da aliança – são um elemento singular da constituição de preeminências políticas.”36 Assim, ao refugiar-se em Medina, o Profeta teria não só estabelecidos alianças com tribos próximas por meio de acordos, mas também por meio de casamentos, não é por acaso que somente a ele é atribuído o direito de casar-se quantas vezes desejar e com quem quiser, sem restrições. “Ó Profeta, em verdade, tornamos lícitas, para ti as esposas que tenhas dotado, assim como as que tua mão direita possui - que Allah tenha feito cair em tuas mãos – as filhas de teus tias e tuas tias paternas, as filhas de teus tios e tias maternas, que migraram contigo, bem como toda mulher crente que se oferecer ao Profeta, por gosto, e uma vez que o Profeta queira desposá-la, este é um privilégio exclusivo teu, vedado aos demais crentes.”37. O contributo, portanto, da Antropologia política para nosso trabalho consiste que seus pressupostos nos permitem articular parentesco e poder político, pois segundo Balandier “não há sociedades sem poder político, não há poder sem hierarquias e sem relações desiguais instauradas entre os indivíduos e os grupos sociais”38. Em um contexto de grandes disputas políticas e econômicas, as principais articulações políticas davam-se entre Muhammad e seus seguidores [leia-se Umma]; as tribos judaicas e cristãs que além de uma localização estratégica, comercialmente, também possuíam um papel decisivo em época de conflitos bélicos; e os comerciantes ou a oligarquia de Meca. E por que não pensar nas articulações entre o Profeta e sua comunidade? Garantir ou legitimar sua liderança entre os crentes também era de crucial importância. Cabe, portanto, ressaltarmos o papel desempenhado pelo profeta e sua relação com a comunidade, formada a partir de suas revelações. Na tentativa de apreender o político, poderíamos nos remeter às categorias adotadas por Jean Copans e tentar perceber a sociedade tribal como uma “sociedade hierarquizada”. Seguindo a mesma linha, a sociedade em que emerge a figura de Muhammad poderia ser considerada “estratificada ou de chefaturas”, pois já havia uma “aristocracia” de famílias 35 BALANDIER, op. cit., p.55 COPANS, Jean. A Antropologia política. In________ Antropologia. Ciência das sociedades Primitivas? Lisboa: Edições 70, 1971. p.111 37 Alcorão, 33: 50. 38 BALANDIER, op. cit., p.85 36 54 dominantes que vivia em função de uma “economia mercantil”. Jean Copans destaca ainda que “na medida em que o parentesco já não pode manter e exprimir a coesão social e em que as desigualdades da estratificação são portadores de contradições e antagonismos, faz-se sentir a necessidade de um controle específico da coesão e das contradições.”39 Eis que surge a liderança de Muhammad , que com seu carisma - ou seja, qualidade pessoal considerada extracotidiana , em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, extracotidianos específicos ou então se toma como enviada por Deus, como exemplar e, portanto, considerado como líder40 - foi aceito como mensageiro de Deus. E exerceria sua liderança carismática também como chefe político e guerreiro. Na esteira de Max Weber, devemos destacar que entendemos como profeta aquele que possui um carisma pessoal e, em virtude de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandato divino, configurando-se como um “renovador” ou como “o fundador de uma religião”.41 Se estivéssemos tratando de um sacerdote, este reivindicaria sua autoridade baseando-se em uma função exercida dentro de uma tradição sagrada, mas, neste caso, sua autoridade é legitimada em decorrência de uma revelação divina e em seu carisma. Há no discurso corânico freqüentes referências acerca da “origem” do poder exercido por Muhammad: “Dize: Ó humanos, sou o mensageiro de Allah para vós.” ; “Quem obedecer ao mensageiro obedecerá a Allah.”42 Ao ser mencionado o mensageiro é sempre aquele que guia, admoesta, anuncia, orienta, elucida e para aqueles que não crêem em sua missão outros exemplos são narrados na fonte, como o povo de Noé “injusto de transgressor”, Sodoma e Gomorra, o Faraó que julgou Moiséis como um mago, todos punidos severamente pela sua incredulidade, sendo assim tomados como “exemplos dos antepassados”. As revelações 39 COPANS, op. cit., p.108 Ibid., p.158-159. 41 WEBER, Max. Sociología de la religión. Madrid: ISTMO, 1997. p.105 42 Alcorão, 4: 80 40 55 apontam Muhammad, incessantemente, como um mensageiro que surge do meio árabe, um mensageiro de “vossa raça”, cujo mérito é guia-los e protege-los dos infortúnios. Como sua missão não está ligada a magia e sim a formação de uma doutrina tanto religiosa como ético-social, devemos destacar a observação de Weber para o fato de que a distinção entre um “profeta” e um “legislador” é bastante fluida. Um legislador, ou uma pessoa em que se confia a tarefa de constituir ou ordenar um sistema de Direito ( como Sólon, na Grécia), é geralmente nomeado para o cargo em momentos de tensão social, principalmente ao surgir uma diferenciação econômica dentro de uma mesma categoria, ou melhor, “a riqueza de uns” em contraste com a servidão de outros.43 Se nos remetermos a situação de Meca e ao conflito entre a emergente aristocracia comercial, verificaremos, seguindo esta perspectiva, que o contexto era similar ao mencionado por Weber, quando surge uma legislação sagrada com o Islã. Allah, Deus único, adverte por meio de seu mensageiro: “Pelo convênio dos Coraixitas, o convênio das viagens de inverno e de verão! Que adorem o Senhor desta casa.”44; “Ai de todo o difamador, caluniador, que acumula riquezas e as entesoura, pensando que suas riquezas o imortalizarão! Sem dúvida que ele será precipitado naquilo que o consumirá.”45 Iniciava-se, segundo Maxime Rodinson, um processo de dissolução da sociedade tribal : não eram já as qualidades tradicionais dos filhos do deserto que asseguravam o êxito. A avidez, a ânsia do ganho eram muito mais necessárias. Os ricos presunçosos e vãos orgulhavam-se da sua promoção, que era sua, pessoal, e não já da tribo. Os laços de sangue afrouxavam, cediam em importância aos laços baseados na comunidade dos interesses.46 . Apesar do êxito de sua profecia, ou seja, ter conseguido agregar seguidores, sua jovem comunidade enfrentaria grandes desafios nos anos que se anunciavam. Em geral , sua permanência em Medina é lembrada como a Idade do Ouro, mas também como um período 43 Weber, op. cit., p.108 Alcorão, 106: 1-3 45 Alcorão, 104: 1-4 46 RODINSON, op. cit., p.50 44 56 de tristezas e terror.47 Se nesse período específico há vários grupos políticos em condições equivalentes de disputa, ao retornar a Meca Muhammad e seus seguidores passam a dominar a cena política, mantendo sob seu controle, ainda que instável, o espaço, das rotas comerciais e as regras sociais e religiosas. O Alcorão, livro sagrado dos mulçumanos, fonte principal de nossa pesquisa, significa literalmente “ler” ou “recitar” (Qur’an) e teria sido, segundo a tradição muçulmana, revelado por Deus ao profeta Muhammad, por intermédio do anjo Gabriel, por volta de 610 d c., quando o profeta tinha aproximadamente 40 anos. Após a primeira mensagem recebida no monte Hira, Muhammad continuou recebendo-as por 20 anos. Muitas das mensagens foram “coletadas” por seus companheiros e escritas em pedaço de pergaminho, ossos de omoplata de camelos e guardadas na memória. Não há um consenso entre os autores sobre quando começou a compilação do Alcorão, porém há uma tendência em aceitar que a forma final se deu com o terceiro califa: Otmam (644-656). Seus primeiros manuscritos foram produzidos na escrita cúfica, “severa e angulosa”. A escrita cursiva foi empregada somente no séc. X, reforma instaurada pelo vizir Ibn Muqla, por volta do ano 900, em decorrência também do advento do papel (751). O Alcorão está organizado em suras ou capítulos, um total de 114, que são identificadas por seus nomes (O Trovão, A Vaca, A Luz, O Criador, A Caverna...). Cada Sura contém um número variável de versículos, também chamados ayat (“sinais”). Não há uma ordenação cronológica dos capítulos, que estão dispostos em ordem decrescente de número de versículos, com exceção da sura de abertura (Fatiha) que, segundo Annemarie Schimmel, é tão importante para os muçulmanos quanto o Pai Nosso para os cristãos. 47 ARMSTRONG, Karen. Maomé: uma biografia do Profeta. São Paulo: Cia das Letras, 2002. p.190 57 A primeira tradução latina do Alcorão ocorreu em 1143 e foi empreendida por Pedro, o venerável, abade de Cluny. O abade reuniu estudiosos cristãos e muçulmanos e o inglês Roberto de Ketton para a realização da tarefa. Esta não foi levada adiante devido às derrotas dos cruzados no Oriente Próximo, o que gerou uma onda de sentimento antiislâmico. Porém, o trabalho foi retomado no séc. XV por João de Segóvia e Nicolau de Cusa, que buscavam novas formas de encarar o Islã, que agora se encontrava “à soleira da Europa” com a conquista do império cristão de Bizâncio pelos turcos. João de Segóvia morre em 1458 e o trabalho é realizado por Nicolau de Cusa que faz um estudo literário, histórico e filológico do texto. As referências judaicas e cristãs estão presentes no Alcorão. O texto faz referência a episódios do velho testamento e dos evangelhos, entretanto, apresentando versões diferentes, o que não é um contra-senso, já que é considerado o último livro revelado e as mensagens anteriores teriam sido deturpadas pelos seus seguidores. Os profetas das outras religiões também são citados. Entre os vinte e oito mencionados, os que recebem maior destaque são: Noé, Abraão, Moiséis, Jesus e Mohammad. Segundo a tradição muçulmana este último era iletrado, portanto, não leu a bíblia. Seu contato com as outras religiões teria ocorrido através dos comerciantes ou viajantes judeus e cristãos, tendo sofrido influências ousadas e apócrifas.48 O Alcorão também é a fonte primária da lei islâmica, a Sharia. As regras que estão claramente expressas no livro não estão abertas a discussão. Contudo, caso haja algum ponto passível de dúvida, ou que não tenha sido abordado, também podem consultados: a Suna, o raciocínio por analogia (qiyas) e o consenso da comunidade (ijma). As três, além do Alcorão, compõem os quatro princípios de jurisprudência. Os juristas sunitas se dividem em quatro escolas: Maliki, Hambali, Hanif e Shafii. 48 LEWIS, op. cit.,1996,p.46 58 Por ser considerado a palavra de Deus, o Alcorão é guardado em lugar de destaque na casa dos muçulmanos e sua recitação e memorização, ainda hoje, são incentivadas. Junto com o Alcorão surgem novas formas de pensamento no Islã, a teologia (Kalam), que buscava aplicar o raciocínio e argumentação filosóficas aos dogmas do islamismo, mística (Sufiya) e o entendimento pela demonstração lógica (Falsafa). Assim sendo, estamos tratando de um texto do séc. VII cuja autenticidade não é questionada pelos autores aqui tratados. Este livro rege a vida religiosa, moral e social dos muçulmanos. Com ele surge uma nova ordem política que começa em Medina, com a Umma. Em nossa pesquisa utilizaremos a edição impressa da fonte em português traduzida por Samir El Hayek, editada pela Marsa Editora Jornalística. No que se refere a metodologia em relação a nossa fonte devemos lembrar que foram estabelecidas normas com o Alcorão, já que são estipulados padrões de comportamento que o crente não só adota para si, mas também para os outros, reagindo negativamente em relação àqueles que não se comportam como ele.49 O Alcorão, portanto possui uma linguagem prescritiva, ainda, de uma forma geral, possamos considerar que, apesar de a linguagem possuir três funções básicas: representar ou descrever certo estado de coisas, dar informação e transmitir conhecimento; influenciar o comportamento dos outros, orientar dirigir, regular, controlar, etc.; patentear, revelar, transmitir estados de espírito, suscitar sentimentos e provocar reações emotivas, na realidade nenhum discurso encontra-se em seu “estado puro”,e desta forma, nossa fonte possui uma linguagem que mescla as três funções. Porém, podemos nos remeter ao termo prescrição, porque todo o “aconselhamento”, contido em seu discurso em relação as regras sociais e religiosas, visa influenciar o comportamento e vem acompanhado de sanções, neste caso o crente se confrontará com ela no Dia do 49 Norma. p.107 59 Juízo, quando Deus o julgará por suas ações, destinando-lhe o paraíso ou o inferno. A partir de uma análise preliminar, pudemos verificar que com a formação da comunidade profética, de acordo com o discurso apresentado pela fonte, o meio árabe passou a estar dividido entre “crentes” e “não-crentes”, estes últimos seriam judeus, cristãos (estes também chamados de “povos do livro”) e os idólatras (ou os que continuavam adorando os deuses “pagãos”). No que se refere às marcas do discurso sobre a comunidade religiosa, a presença da dicotomia Nós/ Outros que se destaca ao opor crentes aos judeus, cristãos e idólatras. Ou ainda a referência a recompensa/ punição; paraíso/ inferno; recompensa terrena (espólios)/ recompensa celeste (paraíso). As categorias “recompensa” e “punição” estão diretamente vinculadas com esta separação. Aos crentes está destinado o paraíso: jardim abaixo do qual correm os rios, onde desfrutarão de uma densa sombra, acomodados em almofadas, estarão enfeitados com braceletes de ouro e pérolas e vestidos com seda. Aos incrédulos, caso não tenham se convertido, ainda em vida, estará reservado o fogo infernal. Assim, na tentativa de abordar as interconexões presentes no textos, utilizaremos como metodologia de pesquisa a semiótica textual, mais precisamente, leitura isotópica das fontes, ou seja, a distinção dos três níveis semânticos do discurso: a figurativo, o temático e o axiológico que são “aqueles elementos de significação recorrentes, redundantes, repetitivos: 60 os quais por tais características, são subjacentes à coerência textual.”50 E posteriormente o quadrado semiótico que “constitui-se em apresentação gráfica, visual, da articulação de uma categoria semântica, isto é, de um elemento de significação achado num discurso dado, do qual é a estrutura profunda, o núcleo do sentido”51, sendo possível desta forma verificar as estruturas superficiais e profundas do texto em questão. O primeiro capítulo da dissertação, intitulado Península Arábica: vidas, aromas e caminhos, tem como objetivo principal traçar uma panorama geral acerca do contexto histórico do surgimento do islamismo. Para isso tornou-se necessária uma caracterização detalhada da Península Arábica. Descrição espacial/geográfica, como também política, social e cultural. Constituída por diversos grupos, nômades e sedentários, a Península Arábica possuía uma região ao sul constituída por povos ou reinos sedentários cujo poder assentava-se em monarquias, e que mantinham sua subsistência por meio da agricultura e pelo comércio. Através de seus portos desembarcavam produtos como o ouro, a pérola, plumas de avestruz e escravos, que iam por meio de caravanas para o Norte da Península e pelo mar aos países do Mediterrâneo. Possuidores de uma cultura e uma língua peculiares, seu estudo arqueológico atesta uma sociedade muito desenvolvida, com uma expressão artística refinada e elegante. Em contraste, encontramos a região dos sarracenos, no norte e centro da península. Povos nômades, criadores de camelo conviviam com os sedentários numa espécie de “simbiose”. Os primeiros garantiam a segurança e os segundos lhes forneciam gêneros, como a tamareira, principal cultivo dos povos sedentários que ocupavam os oásis. Esta sociedade organizava-se em clãs e a reunião destes, possuidores de um passado real ou mítico comum, uniam-se pelos laços de parentesco, formando uma tribo. Seu sistema 50 CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Narrativa, sentido, história. Campinas: Papirus, 1997 p.173 51 ibid. p.110 61 político era baseado em um conselho de anciãos que deliberavam acerca das questões que envolviam o grupo. O chefe da tribo era conhecido como Sayyid ou Sheikh, mas não detinha poderes coercitivos. Sua manifestação cultural mais importante e a única que chegou até nós, devido às compilações levadas a cabo no VIII século d.C. foram as poesias. Estas são os vestígios de seu modo de vida e de seus valores, como a muruwah ou a fidelidade à tribo. Seus poetas detinham um importante papel, através deles narrava-se os feitos heróicos da tribo, as façanhas de seus ancestrais, suas glórias e vitórias. Em oposição, as poesias, geralmente em sua última parte, também poderiam tripudiar sobre as tribos inimigas, e por isso nos fornecem um rico material sobre a Arábia pré-islâmica. Em virtude de mudanças no eixo comercial, ou seja, em função das disputas entre os dois grandes impérios da época- Bizantino e Persa- a região passou a ser valorizada por suas rotas comerciais. Profundos conhecedores dos “caminhos” entre os desertos, os nômades passaram a protagonistas do rico comércio que ligava os Países do Mediterrâneo aos “aromas” tão cobiçados. Por volta do V século a cidade de Meca foi fundada pela tribo dos Coraixitas e por possuir uma localização privilegiada, situada em um entroncamento de rotas, a cidade prosperou. Neste contexto emerge Muhammad com suas pregações, advertindo aos “cidadãos” de Meca sobre o poder de Allah. 62 No segundo capítulo Muhammad, sua liderança política e legitimidade religiosa, tentamos desenvolver uma análise acerca da constituição da Umma, ou primeira comunidade muçulmana, enfatizando o contexto de seu irrompimento e as imbricações entre a política e o discurso religioso. Observamos que ao receber as primeiras revelações, supostamente divinas, Muhammad foi considerado por muitos como um adivinho ou um poeta. Agregou, de início, pouquíssimos seguidores e, em sua maioria, eram pobres, artesãos ou clientes da tribo dos Coraixitas que dominava a cidade de Meca. Apenas quando o profeta ressalta o monoteísmo tem início a perseguição empreendida pela aristocracia de Meca, que o obrigou a migrar para Medina em 622 d.C.. Muhammad e seus seguidores estabelecem na nova cidade uma comunidade político-religiosa, da qual o Profeta tornou-se líder. As revelações que continuou recebendo regiam a vida religiosa, moral e social dos que se converteram ao novo credo. Baseados nos estudos de Max Weber analisamos a liderança “carismática” de Muhammad e como esta se constituiu e se legitimou. Com base em nossas fontes primárias pudemos constatar que a legitimidade de seu poder advém da crença que este foi outorgado por Deus, é um mensageiro divino, e cabe a ele admoestar, guiar e adverter sobre a onipotência de Allah. Sua liderança em nosso entender constitui uma mudança importante na política que até então vigorava, pois era baseada em laços de parentesco. A partir da constituição da Umma, Muhammad possui, diferentemente dos antigos líderes tribais, a capacidade coercitiva, as questões relativas ao grupo estão submissas as suas decisões e não mais a uma conselho. Porém, apesar de impor-se a frente da jovem comunidade com uma nova forma de liderança, o Profeta soube articular esta nova concepção política e religiosa, aos antigos e já suplantados preceitos tribais. Para isso valeu-se de conceitos como honra, fidelidade e generosidade que eram valorizados pela sociedade da qual fazia parte. Allah possui os 63 atributos dos antigos Sheikhs tribais, o que pode ter tornado sua mensagem inteligível aos seus contemporâneos e pode nos ajudar a compreender a adesão cada vez maior de seguidores. Assim, este segundo capítulo tem como objetivo central analisar a relação entre o sagrado e poder, além de abordar os aspectos de continuidade e ruptura em relação a esta questão. 64 No terceiro capítulo intitulado A Guerra veremos que Durante os dez anos que permaneceram em Medina (622-632), Muhammad e seus seguidores, para garantirem a subsistência da frágil comunidade fizeram uso das práticas correntes em sua sociedade. Como foi vislumbrado no primeiro capítulo desta dissertação, a razia ou reide às caravanas e tribos vizinhas faziam parte das estratégias de “sobrevivência” na Arábia pré-islâmica, o que poderia provocar a vendeta ou conflitos por disputas de rotas comerciais. Apesar de sua migração, o Profeta do Islã continuou a enfrentar a oposição dos grandes comerciantes da região, os Coraixitas. Foram travadas várias batalhas e ,entre elas, as mais notórias foram as de Badr e Uhud, tendo a vitória da primeira constituído uma “prova” da intervenção divina e tornando-se posteriormente conhecida como a primeira Jihad muçulmana. O objetivo do presente capítulo consiste em analisar o discurso corânico referente à guerra, pois acreditamos que por meio deste podemos conjecturar acerca da liderança política empreendida por Muhammad, cujo papel na guerra corrobora nossa hipótese acerca da centralização de poderes em suas mãos. Segundo nossa fonte de pesquisa, pudemos perceber que sua liderança militar implicava não apenas na liderança no campo de batalha, mas também em estipular as estratégias (objetivos gerais que o fenômeno pode alcançar) e táticas (o estudo do afrontamento direto com o inimigo). Existem, no Alcorão, normas referentes a guerra que indicam, por exemplo quem deve lutar e quem está dispensado; o destino do butim (visto como uma recompensa terrena pelo crente ter lutado pela “causa de Deus”); o tratamento a ser dado aos prisioneiros de guerra, etc. No que tange as “heranças” pré-islâmicas, devemos ressaltar a importância atribuída a coragem, o “sacrifício por um ideal” que era tido como um código de comportamento entre as tribos. Neste contexto, entre os crentes de Medina no século VII a coragem e sacrifício continuam a ser estimulados, porém pela via religiosa. Ao muçulmano está prescrito o despreendimento material (abrir mão de suas casas e bens, caso seja necessário) pela “causa 65 de Deus”, a coragem para lutar pela comunidade, assim como seus antepassados lutaram pelas suas tribos, cumprindo um pacto de fidelidade. Aos que conseguem se empenhar está reservado o paraíso, recompensa celeste pelo sacrifício do mártir, constantemente salientado. O próprio discurso sobre questões religiosas está imbuído de termos bélicos. A referir-se aos crentes e não-crentes é comum adjetivar os últimos como “inimigos” , “adversários” ou “rivais”, o que parece evidenciar a importância desta questão em sua época. Igualmente importante é a mudança ocorrida ao analisarmos as relações existentes entre guerra e política. Nos parece que na Arábia pré-islâmica a guerra era fundamentalmente travada por razões de ordem “financeira”, seja quando atacavam caravanas, seja quando lutavam como mercenários. O fenômeno da guerra passa a configurar-se como um instrumento também político, movida por razões de ordem ideológica, a luta por sua religião e pelo direito de praticá-la, pois estavam proibidos de praticar a peregrinação a Caaba, ritual pré-islâmico adotado pelo novo credo. O conflito armado ou a simples ameaça dele pode ser utilizado como meio de manutenção e forma de exercer o poder, como foi feito por Muhammad. Ao mesmo tempo não podemos nos furtar de mencionar sua importância para a construção de uma identidade, pois diferencia “amigos” de “inimigos”, ou seja, o “nós” e o “outro”. Assim sendo, pretende-se, neste terceiro capítulo, analisar a relação entre a política e o fenômeno da guerra e suas imbricações na constituição da liderança de Muhammad. O aprofundamento da constituição política que antecede o surgimento do islã constituiu parte deste quarto e último capítulo da dissertação Antigos acordos, novos limites: o casamento. A definição e caracterização desta faceta da sociedade pré-islâmica é fundamental para compreendermos os mecanismos políticos presentes na fonte e algumas de suas origens. Formada por tribos e clãs, a política se manifestava por meio do parentesco, ou, nas palavras de Balandier, lhe fornecia uma “linguagem”. Neste tipo de sociedade, ainda pouco 66 diferenciada no que diz respeito a hierarquias, a descendência regia ou mesmo fundamentava o político. Objeto de reflexão da Antropologia Política, a questão do parentesco pode e deve ser abordada com o intuito de perceber como e porque Muhammad, apesar de estipular um novo critério de pertença ao grupo, que não está mais vinculado aos laços de sangue, firma acordos políticos e alianças por meio de uma estratégia que fez parte da lógica tribal, ou seja, alianças matrimoniais. Ao verificar os versículos corânicos referentes à questão do casamento, podemos observar que estes também estabelecem hierarquias, que optamos por nomeá-las de “externas” e “internas” em relação a Umma. As primeiras são estabelecidas entre crentes e não-crentes ao afirmar que está vedado o casamento entre esses. No que se refere as hierarquias no seio da Umma, estabeleceu-se a distinção entre livres e cativos; homens e mulheres. Com relação a esta última, cabe ressaltar que ao homem cabe a escolha dos respectivos maridos de suas filhas. Estas, por sua vez, ao se casarem devem ter um dote que lhes é devolvido a metade em caso de divórcio. Porém, há indícios do uso da violência por parte do marido, dada a possibilidade, por opção da mulher, de abrir mão de sua parte no dote a fim de “comprar sua liberdade”, caso o marido a force a isso. Este tipo de divórcio chamado em árabe de Khul `a, cujo radical em árabe لsignifica “solução”, indica talvez, casamentos com o propósito financeiro, ou seja, homens que se casavam, ganhavam o dote e depois as forçavam a se separarem por essas vias. Da tutela dos pais, a mulher passa a tutela dos maridos. Ao refugiar-se em Medina, o Profeta teria não só estabelecidos alianças com tribos próximas por meio de acordos, mas também por meio de casamentos, não é por acaso que somente a ele é atribuído o direito de casar-se quantas vezes desejar e com quem quiser, sem restrições. Assim, na comunidade de Medina os homens livres e crentes (muçulmanos), mantiveram-se com as rédeas da política nas mãos. Além da preponderância política, conquistaram um domínio também econômico, não apenas por estarem à frente dos 67 “negócios”, mas também por meio das normas de herança, pois aos filhos varões é destinada a maior parte dela. Entre os anos de 622 e 632, Muhammad esteve em Medina, travando inúmeras guerras contra seus inimigos de Meca, período em que as alianças políticas eram indispensáveis. Os Coraixitas eram seus principais opositores, daí a importância de se estabelecer, também por via do casamento, alianças com alguns clãs da tribo. A maioria de suas esposas pertencia à tribo que tanto o perseguia, além dela também havia tribos judaicas, importantes na região, cujo apoio era fundamental por ocasião de conflitos. Outro detalhe importante em relação as suas esposas é que Aisha era filha de Abu Bakr e Hafsa de Ummar, futuros Califas. Estas alianças seriam reivindicadas por eles mais tarde, na época da sucessão. 68 Capítulo I- Península Arábica: vidas, aromas e caminhos O narrador de histórias, personagem ilustre no mundo árabe, pode ser encontrado ainda hoje, cercado por olhos e ouvidos atentos, uma tradição que se perpetua através dos séculos. A mais famosa coletânea de histórias que chegou até nós, As mil e uma noites, que começou a “circular” desde o século IX. d.C, época do governo do grande califa Harum Al-Hashid, contém narrativas fantásticas de heróis, de aventuras, de traição, temas recorrentes em outras obras que, como As mil e uma noites, muito provavelmente, foram em um primeiro momento transmitidas oralmente, sempre primando pela rima, fato que contribuía para a memorização. Com a expansão do islamismo, a partir do século VII, às novas áreas, novas tradições culturais foram sendo incorporados, e com os viajantes, novos personagens ganhavam espaço nas histórias. Heróis mudavam seus nomes, passando a personificar líderes notórios, e cenários, até então desconhecidos do grande público, surgiam adequados convenientemente ao contexto e à época de sua narração. Os viajantes traziam consigo notícias e idéias que eram incorporadas às histórias, e seu exímio narrador as adaptava, mudava o tom de sua explanação, pois a expectativa do público que provinha do campo era diferente da do citadino. E se contar histórias faz parte de uma longa tradição, as viagens também o fazem. A começar pela migração sazonal dos criadores de camelos que passam, por exemplo, o inverno em Nufud e viajam no verão para Síria ou Iraque. O calendário muçulmano é inaugurado pela viagem do Profeta Muhammad de Meca para Medina, e das grandes cidades islâmicas da Idade Média, Córdoba, Sevilha, Granada, Fez, Marrakesh, Kairan, Tunis, Cairo, Damasco e Alepo, muçulmanos partiam para aquela que consideravam como o símbolo de todas as viagens: a grande peregrinação à Meca, Hajj. E por que não mencionar o grande viajante, o mercador? O mesmo que durante a peregrinação levava seus produtos e os vendia pelo caminho para custear a longa jornada. Desde tempos imemoriais, ele cruzava enormes distâncias, atravessando os desertos com suas caravanas, levando ao norte da Península Arábica os produtos que chegavam ao sul. Podia ainda negociá-los no caminho, com tribos que controlavam os oásis, garantindo-lhe a passagem segura. Possivelmente, entre esses homens e as tribos nômades com sua poesia, por meio da qual narravam suas aventuras e atos de coragem, nascera o gosto pelas histórias e pela arte de contá-las. É nas origens desses homens e dessa cultura que nos deteremos a partir de agora. As caravanas, que ligavam desde a Antiguidade as regiões do Mediterrâneo aos produtos do Extremo Oriente, possuíam como alternativa de rota terrestre a Península Arábica. O Império de Alexandre e seus sucessores, por exemplo, utilizavam a rota do Hijaz que ligava os portos do Mar Vermelho e postos nas fronteiras da Palestina e Transjordânia, atravessando a cordilheira costeira do Mar Vermelho até o Iêmen, ao sul da Península. São muitas as hipóteses formuladas acerca da origem dos povos que habitavam a região, mas poucas as investigações geológicas e arqueológicas, se comparadas àquelas realizadas no Egito, na Palestina e na Mesopotâmia.52 Uma delas, conhecida por “Winckler-Caetani”53, considerada uma das mais plausíveis, defende a idéia de que a Arábia seria a “pátria” dos povos semitas, e que teria sido um território extremamente fértil que, ao passar dos milênios, teria sofrido vários processos de seca com o conseqüente esgotamento dos recursos e água. O deserto teria avançado sobre as terras cultiváveis provocando uma grave crise na produtividade. Aliado a esse fator climático, um aumento populacional também teria contribuído para um ciclo de migrações 52 53 LEWIS, Bernard. Os Árabes na História. 2 ed. Lisboa: Editorial Estampa,1996. p.28 Ibid., p. 29 53 para regiões vizinhas. Assim, Sírios, Arameus, Cananeus (Fenícios e Hebreus54) e Árabes teriam chegado até ao Crescente Fértil. Em apoio a esta perspectiva encontram-se evidências tais como leitos secos de rios e indicações de que houvera um período remoto de fertilidade. Ainda assim, não há indícios de que essa alteração climática tenha ocorrido após o surgimento de vida humana, ou que tenha sido grave o suficiente para alterar ou influenciar o curso da mesma. Uma característica importante da língua árabe também concorre em apoio a essa teoria. Apesar de ser recente sua manifestação literária e cultural, em sua estrutura gramatical é a mais antiga das línguas semíticas, isto é, é a mais próxima da língua original proto-semítica55. Há, contudo, uma hipótese formulada por Ignazio Guidi que defende ser o sul da Mesopotâmia a “pátria” dos povos semitas, baseando-se para isto em argumentos filológicos, pois as línguas semíticas possuem vocábulos comuns para “rio” e “mar” e vocábulos diferentes para designar “montanha” ou “colina”. Em todo caso, não há estudos suficientes que atestem ou descartem quaisquer dessas hipóteses. Quantos aos árabes, que assim autodenominavam-se, data do século IX a.C. a primeira menção a seu respeito, não havendo sido encontrada nenhuma comprovação de que outro povo os tivesse precedido na ocupação da região: no ano de 853 a.C., o rei assírio Shalmaneser III relatava sua vitória sobre uma conspiração de príncipes, um deles conhecido por Gindibu, o Aribi. Até o século VI a.C. foram encontradas outras referências, tais como Aribi, Arabu e Urbi em várias inscrições assírias e babilônicas. Porém, são muitas as dúvidas acerca da origem do termo entre os filólogos. Discutiu-se a 54 Os Hebreus teriam chegado às montanhas da Palestina por volta de 1230 a.C., os Cananeus e Filisteus teriam impedido sua chegada às planícies. Ver BRAUDEL, Fernand. Memórias do Mediterrâneo. Rio de Janeiro: Multinova, 2001. p.172 55 Para as referências a seguir apoio-me em LEWIS, Bernard. Os Árabes na História. 2 ed. Lisboa: Editorial Estampa,1996.p. 14-16. 54 possibilidade da palavra derivar de uma raiz semítica que significa “ocidente”, que faria referência aos povos a ocidente do vale do Eufrates, embora seja pouco provável que um povo se identifique através de um termo que indica sua posição em relação a outro. A palavra “árabe” também já foi relacionada com os termos oriundos do hebraico arabha (terra escura ou estepe), Erebh (misturado, que remeteria à noção de desorganização em relação às sociedades sedentárias) e Abhar (mover ou passar, a mesma raiz de que deriva a palavra “hebreu”). Existe a convicção de que o termo está relacionado com o nomadismo, pois os próprios árabes o teriam usado no intuito de marcarem a distinção entre os beduínos de língua árabe e os habitantes das cidades e aldeias, e as inscrições mais recentes também possuem ilustrações dos “aribi” e seus camelos. Estes são o povo nômade do extremo norte da Arábia, do deserto Sírio-árabe. Nas inscrições encontradas ao sul da Arábia, “árabe” significa beduíno, algumas vezes, assaltante, e referia-se à população nômade, diferentemente dos povos que ali habitavam. Ao norte, a expressão foi utilizada pela primeira vez no início do século IV d.C., no Epitáfio de Namarra, um dos registros mais antigos da língua que daria origem ao Árabe Clássico56. As informações mais precisas sobre a utilização do termo no centro e no norte da Península só foram possíveis a partir do século VII d.C., após o surgimento do islamismo. Durante este período, os árabes eram os beduínos57 do deserto58, e é neste sentido que a palavra é utilizada no Alcorão.59 56 Ibid., p. 16-17 Embora haja uma palavra árabe para Beduíno ( ةوادَبBADĀW). Posteriormente difundiu-se a idéia de que o árabe “puro” é o beduíno, pois teria preservado com maior fidelidade o modo de vida e a língua árabe originais. Mais tarde, durante as conquistas a distinção entre os descendentes dos conquistadores árabes e os nativos arabizados deixou de ter significado. No final do período 57 58 55 O beduíno nômade, o deserto, os vales e os oásis, com sua população sedentária, elementos que constituíam a paisagem da Península Arábica nas regiões norte e central, contrastavam com a população e a opulência do Sul, sedentária e comerciante. Uma região, portanto,caracterizada por políticas e culturais diversas, mas que se articulavam proporcionando a subsistência dos diversos grupos. A Península Arábica, também designada pelos antigos geógrafos árabes por Jazirat alarab ou A ilha dos árabes60 – limitada, ao norte pelo território denominado Crescente Fértil (Mesopotâmia, Síria e Palestina) e pelos desertos61, a leste e a sul pelo Golfo Pérsico e pelo Oceano Índico, e a Oeste pelo Mar Vermelho62 - possuía uma região, situada ao sul, montanhosa e irrigada, enquanto o restante de seu território, locais que poderiam ficar até dez anos sem chuva, constituía-se por estepes áridas, e desertos interrompidos por oásis. A diferenciação entre o norte e o sul chegou aos autores latinos por intermédio do geógrafo grego Estrabo (58-24 a.C), e durante muito tempo a geografia da região foi mal conhecida, carecendo de uma descrição séria e completa. Entre as primeiras descrições árabes, um geógrafo, originário do sul, Al- Hamdani (893-945 d.C), parece ter se destacado63. Entre os trabalhos ocidentais, somente a partir do século XVIII, com os relatos de viagens64 é que se passou a conhecer mais detalhadamente a geografia física e a geologia da Penísula. Abácida, por exemplo, o termo “árabe” retoma seu sentido original, mas no sentido social e não étnico. Ver LEWIS, op. cit.,1996. 59 Ibid., p. 17 60 CARATINI, Roger. Mahoma. La vida de um profeta. Buenos Aires: El Ateneo, 2003. p. 20 61 Os mais importantes desertos são os de Nufud (formado por dunas móveis), os de Hamad (zonas próximas da Síria e Iraque), e o deserto do Sudeste, considerado como o mais perigoso. 62 LEWIS, op. cit, p.27 63 CARATINI, op. cit., p.22 64 Entre os relatos de viagens levados à cabo durante os séculos XVIII e XIX, podemos destacar: NIEBUHR, Carsen. Beschreibung von Arabien. Copenhague, 1772.;BADIA, D.; LEBLICH. Voyages d’ Ali Bey. Paris, 1814.; ORCKHADRT, J. Travels in Arabia. Londres, 1829.; RUPPEL, E. Reisen in Nubien…un dem petraischen Arabien. Francfort, 1829.; WELLSTED, J. Travels in Arabia. Londres, 1838.; WELLSTED, J. Travel to the city of the Caliphs. Londres, 1840.; TAMISIER, M. Voyage en Arabie. Paris, 1840.; BOTTA, P. Relation d’un voyage dans l’Yemen. Paris, 1841.;FONTANIER, V. Voyage dans le Golfe Persique. Paris, 1844-1846.;SADLIER, G. Journal d’un voyage en Arabie. Paris, 1891.; GERVAIS-COURTELLEMONT, Jules. Mon Voyage à la Mekke. Paris, 1897. Alguns deles encontram-se disponíveis em <www.galica.bnf.fr.> 56 Os reinos da Arábia do Sul, sedentários, favorecidos pelas monções do Oceano Índico, eram produtores de cereais, frutas e legumes. Próximo ao oceano, havia árvores de mirra e incenso, sua principal fonte de riqueza. Detentores de portos e praças comerciais, eram também locais de entrada para produtos que vinham da Índia e África Oriental. Em seus mercados, encontravam-se pérolas do Golfo Pérsico, marfim, seda, algodão, tecidos, arroz, ouro, escravos e as penas de avestruz da África Oriental,65que chegavam ao norte por meio das caravanas. Sua produção agrícola foi proporcionada pela construção de diques e canais para a irrigação, fato comprovado pelas inscrições e testemunhos arqueológicos. Esses pequenos reinos, conhecidos por Sabá, Ma`in, Qatabân, Hadramut, Awâsan, foram durante muito tempo constituídos por monarquias que por vezes entraram em conflito ou aliaram-se, principalmente, contra as incursões vindas do norte66. As referências de fontes da Antiguidade, que narravam a riqueza desses povos, foram atestadas com as escavações que localizaram, por exemplo, 65 templos na capital do reino de Qatabân, e a porta sul da mesma cidade era flanqueada por duas torres maciças de blocos de pedra e estátuas de bronze67. A referência bíblica que conhecemos - “Chegou a Jerusalém com uma numerosa comitiva, com camelos carregados de aromas, e uma grande quantidade de ouro e pedras preciosas.”68 - faz menção ao reino de Sabá, que algumas fontes arqueológicas indicam ter existido69. O Alcorão também faz menção ao mesmo reino: 65 RODINSON, Máxime. Maomé.Lisboa: Caminho,1992. p.38 GARCÍA, Waldo Díaz. Mahoma y los árabes. La Habana: Editirial de Ciencias Sociales, 1990. p. 96 67 RODINSON, op.cit., p.39 68 A BÍBLIA DE JERUSALÉM. 3Ed. São Paulo: Paulos, 1994. Livro de Reis. Cap. 10 vers.2 69 Segundo Bernard Lewis, a existência de Sabá nos remonta ao século X ac. E há testemunhos de seu florescimento no séc. VI ac. 66 57 Os habitantes de Sabá tinham, em sua cidade, um sinal: duas espécies de jardins, à direita e à esquerda. (Foi-lhes dito): Desfrutai da graça de vosso Senhor e agradecei-lhe. Tendes terra fértil e um Senhor indulgentíssimo. Porém, desencaminharam-se. Então, desencadeamos sobre eles a inundação provinda dos diques, e substituímos os seus jardins por outros cujos frutos eram amargos, e tamargueiras, e possuíam poucas árvores de lotos.70. Possivelmente, seu apogeu teria ocorrido por volta dos sécs. VIII-VI a.C. Um de seus reis, no ano de 750 a.C., construiu o famoso dique de Marib, cuja manutenção foi assegurada durante sete séculos pelos sabeus, o que proporcionou o desenvolvimento agrícola desta sociedade. Sua ruptura ocorreu em 542 d.C, provocada pelo desgaste natural e pela falta de manutenção, consecutiva pela migração para o norte após a conquista do reino de Sabá por outros povos71. Sabá, que também “colonizou” parte do território africano, fundando o reino da Abissínia, foi alvo de interesse de outras sociedades72 - como os Ptolomeus do Egito, que enviaram frotas destinadas à sua exploração - sendo monárquica sua organização política, baseada na sucessão de pais para filhos. A autoridade dos reis era limitada por um conselho de notáveis. À sua primeira derrocada73, com o domínio Etíope, sucedeu-se a conquista Persa, em 575 d.C, cujos vestígios praticamente não existiam quando ocorreu a invasão muçulmana74. 70 Todas as citações do Alcorão em língua portuguesa ao longo desta dissertação fazem parte da seguinte edição: O SIGNIFICADO DOS VERSÍCULOS DO ALCORÃO SAGRADO. Ed de Samir El Hayek. São Paulo: Marsa Editora Jornalística, 2001. Alcorão, 34:15-16 71 CARATINI, op. cit., p. 27 72 Desde que o mundo mediterrânico empreendeu contatos com o Extremo Oriente, principalmente após as conquistas de Alexandre, tornou-se crescente o número de fontes gregas que atestavam o interesse pela região. 73 No século V já encontrava-se em estado de declínio. 74 De acordo com fontes muçulmanas, o reino de Sabá teria sido conquistado por outro povo do Sul, os Himiaritas. O último rei Himiarita, conhecido por Dhu Nuwas, que se converteu ao judaísmo, teria perseguido colonos cristãos estabelecidos no sul, em represália as perseguições aos judeus ocorridas no 58 Comerciantes ativos, os árabes do sul falavam uma língua próxima do árabe75. Segundo Bernard Lewis76, no início da era cristã o arábico, que historicamente foi a última das línguas semíticas a chegar à região, limitava-se, principalmente, às partes central e setentrional da Península Arábica. As culturas urbanas mais avançadas do sudoeste, no atual Iêmen, falavam outra língua semítica, conhecida como sul-arábica, estreitamente ligada à etíope, e que fora levada por colonos árabes até o Chifre da África. No norte, segundo o mesmo autor, haveria provas de que indivíduos que falavam o arábico entraram na Síria e nas terras limítrofes do Iraque antes mesmo das grandes conquistas árabes do séc. VII, que resultaram no triunfo do idioma arábico em toda a região. Quanto aos estudos relativos à língua utilizada pelos árabes do sul, Maxime Rodinson77 destaca que a produção escrita era intensa na Arábia do Sul e foram localizadas, recuperadas ou decifradas milhares de inscrições, na sua maioria textos jurídicos, administrativos, ou religiosos. Esses textos tratavam, por exemplo, dos problemas de fronteiras e propriedade rural, faziam menção aos sistemas de diques e canais, demonstrando que a sociedade em questão possuía um alto nível de Império Bizantino. A Etiópia, a esta altura um Estado cristão, interessada no controle comercial da região sul da arábia, pois possuíam navios que iam até a Índia e tropas em terras árabes, promoveu a invasão. Embora bem sucedida teria em 575 d.C sucumbido sob a invasão Persa. 75 A grafia sul-arábica, considerada “elegante”, por sua regularidade, possuía letras quadrangulares que no decorrer dos séculos foi tornando-se “curvada e ornamental”. Sua escrita foi decifrada em 1841 por dois orientalistas alemães: Wilhem Gesenius e Emil Rödiger. O idioma sul-arábico é próximo ao semita no que diz respeito a formação do substantivo, conjugação verbal e o pronome pessoal. Há semelhanças com formas gramaticais do árabe, tais como, o plural irregular ; o indicativo de Dual e o vocabulário. No ano de 600 d.C, já não era uma língua utilizada, as últimas inscrições datam do ano de 500 d.C. Ver GARCÍA, op. cit. 76 LEWIS, Bernard. O Oriente Médio: do advento do cristianismo aos dias de hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996a. p.36 77 RODINSON, op. cit., p.40 59 desenvolvimento. Teria existido também uma literatura em pergaminho ou papiro, mas que infelizmente não subsistiu. O sul da Arábia obteve grande prosperidade, em grande parte pelo desenvolvimento das civilizações mediterrânicas78, o que lhe gerou o título legendário de “Arábia Feliz”, pois frequentemente as especiarias que eram produzidas em seu território eram confundidas com as que chegavam através dele. Em decorrência disso a região é mencionada em textos antigos como Arábia Eudaemon ou Arábia Felix. Assim os descreveu também Ammianus Marcellinus no século IV d.C: Os Partos são vizinhos a leste e a sul dos Árabes Felizes, assim chamados porque são ricos em vegetais e em rebanhos, em palmeiras e perfumes de toda espécie. Uma grande parte do seu país é banhada à direita pelo Mar Vermelho, e à esquerda são limitados pelo Mar Pérsico(...). Há ali muitos ancoradouros e portos de abrigo, numerosas praças comerciais e várias residências reais esplêndidas e ricas (...) parece não faltar nada para que o povo seja perfeitamente feliz.79 As influências e contatos dos quais foi protagonista refletem-se na arquitetura e na arte, descritas pelos pesquisadores como portadoras de refinada elegância. Algumas vezes são cópias ou importações romanas, helenísticas e indianas.80 Ao dedicar-se ao estudo da iconografia sul-arábica, a pesquisadora Alessandra Avanzini81 identificou em suas fontes (arqueológicas e epigráficas) um estilo artístico próprio, que se distinguia dos povos vizinhos. A autora afirma ainda que o VIII século a.C. teria marcado o auge de um longo amadurecimento artístico/iconográfico, cujas origens, distribuição geográfica e 78 Ibid. MARCELLINUS, Ammianus, The Roman History of Ammianus Marcellinus During the Reigns of The Emperors Constantius, Julian, Jovianus, Valentinian, and Valens, trans. C. D. Yonge (London: G. Bell & Sons, 1911). 80 RODINSON, loc. cit. 81 A autora estudou a representação do Íbex na iconografia sul-arábica, também freqüente na região iraniana. Típicas do período arcaico e da região central do Iêmem. 79 60 cronológica demanda análises, principalmente aliados à Filologia, Paleografia, História e Arqueologia, que, dessa forma, contribuiriam para o aprofundamento do tema.82 A população da região professava uma religião politeísta, similar a dos antigos povos semitas83, possuindo templos cujas riquezas eram administradas pelos sacerdotes. As oferendas de perfumes e sacrifícios de animais, preces e peregrinações faziam parte do culto e, quando alguém infringia alguma prescrição religiosa, poderia redimir-se por meio de uma confissão pública e do pagamento de uma multa. Entre os deuses cultuados, destacam-se Athtar84, deus que simbolizava o planeta Vênus; Almaqah e Wadd, deuses lunares; Shams, que simbolizava o sol. Seus nomes poderiam variar de acordo com o santuário em que eram cultuados. Em contraste com a fertilidade e a riqueza do Iêmen, a região dos Sarracenos85 situa-se em meio a estepes e vales que interligavam as áreas desérticas. O Hijaz86 era habitado por tribos nômades que controlavam os pontos estratégicos nas rotas comerciais. Organizados em grupos autônomos, os nômades uniam-se pelos laços de sangue e parentesco, acreditando em uma ancestralidade comum, real ou mítica, e se chamavam, por exemplo, bani Kalb, bani Asad (filhos de Kalb ou de Asad)87. Enfrentando juntos as dificuldades da vida no deserto, os grupos menores, clãs, se associavam a maiores, formando tribos. Nesta sociedade, o pertencimento a um grupo era fundamental para a 82 AVANZINI, Alessandra. Some thoughts on ibex on plinths in early South Arabian art. Arabian Archaeology and Epigraphy. P. 105-255, V. 16, novembro, 2005. Disponível em < http://www.blackwellsynergy.com/servlet/useragent?func=showIssues&code=aae> Acesso em: 20/01/2006. 83 LEWIS, op. cit., 1996, p.32 84 No norte da Península sues “correspondentes”, Astarté e Ishtar, eram deusas. 85 Aqueles que se chamavam em grego Sarakênoi, em latim Saraceni, o que nos deu a palavra Sarracenos, eram anteriormente chamados Árabes scenitas, os Árabes que vivem debaixo da tenda (em grego skênê). 86 Que significa “barreira”, menção a cadeia de montanhas que separa a planície costeira do planalto de Nadj, mais tarde incorporando também boa parte do litoral. 87 ARMSTRONG, Karen. Maomé: uma biografia do profeta. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.69-70 61 sobrevivência do indivíduo, e este, por sua vez, deveria manter-se leal à sua tribo e seus aliados. “Tudo tinha de ser subordinado aos interesses do grupo.”88 O homem da tribo deveria cultivar determinados valores para assegurar sua pertença ao grupo, como a muruwah, traduzido por hombridade, que implicava na obrigação de cada membro de sair em defesa de seu companheiro de tribo e na obediência inquestionável ao chefe. Pela generosidade e hospitalidade, o chefe da tribo demonstrava confiança e poder, e, por extensão, garantia a reputação de sua tribo. Portanto, era seu dever cuidar dos homens mais fracos do grupo e vingar toda e qualquer ofensa. “A ética tribal exigia certas habilidades técnicas e sociais, assim como atributos pessoais, cuidadosamente cultivados.”89 O chefe, também chamado Sayyid ou Sheikh, era apenas o primeiro entre seus iguais, seguindo a opinião tribal. Sua eleição cabia aos anciãos da tribo, e normalmente, era escolhido entre membros de uma mesma família, designada por Ahl al-bait, “as pessoas da casa”. Um conselho de anciãos, denominado Majlis, constituído por chefes das famílias e dos clãs, apoiava o Sheik, o que parece evidenciar uma distinção entre determinados clãs “aristocráticos” e os restantes.90 Os valores e o modo de vida desses homens foram imortalizados pelas poesias produzidas no período, que colaboraram para a preservação da memória coletiva. É, sem dúvida, entre os árabes, uma de suas manifestações culturais mais antigas, primeira e única fonte que remonta à sua vida social e ao o ethos dos árabes, isto é, “o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticos”.91 Sua produção 88 Ibid., p.70 Ibid., p.69 90 Ibid., p.36 91 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989. p.103 89 62 teria se iniciado por volta do VI século e se estendido até as primeiras décadas do VII92. Transmitidas oralmente, sua compilação começou no século VIII, na época dos Abácidas93, e devido a esse fator, e às inúmeras compilações produzidas, dúvidas acerca de sua autenticidade começaram a surgir entre os filólogos modernos a partir da segunda metade do século XIX. Segundo esses eruditos, os textos remanescentes contêm, na melhor das hipóteses, um substrato do material autêntico e, em sua presente forma, é trabalho de poetas e filólogos – o critério da escolha é, provavelmente, a qualidade poética - no que foi variadamente descrito como uma restauração neoclássica ou romântica, levada a cabo no séc VIII d. c.94 No entanto, de acordo com Maria Jésus Mata, os trabalhos de J. T. Monroe sobre o caráter oral e a criação da poesia pré-islâmica acabaram com as dúvidas existentes.95 A poesia pré-islâmica, cuja forma é a quasida96, possuía uma estruturação temática fixa, e era dividida em três partes: o nasib, na qual o poeta recorda seus amores e os restos do acampamento de sua amada: Companheiros, alto! Choremos aqui à lembrança de um amor e de umas tendas, nos confins das colinas de areia, entre al-Dakhul e Hawmal; e depois em Túdih; 92 GABRIELI, Francesco. La Literatura Árabe. Buenos Aires: Editorial Losada, 1971. p.25 Entre as diversas compilações encontram-se a clássica Mualaqat de Hammad Ar-Rawiya; As Mufaddaliyyat e as Asmaiyyat de Al-Mufaddal ad-Dabbi e Al- Asmai, dos primeiros tempos dos Abácidas e de um ou dois séculos depois encontram-se as compilações ou antologias de Abu Tammam (morto em 845); Ibn Qutaiba (morto em 885); e Abu l- farach al- isfahni (morto em 967) . GABRIELI, Francesco. La Literatura Árabe. Buenos Aires: Editorial Losada, 1971. 94 LEWIS, op. cit., 1996a, p.225 95 MATA, Maria Jesús Rubierta. Literatura Hispanoárabe. Madrid: Editorial Mapfre, 1992. p.49 96 Segundo Alberto Mussa, a qasida cracteriza-se por uma sucessão ininterrupta de versos de dois hemistíquios que seguem uma única rima e um único metro. O autor destaca ainda que existem dezesseis metros básicos, entre eles estão: o “longo”, o “perfeito, o “simples”, o “abundante”, o “leve” etc. Formados, como detaca Maria Jeus Rubirte Mata, pela combinação de sílabas com vogais longas e breves. 93 63 e depois em alMiqrat: os vestígios ainda não se apagaram, entretecidos pelo vento norte e pelo vento sul.97 O Rahil, em que o poeta narra suas viagens pelas áreas desérticas da Arábia, descrevendo sua montaria, cavalo ou camelo: É bela, é robusta, e galopa como avestruz exausta na direção do macho cinzento e sem plumas, Em disputa com velozes cavalos de raça, pondo pata sobre pata, em caminhos poeirentos já trilhados.98 Por fim, madih, um elogio ou hiya, sátira à pessoa à qual o poema é dedicado, quando se trata de inimigos pessoais ou da tribo à qual pertence o poeta.99 Muitas vezes narra-se o passado heróico da tribo e de seus antepassados: Acaso te disseram que alguém teria contradito Jucham, filho de Bakr, nas controvérsias primitivas? Herdamos a nobreza da Álqama, filho de Sayf, que nos franqueou as torres da glória. Sou herdeiro de Muhalhil e do melhor entre todos, Zuhayr – que excelente provisão! E de Attab, e de Kulthum – deles obtivemos a mais nobre das heranças. E de Dhu al-Bura, de quem já te narraram os feitos, por quem somos protegidos e com quem protegemos.100 Eram recitadas publicamente nos concursos de poesia pelo próprio poeta ou pelo rawi, declamador, na época da migração, e precediam o levantamento do acampamento. “(...) O sentido precisava ser transmitido num verso, uma unidade única de palavras cujo sentido fosse captado pelos ouvintes, e toda apresentação era única e diferente da das 97 MUSSA, Alberto (Trad.). Os Poemas Suspensos: Al-Muallaqat. Rio de Janeiro: Record, 2006. p.25 Ibid., p. 57 99 MATA, op. cit., p.50 100 MUSSA, op. cit., p.101 98 64 outras.”101. Possuíam uma estética diferente da nossa, com o emprego de sistemático de metáforas que formavam uma longa cadeia, “(...) da beleza e da propriedade das imagens empregadas nesses processos é que advém, essencialmente, o valor dos poemas.”102. A poesia era utilizada pelas tribos, embora possuíssem diferentes dialetos, como uma linguagem comum, com uma refinada gramática e vocabulário, conferindo-lhes uma certa identidade.103 Os poetas, que se considerava estarem inspirados por espíritos, possuíam, então, um importante papel na coesão do grupo, já que (...) a memória colectiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas.104 Através da poesia valorizava-se os feitos da tribo, suas vitórias e conquistas, assim como eram ressaltados os valores beduínos. Suas poesias refletem seu modo de vida: nômades, criadores de camelos vivendo em meio hostil, e submetidos a duros códigos tribais que lhes permitiam sobreviver, conservando um equilíbrio mínimo. Os poemas pré-islâmicos, seus personagens e cenários constituíram uma “mitologia literária” do mundo árabe-muçulmano durante a Idade Média105, construindo um modelo de 101 HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. 2 ed. São Paulo: Cia das Letras,1994. p.30 MUSSA, op. cit., p.14 103 HOURANI, loc. cit. 104 LE GOFF, Jacques. Memória. In p.13 105 Segundo a autora Maria Jesus Rubierta Mata, este modelo literário e estético adaptou-se às sociedades posteriores, urbanas. A qasida conservou sua forma, sua estrutura, mas sofreu algumas mudanças para servir de veículo à poetas de uma meio cultural muito diferente. Na Península Ibérica, por exemplo, os primeiros poemas ainda narravam a vida do pastor de camelos. O primeiro poeta de Al- Andalus, o sírio Ibn ASimma, que chegou à Península na segunda metade do século VIII, descreve em seus poemas o mundo do beduíno. Já o poeta Abbas Ibn Nasih (morto em 864), ainda que se reporte às caravanas, substituiu os camelos por navios, tentando um novo estilo. Ver MATA, op. cit. 102 65 “arabicidade”, paralelo ao modelo religioso estipulado pelo islã. Paralelos, mas não necessariamente opostos, já que Muhammad personificava os dois. Esses grupos não estavam isolados, nem geográfica e muito menos culturalmente. Além de manterem contatos com grupos sedentários que ocupavam os oásis, a região estava situada entre dois grandes impérios, o Bizantino e o Sassânida, o que teria colaborado para a manutenção da diversidade cultural. A guerra, ou a atividade bélica sempre foi um fator presente, chegando algumas vezes a constituir um “modo de vida”106. Entre as próprias tribos, era comum a prática do ghazu quando, por questões de sobrevivência, uma tribo atacava a outra e roubava-lhe os bens, camelos, rebanhos, etc. sempre evitando o derramamento de sangue para que não houvesse a vendeta ou vingança privada. “Ficaria marcado por uma vergonha indelével o vingador designado pelos usos e que deixasse viver um homicida. A vendeta, em árabe tha’r, é um dos pilares da sociedade beduína”107. Assim, as brigas ou disputas pelos escassos recursos poderiam provocar ciclos de vingança.108 Em decorrência de sua vida rude e da carência de meios naturais, muitas vezes prestaram serviços como mercenários aos povos do sul, em tropas auxiliares. “Cada Estado tinha ‘seus beduínos’”109. Poderosos militarmente devido à sua montaria rápida110, 106 Ao criticar as teorias acerca da guerra de Clausewitz, o autor John Keegan, enfatiza que não foi levada em conta as guerras endêmicas de povos sem Estado, e em fase pré-estatal, nos quais não havia distinção entre portadores legais e ilegais de armas, uma vez que todos os homens eram guerreiros. Essa forma de guerra teria prevalecido durante longos períodos da história da humanidade. Desta maneira, para algumas civilizações a guerra seria uma expressão de cultura, um modo de vida. 107 RODINSON, op. cit., p.34 108 DEMANT, Peter. O mundo mulçumano. São Paulo: Editora Contexto, 2004. p.25 109 RODINSON, op. cit. p.41 110 Segundo Braudel, o grande nomadismo, com seus animais rápidos, o cavalo e o dromedário (mais tarde o camelo, originário da Bactriana turca), aparece depois de muitas adaptações sucessivas, primeiro nos desertos quentes da Síria e da Arábia; mais tarde ainda no Saara, o mais atrasado entre as famílias dos grandes desertos. 66 os beduínos acabaram dominando os sedentários dos oásis, que ali se fixavam criando rebanhos e cultivando tamareiras, tendo desenvolvido a técnica para a construção de poços. Estes chegavam a cento e setenta metros de profundidade, proporcionando o aparecimento da vegetação em meio ao deserto. Os cultivadores, em sua grande maioria, compravam a proteção dos beduínos por meio de serviços ou trocas. Nos oásis algumas famílias acabavam dominando as demais, algumas vezes por meio da religião. Os deuses locais, incorporados em pedras e outros objetos naturais, eram protegidos por determinadas famílias que podiam gozar de maior prestígio que as demais, atuando como árbitros nas disputas tribais e no comércio. Desta forma, a família dominante exigia a “vassalagem” das tribos vizinhas. Um exemplo deste fato encontra-se no “reino” de Kinda, que exerceu domínio sobre vários clãs da Arábia Central. Este teria se firmado por volta de fins do século V e princípios do VI, um de seus membros, Imru al-Qays, filho do soberano de Kinda, foi um dos grandes poetas pré-islâmicos. Desde a Antiguidade foram várias as tentativas de invasão e domínio na Península Arábica. A primeira investida romana ocorreu em 65 a c, quando Pompeu visitou Petra (capital dos Nabateus), na qual havia uma florescente cidade de caravanas. Em 25-24 d.C., o Reino Nabateu, que mantinha relações amigáveis com Roma, serviu de base para a expedição de Hélio Galo, na ocasião prefeito do Egito, cuja intenção era conquistar o Iêmen. Enviada por Augusto, tinha como objetivo controlar o escoamento sul da rota comercial para a Índia. Hélio Galo desembarcou na costa ocidental da Arábia e penetrou até o interior, porém sua tentativa foi um fracasso. Ela foi conduzida por Aelius Gallus, governador do Egito, foi de encontro ao país chamado Arábia Felix, de que Sabos era rei. Primeiro, Aelius não encontrou ninguém. Contudo ele não prosseguiu sem dificuldades para o 67 deserto. O sol, e a água (que tinha uma natureza peculiar), causaram em seus homens grande aflição, de modo que a maior parte do exército pereceu.111 Em 105 d.C. o imperador Trajano transformou a Nabateia do Norte numa província romana conhecida por Palaestina Tertia e iniciou um programa ambicioso de expansão. Em 114 d.C, Trajano ocupou a Armênia e, em 116d.C, capturou a cidade persa de Ctesifonte, chegando às praias do Golfo Pérsico.112 Seu sucessor, Adriano, retirou-se das províncias conquistadas no leste, mas manteve a Província Arábica. O reino árabe denominado Palmira, fundado no deserto sírio-árabe, também mereceu atenção. Posteriormente, em 273 d.C, Palmira foi subjugada pelo Imperador Aureliano. A importância dessas conquistas para os romanos residia no fato de que, através do controle dessas zonas fronteiriças, estariam livres da dispendiosa e árdua tarefa de defesa militar junto ao deserto, apoiando-se em povos nômades e seminômades para sua execução. Os “Estados” de Ghassan e Hira também merecem destaque. Formados por famílias árabes que migraram para o norte, era o primeiro cristão monofisita e o segundo nestoriano. De acordo com a tradição árabe, Ghassan era uma espécie de vassalo do Império Bizantino, participando nas guerras pérsico-bizantinas em oposição ao vassalo dos Sassânidas, Hira. E após um longo período de guerras, os subsídios oferecidos por Bizâncio foram suspensos e devido a isso, os invasores muçulmanos o encontraram em “estado de revolta” contra Bizâncio.113 111 Dio Cassius, The Roman History, Vol. V, trans. Ernest Cary (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1917), pp. 269-271 112 113 LEWIS, op. cit, 1996a, p.49 Ibid., p.38-39 68 Não há dúvidas acerca das influências sofridas por aqueles que viviam nas periferias e no sul, que inclusive utilizavam moedas com a coruja de Atenas. Mas, até mesmo os árabes das áreas centrais da Península mantinham contatos culturais. Há evidências de um passado pré-árabe e pré-islâmico nos “restos lexicais que podem ser rastreados” no uso do árabe islâmico. Este preserva elementos das línguas faladas que substituiu, vestígios que ocorrem também no árabe clássico e alguns no Alcorão. De uma forma geral, essa sobrevivência se manifesta em termos de natureza teológica (do siríaco e do hebraico), científica e filosófica (do grego), em expressões de cunho jurídico e administrativo (do latim), e em grande número de referências sociais e culturais (do persa médio). Notemos o seguinte exemplo: “O Kharaj, o termo jurídico islâmico para imposto territorial, aparece no aramaico pré-islâmico como Keraga e deriva do grego Khoregia, uma exação que os cidadãos pagavam para custear os coros públicos em acontecimentos oficiais solenes.”114. Meca é referida como “Umm al-Qura, uma tradução literal do grego metropolis. A estrada Direita, al-Sirat al- Mustaqim, que os muçulmanos são encorajados a seguir, é a via direita romana, e Sirat não é mais do que o latim Strata, da qual deriva a palavra inglesa “estrada” (“street”)”.115 Entretanto, devemos salientar que esses contributos tiveram uma importância secundária para a formação do árabe clássico, mas “podem fornecer evidência útil no processo de adaptação cultural”116. Contatos cruciais foram estabelecidos também por meio do comércio. Com o camelo era possível atravessar grandes extensões, já que “ele pode transportar até duzentos quilos e percorrer cem quilômetros num dia; é capaz de caminhar até vinte dias sem água com um calor de 50 114 Ibid., p.221 LEWIS, Bernard. A linguagem política do Islão.Lisboa: Edições Colibri, 2001. p.18 116 LEWIS, loc. cit. 115 69 graus se lhe derem um pouco de forragem; se não, pode, mesmo assim, andar até cinco dias antes de morrer.”117. A comunicação entre as diversas regiões era feita por meio dos wadis (vales) e as principais rotas de comércio eram a do Hijaz, como a rota que atravessava o Wadi dDawasir, desde o extremo nordeste do Iêmen até a Arábia Central, onde se unia a uma outra rota, a Wadi r- Rumma, para o sul da Mesopotâmia, que constituiu nos tempos antigos a principal via de comunicação entre o Iêmen e as civilizações da Assíria e da Babilônia. A última, entre as mais importantes, era a Wadi s-Sirhan, que ligava a Arábia central ao sudoeste da Síria através do oásis de Jawf.118 As caravanas que interligavam a Arábia do Sul e o Crescente fértil, transportando os produtos produzidos pelas respectivas regiões e outros que por elas chegavam, eram obrigadas a pagar aos beduínos pela passagem nos territórios por eles controlados, como os oásis que, sobretudo pela água, tornavam-se pontos estratégicos para as caravanas. Podemos, por conseguinte, imaginar as freqüentes e acirradas disputas pelo controle das rotas, especialmente entre os grandes centros de cultura e civilização da época os impérios Bizantino e Sassânida, moldando, direta e indiretamente, o desenvolvimento histórico da região. O império Sassânida, instaurado sob Ardashir (226-40 d.C), travou inúmeras disputas com os romanos, tendo inclusive seu sucessor, Shapur I (226-40d.C.) capturado o imperador romano Valeriano. Os dois impérios só conheceram uma trégua em 384 d.C, que durou mais de um século. “Na opinião de historiadores da época e medievais, as principais questões em jogo nessas guerras foram, como se poderia esperar, 117 118 RODINSON, op. cit., p.33 LEWIS, op cit., 1996, p.28 70 territoriais”.119 Eram reivindicadas por Roma, a Armênia e a Mesopotâmia, sob a alegação de que seus habitantes eram, em sua maioria, cristãos e, em conseqüência disso, deviam lealdade ao imperador cristão. Sob a cobiça dos persas estavam a Síria, a Palestina e o Egito, que haviam sido conquistados por Cambises, filho de Ciro, em 525 aC. “Essa rivalidade pérsio-romana e, mais tarde, pérsio-bizantina constituiu o fato político dominante da história da área até a ascensão do califado islâmico, que destruiu um dos rivais e debilitou consideravelmente o outro”120. Além das questões territoriais, o fluxo de produtos orientais e, portanto, o controle do comércio entre ocidente e oriente, também estavam em jogo. De importância fundamental para o mundo mediterrânico, estava a comercialização da seda e das especiarias da Índia e sudeste asiático. A rota mais rápida entre o leste e as terras do mediterrâneo passavam por territórios dominados pelos persas, que disso tiravam vantagens tanto econômicas quanto estratégicas. As opções eram a rota por terra ao norte, partindo da China e passando por regiões turcas na estepe eurasiana, na direção do mar Negro e território bizantino, ou as rotas marítimas meridionais, através do Oceano Índico. Estas terminavam no Golfo Pérsico e na Arábia ou no mar Vermelho, com ligações por terra, através do Egito e do istmo de Suez, ou ainda aproveitando trilhas de caravanas da região ocidental da Arábia, partindo do Iêmen até as fronteiras da Síria.121 No período de paz, que durou cerca um século, o Império Bizantino teria utilizado a via marítima por ser mais barata e segura, pois poderiam escapar dos riscos de uma incursão em territórios próximos aos Persas. Com o retorno do conflito a busca de uma nova opção de rota, já que os Persas poderiam intervir militarmente, tornou-se 119 Id., 1996a, p.46 Ibid. 121 Ibid., p.51 120 71 inevitável. Havia naquele contexto duas alternativas: ao norte, a rota transasiática por terra, e para isso os imperadores bizantinos iniciaram uma negociação por meio de embaixadas com os Khans das estepes da Ásia Central; e ao sul, os desertos e o mar. No século VI ocorrem então mudanças importantes que influenciaram os rumos das cidades e da política da região. Além da utilização cada vez maior da rota sul, em 522 d.C a China perde o monopólio da seda, quando dois monges nestorianos roubam e levam ao Império Bizantino ovos do bicho-da-seda. Em função na nova rota comercial houve a chegada de um grande número de “estrangeiros”, colonos, refugiados e pequenos comerciantes. Os judeus estabeleceram-se no Iêmem e no Hijaz e os cristãos em Najran e também em parte do Iêmem e no século VII já estavam totalmente assimilados; Produziuse ainda um aumento de mercadorias que circulavam a par do declínio dos reinos da Arábia do Sul - em função de disputas internas, invasões estrangeiras, e do contínuo avanço das tribos do norte. Assim, os beduínos conquistaram uma grande relevância no cenário comercial. Munidos do privilégio de cobrarem por seu papel de intermediários ou de guias para o tráfico terrestre, revelaram-se hábeis “homens de negócios”. Organizavam caravanas, negociavam o transporte de produtos preciosos, culminando na formação de “centros de operações”122, o que implicou em sua progressiva sedentarização. A ascensão da cidade de Meca123 deu-se neste contexto. Afortunada, a cidade possuía uma vasta clientela atraída pelos seus frutos, legumes e vinhos, e uma 122 RODINSON, op. cit., p.50 Está situada numa garganta em meio à uma cadeia de montanhas que corre paralelamente à costa. Essa garganta corre na direção nordeste-sudoeste e foi cavada por um wâdi (vale). De acordo com Maxime Rodinson, o geógrafo Ptolomeu, no século II, fazia referência a uma localidade nessa região que denominou Makoraba. Sua escrita sul-arábica, que não registrava as vogais seria mkrb, em etíope mekwerâb, que significa “santuário” e a abreviação desta poderia ser considerada como a origem do nome da cidade. 123 72 localização privilegiada, situada em um entroncamento de rotas que a comunicava ao sul com o Iêmen, ao norte com o Mediterrâneo, a oriente com o Golfo Pérsico e a ocidente com o porto de Jeda, no mar vermelho, via marítima para a África124, a meio caminho entre a Arábia do Sul e a Palestina bizantina.125 Constituiu-se uma aristocracia de comerciantes, cuja tribo mais expressiva foi a dos QURAYŠ126 ou Coraixitas. Os vários clãs que a formavam partiam da perspectiva, já mencionada anteriormente, de que partilhavam um passado mítico comum. Como ressalta Le Goff, nas culturas sem escrita a acumulação de elementos da memória faz parte da vida cotidiana, e seriam nos mitos de origem, que lhe dão um fundamento aparentemente histórico, que se evidenciaria a memória coletiva.127 A tradição posterior conta que os quatro principais filhos de Abd Manaf (um dos filhos de Qoçayy) tinham dividido entre si as regiões a prospectar comercialmente. Um deles tinha ido para o Iêmen, o outro para a Pérsia, o terceiro para a Etiópia e o último para a Síria bizantina.128 Assim sendo, a tribo dos Coraixitas teria se estabelecido em Meca no fim do século V, e a ela pertencia Muhammad, que fazia parte do clã dos Hashim e que se tornou Profeta do Islã. Por ocasião de suas primeiras pregações, o Profeta encontrava-se em meio a uma sociedade que vivenciava mudanças sociais importantes, esta “foi sem dúvida uma época que determinou a vida de Muhammad e as condições precisas sob as quais fundou uma 124 125 LEWIS, op. cit.,1996, p.41 Ibid 126 شيَرُقque significa “tubarão”, de acordo com Rodinson, pode ser, talvez, um antigo totem. 127 128 LE GOFF, op. cit., p.16 RODINSON, op. cit., p.57 73 religião unificadora de homens e povos, criadora e difusora de cultura e civilização capaz de transmutar a história da humanidade.”129 Ainda assim, constituía-se um desafio à existência deste novo grupo. Talvez sua migração para Medina também tenha sido a tentativa de buscar uma nova rota de comércio, longe do domínio dos Coraixitas. A sobrevivência de Muhammad e de seus seguidores ainda dependia das trocas comerciais, das razias às caravanas e tribos próximas. Questões que o profeta buscava articular, agora na condição de líder político, religioso e militar. 129 GUERRERO, Rafael Ramón.Filosofías Árabe y Judía. Madrid: Editorial Síntesis, 2001. p.20 74 Fonte: MANTRAND, Robert. As grandes datas do Islão . Lisboa: Editorial Notícias, 1990. p.I 75 76 Fonte: ARMSTRONG, Karen. Maomé: uma biografia do Profeta. São Paulo: Cia das Letras, 2002. p. 23 77 Capítulo II- Muhammad, sua liderança política e legitimidade religiosa. Na noite de 26 para 27 do mês do Ramadã, que posteriormente foi chamada de noite do destino, Muhammad convenceu-se de que estava sendo incumbido de admoestar as pessoas e levá-las ao “caminho correto”. Ao receber a pretensa mensagem divina por intermédio do anjo Gabriel, o profeta do Islã tinha, aproximadamente, quarenta anos. Segundo a crença muçulmana, a revelação ocorreu por volta de 610 d.C., no monte Hira. De seu topo, Muhammad ibn Abdallah vislumbrava Meca, cidade na qual começaria suas pregações. Eis aqui o livro bendito que te temos revelado, confirmante dos anteriores, para que admoestes, com ele, a mãe das cidades e todas as cidades circunvizinhas. Aqueles que crêem na Outra Vida crêem nele e são constantes nas suas orações.130 A princípio as revelações remetiam-se apenas às questões religiosas, como a da unidade de Deus, da iniqüidade do espírito idólatra e da iminência do julgamento divino, e por isso não teriam despertado grande interesse. O Profeta teria, inclusive, sido confundido com um Kâhin (adivinho), que recuperava camelos perdidos e explicava sonhos, ou talvez com um poeta. Seus primeiros seguidores foram sua esposa Khadija e seu primo Ali e, aos poucos, jovens que eram membros de famílias importantes entre os Coraixitas também juntaram-se a ele, entre eles Abu Bakr, Umar, membro da família Banu Adi, e Uthmam, da casa dos Omídas, que a essa altura era a família mais importante de Meca, mas esses eram raros entre os primeiros seguidores. 130 Alcorão, 6: 92 Ao mudar o tom de sua pregação, enfatizando o monoteísmo, Muhammad teria despertado a oposição dos líderes de sua cidade, pois passou a atacar os deuses locais e seus rituais, tentando implantar novas formas de culto e adotando explicitamente a “linha dos profetas da tradição judaica-cristã”. A Caaba, local de peregrinação e comércio, estava então ameaçada. Movidos por razões essencialmente econômicas, os Coraixitas lhe fizeram oposição declarada, passando a persegui-lo. Durante o tempo em que seu tio, Abu Talib, viveu, o profeta esteve protegido, devido ao antigo código tribal. Após a sua morte, a saída encontrada por ele foi a migração para outra cidade. Primeiramente, cogitou a possibilidade de migrar para Taif, que ficava em uma região fértil, nas montanhas. Porém, nesta cidade os Coraixitas possuíam terras e moradias, e consequentemente o profeta não foi “acolhido”. Alguns de seus seguidores migraram para a Abissínia, e alguns autores, como W. Montgomery Watt131, propuseram a hipótese de que esta teria sido uma estratégia utilizada por ele para dissociar-se de alguns crentes cujas opiniões divergiam da sua. Esta suposta razão foi questionada devido ao fato de os seguidores que foram para a Abissínia terem retornado e se juntado ao grupo novamente mais tarde. Sua migração para Medina, cidade cujo nome era Yathrib132, foi intermediada por um grupo de homens que iam comerciar em Meca. Jamal Elias133 defende a idéia de que o Profeta teria sido convidado pelos que viviam na cidade para mediar as disputas entre as grandes tribos, e que Muhammad teria inclusive imposto algumas condições para aceitar o convite. Entre elas estariam a exigência de que sua família e seguidores pudessem acompanhá-lo; que a cidade se responsabilizasse por sua subsistência, ao menos temporariamente, e, por último, que todos que migrassem tivessem “plenos direitos”, pois, caso seus perseguidores de Meca os atacassem, os habitantes de Yathrib deveriam combater ao seu lado. 131 MANTRAND, Robert. Expansão Muçulmana: séculos VII- XI. São Paulo: Pioneira, 1977. p.62 132 A cidade foi rebatizada mais tarde com o nome de Madinat al-nabi ou “A cidade do Profeta”, hoje conhecida por Medina. Ver ELIAS, Jamal J. Islamismo. Lisboa: Edições 70, 1999. 133 Ibid., p.33 75 Yathrib foi fundada por tribos judaicas, os Banu Nadir e Banu Quraiza, e posteriormente tribos árabes oriundas do sul chegaram à região e acabaram dominando as judaicas. Essas ocupavam-se, sobretudo, da agricultura e dos “ofícios naturais”. O ano da migração (622 d.C.), também conhecida como Hégira, não marca somente o início do calendário muçulmano, mas também o início da liderança política de Muhammad, pois em Meca, Maomé era um simples cidadão, em Medina, o magistrado supremo de uma comunidade. Em Meca era forçado a submeterse de forma mais ou menos passiva à ordem existente, em Medina, era ele quem governava. Em Meca pregava o Islão, em Medina podia pô-lo em prática. Essa mudança veio afetar, necessariamente, o carácter, as actividades e as doutrinas de maomé e do próprio Islão; os registros passam da lenda para a História.134 As tribos que habitavam Medina viviam em um frágil equilíbrio, e o profeta do Islã ocuparia agora um importante papel, firmando acordos com tribos nômades e sendo o responsável por resolver as dissidências entre os diversos grupos, pois passou a controlar os oásis e as feiras. Os árbitros passaram a ser Allah e o seu mensageiro. Durante os anos de 622 e 632 d.C, Muhammad estabeleceu na nova cidade uma comunidade formada pelos convertidos ao novo credo sob sua liderança. Esta comunidade convencionou-se chamar pela palavra árabe Umma, termo que hoje refere-se a uma comunidade mais ampla, pois designa todos os muçulmanos, de todo o mundo. Desde a Idade Média até hoje a Umma pode ser “vista” durante as viagens de peregrinação a Meca, quando os muçulmanos vestem o ihram, duas peças de tecido não costurado (para homens), e que no caso das mulheres cobre todas as partes do corpo, exceto o rosto, as mãos e os pés. Todos dormem, praticam suas orações e rituais da peregrinação juntos, e neste momento simbolizam a suposta unidade do Islã. 134 LEWIS, op.cit.,1996, p. 49 76 A origem do termo Umma, que significa “povo” ou “comunidade” foi muitas vezes relacionada com a palavra árabe umm, ou “mãe”. Como, no discurso político islâmico a metáfora do governante como “mãe” é rejeitada, Bernard Lewis argumenta que a suposta associação entre os dois termos (apesar de possuírem o mesmo radical) trata-se de um equívoco135, e acredita que seja um empréstimo do hebreu ou aramaico. Em um período anterior, na Arábia antiga um termo “aparentado” com este (lumiya) era utilizado para designar uma “confederação tribal” e, provavelmente, seria este o sentido atribuído ao termo que vigorava na época do profeta, ponto de vista compartilhado por Enzo Pace ao afirmar que A umma, por conseguinte, amplia e atribui novos significados a um conceito pré-islâmico já presente na cultura dos povos árabes e semíticos em geral: a umma, efetivamente, podia indicar o pacto de confederação estabelecido por diversas tribos entre si.136 Quanto à utilização deste termo no Alcorão, Bernard Lewis destaca que aparece com inúmeros sentidos, podendo figurar com um sentido étnico, quando menciona a Umma dos árabes; um sentido religioso, quando menciona a Umma dos cristãos; moral quando se reporta à Umma das pessoas boas em oposição à Umma daquelas que fazem o mal e ideológico quando se refere sobre pessoas que fazem o bem e se comportam como cristãos137. A palavra, portanto, possui uma série de significações que em nosso entender está diretamente relacionada ao contexto, a forma pela qual emerge a pregação de Muhammad e as bases que foram utilizadas e apropriadas por ele na formação e legitimação de seu papel 135 136 LEWIS, Bernard. A linguagem política do Islão. Lisboa: Colibri, 2001. p. 53 PACE, Enzo. Sociologia do Islã: fenômenos religiosos e lógicas sociais. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. p. 64 137 LEWIS, loc. cit 77 como líder religioso, político e militar. Imerso no universo das relações tribais, do qual era profundo conhecedor de sua lógica social e econômica, o Profeta impôs sua autoridade, ou seja, foi capaz de nortear comportamentos, impor regras sociais às quais seus seguidores submeteram-se. Foi capaz de manter durante certo tempo (até o final de sua vida), dentro de certos limites, seu poder de forma estável.138 Buscando apreender as mudanças políticas ocorridas com o advento de sua “profecia”, e os meios pelos quais Muhammad exerceu seu poder, não poderíamos nos eximir de analisar as relações existentes entre dois pólos fundamentais: a religião e a política. Como o conceito de política foi durante muito tempo, inclusive em sua origem, relacionado à esfera de atividades ligadas ao Estado139, cabe salientar que estamos partindo de uma premissa importante para tentar compreender as transformações que se operam no contexto no qual se insere nossa pesquisa, o de que “toda sociedade é política”140. Tal pressuposto é oriundo das reflexões da Antropologia Política, cujos frutos propiciaram a apreensão do político em seu mais amplo leque de variações. Nas palavras de Balandier “quebrou o fascínio que o Estado durante muito tempo exerceu sobre os teóricos politistas”141. Assim sendo, levando-se em consideração que estamos diante de uma sociedade que não possuía instituições formais, tentaremos investigar as estratégias e as situações em que a política se manifesta, assim como seus mecanismos de legitimação. E uma dessas esferas da vida política em questão é a relação entre o sagrado e o poder, pois toda a Umma e se funda a partir de uma experiência, primeiramente religiosa, uma suposta revelação de Deus a um homem. 138 STOPPINO, Mario. Autoridade. In BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 12 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 139 BOBBIO, Norberto. Política. In BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 12 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 140 COPAN, Jean. A Antropologia Política. In _______. (Org.) Antropologia: ciência das sociedades primitivas? Lisboa: Edições 70, 1971. p.94 141 BALANDIER, Georges. Antropologia Política. Lisboa: Editorial Presença, s.d. p. 188 78 A religião e a organização política pré-islâmicas concorrem para nossa tentativa de analisar as principais mudanças e/ou continuidades neste campo da sociedade na qual emerge a liderança de Muhammad. Nas sociedades de tipo clânico, o culto das divindades relacionadas ao clã gera a sacralização do político, ainda que este seja pouco diferenciado, assim como o culto aos antepassados, pois faz a junção do clã atual, os vivos e a linhagem idealizada.142 Nestes casos a relação entre o sagrado e o poder, afirma Balandier, é incontestável e as contribuições da Antropologia permitem o estudo da “natureza sagrada do político”.143Em alguns casos os chefes dos clãs atuam como mediadores entre os “súditos” e o sobrenatural, portanto, sua “fonte” de poder está intimamente relacionada com o campo do sagrado. As sociedades tribais que habitavam o Hijaz acreditavam que a terra era povoada por espíritos, os djinns, invisíveis, mas que podiam se manifestar sob a forma de animais. Algumas árvores e pedras, principalmente os meteoros, e aquelas que se assemelhavam à forma humana eram cultuadas, pois acreditava-se que nelas “residiam” espíritos e divindades144. Os nômades levavam em suas viagens seus deuses em uma tenda vermelha, inclusive durante os combates. Esses seres divinos e sua importância variavam de acordo com a tribo, porém existiam aqueles considerados os mais importantes, que eram encontrados em grande parte da Península Arábica. Era o caso de Allah, “personificação do mundo divino sob a forma mais elevada, criador do universo e guardião da fé jurada”145. Entre as tribos que estamos estudando, havia ainda três deusas que eram cultuadas, consideradas como “filhas de Allah”: Allat, “ A Deusa”; Uzza, “A muito poderosa”, e Manat, “Deusa da sorte”. Em Meca o grande Deus era Hubal. Os santuários formavam-se por terem sido locais nos quais essas divindades teriam se manifestado e seus limites, depois de fixados, constituíam-se como local de refúgio, pois 142 BALANDIER, op.cit., p.106 Ibid. 144 RODINSON, Máxime. Maomé. Lisboa: Caminho, 1992. p. 35 145 Ibid. 143 79 era proibido qualquer manifestação de violência em seu interior. Alguns autores apontam para a existência de trezentos e sessenta ídolos, que teriam origem na antiga religião suméria: O ano sumério era composto por 360 dias, mais cinco dias santos adicionais, passados por assim dizer, ´fora do tempo`, na realização de cerimônias especiais que ligavam o céu à terra. Em termos árabes, esses cinco dias especiais talvez fossem representados pela peregrinação do hajj, que acontecia uma vez por ano e era feita por todos os árabes da Península.146 Os santuários eram guardados por famílias sacerdotais, que realizavam oferendas por meio de sacrifícios de animais e alguns deles tornaram-se locais de peregrinação, como foi o caso da Caaba, em Meca. De acordo com o seu mito de origem os ancestrais dos Coraixitas teriam conseguido conquistar o controle de Meca porque os guardiães de seu santuário teriam falhado em relação às suas obrigações sagradas, assumindo então seu controle. E, como destaca Balandier, os mitos possuem a função de explicar e justificar em “termos históricos” a ordem existente, oferecendo-lhe legitimidade. O objeto que simbolizava o Deus da tribo ficava sob a responsabilidade ou custódia da casa do Sheikh, e a “submissão ao culto tribal era expressiva de lealdade política. A apostasia era equivalente à traição”147. Por estarem imbuídos de uma função sagrada, os Coraixitas controlavam um espaço que não era apenas de culto, pois ao seu redor formavam-se áreas de comércio e feiras, o que contribuiu para a fixação desses comerciantes, artesãos e camponeses. Max Weber148, que estava menos preocupado em definir rigidamente o fenômeno religioso do que em discernir as condições e efeitos deste tipo de “ação social”, considera que as ações movidas por motivos religiosos ou mágicos têm origem, ou são orientadas, por este mundo e, portanto, constituem-se como ações relativamente racionais, ainda que não estejam necessariamente preocupadas com “meios e fins”. Porém, não seriam todas as pessoas que estariam aptas a vivenciar experiências religiosas. Esta qualidade inerente, pessoal, Weber denominou por “ Carisma”, ou “um dom 146 147 148 ARMOSTRONG, Karen. Maomé: uma biografia do profeta. São Paulo: Cia das Letras, 2002. p. LEWIS, Os Árabes na História. 2 ed. Lisboa: Editorial Estampa,1996. p.37 WEBER, Max. Sociología de la religión. Madrid: ISTMO, 1997. 80 que não se pode conquistar, que se une a um objeto ou a uma pessoa que o possui por natureza ou se produz por algum efeito extracotidiano”149. Certas pessoas possuiriam o gérmen deste dom que um dia “desperta” e, de alguma forma, determina seu comportamento. A experiência extracotidiana teria sido configurada pela própria revelação, quando Deus teria dito a Muhammad: Lê, em nome do teu Senhor que criou; Criou o homem de algo que se agarra (coágulo). Lê, que teu Senhor é o mais generoso, Que ensinou através da pena, Ensinou ao homem o que este não sabia.150 As narrativas sobre sua vida anterior e sua infância reafirmam a idéia de que este “dom” já fazia parte de sua existência. O Profeta seria aquele que possui um carisma pessoal e que em virtude de sua missão anuncia uma doutrina religiosa ou um mandato divino.151 Para Weber o fundamental é a “vocação pessoal” que o distingue, por exemplo, de um sacerdote que reivindica sua autoridade baseando-se em uma tradição já estabelecida, já um profeta o faz em razão de uma revelação ou de um carisma. Outra particularidade importante reside no fato de que o núcleo de sua missão consiste em doutrinas ou preceitos. O Alcorão, resultado da compilação das mensagens recebidas por Muhammad, é composto por normas de conduta e preceitos religiosos, regras que estabelecem o comportamento social com menções a assuntos cotidianos como casamento, herança, acordos financeiros, vestimenta, dogmas e rituais religiosos. Muhammad é caracterizado como mensageiro de Deus e tem como funções, de acordo com a fonte, admoestar, advertir, elucidar, anunciar, exemplificar, encaminhar os crentes em relação às revelações oriundas de Deus: Por certo (Ó Mensageiro) que te enviamos com a verdade, como alvissareiro e admoestador, e que não serás responsabilizado pelos malvados.152 149 Ibid., p. 66 Alcorão, 96: 1-5 151 WEBER, op. cit., p.105 152 Alcorão, 2: 119. 150 81 Ó Senhor nosso, faze surgir, dentre eles, um mensageiro, que lhes transmita as tuas leis e lhes ensine o livro, e a sabedoria, e os purifique, pois tu és o poderoso, o prudentíssimo.153 Assim também escolhemos, dentre vós, um mensageiro de vossa raça para vos recitar nossos versículos, purificar-vos, ensinar-vos o livro e a sabedoria, bem como tudo quanto ignorais.154 Em contextos nos quais o surgimento de profetas é algo “ordinário”, como foi o caso de Muhammad, normalmente se exige provas de seu dons, de suas capacidades “espirituais”. Podemos fazer uma analogia com Jesus Cristo. Tanto Muhammad quanto Jesus surgem em contextos em que o aparecimento de profetas não era algo extraordinário. Ambos, a princípio, até mesmo pela razão acima, não despertaram mais do que a curiosidade de alguns e poucos 153 154 Alcorão, 2: 129. Alcorão, 2: 151. 82 Fonte: ARMSTRONG, Karen. Maomé: uma biografia do Profeta. São Paulo: Cia das Letras, 2002. p. 26 seguidores. Os dois foram postos a prova. Jesus operou milagres, curas e, no caso de Muhammad, quando lhe exigiam provas, esta era o próprio Alcorão, as próprias mensagens que não eram passíveis de imitação, pois eram divinas. Porém, assombras-te, porque zombam de ti. E quando são exortados, não prestam atenção. E quando vêem um sinal, zombam. 83 E dizem: Isto não é mais do que magia evidente!155 Ou dirão: É um poeta. Aguardemos que lhe chegue a calamidade, (produzida) pelo tempo!156 Certamente (este Alcorão), é uma revelação do Senhor do Universo, Com ele desceu o espírito fiel, Para o teu coração, para sejas um dos admoestadores, Em elucidativa língua árabe.157 As dificuldades enfrentadas inicialmente, e superadas por Muhammad podem ser vistas como provas de seu carisma, inclusive a própria migração, em face à oposição que lhe faziam em Meca. Esta pode ter constituído, como supõe Pace, a tentativa do profeta de buscar um ambiente mais receptivo às suas idéias, voltando-se para comunidades religiosas que estavam mais próximas de suas pregações158. Ao longo de sua permanência em Medina outras provas “vieram ao seu encontro”, como vitórias em combate, entre elas a mais importante, a batalha de Badr. Em 624, o Profeta organizou um ataque a uma caravana que voltava da Síria, uma das maiores do ano, prática corrente, como já vimos entre as tribos da Arábia. Porém, a idéia original de praticar apenas uma razia transformou-se em uma grande batalha, que se tornaria um dos grandes acontecimentos da história do Islã. Numericamente inferiores, os muçulmanos ainda assim venceram os mequenses, o que se configurou como mais uma prova da autenticidade do Mensageiro enviado por Deus. A autora Karen Amostrong159 compara a importância que o episódio assume para os muçulmanos com o que a travessia do Mar Vermelho tem para cristãos e judeus. O fato de o Faraó ter se afogado é visto como um sinal de salvação, ou em árabe uma furqan. A vitória de Badr é vista como uma furqan na medida em que separou os justos dos injustos. 155 Alcorão, 37: 12-15. Alcorão, 52: 30. 157 Alcorão, 26: 192-195 158 PACE, op. cit., p.41 159 ARMSTRONG, Karen. Maomé: uma biografia do Profeta. São Paulo: Cia das Letras, 2002. 156 84 No entanto, ainda nos cabe refletir acerca das razões do sucesso de sua profecia, de sua aceitação. Ao que tudo indica, o Profeta teria sofrido forte oposição das famílias dominantes de Meca. Suas pregações, com o passar do tempo, configuraram-se como uma ameaça à ordem política e religiosa existentes160, sendo por isso consideradas por John Esposito como reformistas e até mesmo revolucionárias.161 Como vimos acima, os locais de peregrinação possuíam um papel- chave na vida comercial e política da cidade, decorrendo a perseguição ao Profeta de sua pregação do monoteísmo, e a conseqüente insistência na destruição dos ídolos da Caaba. Embora possam divergir quanto aos referenciais teóricos que os informam, os mais diversos autores concordam que os primeiros seguidores de Muhammad provinham dos estratos mais pobres da sociedade: “os prosélitos dessa época foram, em geral, pobres, já que os ricos viam na nova religião um perigo para as posições privilegiadas que o santuário de Hubal e a peregrinação lhes davam.”162 Entre eles estavam pequenos artesãos e comerciantes, clientes e escravos.163 De modo semelhante, em seu contexto, as pregações de Jesus de Nazaré também geraram conflitos, pois divulgavam um “judaísmo inclusivo” e missionário em oposição ao “judaísmo exclusivo rabínico”, negando a estrutura hierárquica da religião judaica e do poder romano. 164 Seus primeiros seguidores eram, em sua maioria, pobres e escravos. Entre os últimos o mais conhecido, no que se refere aos muçulmanos, foi Bilal Ibn Rabah que, libertado por Muhammad tornou-se o primeiro Muezim, o que faz o chamado para oração. A sociedade da qual emerge Muhammad já não vivia de acordo com os preceitos tribais que regeram durante tanto tempo a vida dos nômades. O processo de sedentarização 160 LEWIS, Bernard. O Oriente Médio: do advento do cristianismo aos dias de hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996a. p.60 161 ESPOSITO, John L. Islam: the straight path. 3ed. New York.; Oxford: Oxford University Press, 1998. p.29 VERNET, Juan. As origens do Islã. São Paulo: Editora Globo, 2004. p. 62 163 GABRIELLI, F. Os Árabes. Lisboa: Arcádia, 1965. p. 39 164 CROSSAN, John Dominic. O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo. Rio de Janeiro: Imago, 1994. p.460 162 85 pelo qual passaram, além de mudanças econômicas e sociais, trouxe consigo transformações de ordem intelectual e moral.165 165 RODINSON, Maxime. Maomé. Lisboa: Caminho,1992. p. 50 86 Fonte: ARMSTRONG, Karen. Maomé: uma biografia do Profeta. São Paulo: Cia das Letras, 2002. p.25 A nova “economia mercantil”, as transações comerciais, cada vez mais freqüentes, em moeda e um número pequeno de indivíduos que enriqueciam contribuíram para a formação de uma nova lógica que era incompatível com as antigas tradições. Muitos beduínos acabavam reduzidos à escravidão por dívidas ou se tornavam clientes dos ricos comerciantes de Meca, iniciando-se “um processo de dissolução da sociedade tribal.”166 E como ressalta Jean Copans, “na medida em que o parentesco já não pode manter e exprimir a coesão social e em que as desigualdades da estratificação são portadoras de contradições e antagonismos, faz-se sentir a necessidade de um controle específico da coesão e das contradições.”167 Weber observa que tanto os legisladores, como no caso da Grécia Antiga, que tinham como função construir e ordenar um sistema de direito, quanto os profetas - e cita o exemplo de Moisés - surgiram em momentos de “tensão social” provocada pela diferenciação econômica. Ao profeta cabe, diferentemente do legislador, a instauração de uma profecia ética. Afirma, ainda, que a missão de Muhammad era essencialmente profética, mas possuía uma orientação radicalmente política. Suas pregações, portanto, traziam elementos novos, traziam à baila um “ideal de comunidade”, desta vez 166 167 Ibid. COPANS, op. cit., p.108 87 acima de laços de sangue, parentesco ou clã, mas orientado pelos laços religiosos, em meio a uma vertiginosa e cada vez mais latente diferenciação social que se formava na cidade. A adesão religiosa como critério primordial de inclusão no grupo pode ser observada nos versículos que demarcam as fronteiras entre o “nós” e o “outro”, gerando inclusive uma hierarquia social que separa “crentes” e “não-crentes”. Esta hierarquia expressa-se por meio de normas que estabelecem claras diferenciações, por exemplo, em relação à vendeta ou vingança privada, quando é vedado a um crente matar outro crente, ou quando recomenda que não se confie em pessoas que não sejam muçulmanas. Os que não seguem a religião islâmica são os “desaventurados” e “incrédulos”. Judeus e cristãos são designados como “povos do livro”, os versículos alternam-se entre uma postura conciliatória e uma postura mais dura com relação àqueles que não cumprem seus acordos, diferença justificável se levarmos em conta o período conturbado, de inúmeros conflitos, inclusive bélicos, pelos quais passava a jovem comunidade. E os que ainda professavam a religião préislâmica eram designados como “idólatras”, são corruptores, inimigos, traidores, amaldiçoados, depravados e injustos, e a eles está sempre destinado um “doloroso castigo”. A política, neste caso, se reveste de uma linguagem religiosa que em muitos aspectos atua como um modo de coerção, a medida que há um mundo sobrenatural dividido entre o paraíso e o inferno que serão os destinos, respectivamente, dos que seguiram os preceitos e normas religiosas e dos que não aderiram à nova fé. O julgamento, no Dia do Juízo168 de todos os mortais será realizado por Allah, onisciente e onipotente: E temei o dia em que retornareis a Allah, e em que cada alma receberá o seu merecido, sem ser injustiçada.169 Em verdade, hoje os diletos do Paraíso estarão em júbilo, Com seus consortes, estarão à sombra, acomodados sobre almofadas. Aí terão frutos e tudo quanto pedirem. 168 A crença no Dia do Juízo constitui um dos dogmas da religião islâmica, juntamentte com a Fé em Deus; a fé nos Anjos; a fé nos Livros Revelados; a fé nos Profetas-Enviados e a fé no Decreto Divino. 169 Alcorão, 2: 281 88 Paz! Eis como serão saudados por um Senhor Misericordioso.170 (...) bem como a pena do inferno, para aqueles que negam o seu Senhor. Que funesto destino! Quando nele forem preciptados, ouvi-lo-ão rugir, borbulhante, A ponto de estalar de fúria. Cada vez que um grupo ( de réprobos) for preciptado nele, os seus guardiões lhes perguntarão: Acaso, não vos foi enviado nenhum admoestador? Dirão: sim! Foi-nos enviado um admoestador, porém desmentimo-lo (...) se tivéssemos escutado e meditado, não estaríamos condenados ao fogo abrasador!171 A adesão dos seus seguidores é freqüentemente atribuída, como no caso de Jesus, à mensagem “igualitária” de Muhammad, por meio da qual estimulava a esmola, a ajuda aos mais pobres e necessitados da tribo, práticas que os antigos códigos de honra e generosidade tribais estimulavam, mas que já não eram mais prioridade na cidade de Meca. Havia, na concepção de Maxime Rodinson172, pessoas receptivas a sua mensagem, pois esta ia de encontro às suas necessidades. Com Muhammad surge uma nova concepção religiosa, e com esta uma nova concepção de poder e liderança, produzindo-se a união entre uma nova manifestação política, na qual as decisões estavam concentradas na figura do líder profético, e as antigas tradições. Enzo Pace173, por exemplo, que examina sob a luz da sociologia o fenômeno religioso do Islã, analisa, utilizando conceitos cunhados por Max Weber, o surgimento da liderança de Muhammad , em um primeiro momento como líder religioso e, posteriormente, como chefe político. De seu ponto de vista, é impossível abordar as origens do Islã sem relacioná-la com a figura de seu fundador. A própria profissão de fé dos muçulmanos, como aponta o autor, reafirma esta conexão ao proferir : “Eu atesto que não existe divindade fora 170 Alcorão, 36: 55-57 Alcorão, 67: 6-11 172 RODINSON, op. cit., passim. 173 PACE, op. cit., passim. 171 89 de Deus (Allah) e que Mohammad é o enviado de Deus.”174. Seu trabalho está próximo ao nosso, pois tenta esclarecer como os conflitos sociais e culturais aos quais Muhammad estava submetido foi construindo ou em suas palavras “progressivamente impondo” sua liderança como líder da comunidade dos crentes e como esta foi legitimada e reconhecida. Visando alcançar seus objetivos, Pace analisa o surgimento do papel de Muhammad como profeta e observa que sua trajetória é semelhante às de profetas de outras religiões, a verdade teria sido revelada a ele por Deus, e quem não trilha o caminho do conhecimento revelado a Muhammad permanece na ignorância. Foi, portanto a experiência religiosa do Profeta pessoa que funda as bases de sua liderança. As revelações também evocam as tradições judaicas e cristãs recorrendo aos profetas anteriores como Abraão, Noé, Moisés e Jesus: E quando os anjos disseram : Ó Maria, Allah te anuncia o seu verbo, cujo nome será Messias, Jesus, filho de Maria, nobre neste mundo e no outro, e que se contará entre os próximos de Allah. Falará aos homens, ainda no berço, bem como na maturidade, e se contará entre os virtuosos.”175 E será um mensageiro para os israelitas, (e lhes dirá): Apresento-vos um sinal do vosso Senhor: eis que plasmarei de barro a figura de um pássaro, no qual assoprarei, e a fugura se transformará em pássaro, com o beneplácito de Allah; curarei o cego de nascença e o leproso; ressuscitarei os mortos, pela vontade de Allah, e vos revelarei o que consumis e o que entesourais em vossas casas. Nisso há um sinal para vós, se sois crentes. (Eu vim) para confirmat-vos a Tora, que vos chegou antes de mim, e para liberar-vos algo que vos estava vedado. Eu vim como um sinal do vosso Senhor. Temei a Allah, pois e obedecei-me.176 Ao longo de nossa fonte são recorrentes as afirmações de que Muhammad era um enviado de Deus, um profeta, o que nos leva a crer que em seu tempo ele despertou 174 JOMIER, Jacques. Islamismo: história e doutrina. 2Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. p.67 Alcorão, 3: 45-46 176 Alcorão, 3: 49-50 175 90 desconfiança devido às inúmeras referências a sua “autenticidade” como mensageiro de Deus. As alusões aos “exemplos dos antepassados”, que ressaltam a trajetória de outros profetas que na ótica muçulmana faziam parte se sua religião, ilustram sempre em um primeiro momento o surgimento deste profeta ( Jesus, Abrão, Noé ou Moisés); um posterior questionamento por parte da sociedade da qual fazia parte; a oposição sofrida pelo mesmo; suas advertências com relação ao poder de Deus e sua punição para os que não seguem sua mensagem. Ainda que se refira às sociedades contemporâneas, as observações de Raymond Williams nos ajudam a refletir sobre a questão na medida em que destaca que a “tradição” “é uma versão do passado que se deve ligar ao presente e ratificá-lo. O que ela oferece na prática é um senso de continuidade predisposta.” 177. As tradições que são apropriadas pelo Islã, têm como função, em nosso entender, não apenas advertir seus adversários e convencer seus seguidores, mas também legitimá-la como “seladora” das religiões anteriores. Porém, salvo uma parte de seu povo, ninguém acreditou em Moisés por temor de que o Faraó e seus chefes os oprimissem, porque o Faraó era um déspota na terra; era um dos transgressores. E Moisés disse: Ó povo meu, se realmente credes em Allah, confiai-vos nele e sois submissos.178 E fizemos atravessar o mar os israelitas; porém o Faraó e seu exército perseguiram-no injusta e hostilmente até que, estando a ponto de afogar-se, o Faraó disse: Creio agora que não há divindade além do Allah em que crêem os israelitas, e sou um dos submissos!179 E concedemos aos israelitas um agradável abrigo e os agraciamos com todo bem.(...)180 Porém se estás em dúvida sobre o que te temos revelado, consulta aqueles que leram o livro antes de ti. Sem dúvida que te chegou a verdade do teu Senhor; não sejas, pois, dos que estão em dúvida.181 177 WILLIAMS, Raymond. Tradições, instituições e formações. In ______. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. p. 119 178 Alcorão, 10: 83,84 179 Alcorão, 10: 90 180 Alcorão, 10: 93 181 Alcorão, 10: 94 91 Enzo Pace analisa, na esteira de Weber, a liderança carismática de Muhammad e tentar elucidar como se construiu uma solidariedade entre o grupo e seu líder. Neste grupo religioso as palavras de seu líder , ou seja, suas pregações são a principal via para se estabelecer um princípio de existência e legitimação; ele se vê forçado a inventar um novo modo de interpretar a realidade, construindo desse modo um novo e original sistema de crenças que começa a tomar forma gradualmente, à medida que a autoridade do líder carismático ganha mais força, saindo corroborada por contínuos desafios.182 Em sua opinião, um novo tipo de solidariedade, uma solidariedade ética, suplantou as antigas pertenças étnicas e clânicas. Contudo, observamos que, apesar do elemento religioso estabelecer a inclusão no grupo, de algum modo esta nova ética baseia-se nas antigas tradições tribais, utilizando-se de uma linguagem e de conceitos caros à essa sociedade. Enzo Pace faz menção à questão, mas não aprofunda o tema ao referir-se ao fato de que Muhammad não descartou completamente “usos e costumes” da sociedade tribal183. Ao descrever Allah, os versículos corânicos fazem alusão a características comumente relacionadas aos antigos Sheikhs tribais como, por exemplo, a capacidade de oferecer proteção e socorro e proferir a justiça: Porventura não sabes que a Allah pertence o reino dos céus e da terra e que, além de Allah, (vós) não tereis outro protetor, nem defensor?184 De cada caridade que dispensais e de cada promessa que fazeis, Allah o sabe; sabei que os injustos jamais terão protetores.185 182 PACE, op. cit., p. 38 Ibid., p. 54 184 Alcorão, 2: 107 185 Alcorão, 2: 270 183 92 Do mesmo modo, seguindo os preceitos tribais, existia uma espécie de código de comportamento, também conhecido por Muruwah, que se traduzia, entre outros aspectos, pelo uso que se fazia da generosidade, hospitalidade e do compromisso que os membros de uma tribo assumiam em defendê-la, mantendo-se leal à ela. “As infrações ao código moral do deserto expunham o infrator ao desprezo e, desse modo, à perda da honra”186. Podemos encontrar vestígios desta norma de comportamento nas poesias pré-islâmicas, como nestas passagens do poeta Amr, que teria nascido na tribo Taghlib, que se manteve em guerra durante quarenta anos contra a tribo de Bakr: E de Dhu al-Bura, de quem já narramos os feitos, por quem somos protegidos e com quem protegemos. (...) Pois somos inexpugnáveis na honra e os mais fieis quando celebramos um juramento. (...) Abandonamos quem nos aborrece, acolhemos quem nos alegra. Protetores, quando obedecidos, impiedosos, se nos desobedecem.187 Outro exemplo pode ser encontrado na poesia de Ziyad, pertencente a tribo de Dhubiyan, que teria vivido em Hira e acusado de traição, teria buscado proteção junto ao Sheikh de Ghassan. Este poema teria sido oferecido após anos de exílio a um velho amigo de Hira, como um pedido de desculpas pela fuga, no qual o poeta faz referência à generosidade e ressalta a importância da obediência e fidelidade: aquele que te obedecer, favorece-o na mesma medida, conduzindo-o no caminho reto; mas aquele que se rebelar contra ti, castiga-o com um castigo que aniquile a impiedade; mas não te assentes sobre o ódio, exceto contra teu igual ou contra aquele a quem derrotes, como um garanhão que arranca para cruzar primeiro a linha de chegada. 186 187 RODINSON, op. cit., p. 36 MUSSA, Alberto (Trad). Os Poemas Suspensos: Al-Muallaqat. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 101-105 93 Mais generoso entre os homens, pois – para cada camela de raça – seguem-se as mais formosas dádivas, nunca dadas em função da penúria. Doador de cem camelos gordos e fortes, cujo pêlo os pastos de Túdih tornam belo, aglutinando como feltro.188 No Alcorão, compromisso e honra continuam figurando como conceitos fundamentais. A Allah cabe a função de proteção e socorro, e ao crente a obrigação de submeter-se à sua vontade. Há, portanto, um pacto estabelecido com a divindade sob a pena de uma severa punição que após a morte transfigura-se no inferno. Buscando compreender melhor as manifestações e a natureza do poder político, Balandier se vale de trabalhos de campo de outros antropólogos que estudaram e descreveram inúmeras sociedades, com variadas especificidades, principalmente as africanas. Em relação a estas, por exemplo, concluiu que as noções que qualificam o poder remetem não apenas ao vocabulário político, mas ao léxico religioso, e que se referiam ao domínio do sagrado e do excepcional189. Em nossa fonte de pesquisa destaca-se, neste caso, o uso de um vocabulário político que concede a um novo conceito religioso um sentido ou uma lógica previamente conhecida, isto é, a da ética tribal, como, por exemplo, nos seguintes versículos: Dize: Ó Allah, Soberano do Poder190! Tu concedes a soberania a quem te apraz e a retiras de quem desejas: exaltas quem queres e humilhas a teu bel-prazer. Em tuas mãos está todo o bem, porque só tu és onipotente.191 A expressão destacada, traduzida para o espanhol por “Dueño del domínio”192 e para o inglês por “Lord of Power”193, no original 188 ( َكِلَم ِكلُملاMALIKA ALMULKI) possui Ibid., 134-135 BALANDIER, op.cit., p. 108 190 Destaque nosso, assim como nos termos das próximas citações. 191 Alcorão, 3: 26 192 EL CORÁN. Edición preparada por Julio Cortés. Texto árabe de la edición oficial patrocinada por el Rey Fuad I de Egipto. El Cairo, 1993. 189 94 o significado de “soberania”, intrinsecamente ligado a Poder Real, Monarquia e Realeza, oriunda do mesmo radical ( )كلمda palavra Rei ( كْلَمMALK). A mesma expressão ocorre em outros versículos, como neste em que Allah concede “poder” a Abraão: Não reparastes naquele que disputava com Abraão acerca de seu Senhor por lhe haver Allah concedido o poder? Quando Abraão lhe disse: Meu Senhor é quem dá a vida e a morte! Retrucou: Eu também dou a vida e a morte. Abrão disse: Allah faz sair o sol do Oriente, será que tu poderias fazê-lo sair do Ocidente? Então o incrédulo ficou confundido, porque Allah não ilumina os injustos.194 e em outras passagens, como: Infundiremos terror nos corações dos incrédulos, por terem atribuído parceiros a Allah, sem que ele lhes tivesse conferido autoridade alguma para isso. Sua morada será o fogo infernal. Quão funesta é a morada dos injustos!195 Encontrareis outros que intentarão ganhar a vossa confiança, bem como a de seu povo. Toda vez que tiverem a oportunidade de suscitar a intriga, nela sucumbirão. Se não se manterem afastados de vós, nem vos propuserem a paz, nem tampouco contiverem as suas mãos, capturai-os e matai-os, onde quer que os acheis. Sobre isso vos concedemos autoridade absoluta.196 A palavra árabe ( ًانَطلُسSULTAN), foi traduzida por “autoridade”, mas sempre em contextos que faziam referência ou ao exercício da autoridade sobre alguém ou à autoridade concedida por alguém, neste caso Allah. Derivada do mesmo radical ( )طلسde termos que significam reinar, imperar, dominar, sujeitar e controlar, a palavra com o tempo passou a ser aplicada a ministros e governadores, tornando-se um título de soberania. Como afirma Bernard Lewis, “originariamente era utilizado apenas como abstração e nunca com respeito a uma pessoa.”, o título de Sultan foi concedido pela primeira vez pelo Califa Harun 193 THE HOLY QUR`ÃN. With original arabic text. Translated by Abdullah Yusuf Ali. New Delhi: Islamic Service, s.d. 194 Alcorão, 2: 258 195 Alcorão, 3: 151 196 Alcorão, 4: 91 95 al-Rashid ao seu Vizir. O uso do termo é encontrado, ocasionalmente, entre os Abácidas e os Fatímidas, e por volta do século X já era uma designação comum entre governantes “independentes” para distingui-los dos que ainda estavam submetidos ao poder do califa. Allah é mencionado como Senhor em oposição a servo. No original a palavra اَنَّبَر (RABANA) que o designa como Senhor possui o mesmo radical ( ) برda palavra ( ّبَرRAB) que designa respectivamente chefe, dono, amo, “ser senhor”. Termos que se coadunam não apenas com a condição dos antigos líderes tribais, mas no Alcorão com a liderança de Allah e seu Mensageiro. Podemos ainda observar nos versículos a seguir que a fonte faz menção aos compromissos firmados entre a comunidade dos crentes e as tribos judaicas, pois em Medina Muhammad, como líder político, e como sua subsistência estava ligada ao comércio e caravanas, pactuou com diversas tribos. Do mesmo modo que cobra o cumprimento do pacto dos crentes em relação a Allah: Os que violam o pacto com Allah, depois de o terem concluído; separam o que Allah tem ordenado manter unido e fazem corrupção na terra. Estes serão os desaventurados.197 Ó israelitas, recordai-vos das minhas mercês, com as quais vos agraciei. Cumpri o vosso compromisso, que cumprirei o meu compromisso, e temei somente a mim.198 E asseveram: o fogo não nos atormentará, senão por dias contados. Pergunta-lhes: recebestes, acaso, de Allah uma promessa? Pois sabei que Allah jamais quebra sua promessa. Ou dizeis de Allah o que ignorais?199 A própria origem do termo Islam, em português Islã nos remete a idéia de lealdade, pois significa “submissão”. É um substantivo retirado do verbo aslam que quer dizer “se 197 Alcorão, 2: 27 Alcorão, 2: 41 199 Alcorão, 2: 80 198 96 submeter”. O “particípio ativo” deste verbo, muslim, designa “aquele que se submete”, “obedece”, origem da palavra muçulmano200. Na opinião de Enzo Pace, Muhammad engendrava um sistema de crenças que buscava dar maior amplidão e uma maior autoridade, sistema esse que foi se construindo com o tempo, resultado de sua interação social e de seu contexto. Como ressalta o autor: “Um sistema de crenças é, deste ponto de vista, um tipo de agir comunicativo que tem como objeto a definição de um conjunto de símbolos nos quais se é convocado a crer e a partir do qual se há de tirar todas as conseqüências no plano da vida concreta.”201 Considerado pelo sociólogo como um “reformador religioso” e portador de uma “carisma profético”, sua migração para Medina teria provocado uma ruptura com seu ambiente social de origem, passando a desempenhar o papel de líder religioso, político, legislador e chefe militar, poderes que se fundem com o “dom extraordinário recebido de Deus”202 . Única época em que política e religião realmente se unem uma experiência que não mais se repetiria pelo simples fato de que o carisma é pessoal e intransferível. Muhammad redesenha o próprio princípio sobre o qual se assentava uma sociedade tribal como aquela em que tinha nascido, o princípio que Ibn Khaldun denominava asabyya, a solidariedade de clã. A esta o Profeta contrapõe a ‘corda de Deus’ à qual ele convida a ‘agarrar-se’ sem distinção alguma de raça ou de procedência social ou pertença tribal.203 De um lado ele (profeta) utilizava o que o autor chama de “fórmula contratual”, utilizada geralmente como reguladora de transações comerciais e alianças político-militares entres os clãs, mas deixa claro aos fiéis que o pacto é estabelecido entre pessoas de uma 200 DELACAMBRE, Anne-Marie. Mahomet: la parole d’Allah. Paris: Decouverts Gallimard. 1987.( Philsophies et religons. Gallimard, ) p. 43 201 PACE, op. cit., p. 44 Ibid., p. 53 203 Ibid., p. 54 202 97 comunidade de fé, não mais entre diversas tribos. As primeiras têm agora um chefe religioso e político. Este pacto de lealdade entre ele e seus seguidores é extremamente relevante, na opinião de Pace, pois trata-se de um sistema de crenças que se pretendia universal. Contudo, esta última referência não nos parece coerente. Sua crença, ou a religião islâmica, em um primeiro momento, ou seja, no contexto de sua elaboração e constituição não se pretendia universal, mas sim uma revelação feita a um árabe em benefício dos próprios árabes, ao menos a julgar pelas referências do Alcorão de pesquisa que ressaltam constantemente os aspectos citados. O Profeta, de acordo com o Livro, surgiu entre os árabes, um mensageiro de “vossa raça”; a revelação foi feita em língua árabe, para advertir os incrédulos de Meca. Em seu aspecto político devemos ressaltar que sua “inovação” reside no fato de que se produziu uma concentração de poderes na figura de Muhammad, diferentemente da forma como a política era posta em prática pela sociedade que o precedeu. Nas sociedades tribais, o líder, o Sayyid ou Sheikh não detinha poderes coercitivos; não podia impor obrigações nem infringir penalidades. Os direitos e as obrigações cabiam às diversas famílias no seio da tribo, mas a nenhuma de fora. A função do Sheikh era mais de arbitragem do que de exercício de autoridade (...) e os próprios conceitos de autoridade, soberania, penas públicas eram rejeitados pela sociedade nômade árabe.204 Buscavam chegar pela discussão a um consenso, constituindo o debate o mecanismo utilizado nas questões políticas. Um clã só aderia à decisão de outro pela persuasão. Mecanismo semelhante a este é utilizado hoje pelos Pathan, grupo étnico do Afeganistão que, apesar de ocuparem uma vasta região e possuírem manifestações culturais diversas ( há grupos pastores, outros mercadores, agricultores, etc), continuam partilhando de uma identidade comum. Um dos fatores que constituem essa identidade ou, segundo Fredrik 204 LEWIS, op.cit., 1996, p.36 98 Barth205, sua fronteira étnica, é, entre outros, sua autonomia e igualitarismo político. Seu conselho é constituído por homens que são convocados quando há uma questão do interesse de todos, para planejar uma “ação comum”, e “a relação entre os membros de um conselho é uma relação entre iguais, sem que alguém se faça dono da palavra ou líder, a igualdade é enfatizada pelo fato de as pessoas sentarem-se em círculo no chão e pela igualdade do direito à fala”.206 E a discussão continua até que a decisão seja unânime, o que também implica em um grau de compromisso igual para todos os participantes. Assim, na Arábia o líder da tribo era somente o primeiro entre seus iguais, fato este que já vinha mudando desde que as antigas práticas começaram a ser suplantadas pelo poder que a “aristocracia” de comerciantes estava impondo na cidade de Meca. Mas, ainda existia o conselho, um “equivalente” citadino do antigo Majlis tribal, chamado Mala, e seus pressupostos ainda eram “máximo de liberdade de ação e o mínimo de autoridade.”207, ainda que seus chefes fossem eleitos em função de sua riqueza e posição social, ou seja, dentre as famílias que dominavam Meca e suas rotas comerciais. Em Medina, todas as decisões, ainda que fosse visto como um árbitro nas disputas, passavam por Muhammad. Os ataques a caravanas, a guerra, o butim, as regras sociais , todas essas questões eram “gerenciadas” por ele, por meio das mensagens que recebia. Seu poder não lhe foi outorgado em função da família ou do clã a que pertencia, mas sim por Deus. E, se investigamos a relação entre o sagrado e o poder, é razoável mencionarmos o fato de que a divindade que lhe outorga a liderança é um Deus único e onipotente, que sob seu julgamento estão todos os homens, que sob seu domínio está a natureza e toda criação; e que ele determina o destino de todos. Confere a vitória ou a derrota, o fracasso ou o sucesso. É Allah quem encaminha e perdoa, mas também quem pune e castiga. 205 BARTH, Fredrik. A identidade Pathan e sua manutenção. In LASK, Tomke (Org.). O guru, o iniciador e outras variações antropológicas.-Fredrik Barth. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. p. 69-94. 206 Ibid., p.75 207 LEWIS, op. cit., 1996, p. 41 99 Ao mencionar a liderança de Muhammad, o Alcorão ressalta que, como Profeta e mensageiro de Deus, os crentes devem-lhe obediência absoluta, e a ele cabe a missão de advertir a todos quanto ao “caminho correto”, ou seja, o caminho da obediência e submissão: Dize: Obedecei a Allah ao Mensageiro! Mas, se se recusarem, saiba que Allah não aprecia os incrédulos.208 (...) quem desobedecer a Allah e ao seu mensageiro, profanando os seus preceitos, ele o introdizirá no fogo infernal, onde permanecerá eternamente, e sofrerá um castigo humilhante.209 Nesse dia, os incrédulos, que tiverem desobedecido o mensageiro, ansiarão para que sejam nivelados com a terra; saibam que nada podem ocultar de Allah.210 Muhammad detém o poder e a autoridade para tomar decisões quanto a discordâncias políticas e acordos não cumpridos. Sobre essa questão um versículo esclarece ao Profeta: Encontrareis outros que intentarão ganhar a vossa confiança, bem como a de seu povo. Toda a vez que tiverem a oportunidade de suscitar a intriga, nela sucumbirão. Se não se manterem afastados de vós, nem vos propuserem a paz, nem tampouco contiverem suas mãos, capturai-os e matai-os, onde quer que os acheis. Sobre isso vos concedemos autoridade absoluta.211 Em consonância com as observações de Enzo Pace, podemos concluir que o Profeta do Islã fundou uma comunidade cujos preceitos, ordens e mandamentos foram revelados por 208 Alcorão, 3: 32 Alcorão, 4: 14 210 Alcorão, 4: 42 211 Alcorão, 4: 91 209 100 Deus, regendo a vida cotidiana de seus seguidores, unindo a esfera religiosa e política212. Havia um pacto de fidelidade entre os crentes e Deus, que se estendia ao Profeta, mas sem esquecer que o grande “soberano” era Allah e, como destaca o autor acima, “o fenômeno sociologicamente relevante é, com efeito, justamente a reescritura das regras do jogo social a partir de uma ordem ético-religiosa que desde esse momento se começa a considerar como fundada sobre a lei divina: a nova ordem se funda sobre a extra-ordem, garantida pelo Dom carismático recebido pelo profeta.”213 A frente da Umma, Muhammad impôs seu poder como líder religioso e político. Uniu as antigas tradições árabes a uma nova concepção religiosa e política, zelando pela honra, lealdade e obediência daqueles que faziam parte da nova comunidade e daqueles que pactuavam com ela. O Profeta construiu as bases da futura sociedade que se expandiria com o califado às outras regiões e povos, e a Umma se tornou, como já foi ressaltado pelos especialistas no Islã, “um modelo ideal de sociedade política e religiosa que as concretas formações histórico-sociais devem ter sempre diante dos olhos: para o Islã, a gestão do poder na cidade é um serviço espiritual além de material, prestado em vista do bem de toda a comunidade dos crentes.”214 O fenômeno político-religioso iniciado com o advento do islamismo conheceria, ainda, outras formas de articulação política, além da imbricação desta com o campo do sagrado. De suma importância foi também o papel da guerra e das relações de parentesco (casamentos) para a consolidação e manutenção do poder de seu líder, que deu um novo sentido a primeira e manipulou habilmente a segunda, garantindo-lhe prestígio e alianças. 212 PACE, op. cit., passim. Ibid., p. 56 214 Ibid., p. 63 213 101 Capítulo III- A Guerra Durante o período de expansão e conquistas empreendidas após a morte de Muhammad novas e vastas áreas foram incorporadas ao mundo muçulmano. Por volta de 646, Síria, Egito e Palestina já haviam sido conquistados. Em grande medida, o êxito deveu-se também as suas táticas militares, já que, como vimos no primeiro capítulo, os povos nômades, além de lutarem entre si, prestavam serviços militares aos Impérios Bizantino e Persa tendo, desta forma, adquirido um conhecimento maior nesta área. Em relação aos povos conquistados uma de suas vantagens era o profundo conhecimento do deserto. Este era acessível aos árabes e o utilizavam como via de comunicação na busca por reforços, e como refúgio em caso de emergência. Normalmente, percorriam as grandes distâncias de camelo e o cavalo era utilizado somente no combate direto, muitas vezes surpreendendo o inimigo. Os postos estabelecidos estrategicamente nas fronteiras com os desertos, tornaram-se durante o califado Omíada cidades importantes, pois eram os principais centros de governo. Entre elas destacam-se as cidades de Kufa e Basra no Iraque. A guerra, uma constante na vida destes povos desde a antiguidade, também contracenou com a personagem histórica de nosso trabalho. Valendo-se dos recursos e meios de subsistência que conhecia, Muhammad esteve à frente da mesma, ou ainda que haja controvérsias215, ao menos prescreveu normas acerca do fenômeno da guerra em seu tempo. 215 Biancamaria Amoretti defende a idéia de que o Profeta nem sempre participou ativamente dos conflitos. De fato, de acordo com os versículos analisados, são poucos os que fazem referência explícita quanto sua participação à frente dos combates, como por exemplo, os versículos 8:17; 8:44; 9:83. ver AMORETTI, Biancamaria Scarcia. Teorizzare il Jihad: Percosi interni all´Islam e letture storiografiche. Studi Storici : Guerra Santa e Guerra Giusta dal mondo Ântico allá Prima Etá Moderna. Roma: Carocci editore, anno 43, n.3, p.633- 873, luglio-settembre, 2002. pp739-753 Tais conflitos armados foram ocasionados por razões econômicas, políticas e religiosas, no entanto a autora Maria Clara Bingemer216 que se propõe a realizar um estudo acerca da História e da tradição islâmica, no que tange a questão da violência, fundamenta seus argumentos na análise do Alcorão, mais precisamente nas passagens que fazem referência a esta temática. Valendo-se do conceito de “nacionalismo” que a autora, embasada no dicionário Aurélio, define como “ categoria relativa ao sentimento de pertença a uma determinada nação”217 afirma que a tendência ao nacionalismo está presente “em todos as culturas em todos os tempos”218. Este estaria subdividido em “nacionalismo positivo”, aquele que se configura pela tendência de um grupo em defender ou salvaguardar suas tradições, zelando por sua identidade, e um “nacionalismo negativo”, no qual um determinado grupo tenta se impor a outro(s) como modelo. Com base nestas definições, a autora afirma que o surgimento da religião islâmica e sua afirmação em um Deus único possibilitou a consolidação de um “sentimento nacionalista” e neste primeiro momento estariam unido à religião “íntima e inseparavelmente”. A vertente explicativa sugerida pela autora pode ser entendida, no mínimo como anacrônica. As noções de “nação” ou “nacionalismo” não se coadunam com o contexto do surgimento do Islamismo, tão pouco com período medieval, como atesta Eric Hobsbawm219, as nações, não são tão antigas quanto 216 BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Violência e Religião: Cristianismo, Islamismo, Judaísmo. Três religiões em confronto e diálogo. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2001. 217 Ibid., p. 178 218 Ibid., p. 179 219 Eric Hobsbawm além de discutir os conceitos de nação e nacionalismo também lança luz nas mudanças e transformações dos mesmos, principalmente durante o fim do séc XIX. Na busca das origens do termo e de sua utilização, o autor consulta obras anteriores ao século XIX, em diversos idiomas, entre eles o espanhol, inglês, francês e alemão e constata que , a palavra “nação” estava ligada à origem/ nascimento. A partir daí, busca analisar autores que a partir de 1830, na “Era das Revoluções”, que a utilizam em seus discursos políticos, com o nome de 96 a História. E o sentido moderno da palavra não teria surgido antes do século XVIII. Ainda que vários intelectuais tenham se debruçado sobre a questão, Hobsbawm ressalta a complexidade de se definir “nação”, pois além de fenômeno recente, esta depende de “conjunturas históricas particulares necessariamente regionais ou localizadas”.220 Ainda assim, é categórico ao afirmar que ela é uma entidade social quando está relacionada ao Estado territorial moderno e que não há sentido em discutir “nação e nacionalidade” fora deste âmbito. As mesmas observações levadas a cabo por Hobsbawm podem ser transpostas para o mundo árabe. A crença na existência de uma “nação” entre aqueles que falam árabe e a luta por união e independência, embora comecem no séc. XIX, somente tomam força política a partir do séc. XX221, algumas décadas antes da Primeira Guerra Mundial. Os vários movimentos “nacionalistas” surgiram em resposta aos diferentes conflitos e desafios, como no caso turco, que havia se tornado um Império Turco-árabe, após o colapso do nacionalismo Otomano. A tentativa de impor o elemento turco provocou, por outro lado, um nacionalismo árabe mais explícito. Assim como no caso Egípcio que tentou fazer frente à ocupação britânica. Albert Hourani222 destaca que estava profundamente enraizado nestes movimentos (no caso do Egito) o elemento árabe e a língua árabe como veículo de expressão e laço de unidade era um tema central.223 “princípio da nacionalidade”. Ver HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismos desde 1780: programa, mito e realidade. 3 Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. 220 Ibid., p.14 221 HOURANI, Albert. O pensamento árabe na era liberal: 1798-1939. São Paulo: Cia das Letras, 2005. p. 275 222 HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. 2 ed. São Paulo: Cia das Letras,1994. p.345 223 Como destaca Albert Hourani, o nacionalismo deste período era secularista, propondo abarcar pessoas de diferentes escolas ou fé e buscava-se uma política baseada nos interesses de Estado e 97 Deve-se lembrar ainda que ainda que alguns tradutores do Alcorão utilizem-se da palavra “nação”, para traduzir ةّمُأ UMMA224 esta significa, naquele contexto, como destacamos no segundo capítulo desta dissertação225, “comunidade” ou “confederação tribal”. A autora portadora de um discurso tomado de juízos de valor, afirma que independentemente de qualquer interpretação do Alcorão a transmissão de toda doutrina islâmica faz uso de uma pedagogia que passa pelo uso e pela perspectiva da violência e caracteriza as religiões em vigor na Arábia préislâmica como “idolatrias politeístas vazias de significação humana”, “ritualismo judeu empedernido” e “sectarismo cristão” e afirma que a causa dos conflitos na época de Muhammad, época que Maria Bingemer define como portadora de “confusão espiritual enorme” foram causados basicamente por razões religiosas, negligenciando motivos econômicos ou políticos. Seria naquela época, segundo a autora, impossível uma convivência pacífica entre os grupos com diferentes religiões. Assim, visando apreender o papel do fenômeno da guerra, no que tange a liderança política-militar do profeta, nos centraremos nos versículos referentes ao mesmo e nas narrativas acerca da principal batalha travada entre Muhammad e seus seguidores contra os opositores de Meca. sociedade, era constitucionalista, afirmando que a nação deveria ser representada por um governo eleito que prestaria contas a assembléias eleitas. Ressaltava a educação popular que capacitaria a população a participar mais plenamente da vida coletiva. Este movimento nacionalista também teve sua expressão na cultura. Diversos escritores dedicaram-se aos temas “nação” “independência”, “mundo moderno”, desde fins do XIX ao começo do XX, como, por exemplo, Zaki Abu Shadi (1892-1955), Abu l-Qasim al-Shabbi (1909- 1934) e o que, na perspectiva de Hourani, melhor expressou os problemas e esperanças de sua geração, o Egípcio Taha Husayn (1889-1973). Ver Ibid 224 Umma aparece na edição em português que estamos utilizando traduzido como “nação” nos seguintes Capítulos e versículos: Alcorão, 2: 128; 134; 141; 143; 213. Alcorão, 3: 110 225 Ver capítulo II desta dissertação, p. 49. 98 Apesar do êxito de sua profecia, ou seja, ter conseguido agregar seguidores, a jovem comunidade enfrentaria grandes desafios nos anos que se anunciavam. Em geral, sua permanência em Medina é lembrada como a Idade do Ouro, mas também como um período de tristezas e terror.226 Devido ao “monopólio” do comércio em larga escala que detinha a cidade de Meca, as atividades comerciais tornaram-se restritas e difíceis. Uma das formas de assegurar a sobrevivência da comunidade era a prática do Ghazu, ou o ataque às caravanas. Aproveitando-se de sua localização estratégica, situada a meio caminho para a Síria, portanto, rota certa de caravanas, foi organizado em 623 d.C. um ataque a uma delas. Desta forma, o ataque aos “incrédulos” foi executado. Porém, não foi bem sucedido, pois, era difícil precisar a localização das caravanas. Apesar do fracasso de suas primeiras investidas, não havendo apreensão de mercadorias e, conseqüentemente, ausência de conflito, a ação permitiu que Muhammad fixasse acordos com outras tribos, em pontos estratégicos ao longo do caminho. Aos habitantes de Meca restou-lhes o aviso: precauções deveriam ser tomadas ao longo de sua rota favorita em direção ao mar Vermelho. Um novo reide foi organizado nos meses de inverno, quando os coraixitas enviaram suas caravanas apenas para o sul, em direção ao Iêmen, e não precisaram passar por Medina. Mas, Muhammad enviou um pequeno grupo de nove homens, sob a liderança de seu primo Abdallah ibn Jahsh atacar uma das caravanas. Porém, Era o fim do mês sagrado de rajab (janeiro de 624), quando todas as lutas estavam estritamente proibidas na Arábia. Muhammad, de 226 ARMSTRONG, Karen. Maomé: uma biografia do Profeta. São Paulo: Cia das Letras, 2002. p.190 99 acordo com a tradição muçulmana, entregou a Abdallah instruções sigilosas, que não podiam ser abertas até a expedição chegar em seu destino. As fontes dão versões diferentes de seu texto.227 Ibn Ishaq conta que ela dizia aos muçulmanos que fossem a Nakhlah, entre Meca e Taif, para simplesmente espionar uma caravana, mas o historiador do séc. IX, Muhammad ibn Umar al-Waqidi afirma que a carta dizia: “Dirijam-se ao vale de Nakhlah e preparem uma emboscada para os Coraixitas”228 Violando o mês sagrado, Abdallah resolveu atacar, pois, apesar de estarem no último dia do rajab, se esperassem até o dia seguinte, a caravana já estaria em segurança em Meca. Abdallah levou os dois homens e suas mercadorias, fardos de couro e cestas de passas229, para Medina. Em vez de saudá-los como vitoriosos, o povo de Medina - inclusive os judeus - ficou espantado quando soube que o reide violara o mês sagrado, que ainda possuía, ao que parece, um certo valor religioso. Censurados por Muhammad, Abdallah e seus companheiros chegaram à conclusão que tinham tomado a decisão errada. Então, uma nova revelação vem de encontro ao conflito, justificando o ocorrido: Perguntam-te se é lícito combater no mês sagrado. Dize-lhes: a luta durante este mês é um grave pecado; porém, desviar os crentes da senda de Allah, nega-lo, privar os demais da Mesquita230 Sagrada e expulsar dela seus habitantes é mais 227 Ibid ANDRAE, Tor apud ARMSTRONG, op. cit., p.193 229 ROGERSON, Barnaby. O Profeta Maomé: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2004. p.180 230 As primeiras Mesquitas, entendidas como edifícios que possuem uma função específica, ou seja, centro de reuniões religiosas, começaram a ser cosntruídas no final do século VIII com inúmeras variações de acordo com o local e o clima. Ainda que tenham sido um marco arquitetônico, introduzindo inovações na “arte da cosntrução”, suas origens remontam os primeiros tempos do Islã, quando Muhammad migra para Medina e constrói em sua casa um recinto retangular, no qual se reunia com seus seguidores que ouviam suas pregações. Este recinto era, como os abrigos simples da época, construído com terra batida e cobertos com folhas de Palmeira, possuía 2.500 m, pois os cameleiros guardavam seus rebanhos durante a noite em recintos fechados. As características da “Mesquita-habitação” moldaram os espaços islâmicos e e as formas que as futuras Mesquitas do período Omíada iriam assumir.Quanto a Mesquita de Meca, a primeira vez que se cercou a caaba com muros foi em 638. Em 646 houve uma expansão e em 684 a Mesquita foi decorada com mármore e mosaicos. No original, o termo دجسمsignifica “local onde alguém se prostra [frente a Deus]”, se refere no Alcorão, de acordo 228 100 grave ainda, aos olhos de Allah, porque a perseguição é pior que o homicídio. Os incrédulos enquanto puderem, não cessarão de vos combater, até vos fazerem renunciar à vossa religião; porém, aqueles dentre vós que renegarem a sua fé e morrerem incrédulos tomarão as suas obras sem efeito, neste mundo e no outro, e serão condenados ao inferno, onde permanecerão eternamente.231 Amenizando a situação, o profeta estaria, de acordo com Karen Armstrong, começando a elaborar uma teologia de guerra justa232. De posse de prisioneiros, Muhammad os negociaria em troca de dois muçulmanos que queriam realizar a Hégira e estavam sendo impedidos. Dispostos a lutar por sua religião e suas vidas, os muçulmanos também selaram vários pactos. Era mantido, nos locais sagrados e em seu perímetro, o costume de manter-se a paz . As tribos com as quais mantinham acordos só poderiam ser atacadas caso estas rompessem o que foi estabelecido: “Cumpri o ajuste com os idólatras, com quem tenhais um tratado, e que não vos tenham atraiçoado e nem tenham apoiado ninguém contra vós; cumpri o tratado até sua expiração. Sabei que Allah estima os tementes.”233 Algumas semanas depois, durante o mês de ramadã (março de 624), Muhammad liderou um grande exército enviado à costa, a fim de interceptar uma caravana que Abu Sufyan estava trazendo de volta da Síria. Trezentos e cinquenta muçulmanos se apresentaram como voluntários, dos quais, setenta eram Emigrantes (refugiados de Meca), os outros, Ajudantes (homens de com Oleg Grabar ao santuário de Meca e não há indícios de já houvesse algum novo tipo de edifício muçulmano. Ver GRABAR, Oleg. La formación del Arte Islâmico. Madrid: Cátedra, 1986; PETERSEN, Andrew. Dictionary of Islamic Architecture. New York: Routledge, 1999; STIERLIN, Henri. Islão de Bagdá a Córdova: a arquitetura primitiva do século VII ao século XIII. Lisboa: Taschen, 2002. 231 Alcorão, 2:217. 232 ARMSTRONG, op. cit., p.194 233 Alcorão, 9: 4. 101 Medina)234, que almejavam participar dos ganhos. A expedição dirigiu-se ao poço de Badr, perto do mar Vermelho, onde todo ano acontecia uma grande feira. Local onde esperavam surpreender a caravana. “A expedição de Badr estava destinada a se tornar um dos acontecimentos mais importantes e fecundos do início da história do Islã.”235. Porém, ciente do perigo que o esperava - talvez por intermédio de espiões - Abu Sufyan mudou sua rota, que ao invés de passar pelo Hedjaz, voltou-se para direita em direção à costa, colocando em risco a vida de todos pela falta de água. Posteriormente, o líder da caravana enviou um dos membros da tribo à Meca, pedindo ajuda. Furiosos com a ousadia, os Coraixitas reuniram cerca de mil homens que marcharam em direção a Badr, dispostos a impedir o que seria a captura da maior caravana do ano, pois as mercadorias transportadas corresponderiam ao valor de cinqüenta mil dinares.236 Muhammad, que continuava aguardando nos poços de Badr, após a captura de um carregador de água, interou-se do apoio que estava por vir em socorro à caravana. A idéia original era realizar um ghazu e não participar de uma batalha, por isso era necessário decidir que postura adotar. Para isso reuniuse com seus seguidores mais próximos, Abu Bakr e Umar, que, posteriormente, se tornariam califas, para conjecturar a respeito da circunstância. A situação era clara: envolver-se em um confronto naquelas condições, quando eram numericamente inferiores, poderia significar um suicídio. Deu-se início ao que seria mais tarde conhecido como um dos eventos mais importantes 234 ROGERSON, op. cit., p.180-181 ARMSTRONG, op. cit., p.196 236 RODINSON, Máxime. Maomé. Lisboa: Caminho,1992. p.160 235 102 da história do Islã. A Batalha de Badr. Com base nas revelações corânicas referentes não somente a este episódio, mas a guerra de uma forma geral, suas normas, principalmente no que concerne a liderança do Profeta e o comportamento “esperado” de seus seguidores, analisaremos alguns aspectos de continuidade e ruptura em relação à sociedade tribal. Contudo, antes de nos centrarmos em nosso objeto principal, devemos esclarecer alguns pontos passíveis de dúvida. Constantemente, quando se menciona a questão da relação entre guerra e Islã, é comum recorrer ao termo Jihad. E como as primeiras guerras conduzidas por Muhammad foram posteriormente apropriadas como a “primeira Jihad” do mundo muçulmano, cabe, na tentativa de evitar analogias ou interpretações equivocadas, esboçar um conciso esclarecimento sobre o significado e a codificação do termo. Assim sendo, devemos observar que em todas as épocas, o Alcorão, livro considerado sagrado pelos muçulmanos continuou sendo a base da vida religiosa, moral e social de todos os seus seguidores. “É o livro com que os muçulmanos aprender a ler, cujas frases e expressões moldaram uma determinada e concreta maneira de pensar e agir, contribuindo para a unificação dos costumes em todo mundo muçulmano.”237 E, por meio deste, Deus os teria legado uma série de obrigações, uma lei única que abarca o homem tanto em sua vida individual quanto coletiva.238 Prescreveu regras (com relação ao casamento, ao divórcio, aos negócios, à guerra, à herança,etc.) e rituais a serem seguidos. Dos ritos obrigatórios, devemos destacar os cinco pilares da fé que são uma demonstração de submissão a Deus. 237 238 GUERRERO, Rafael Ramón. Filosofías Árabe y Judía. Madrid: Sintesis. S/d. p.22 Ibid., p.23 103 O primeiro dos cinco pilares é a declaração de fé (chahada), na qual o crente declara que não outra divindade além de Allah e que Muhammad é seu profeta, evocando a transcendência e unidade divinas. A oração (salat), segundo pilar, deve ser praticada cinco vezes ao dia: na aurora (al-fajr), ao meio-dia (al-zohr), após a metade da tarde (al-açr), logo após o pôr-do-sol (Maghreb) e de uma a uma hora e meia após o pôr-do-sol (alasha). Porém, nos momentos que precedem a oração, o muçulmano deve purificar-se externamente com a ablução (wudu), assim: deve lavar as mãos até os pulsos três vezes, lavar o rosto três vezes, lavar primeiro o braço direito, e depois o esquerdo, até o cotovelo, três vezes, esfregar a cabeça com a superfície interna dos dedos de ambas as mãos, colocar os dois indicadores nos ouvidos e esfregar as orelhas com os polegares; com as costas dos dedos de ambas as mãos, juntamente, deve-se esfregar a parte de trás do pescoço, e depois, lavar o pé direito, seguido do esquerdo, até os tornozelos, três vezes.239 Ao mesmo tempo, ocorre uma purificação interior, pois a pessoa pede a Deus que a purifique dos pecados cometidos com suas duas mãos, com ou sem conhecimento, que também a purifique dos pecados cometidos por sua boca, que encha suas narinas com o doce aroma do paraíso, que remova a escuridão que manchou sua face e que a ilumine com a luz de sua sabedoria. Implora a Deus que coloque o livro dos registros de sua ação na mão direita, como seria feito com os justos, e na mão esquerda, como seria feito com os pecadores. Ao lavar seu pé direito, reza para ser guiado para o caminho reto, e, ao lavar o esquerdo, implora para ser protegido das instigações das forças malignas, que tentam conduzir o homem para o caminho vicioso, o caminho da destruição de todas as virtudes.240 Somente quando ocorre a ejaculação de sêmen ou intercurso sexual o 239 ASHRAF, Syed Ali. O Significado Interior dos Ritos Islâmicos: Prece, Peregrinação, Jejum e Jihad. In CAMPOS, Arminda Eugênia; JÚNIOR, Roberto S. Bartholo. (Org.). Islã- O credo é a conduta. Rio de Janeiro: Imago, 1990. p.87 240 Ibid 104 corpo inteiro deve ser purificado. A remoção das impurezas interiores busca o fortalecimento espiritual. Considerada como o elo entre o crente e Deus, a oração é praticada individualmente ou em grupo. Vimos-te (ó Mensageiro) orientar o rosto para o céu; portanto, orientar-te-emos até uma quibla que te satisfaça. Orienta teu rosto (ao cumprires a oração) para a Sagrada Mesquita (de Makka)! E vós (crentes), onde quer que vos encontreis, orientai vossos rostos até ela. Aqueles que receberam o Livro, bem sabem que isto é a verdade de seu senhor; e Allah não está desatento a quanto fazem.241 Sempre em direção à Kaaba, evocando a bondade de Deus, o crente inicia uma série de movimentos rituais que exprimem sua adoração a Deus. Ao colocar-se de cabeça e braços cruzados o homem torna-se um escravo, “desamparado e só” e ao curvar-se glorifica a grandeza de Deus.242 Além das cinco preces diárias, o homem deve praticar a prece do coração (qalb), que é uma prece interior, não tendo hora fixa, devendo ser constante. “Quanto mais completas forem a submissão e a concentração do adorador, mais perto ele está de Deus e, portanto, mais seu caráter externo e sua conduta estão sob controle de preceitos internos.”243 Do alto do minarete das mesquitas ouve-se o chamado para a oração feita pelo muezim: Somente Deus é grande. Eu dou testemunho de que não existe divindade afora Deus. Eu dou testemunho de que Mohammad é enviado por Deus. Vinde à oração Vinde ao sucesso Somente Deus é grande Não existe divindade afora Deus.244 241 Alcorão, 2:144. Os gestos do rito da oração podem variar entre uma escola jurídica e outra. 243 ASHRAF, op. cit., p.95 244 JOMIER, Jacques. Islamismo: história e doutrina. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p.101-102 242 105 Que acabam marcando o ritmo do dia nos países muçulmanos. Sexta-feira, dia da semana reservado para a prece pública, os crentes reúnem-se para a oração do meio-dia que é proferida pelo Imam. Estão isentos desta obrigação as pessoas doentes, em crise de desmaio ou inconsciência, e mulheres durante a época menstrual e do parto. O jejum, terceiro dos pilares, é praticado no nono mês do calendário muçulmano, o Ramadã. Durante o dia até o pôr-do-sol, torna-se proibido o consumo de qualquer comida ou bebida e vedada as relações sexuais. “Ó crentes, está-vos prescrito o jejum, tal como foi prescrito a vossos antepassados, para que temais a Allah.”245. Além de ser um tempo de reflexão e disciplina espiritual, o jejum os lembra dos pobres e famintos. Somente os idosos, doentes, os muito jovens, os que estão em viagem e os que estão empenhados em um jihad podem adiar ou substituir o jejum pela prática de alimentar uma pessoa necessitada para cada dia não-jejuado. Em muitos locais são preparadas comidas e doces especialmente para essa época do ano e nas mesquitas ocorre a recitação de uma oração específica durante o anoitecer. A alegria da quebra do jejum e da visão da lua nova (que indica o fim do Ramadã) correspondem, na perspectiva de um crente, à alegria de ver o paraíso após a morte e à alegria de ter a visão de Deus após a ressurreição.246 Todo muçulmano em condições físicas e financeiras deve, ao menos uma vez na vida, realizar o quarto pilar da fé, a peregrinação (Hajj) à Meca. A peregrinação se realiza em meses determinados. Quem a empreender, deverá abster-se das relações sexuais, da perversidade e da polêmica.Tudo o que fizerdes de bom, 245 246 Alcorão, 2: 183. ASHRAF, op .cit., p.94 106 Allah o saberá. Equipai-vos de provisões, mas sabei que a melhor provisão é a devoção.247 Os ritos que fazem parte da peregrinação consistem em vestir o ihram, duas peças de tecido não costurado, para homens e nas mulheres cobre todas as partes do corpo, exceto o rosto, as mãos e os pés; entrar na cidade de Meca e realizar o tawaf al-qudum, ou seja, circundar a Kaaba sete vezes; Estar em Arafat, uma planície, no nono dia do mês lunar de Dhu`l-hijjah. Em Araft “eles acampam, praticam seus deveres religiosos juntos. Por dias seguidos, em horas prefixadas, marcham em conjunto, passam noites em tendas”248, nesta ocasião a igualdade e a unidade devem se sobrepor a nacionalidade, raça, economia ou sexo; depois devem passar a noite próximos à Meca; atirar pedras em três locais que simbolizam Satã; sacrificar um animal em Mina que celebra o sacrifício que Abrão decidiu fazer com seu filho; realizar tawaf novamente; beber água de Zamzam e realizar dois rakàh de oração no local onde Abraão e seu filho permaneceram e rezaram depois de construir a Kaaba. Este ato coletivo de adoração, além das implicações religiosas, tem imbricações sociais e econômicas importantes na história do Islã. Mantinha em tempos remotos uma rede de comunicação entre terras muçulmanas afastadas, em termos econômicos e intelectuais podemos destacar que o peregrino, se rico, era muitas vezes acompanhado de escravos, que poderia vender no caminho para custear as despesas da jornada. Se era mercador, poderia combinar a peregrinação com viagem de negócios, comprando e vendendo mercadorias nos locais por onde passasse e, assim, aprendia a conhecer os produtos, os mercados, e os costumes e práticas de muitas terras. Se era um erudito, poderia aproveitar a oportunidade para comparecer a aulas, reunir-se 247 Alcorão, 2:197. HAMIDULLAH, Mohammad. Introdução ao Islã. São Bernardo do Campo: C.D.I.AL., 1991. p.108 248 107 com colegas e adquirir livros, participando desta maneira, da difusão e intercâmbio de conhecimento e idéias.249 O Zakat, quinto pilar da fé, consiste no pagamento de um tributo obrigatório tornando-se, desta forma, um dever religioso e fiscal. Além de proporcionar o crescimento espiritual do contribuinte, seu objetivo seria formar uma provisão para o atendimento dos mais necessitados.“Observai a oração, pagai o Zakat e sabei que todo o bem que apresentardes para vós mesmos, encontrareis em Allah, porque ele bem vê tudo quanto fazeis.”250. Muitos países como Paquistão, Sudão e Líbia asseguraram a cobrança do Zakat como um direito de governo.251Este imposto, contudo, não dispensa a esmola voluntária chamada sakada. Assim, “de um extremo a outro do imenso mundo muçulmano, nos encontramos em meio a irmãos, rezando da mesma forma, nas mesmas horas, jejuando e terminado de jejuar usando os mesmos gestos, as mesmas palavras. A vida cotidiana é sacralizada por esta referência constante aos valores ao mesmo tempo transcendentes e compartilhados.”252 Os cinco pilares da fé constituem as chamadas obrigações positivas, ou seja, deveres que todos os crentes têm obrigação de cumprir. Outra obrigação religiosa considerada, muitas vezes, como um sexto pilar “não oficial” é o Jihad. Termo polêmico e muito debatido, suas diversas interpretações apontam não apenas para a visão equivocada do Ocidente, como também para as discordâncias dentro do próprio fundamentalistas e tradicionalistas. 249 253 Islã, principalmente entre grupos Ambos se baseiam no Alcorão para LEWIS, Bernard. O Oriente Médio: do advento do cristianismo aos dias de hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. p.209 250 Alcorão, 2:110. 251 ESPOSITO, John L. Islam: the straight path. 3 ed. New York; Oxford: Oxford University,1998. p.90 252 VITRAY-MEYEROVITCH, Eva de. In LUCCHESI, Marcos (Org.). Caminhos do Islã. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p.151 253 NASR, Seyyed Hossein. O Significado Espiritual de Jihad. In CAMPOS, Arminda Eugênia; JÚNIOR, Roberto S. Bartholo. (Org.). Islã- O credo é a conduta. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1990. p.269 108 formular suas considerações, porém, aqueles tendem a enfatizar seu caráter guerreiro e estes acentuam sua dimensão espiritual.254 Normalmente traduzido como “Guerra Santa”, o termo Jihad significa literalmente “esforço” ou “empenho” no caminho de Deus e, como destaca Bernard Lewis, existe no árabe clássico uma palavra para guerra, harb e outra para santo, muqaddas, porém esta última é utilizada, normalmente, em contexto judaico-cristão e não se coaduna com os preceitos do Islã a sacralização de pessoas ou ações humanas. Partindo de seu sentido primário, podemos destacar que se trata de um “esforço” em todos os âmbitos da vida do crente, espiritual, moral, político, econômico e, inclusive, militar. No que concerne sua interpretação espiritual ou moral, podemos dizer que consiste no esforço do homem em manter-se equilibrado, sem deixar que sentimentos como ódio, cobiça e agressão o dominem. Neste sentido, o cumprimento dos cinco pilares da fé pode ser considerado um Jihad, pois há um empenho constante, por exemplo, para desligar-se dos bens materiais e pagar o Zakat; vencer o cansaço e as dificuldades ao executar a peregrinação e o Jejum, ou ainda, lutar contra o esquecimento e cumprir as orações com regularidade e concentração.255 Portanto, nesta perspectiva, há a realização de um Jihad em cada fase da vida. Do ponto de vista espiritual, o Jihad também é chamado de Jihad maior (Jihad al-akbar) ou Jihad interior, pois, segundo a tradição, após retornar de uma das batalhas que travou para garantir a existência de sua comunidade, o 254 FLORI, Jean. Guerre Sainte, Jihad, Croisade. Violence et religion dans lê christianisme et l’islam. Gisserot: Éditions du Seuil, 2001. p.72 255 NASR, op. cit., p.273 109 profeta teria dito que ele e seus seguidores estariam voltando do Jihad menor para o Jihad maior.256 O Jihad menor ( Jihad al-asghar) ou Jihad exterior fundamenta-se na obrigação individual e coletiva na defesa do dar al-islam (ou o mundo islâmico) contra forças não-muçulmanas. Desta forma, tornaram-se paradigmáticas as lutas empreendidas pelo profeta nos primeiros tempos do Islã. Em caso de guerra ofensiva, toda comunidade tem o dever de atacar o inimigo e, em uma guerra defensiva, todo o indivíduo tem obrigação de defender a causa islâmica. O crente que for capaz de vencer o Jihad maior está preparado para lutar no Jihad menor. Este é designado como mujahid (guerreiro no caminho de Deus) que deve amar acima de tudo Deus e seu mensageiro, e estar pronto a sacrificar seus bens e sua própria vida, sua maior glória é tornar-se um mártir. Não devemos esquecer, contudo, que ao longo da história do mundo islâmico algumas vezes o Jihad foi evocado não apenas por motivos religiosos, mas foi a tentativa “de uma sociedade, na qual a religião permanece de importância central, de proteger-se de ser conquistada por forças militares e econômicas ou por idéias de natureza estranha.”257. Assim como existiram momentos em que houve o abuso dos sentimentos religiosos para a legitimação de um conflito, em função de interesses econômicos, como a captura de escravos. No entanto, como ressalta Seyyed Hossein Nasr, o abuso da violência não é exclusividade do mundo islâmico e a sinceridade da motivação, ou seja, estar lutando pela causa de Deus, é crucial para a realização de um Jihad. A questão da guerra teria sido incluída na legislação sagrada (sharia) com o objetivo de limitá-la e conter suas conseqüências258. Na perspectiva de 256 Ibid., p.271 Ibid, p.272 258 Ibid 257 110 Bernard Lewis, apesar de teólogos Xiitas, na época clássica, e reformistas dos séculos XIX e XX enfatizarem seu caráter espiritual e moral, a grande maioria dos teólogos, juristas e tradicionalistas interpreta o Jihad em sentido militar e nas grandes coleções de hadiths, prevalece também este sentido.259 Entretanto, Jean Flori nos aponta que o radical JHD aparece em trinta e cinco versículos do Alcorão. Em vinte e dois possui um sentido geral , em três casos designa um sentido puramente espiritual e em outros dez casos se aplica a uma ação claramente guerreira.260 De fato entre os versículos que se referem à guerra, direta ou indiretamente, quando mencionam explicitamente uma ação guerreira, o radical mais utilizado é لتق Deste derivam as palavras لَتَق, لَتاق , لَتْقَأ, لَتاقَت. Que significam respectivamente, matar, ombater (ou lutar contra), e expor-se a morte. È constante, entre esses versículos a convocação dos crentes ao combate com a seguinte frase: وُلَتاق يِف ليبَس َّلل , cuja tradução é “Combatei pela causa de Deus”, utilizando-se do radical acima citado.261 Ou seja, está presente no Alcorão os fundamentos do Jihad, porém, sua definição jurídica teria ocorrido posteriormente, por volta do IX século, época em que esta codificação permitiu a justificativa das conquistas árabes, o atribuindo a motivações religiosas como a obediência as prescrições divinas, 259 LEWIS, Bernard. A linguagem Política do Islão. Lisboa: Edições Colibri, 2001. p.106 FLORI, op. cit., p.72 261 Reuven Firestone que se dedicou a pesquisar as origens da Guerra Santa no Islã, chama atenção para a questão do estudo da terminologia, pois não seria possível equiparar diretamente o tremo Jihad à Guerra Santa. Os termos Qital (lutar, combater) e harb (guerra) são também encontrados no Alcorão e na literatura religiosa posterior. De acordo com o autor, harb é um termo genérico para guerra e se refere, geralmente, à guerras que não são legitimadas por uma autoridade religiosa. E o termo Qital e particularmente a expressão “Qital in the path of god” ( fi sabil Allah) é considerado sinônimo de Jihad, quando entendida como combate no caminho de Deus. Ver FIRESTONE, Reuven. Jihad: the origino f Holy War in Islam. Oxford: Oxford University, 2002. p.18 260 111 destinadas a estender o território do islã e ajudar seus habitantes a se libertarem da incredulidade.262 A formação da noção de Jihad teria ocorrido em vários momentos históricos. O primeiro deles corresponderia à época de Muhammad, que antes da Hégira esperava converter, pela argumentação a população da Arábia, entre eles judeus e cristãos, e este fato se traduziria pela revelação dos versículos tolerantes do Alcorão. Em Medina, em decorrência do confronto com as tribos judias, cristãs e “pagãs”, há a revelação dos versículos belicistas. O segundo período seria entre o VIII e o IX século, quando a ênfase é sobre a interpretação belicista, contituindo-se como um Jihad conquistador e ofensivo. Já em um terceiro momento, entre os séculos IX e X, houve a formulação de um Jihad defensivo, pois, corresponderia ao fim da expansão e a instauração de um equilíbrio político e estratégico entre o império muçulmano e as regiões vizinhas. Institui-se, principalmente, uma luta contra os heréticos e rebeldes263. O quarto período, o século X e, sobretudo o XI, foi marcado pelo aumento dos perigos internos, como podemos perceber por meio de fontes, como as memórias do último rei Ziri de Granada Abd Allah. Depois de destronado, o Príncipe Mulçumano do Ocidente, narra, ele próprio, a História de seu reinado. Disposto a reagir contra a ofensiva cristã comandada por Alfonso VI, Abd Allah une-se ao Emir dos Almorávidas, para que juntos conduzissem a “Guerra Santa”, assim o rei de granada escreve: 262 FLORI, op. cit., passim Segundo Bernard Lewis o rebelde, de acordo com os livros de Direito, é um insurreto ou amotinado. Porém, alguns regimes (mesmo muçulmanos) podem ser considerados como rebeldes, pois a partir da queda do califado sunita os governantes do Islã de maior importância se auto-deignavam “senhor do Islã” e consideravam, portanto, seus vizinhos como rebeldes, sendo neste caso legítimo travar uma guerra, porém não se caracteriza como um Jihad. Já a guerra contra um governo como os dos Mongóis, que se converteram, mas continuaram a impor as leis de Gengis Kan, ou seja, leis dos infiéis, torna-se um Jihad, pois são considerados apóstatas.Ver LEWIS, op. cit. 263 112 Desde que me escreveu que tinha feito sua entrada em Algeciras, eu havia mandado tocar os atabales e dar mostras públicas de alegria. Eu pensava que sua vinda a Al-Andaluz era um benefício divino, diante de meus olhos, pois estávamos unidos por vínculos étnicos.(...) Todos estávamos decididos a empregar pessoas e bens, em fazer anualmente com o Emir a Guerra Santa, cientes de que quem sobrevivesse ficaria honrado, assistido e protegido e quem sucumbisse morreria mártir. Era maravilhoso ver, naquela expedição, o acordo de nossas intenções e a pureza de nossos sentimentos, como se nossos corações tivessem se unido para um só fim.(...) Todos estávamos ansiosos para iniciar a Guerra Santa, destinando-lhe o maior empenho e decididos a morrer.264 A conseqüência da luta contra os perigos que surgiam foi a elaboração de um Jihad no sentido de luta contra tudo que é estranho à comunidade e também dando destaque para o sentido espiritual, um combate moral.265 Também há registro no século XIV, na Espanha, de um tipo de ádab destinado a orientação política. O ádab, segundo Carlo-Alfonso Nallino, herança da época pré-islâmica, consiste em um conjunto de costumes ancestrais convertidos em normas de conduta, portanto, sinônimo de “boa educação”. Estes costumes eram transmitidos por meio da tradição cultural e de forma literária: através da poesia e dos relatos de feitos dos árabes, de máximas morais, anedotas, contos e, inclusive, técnicas de equitação e uso de armas. Foi Ibn alMuqaffa (750), persa, o inventor dos livros de ádab, escritos como um manual de conduta cultural e moral em comunhão com o modelo de arabicidade.266 264 EL SIGLO XI EN PRIMERA PERSONA: LAS “MEMORIAS” DE ABD ALLAH, ULTIMO REY ZIRI DE GRANADA DESTRONADO POR LOS ALMORAVIDES (1090). 4ed. Taducidas, con introducción y notas, por E. Leví-Provençal y Emilio García Gómez. Madrid: Alianza Editorial, 1988. p.201 265 FLORI, op. cit., p.82 266 MATA, Maria Jesús Rubierta. Literatura Hispanoárabe. Madrid: Mapfre, 1992. p.172 113 Desta forma, além possuir um caráter lúdico, havia livros de ádab com outras especificidades. Ibn Simmak, cujo livro Al-hulal al-mawsiyya (As Túnicas Bordadas) que se apresenta como um livro de História, é, na realidade, uma obra de tipo ádab com uma série de anedotas, cuja intenção é convencer os granadinos a buscarem o apoio norte-africano e não prestar vassalagem a Castela. E na mesma época, Ibn Hudyl escreve uma obra que é considerada um tratado sobre a “guerra santa”. Acerca de como se conduzir diante do medo o autor argumenta: Entre as coisas que dão valor, citaremos as seguintes: imaginar que a salvação está próxima; considerar que a coisa que nos dá medo é inexistente, e que está muito longe de ocorrer. Convencer-se de que a arma está muito perto, o que nos permitirá fazer frente ao perigo. Imaginar que dispomos de um grande número de auxiliares, de contingentes consideráveis que os impedirão de sofrer qualquer dano.267 Portanto, sua “normatização” está diretamente relacionada com seu contexto histórico e o mesmo podemos dizer a respeito dos versículos corânicos, cujas interpretações são motivo de muitas discussões, pois, são, aparentemente, contraditórios ora enfatizando atitudes conciliatórias e pacíficas, ora ressaltando o combate268. No entanto, devemos recordar que as revelações se relacionam com contextos específicos, com circunstâncias precisas. A despeito de considerarmos as várias acepções do termo e de reconhecermos a profunda relação entre o Jihad interior e o exterior, estaremos enfatizando sua dimensão guerreira e como esta se manifesta no Alcorão. 267 VIGUERA, M. J. Ibn Hudayl. Gala de caballeros, blasón de paladines. Madrid: 1977 apud MATA, op. cit., p.187 268 Sobre este aspecto os autores Jean Flori e Biancamaria Amoretti estão em consonância. Ambos ressaltam estas características dos versículos referentes à guerra. Biancamaria destaca ainda que há uma preocupação em fazer uma distinção entre guerra legítima e guerra injusta, como também em tentar conter os “excessos”, pois caso haja possibilidade de acordos estes devem ser preferíveis à guerra. Ver FLORI, op. cit. e AMORETTI, op. cit. 114 Cabe, portanto, ressaltar a importância do que dentro da tradição islâmica é considerada como o Jihad por excelência : as lutas comandadas pelo profeta contra os inimigos mequenses. Além de líder religioso, Muhammad foi líder político e militar, comandando tropas na guerra e, por meio das revelações, instaurando suas normas. Levando em consideração que o fenômeno bélico possui uma enorme variedade de manifestações269 – tornando, por isso difícil sua conceituação - e que estas estão ligadas a inúmeras situações casuais, a configurações específicas270, buscaremos defini-lo avaliando seu contexto histórico e suas imbricações. Desta forma, esta e outras batalhas que ocorreram posteriormente, trataram-se de uma guerra, pois expressou-se como uma forma de conflito que envolveu um alto grau de hostilidade e violência entre grupos humanos organizados.271 Em seu tempo, a guerra e a razzia eram práticas legítimas e como vimos anteriormente, datam da época pré-islâmica. O autor Fred M. Donner272 considera que os árabes do norte sofreram uma enorme influência dos grandes 269 De acordo com Umberto Gori, as mais conhecidas definições do conceito de guerra são as que se baseiam no Direito. Buscando distinguir “estado de Guerra” de “estado de paz”, na verdade o que conseguem por essa via é evidenciar seus momentos formais e não chegam à sua essência. Outra via é relacionar guerra à violência expressa por meio de uma “força armada” que reduziria os casos possíveis de serem configurados como guerra. Na atualidade, por exemplo, “força” também é expressa em termos econômicos, psicológicos, etc. Gori demonstra que não há, portanto, um conceito unívoco de guerra. Este pode ainda ser “decomposto” quanto aos grupos que estão em luta (internacional, civil, colonial etc.); quanto à intenção dos grupos (defensiva, ofensiva, preventiva,etc.) ou ainda quanto ao tipo de armamento utilizado (convencional ou nuclear). Ver GORI, Umberto. Guerra. In. BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 12 ed. Brasília: Universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 270 BONANATE, Luigi. A Guerra. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. 271 WRIGHT, Quincy. A Guerra. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 1988. p.5 272 DONNER, Fred M. The sources of Islamic conceptions of war. In JOHNSON, James Turner; KELSAY, John. Just War and Jihad. Historical and theoretical perspectives on war and peace in western and Islamic traditions. New York: Greenwood, 1991. p.34-35 115 impérios (Bizantino e Persa) e dos diferentes grupos que os compunham que possuíam uma enorme diversidade cultural (lingüística, religiosa, literária etc.) na formação de uma concepção de Guerra, pois mantinham contatos com estas outras áreas. Não somente no período de surgimento do islamismo, como também, no posterior desenvolvimento jurídico (da guerra), na época “clássica”. As tribos, segundo o autor, viviam de saques e sob a “lei do talião”, em um constante “estado de guerra” , mas defende a idéia de que não seria impossível que tribos próximas consolidassem acordos sob determinados termos. Em sua concepção o ghazu (ou Razzia) funcionaria mais como um tipo de “esporte” do que como uma guerra verdadeira, pois raramente ocorriam “fatalidades”. Os maiores e mais violentos embates eram decorrentes de tentativas de dominar uma determinada região (pasto), que frequentemente estavam associadas às mudanças ambientais severas, como secas prolongadas, ou mudanças políticas, ou seja, quando uma tribo subjugava outra obrigando-a a migrar E baseando-se nos poemas pré-islâmicos (a guerra não é assunto principal dos poemas, é aceita como parte da vida, mas descreve batalhas) tenta recompor a ética e a prática da guerra entre as tribos. Quanto à influência pré-islâmica na constituição do conceito ou de uma ética guerreira, devemos salientar que os poemas deixam claro que alguns valores fundamentais eram cultivados entre as tribos que viviam na região. São heranças do passado pré-islâmico o empenho na guerra, pois, de acordo com os costumes tribais, a morte durante um combate era prova de honra e virilidade, e a rendição ao inimigo era tão humilhante quanto a morte natural. Lugares herdados pela morte, depois que os homens foram combatidos, 116 Ora sendo mortos, ora morrendo – e quanta vergonha para aquele que envelhece!273 com jovens que têm orgulho em matar e anciãos envelhecidos nas guerras, ou em duelos singulares, em que todos lutam, cada filho deles contra um filho nosso. Nos dias em que tememos pelos nossos, os cavalos montam guarda em esquadrões, clã por clã; nos dias em que não tememos, partimos para razia, preparados para o combate, com um chefe de Jucham, filho de Bakr, triturando planícies e planaltos. Acaso não souberam as tribos que nunca nos humilhamos. Nem nos enfraquecemos?274 O guerreiro deveria ser corajoso, capaz de realizar a vendeta e enfrentar o inimigo, ou seja , havia um código de honra a ser seguido. De acordo com Bravmann, o Jihad seria um conceito secular, mas que não exclui uma aura de sacralidade, principalmente por basear-se na idéia de sacrifício por um ideal que, na Arábia pré-islâmica, manifesta-se na fidelidade à tribo. Quem ganha um bem irá perde-lo; quem tem esperança está sempre iludido; quem tem camelos irá deixa-los como herança; quem conquista um butim será depois saqueado; quem se ausenta regressa; mas quem se ausenta para ver a morte não regressa nunca. Ter útero é o mesmo que ser estéril; saquear é o mesmo que ser pilhado.275 273 MUSSA. P. 43 nesta parte inicial do poema, na qual geralmente faz-se referência ao levantar do acampamento, houve neste caso, ao que tudo indica, uma mudança em decorrência da guerra e não em virtude da mudança de estação. 274 MUSSA. P. 99 275 MUSSA. P. 44 De acordo com o tradutor o autor estaria questionando a ética convencioanl árabe. Preza a coragem e o despego 117 Quantas vezes fui a um poço de águas corruptas, por caminhos ermos e aterradores, vendo penas de pomba espalhadas pela margem, o coração tremendo de terror! Cruzei cauteloso esse caminho, uma manhã, e meu companheiro era uma camela troncuda, trotadora.276 No Alcorão existem referências à coragem, empenho e sacrifício, tanato de seus bens pessoais quanto de sua própria vida: E não creais que aqueles que sucumbiram pela causa de Allah estejam mortos; ao contrário, vivem agraciados, ao lado de seu Senhor. Estão jubilosos por tudo quanto Allah lhes concedeu da sua graça, e se alegram por aqueles que ainda não sucumbiram, porque estes não serão presas do temor, nem se angustiarão. Alegram-se com a mercê e com a graça de Allah, e Allah jamais frustra a recompensa dos crentes; Os quais, mesmo feridos, atendem ao chamamento de Allah e do Mensageiro. Para aqueles que fazem o bem e são tementes, dentre eles, haverá uma magnífica recompensa. São aqueles aos quais foi dito: Um grande exército concentra-se contra vós; temei-o! Isso aumentou-lhes a fé e disseram: Allah nos é suficiente. Que excelente guardião!277 Seu Senhor os atendeu, dizendo: Jamais desmerecerei a obra de qualquer um de vós, seja homem ou mulher, porque procedeis uns dos outros. Quanto àqueles que foram expulsos dos seus lares e migraram, e sofreram pela minha causa, combateram e foram mortos, absolvê-los-ei dos seus pecados e os introduzirei em jardins, abaixo dos quais correm os rios, como recompensa de Allah. Sabei que Allah possui a melhor das recompensas.278 276 MUSSA. P. 45 Alcorão, 3: 169-173. 278 Alcorão, 3: 195. 277 118 Aos mártires estão associados geralmente os termos recompensa, paraíso, complacência de Deus, clemência e hierarquicamente serão agraciados por Deus os Profetas, os verazes, os mártires e os virtuosos. O engajamento é sempre ressaltado e valorizado. E á todos que lutam está destinada uma recompensa terrena (Butim) e uma na vida futura (Paraíso). Portanto, já eram valores conhecidos de Muhammad e seus seguidores que abraçaram o novo credo, substituindo a tribo pela Umma.279 Durante os anos em que teve de lutar contra seus inimigos, Muhammad recebeu as revelações que norteariam seus seguidores em relação às posturas diante da guerra. Podemos dizer que foram estabelecidas normas, já que são estipulados padrões de comportamento que o crente não só adota para si, mas também para os outros, reagindo negativamente em relação àqueles que não se comportam como ele.280O Alcorão, portanto possui uma linguagem prescritiva, ainda, de uma forma geral, possamos considerar que, apesar de a linguagem possuir três funções básicas: representar ou descrever certo estado de coisas, dar informação e transmitir conhecimento; influenciar o comportamento dos outros, orientar dirigir, regular, controlar, etc.; patentear, revelar, transmitir estados de espírito, suscitar sentimentos e provocar reações emotivas, na realidade nenhum discurso encontra-se em seu “estado puro”,e desta forma, nossa fonte possui uma linguagem que mescla as três funções. Porém, podemos nos remeter ao termo prescrição, porque todo o “aconselhamento”, contido em seu discurso em relação à guerra, visa influenciar o comportamento e vem acompanhado de sanções, neste caso o crente se confrontará com ela no Dia do Juízo, quando Deus o julgará por suas ações, destinando-lhe o paraíso ou o inferno. 279 280 AMORETTI, op. cit., p.740 Einaudi. Norma. p.107 Ver referência completa! 119 Sob este ponto de vista, podemos perceber a importância dos dogmas religiosos em relação ao fenômeno da guerra, reforçando suas ações. Além da crença no Dia do Juízo, a crença em um Deus único que é onipotente, onipresente, que tudo vê, tudo sabe. Severo juiz punitivo, não há como esconderse de seus olhos. Ele salva, recompensa, aniquila, concede, encaminha, socorre. Em sua mãos, está a vida e morte, inclusive na guerra. A crença nos livros revelados e nos profetas enviados. Há inúmeros exemplos proferidos pelo Alcorão de outros profetas que foram compelidos a lutar e a matar, como Davi, que com o auxílio de Deus, matou Golias. A vitória para os que estão lutando pela causa de Deus é certa e os outros Livros o comprovam. E a crença nos anjos que são enviados para salva-los em batalhas. Durante a Guerra os pilares da fé também não são esquecidos. Recomenda o Alcorão: Quando estiverdes entre eles e os convocares a observarem a oração (Ó Mensageiro), que uma parte deles porte suas armas e as pratique contigo; e, quando se prostrarem, que a outra se prostre na retaguarda; ao concluírem, que se retire e se ponha de guarda e suceda-lhe a parte que ainda não tiver orado, e que reze contigo. Que se precavenham e leve suas armas, porque os incrédulos ansiarão para que negligencieis as vossas armas e vossa bagagem, a fim de vos atacarem de surpresa. Tampouco sereis reprimidos se depuserdes as armas quando a chuva a isso vos obrigar, ou estiverdes enfermos; mas tomai vossas precauções. Sem dúvida, Allah destina aos incrédulos um castigo humilhante.281 Se considerarmos que os ritos religiosos são procedimentos mais ou menos estereotipados ou elaborados, compostos por atos e símbolos, que se manifestam freqüentemente por objetos, e palavras provenientes de um 281 Alcorão, 4: 102 120 longínquo passado282, o rito de oração, que deve ser cumprido durante as batalhas, tem a sua importância “não pelo seu sentido intrínseco, sua eficácia prática, ou a segurança subjetiva que proporciona, mas o fato de que transforma a situação, reforçando a solidariedade do grupo que a executa.”283 Assim, são convocados para o combate todos os crentes, exceto os enfermos, os fracos e os que não possuem recursos, como montaria, por exemplo. Em termos de estratégia e tática, podemos ressaltar que, se examinarmos estratégia como os “objetivos gerais que o fenômeno pretende alcançar”284, esta apresenta-se com a finalidade, sobretudo, além das causas econômicas e políticas, de que prevaleça sua religião sobre as demais. E com base no discurso apresentado, sua tática, ou seja, “o estudo do afrontamento direto com o inimigo”285 consiste em serem conduzidos em destacamentos pelo profeta, utilizando-se de armaduras, armas e cavalaria. A rendição nunca é mencionada, sendo punido aquele que abandona ou deixa de ir a guerra. No campo de batalha escolhiam posições protegidas por obstáculos naturais, como montes, local onde seus arqueiros poderiam agir e terrenos que lhes favorecessem a fuga para o deserto. De acordo com Keegan286, a tática em questão continuou a mesma na época das conquistas. Assim, de acordo com as várias versões da batalha de Badr287, o confronto em questão começou de maneira confusa, mas a situação acabou sendo dominada por Muhammad e seus seguidores que possuíam uma superioridade tática, atacando em linhas e, sem 282 LABURTHE-TOLRA, Philippe; WARNIER, Jean-Pierre. Etnologia-Antropologia. Petrópolis: Vozes,1999. p.206 283 Ibid 284 BONANATE, op. cit., p.69 285 Ibid 286 KEEGAN, John. Uma história da Guerra. São Paulo: Cia das Letras, 1995.passim 287 Estamos nos baseando, principalmente, nas versões apresentadas por Máxime Rodinson, Karen Armstrong, Barnady Rogerson, que são obras de cunho biográfico. 121 fraquejar, crivando o inimigo com flechas. Ao que parece, a vantagem dos seguidores do profeta foi a coesão como prescreve o Alcorão: “Ó crentes, ficai prevenidos contra o adversário, e avançai por destacamentos ou avançai em massa.”288 Os Coraixitas, além da sede e de estarem contra o sol, tinham perdido seus líderes no começo da batalha. Apesar da desvantagem numérica, a jovem comunidade derrotou os “incrédulos”.Em socorro aos crentes Allah enviou um exército de anjos, a vitória foi outorgada por Deus.Perseguido e humilhado, Muhammad a partir da batalha e Badr era respeitado e temido. Se seus opositores e os que não acreditavam em suas mensagens buscavam uma prova de que era um mensageiro de Deus, esta havia chegado com a vitória. O episódio que ainda hoje é mencionado, como nas alusões feitas em acontecimentos como o ataque egípcio ao bar israelita Lev Line, em outubro de 1973, quando o atribuíram o nome de Código de Badr, ilustra a transcendência dos feitos do Profeta e de sua comunidade, que são para os muçulmanos atuais paradigmáticas, porém como uma gama de interpretações. 288 Alcorão. 4: 71 122 Capítulo IV- Antigos acordos, novos limites: o casamento. A cena era impressionante, Selma esperava com paciência que sua preparadora, a muzzayyina, continuasse a arrumá-la, como já fazia desde a véspera quando a tinha lavado, depilado, massageado com óleos aromáticos, e a incensado usando mirra, olíbano e styrax. Depois havia colocado hena na sola dos seus pés e nas palmas de suas mãos. Naquele momento começava a sessão de desenhar símbolos de boa sorte com uma substância negra, o Khudab. (...) Ornava os braços, antebraços e tornozelos da noiva com flores e arabescos. Uma música suave servia de fundo, e algumas amigas da noiva faziam passos de danças benfazejas.289 A descrição acima faz parte de uma das etapas de uma cerimônia de casamento que se estende por oito dias, realizada no atual Yemen290. Selma, a noiva, que foi escolhida ainda em seu tempo de escola, faz parte de uma família tradicional e por isso foi criada “separada” dos homens da família. Vista por seu noivo (e primo) Fuad raras vezes, de longe, através de seu véu, teve seu casamento acertado por meio de familiares e recebeu a parte que lhe cabia do dote em jóias. Entre os cantos, banquetes, tambores e 289 CAMARGO-MORO, Fernanda de. As Caravanas da Lua: pela Rota do Incenso em busca da Rainha de Sabah. Rio de Janerio: Record, 2007. p.160 290 A República Árabe do Yemen é o resultado da unificação em 1990 do Yemen do norte e Yemen do sul e compõem a liga dos Países Árabes fundada em 1945. A Liga é composta também pelo Egito, Argélia, Arábia saudita, Barém, Djbuti, Emiratos Árabes Unidos, Iraque, Jordânia, Koweit, Líbano, Líbia, Marrocos, Mauritânia, O.L.P (Organização para a Libertação da Palestina), Omã, Qatar, Somália, Sudão, Síria, Tunísia e Comores. Ver DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004. e MANTRAN, Robert. As grandes datas do Islão. Lisboa: Notícias, 1990. 123 as muitas tradições que compõem a festividade, mais uma família estabelece suas redes de aliança no mundo árabe contemporâneo. Por volta de 1959, na Arábia Saudita, a família era e, muito provavelmente continua sendo, a unidade que define a identidade de cada indivíduo. Havia algumas variações entre nômades e citadinos291, entre os primeiros constituía-se como uma unidade auto-sustentável e entre os últimos, na cidade, as grandes empresas eram comandadas por pais, filhos, irmãos e tios. E o governo central agia, habilmente, por meio dos Sheikhs tribais e de sua poderosa influência sobre os líderes das famílias mais importantes. Desta forma, um indivíduo que estava à frente dos negócios ou do governo deveria usar seu posto para beneficiar seus parentes e sua negligência era considerada como “moralmente repreensível”.292 As linhagens estavam organizadas em torno dos homens e a estrutura da família reflete a importância deste princípio. A descendência se estabelece pela linha paterna, e em uma mesma casa coabitam, normalmente, três gerações “um homem e sua esposa ou esposas, suas filhas e filhos solteiros, e alguns filhos casados com suas esposas e crianças”293 e cabe ao pai todas as decisões importantes, especialmente no que diz respeito às atividades dos membros da família fora de casa. Encontramos uma estrutura semelhante durante a Idade Média. Por meio de uma vastíssima documentação, poemas, obituários, dicionários biográficos, anais, anedotas e, principalmente, crônicas, Thierry Bianquis294 investiga a prática doméstica e social do parentesco na sociedade islâmica medieval. O primeiro fator que se deve levar em consideração é o fato de que os relatos centram-se nas grandes famílias, e há uma maior abundância de informação para o período posterior a 1260. Salvo alguns episódios que escaparam ao comumente aceito e, por isso, mereceram alguma menção, o autor enfatiza que estamos diante da “imagem pública da família”, que por sua vez caracterizava-se como um 291 No meio rural havia uma estabilidade maior em relação a base familiar, a concorrência das concubinas é desconhecida e não oferece ameaça ao estatuto da esposa. Há inclusive uma diferenciação entre o amor citadino e beduíno. Este confere maior importância a castidade e lealdade e a obra de um poeta beduíno é consagrada a uma única dama. Ver BOUHDIBA, Abdelwahab. A sexualidade no Islã. São Paulo: Globo, 2006. 292 LIPKY, George A. Saudi Arabia: Its people its society its culture. New Haven: HRAF, 1959. p. 47 293 Ibid., p. 48 294 BIANQUIS, Thierry. A família no Islão árabe. In BURGUIÈRE, André et al. História da Família. Lisboa: Terramar, 199 116 “patriarcado racional”.295 Nesta estrutura “o lugar ocupado por um indivíduo no seio de sua família era definido pelo sexo, pela ordem de nascimento do pai entre os irmãos deste e, finalmente pela idade.”296 De acordo com o Direito Islâmico, podemos dizer que durante a Idade Média, o casamento entre muçulmanos e não-muçulmanas não era estimulado, mas ao mesmo tempo não era totalmente proibido. Um homem (crente) poderia desposar uma cristã ou uma judia, sem que estas fossem obrigadas a se converter. Contudo, seus filhos seriam muçulmanos. Já o casamento entre muçulmanas e homens cristãos ou judeus eram expressamente proibidos. Somente poderiam realizar-se mediante a conversão desses que adquiriam todos os direitos de um muçulmano de nascimento.297 As filhas eram casadas com membros da família e aos filhos eram “reservadas” jovens de fora, com o objetivo de aumentar seus membros. A poligamia, prática corrente entre os mais poderosos, além de seu caráter ostentatório, era considerada como indicativo de sucesso profissional. Entretanto, entre as camadas urbanas mais modestas, havia o limite fixado pelo próprio custo de vida nas cidades. As citadinas que mantinham contato com produtos de luxo eram, normalmente mais exigentes, inclusive com relação aos seus filhos. Mas poderia ser um “recurso” utilizado entre os camponeses que necessitados de mão-de-obra não possuíam meios para a aquisição de escravos. Bianquis complementa afirmando que o preço pago pela mão de uma camponesa era bem mais alto, pois esta era conhecida por sua resistência ao trabalho e às doenças.298 Devido ao “donativo” que deveria ser oferecido a família da jovem, os homens casavam-se tardiamente. Ao contrário, as mulheres casavam-se logo após sua puberdade, e a diferença de 295 Ibid., Ibid., 297 Ibid., 298 Ibid., 296 p.274 p. 284 p.264 p. 274 117 idade entre maridos e esposas era de quinze a vinte anos, estratégia utilizada na tentativa de evitar o “repúdio”299 provocado pelo envelhecimento da mulher.300 A intimidade e o mundo doméstico nos são vedados pelas fontes. À eles tinham acesso somente as mulheres, a mãe, a irmã, as tias solteiras ou repudiadas e as criadas.301 E que provavelmente, diferentemente, da língua das fontes “oficiais”, canônica, que obedecia as rígidas normas gramaticais, os afetos eram, no seio da lar muçulmano, expressos em dialetal, uma linguagem essencialmente oral. E no “mundo dos homens”, fora dos muros da casa, locais que raramente tinham acesso, a mulher circulava somente atrás de seu véu, “manifestação visível” de sua inacessibilidade.302 De acordo com tradição islâmica, Muhammad teria recomendando o uso do véu as suas esposas, pois seus aposentos eram direcionados para um pátio central, no qual o profeta mantinha reuniões com seus seguidores.303 Esta medida visava a proteção de suas esposas. Porém, de acordo com Bianquis, este costume já era conhecido no Oriente, como indicam esculturas de Palmira.304 Ressalta ainda que a separação entre homens e mulheres não é uma exclusividade da religião islâmica, visto que nas igrejas bizantinas, por exemplo, havia determinados locais, cujos acessos eram proibidos às mulheres, e durante os “ofícios” os fieis eram separados de acordo com o sexo.305 Esse aspecto em particular é uma das muitas questões que sucitam diferentes posicionamentos dos autores306 que tratam direta ou indiretamente o tema do parentesco e de 299 O repúdio consiste em proferir a esposa uma fórmula, também conhecida por Zihar por meio da qual o marido diz: “sois para mim como as costas de minha mãe”. Ao repudiar a esposa por três vezes o divórcio é irrevogável a não ser que esta case-se com outro homem e dele também se separe. Ver versículos 2 e 3 da 58º surata e BOUHDIBA, op. cit. 300 BIANQUIS, op. cit., p. 275 301 Ibid., p. 276 302 Ibid., p.264 303 Ver nota 16 do terceiro capítulo desta dissertação. 304 BIANQUIS, loc. cit. 305 Ibid. 306 Veremos a seguir essas perspectivas. 118 suas “normas”, em especial as que são referentes ao casamento, a partir do advento do islamismo. Baseado na perspectiva de que os árabes do século VII partilhavam tradições culturais e sociais com outros povos do mediterrâneo oriental, Bianquis afirma que “não houve uma ruptura, mas antes um ajustamento a novas relações sociais. Há que se tomar consciência desta evolução para compreender o contributo positivo da legislação islâmica”307 A partir de uma opinião oposta, o autor Muhammed Bamyeh308, acredita que o ilsã, em toda extensão de seu domínio, transcende a “pré-determinação” do parentesco sanguíneo, que possuía um “sólido terreno” até então. As “lealdades sociais” teriam sido, em sua concepção, suplantadas por um novo “conceito de coesão familiar dos crentes”, as famílias estariam divididas a partir de então, pela fé, o que implicou em uma ruptura com a ordem estabelecida.309 O islã teria fundado um novo paradigma de solidariedade social. John Esposito310 considera que as normas corânicas fortaleceram a família, na medida em que sobrepujou todas as alianças tribais ou raciais. No “direito consuetudinário” tribal a sucessão era baseada em um sistema agnástico, o parentesco e a herança estabeleciam-se pela via masculina e, de acordo com o autor, a Alcorão teria modificado este sistema ao introduzir a “valiosa” norma de herança, que fixa as “porções” que cabem a cada membro e que engloba as mulheres, antes excluídas pelo sistema agnástico311. E um dos grandes “avanços” teria sido o fato da mulher receber o dote. O Alcorão recomenda: E se vos divorciardes delas antes de as haverdes tocado, tendo fixado o dote, corresponder-lhes-á a metade do que lhes tiverdes fixado, a menos que, ou elas abram mão disso, ou o faça a vosso favor quem tiver o contrato matrimonial em seu poder. Sabei que o desprendimento (da parte do marido) está mais próximo da virtude e 307 BIANQUIS, op.cit., p. 265 BAMYEH, Mohammed A. The social origins of Islam: mind, economy, discourse. Minneapolis: University of Minnesota, 1999. 309 Ibid., 181 310 ESPOSITO, John L. Women in muslim famlily law. Syracuse: Syracuse University, 1982. 311 Ibid., p.4-5 308 119 não vos esqueçais da liberalidade entre vós, porque Allah bem vê tudo quanto fazeis.312 Proporcionarem provisões justas as manutenção) é um dever dos tementes.313 divorciadas (para sua Concedei os dotes que pertencem às mulheres como presente e, se for da vontade delas conceder-vos algo, desfrutai-o com bom proveito.314 Thierry Bianquis chama a atenção para o fato de que na documentação, por exemplo, nas crônicas, a solidariedade tribal ou com relação a família patriarcal é constantemente evocada, considerada como importante alicerce da “ordem pública”, nas sociedades islâmicas medievais, ainda que neste contexto com o desenvolvimento das grandes cidades esta ética ou solidariedade fosse difícil de ser praticada. Buscando as origens da “instituição da família árabe” o autor descarta a hipótese que foi somente o islã que teria forjado suas normas afirmando que “as origens dessa instituição familiar deverão ser procuradas no meio humano que dominava a península Arábica quando o Islão foi pregado. Retomando certas tradições anteriores e varrendo outras.”315 De encontro com o ponto de vista de Bianquis que avalia que os “costumes” e as relações de parentesco das tribos pré-islâmicas formam o “substrato” do direito islâmico, e tendo em vista que o objetivo central deste trabalho é analisar os aspectos de continuidade e ruptura entre a comunidade muçulmana de Medina e a sociedade que a antecedeu também por este víeis, ou seja, parentesco e alianças, nos centraremos nas referências que abordam as sociedades em questão. 312 Alcorão, 2:237. Alcorão, 2: 241. 314 Alcorão, 4:4. 315 BIANQUIS, op.cit., p. 258 313 120 Conforme os autores316 a estruturação do parentesco na sociedade tribal dava-se da seguinte forma: o beduíno, nômade ou semi-nômade zelava e exaltava a lealdade e solidariedade tribal, mas possuía “liberdade de ação” em relação àqueles aos quais não estava ligado nem por laços de sangue, nem por alianças. Ao realizar o “mapeamento” das redes e de como a consangüinidade se impôs, verificamos que todo o indivíduo quando nascia recebia o Nasab, ou seja, seqüência de nomes próprios dos antepassados masculinos317, até o antepassado real ou mítico. Esta genealogia era composta por cinco ou seis segmentos e resumia-se no Nisab “nome da família ou da tribo”318, destacando o antepassado fundador. O asabiyya (espírito de grupo), congrega todos os que usam o mesmo Nisab e englobava parentes de sangue, antigos escravos libertos e os mawâli319 assimilados à tribo. A família conjugal só poderia ser considerada como tal após o nascimento do primeiro filho varão, que seria o futuro guerreiro da tribo. Na ausência deste grande acontecimento a honra da mulher casada continuava a ser defendida por seus irmãos e não pelo marido. Ao dar à luz a um filho a mãe se fosse escrava era libertada e tornava-se “mãe de um rapaz” (Umm Walad). E o homem, da mesma forma, tornava-se “pai de fulano” (Abu Fulân), que constituía seu Kunya e, finalmente, ganhava um lugar no conselho da tribo.320 Quanto à situação da mulher, esta perdia o direito à herança ao se casar, pois caso contrário estaria transferindo bens para outra tribo. Estava, portanto, totalmente sujeita ao marido. A mulher era subjugada pelos homens, pai, irmãos e parentes próximos e esse “status” inferior da mulher, segundo Esposito, se refletiria nos versículos corânicos referentes ao infanticídio: Da mesma forma, os parceiros dos idólotras tornaram-lhes fascinantes os assassinato dos próprios filhos, a fim de os conduzirem à sua própria destruição e causarem confusão em sua religião; porém, se 316 Estamos nos baseando em BIANQUIS, op.cit. e ESPOSITO, op.cit. BIANQUIS, P. 266 318 BIANQUIS, p. 266 319 Nota explicativa sobre Mawalis (clientes) 320 BIANQUIS, p. 267 317 121 Allah quisesse, não o teriam feito. Deixa-os, pois, com tudo quanto forjam.321 Não mateis vossos filhos, por temor à necessidade, pois os sustentaremos, bem como a vós. Sabei que o assassinato deles é um grave delito.322 De acordo com o tradutor Samir El Hayek323 o primeiro versículo refere-se a rituais religiosos pré-islâmicos que sacrificavam as filhas aos deuses e o segundo ao fato de que devido a penúria as filhas eram sacrificadas. Esposito acredita que o advento do islamismo e sua “regulamentação” sobre família (casamento, divórcio, herança) significaram um rompimento radical com os costumes da Arábia Antiga e, principalmente, teria melhorado o “status” feminino. Voltaremos a essa questão posteriormente. Nos centraremos na análise das relações de parentesco e alianças no Alcorão e em sua dimensão política. Georges Balandier324 que busca analisar as relações existentes entre parentesco e poder, baseou-se em pesquisas de campo, e contrapõe-se a estudiosos como Morgan e teóricos marxistas que vêem a completa dissociação entre os laços de pessoais de sangue e a emergência do político.325 Balandier, ao contrário, demonstra que em muitas sociedades- ditas de linhagem, segmentarias ou acéfalas — é o parentesco que “ fornece ao político uma linguagem”, em alguns casos as manipulações do parentesco são um dos meios de “estratégia” política. No entanto, nem sempre as relações de parentesco em sua totalidade possuem funções ou significados políticos. Deve-se, portanto atentar para seus mecanismos internos e externos que 321 Alcorão, 6: 137 Alcorão, 17: 31 323 O SIGNIFICADO DOS VERSÍCULOS DO ALCORÃO SAGRADO. Ed de Samir El Hayek. São Paulo: Marsa Editora Jornalística, 2001. p. 338 e p. 187 322 324 325 BALANDIER, Georges. Antroplogia Política. Lisboa: Presença, sd. Ibid., p. 49 122 encerram relações políticas, como por exemplo, a descendência unilinear ou formações de redes de alianças fruto de trocas matrimoniais.326 E Seguindo nesta mesma direção, podemos dizer que Muhammad vivia em um meio cujo domínio do parentesco já estava estruturado. Com base no trabalho de Anita Guerreau327, devemos salientar que a análise do parentesco não deve ser levada a cabo pelo historiador sem algumas precauções, principalmente pelo tema ser “familiar” e consequentemente um fértil campo para anacronismos. É, portanto, conveniente lembrar que o parentesco constitui “um conjunto de relações socialmente definidas”, ligado mais à ordem da cultura do que da natureza, pois por meio destas relações articulam-se dados biológicos às obrigações sociais. Outra questão de suma importância que deve “orientar” os trabalhos é a cautela de não aplicar conceitos prévios, de experiências pessoais, “dados implícitos” na análise uma sociedade como a medieval. Deve-se, portanto, despir-se do senso comum, ressalta a autora, o historiador que pretende seguir por essa via e valer-se das noções que são fundamentais na Antropologia: consangüinidade e aliança. Que ainda são “ferramentas” pouco utilizadas no campo da História.328 A autora define consangüinidade como “elos entre dois indivíduos dos quais um descende do outro ou reconhecem ter um ascendente comum”329 e a aliança “ traduz a forma pela qual os grupos de consangüíneos são ligados entre si pela aliança do matrimônio(...) constitui um instrumento privilegiado da coesão dos grupos”330 È importante observar as 326 327 Ibid., p. 50-51 GUERREAU-JALABERT, Anita. Parentesco. In LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC; Imprensa Oficial do estado, 2002 328 Ibid., p. 312- 313. Ibid. 330 Ibid. 329 123 redes, os processos de transmissão e as modalidades dos laços entre os grupos de parentes. E serão estes conceitos que nortearão a análise do presente capítulo. A consangüinidade é definida por regras sociais, além de reger o “recrutamento” dos grupos de parentes também opera na transmissão dos bens materiais e simbólicos. Há dois grandes tipos de organização: sistemas unilineares, ou seja, filiação e transmissão passam por um sexo e excluem o outro, por exemplo, no sistema patrilinear somente a relação através de homens é socialmente aceita, o indivíduo é automaticamente fixado pelo nascimento, o que o submete a determinadas obrigações e deveres, mas também possibilita o acesso a privilégios, bens, nome e estatuto formando grupos pequenos de parentes e não-parentes, e sistemas cognáticos, também chamados indiferenciados o reconhecimento da consangüinidade passa tanto por homens quanto por mulheres, ficando o indivíduo ligado à linhagem da mãe e a do pai. O elo de parentesco estabelece-se pela contagem de gruas de consangüinidade entre os parentes reconhecidos.331 Realizando um estudo da terminologia e da transmissão na sociedade romana e do Ocidente Medieval, os vocábulos que definem os parentes autora percebe uma equivalência entre os sexos, o indivíduo podia herdar tanto da mãe quanto do pai, nos documentos analisados, portanto há a passagem de um sistema patrilinear (romano) para um sistema cognático, no qual uma filha poderia não só herdar de seu pai, mas também sucede-lo no comando de um senhorio. No islã o sistema, levando em consideração os fatores acima mencionados, ou seja filiação e transmissão, podemos dizer que é um sistema cognático. Porém devemos ressaltar suas particularidades. Os laços de consangüinidade são adquiridos através dos pais e não das mães, pois os “nomes” adquiridos são oriundos da linhagem paterna. Contudo, os filhos podem herdar tanto do pai quanto da mãe, ainda que a herança vinda da paret materna seja 331 Ibid., p.314 124 sempre menor, já que como veremos mais adiante, aos homens cabe a maior parte de patrimônio. Alguns historiadores e antropólogos, afirma Bianquis332, nos fins do século XIX, desenvolveram a hipótese de que havia na península Arábica estruturas matrilineares, anteriores ao surgimento do islã333. Montegomerry Watt, por sua vez, acreditava que a ordem social matrilinear havia começado a caminhar para a patrilinearidade um pouco antes do islã, principalmente em Meca. O Profeta estaria , portanto, em uma fase de transição entre os dois sistemas.334 Maxime Rodinson atribui a essa perspectiva um erro de interpretação dos indícios, pois há alguns relatos de que na arábia pré-islâmica teria vigorado o princípio da matrilineridade, sobretudo em Medina, e vestígios do casamento poliândrico335 , Watt teria feito esta correlação interpretando esses vestígios como indicadores de uma sociedade que teria sido matrilinear . Rodinson afirma ainda que em algumas regiões e, uma delas Medina, a prática poliândrica, assim como um maior reconhecimento da posição das mulheres336, coexistiam com o sistema Patrilinear que já é comprovadamente uma prática muito anterior ao advento do islamismo, baseando-se nas inscrições talmúdicas. O autor vislumbra o casamento temporário, inicialmente autorizados e desencorajados, como “semelhante” a poliandria, como podemos verificar na fonte: Se vos divorciardes das mulheres, ao terem elas cumprido o seu período prefixado, não as impeçais de renovar a união com seus antigos maridos, se ambos se reconciliarem voluntariamente. Com isso se instruiu a quem dentre vós crê em Allah e no Dia do Juízo 332 BIANQUIS, op. cit., p. 265 Máxime Rodinson atribui esta tese a W. robertson Smith e G.A. Wilken. Ver RODINSON, Maxime. Maomé. Lisboa: Caminho,1992. p.212 334 A hipótese desenvolvida por Watt é comentada por Thierry Bianquis e Máxime Rodinson. Ver BIANQUIS, op. cit. e RODINSON, op.cit. 335 União simultânea de uma mulher com diversos homens. 336 Além de relatos recuados da existência de rainhas árabes, sabe-se também de alguns casos de residência uxorilocal (o casal reside no grupo da mulher) e transmissão dos bens em linha feminina. ver RODINSON, op.cit.. 333 125 Final. Isso é mais puro e mais virtuoso para vós, porque Allah sabe e vós ignorais.337 No caso do Ocidente Medieval, Anita Guerreau, nos alerta que, devido a preeminência social dos homens, que manifestava-se, entre outros aspectos, pela transmissão preferencial aos filhos de cargos, terras e imóveis, ocasionou uma frequentemente referência a um suposto sistema patrilinear no Ocidente medieval. Claro que esse estatuto dominante e suas estratégias para sua manutenção variavam de região para região e em diferentes épocas. Porém, a partir do século XI, os filhos passam a ser preferidos no que tange a herança em detrimento das filhas,que recebem um dote correspondente a uma parte da herança que por sua vez o transmitirá a seus filhos e filhas. E se somente existisse uma única filha esta poderia herdar e transmitir como um filho. O filho caçula também foi aos poucos sendo excluído, configurando um sistema linear de transmissão. Os que herdavam o patrimônio principal formaram desta forma as “topolinhagens”, constituindo um sistema de parentesco complexo. O único aspecto patrilinear reside justamente na transmissão do patrimônio e se destaca a partir dos fins do século XII. Em relação às normas romanas a aliança, diferentemente , da filiação não sofreu grandes alterações. Consiste em sistema que confere liberdade na escolha do cônjuge, mediante o respeito a algumas proibições referentes a alguns parentes. A autora analisa o casamento cristão que é monogâmico e indissolúvel. O matrimônio também era uma via de manutenção da “dominação social” e o analisa a partir da fixação da aristocracia nos séculos X e XI, que atribuiu uma maior importância aos “imperativos patrimoniais no desenvolvimento das estratégias matrimoniais”338. Da necessidade de se manter os elementos matérias de dominação, decorrem as retrições de casamento aos caçula e a preocupação com o casamento das herdeiras que possibilitavam o alargamento das redes de relações sociais. Esses redes aumentavam ou garantiam patrimônio e poderes. Na Idade Média o parentesco 337 338 Alcorão, 2:232. GUERREAU-JALABERT. op. cit., p. 319 126 serviu de “suporte às funções que atualmente são assumidas pelo econômico, pelo político e pelo jurídico, e que não têm autonomia no Ocidente Medieval”339 e essa é nossa premissa ao tentar relacionar o casamento com os aspectos políticos e econômicos na época do surgimento do islamismo. Os cuidados e atenção as normas com relação ao casamento estão, no nosso modo de entender, intimamente relacionados a importância deste para esta sociedade. “As estratégias matrimoniais – a dimensão da aliança – são um elemento singular da constituição de preeminências políticas.”340 Assim ao refugiar-se em Medina o Profeta teria não só estabelecidos alianças com tribos próximas por meio de acordos, mas também por meio de casamentos, não é por acaso que somente a ele é atribuído o direito de casar-se quantas vezes desejar e com quiser, sem restrições: Ó Profeta, em verdade, tornamos lícitas, para ti as esposas que tenhas dotado, assim como as que tua mão direita possui - que Allah tenha feito cair em tuas mãos – as filhas de teus tias e tuas tias paternas, as filhas de teus tios e tias maternas, que migraram contigo, bem como toda mulher crente que se oferecer ao Profeta, por gosto, e uma vez que o Profeta queira desposá-la, este é um privilégio exclusivo teu, vedado aos demais crentes.341 Para uma melhor sondagem organizamos em tabela342 seus respectivos casamentos: 339 Ibid., p. 325 COPANS, Jean. A Antropologia política. In________ Antropologia. Ciência das sociedades Primitivas? Lisboa: Edições 70, 1971. P.111 341 Alcorão, 33: 50. 340 342 Com base em CARATINI, Roger. Mahoma. La vida de um profeta. Buenos Aires: El Ateneo, 2003. 127 Ano do Matrimônio 590 620 622 625 626 627 627 627 628 628 629 Nome da Esposa Jaliya bint Khuwayld Sawda bint Zam`a Aisha bint Abu Bakr Hafsa bint Umar Zaynab bint Khuzayma Umm Salma bint Abi Umayya Zaynab bint Dajahsh Yuwayriya bint Harith Umm Habiba bint Abi Sufyan Safiyya bint Huayy Maymuna bint Harith Idade da Esposa Origem 40 anos Clã Banu Asad 35 anos Clã dos Banu Quays 9 anos Clã dos Banu Taym 20 anos Clã dos Banu Adi ? Coraixita ? Coraixita 35 anos Coraixita ? 30 anos 18 anos 27 anos Clã dos Banu Mustaliq Clã dos Banu Abd Shams Judia- Clã dos Banu al-Nadir Meca-Tribo dos Banu Amrb. As`as`a Entre os anos de 622 e 632, Muhammad esteve em Medina, travando inúmeras guerras contra seus inimigos de Meca, período em que as alianças políticas eram indispensáveis. Os coaraixitas eram seus principais opositores, daí a importância de se estabelecer, também por via do casamento, alianças com alguns clãs da tribo. A maioria de suas esposas pertencia à tribo que tanto o perseguia, além dela também havia tribos judaicas, importantes na região, cujo apoio era fundamental por ocasião de conflitos. Outro detalhe importante em relação as 128 suas esposas é que Aisha era filha de Abu Bakr e Hafsa de Ummar, futuros Califas. Estas alianças seriam reivindicadas por eles mais tarde, na época da sucessão. Assim, a possibilidade não só do Profeta, mas de outros crentes de contraírem matrimônio, com mais de uma esposa, está relacionado, com a possibilidade de assumirem alianças políticas. Talvez, devido a esse fator haja a “condenação” do celibato. A atividade sexual e a virilidade eram valores positivos, quando praticados legitimamente. O celibato era visto como um perigo para a ordem social e moral. Filhos eram sinônimos de adeptos e defensores. O Alcorão também recomenda que se facilite o casamento daqueles que estão sob tutela, sua ética que repreende o celibato pode ser também relacionada com as bases econômicas e sociais. 343 Estavam em período de guerras e além da mortalidade masculina bastante alta, o número de órfãos teria aumentado. Outro fator que deve ser lembrado é que devido a essas mortes, as jovens e viúvas tinham as chances de casamento diminuídas e talvez a poligamia tivesse como função “suprir” essa necessidade, porém fixando limites, no máximo quatro esposas e o crente deveria ser eqüitativos com elas, inclusive em relação ao número de noites que passavam juntos, para que todas tivessem a mesma chance de engravidar.344 Porém deve-se ressaltar que há em nossa fonte a indicação de que se deve dar preferência as crentes: Não desposareis as idólatras até que elas se convertam, porque uma escrava crédula é preferível a uma idólatra, ainda que esta vos apraza. Tampouco consintais no matrimônio das vossas filhas com os idólatras, até que estes se tenham convertido, porque um escravo crédulo é preferível a um idólatra, ainda que este vos apraza. Os idólatras arrastam-vos para o fogo infernal, e Allah, com sua benevolência, convoca-vos ao paraíso e ao perdão, e elucida os seus versículos aos humanos, para que dele recordem.345 343 BOUHIDIBA, p. 119 BIANQUIS, p. 270 345 Alcorão, 2:221. 344 129 Talvez a medida viesse de encontro com a necessidade de novos adeptos a religião e que na seqüência novos aliados políticos vinculados a Umma, já que o versículo também faz menção aos homens. Com relação a preponderância ou não da fé sobre o parentesco, notamos que apesar de existir uma distinção clara entre crentes e não-crentes e que o critério de pertença à comunidade seja essencialmente o religioso, no seio da Umma, o parentesco sanguíneo continua prevalecendo, como nos indicam os versículos a seguir: E aqueles que creram depois, migraram e combateram junto a vós, serão dos vossos; porém, os parentes carnais têm prioridade sobre os outros, segundo o Livro de Deus; sabei que Deus é Onisciente.346 Ó fiéis, não tomeis por confidentes vossos pais e irmãos, se preferirem a incredulidade à fé; aqueles, dentre vós, que os tomarem por confidentes, serão iníquos.347 E de quando exigimos o compromisso dos israelitas, ordenando-lhes: Não adoreis senão a Allah: tratai com benevolência vossos pais e parentes, os órfãos e os necessitados; falai ao próximo com benevolência: observai a oração e pagai o zakat. Porém, vós o renegastes desdenhosamente, salvo um pequeno número dentre vós.348 Ó humanos, temei a vosso senhor, que vos criou de um só ser, do qual criou a sua companheira e, de ambos, fez descender inúmeros homens e mulheres. Temei a Allah, em nome do qual exigis os vossos direitos mútuos e reverenciai os laços de parentesco, porque Allah é observador.349 346 Alcorão, 8: 75. Alcorão, 9: 23. 348 Alcorão, 2: 82 349 Alcorão, 4: 1. 347 130 Pode-se verificar a preponderância do parentesco sanguíneo também por meio da herança, já que os “irmãos de leite”, ou seja, pessoas que tiveram a mesma ama de leite e por isso não podem se casar350, não têm direito á herança, esta é estipulada respeitando os laços sanguíneos e matrimoniais. No que tange a questão das mulheres podemos ressaltar que de uma forma geral, levando em consideração até mesmo a questão quantitativa, os versículos corânicos são dirigidos aos homens, sobretudo ao Profeta, para que estes pautem seus comportamentos. É ao profeta que se dirige, inclusive, os versículos que se referem ao comportamento feminino, para que este as alerte. As únicas mensagens dirigidas diretamente as mulheres são para as esposas do Profeta, das quais são exigidas condutas exemplares. Aliás, quanto maior o “status” social da mulher, maior sua punição. Por exemplo: às esposas do profeta está destinado o dobro da punição reservada a uma crente livre. Já a escrava, recebe somente metade do castigo. Ou seja, há uma “cobrança” maior , quando se goza de privilégios maiores. São estipuladas regras claríssimas em relação ao casamento, não apenas regras “comportamentais”, mas também com relação a instituição em si, partilha, divórcio, filhos, etc. Em todo o discurso corânico fica marcado, ao longo das referências ao masculino e ao feminino, uma distinção. Os homens são superiores, fortes, provedores, justos, etc.. As categorias referentes às mulheres estão ligadas a submissão, impureza, fraqueza e de categorias que as circunscrevem ao âmbito doméstico. Vejamos nossa Rede Isotópica sobre os estereótipos masculino e feminino: Elementos Temáticos 350 Elementos figurativos Elementos Axiológicos São proibidos os casamentos com mães, filhas, irmãs, tias maternas e paternas, as nutrizes, irmãs de leite, sogras, enteadas, filhas de ex-mulheres, noras (esposas dos filhos carnais) e com duas irmãs (salvo fato consumado anteriormente). Alcorão, 4:23. 131 Mulher Homens Sementeira Amamentar Casta Licenciosa Direitos Deveres Impureza Protetores Purificação Direitos Deveres Provisões Concessões Força Sustento Virtude/ Desprendimento Estereótipo Feminino Estereótipo Masculino Consultar-te-ão acerca da menstruação; dize-lhes: É uma impureza. Abstende-vos, pois, das mulheres durante a menstruação e não vos acerqueis delas até que se purifiquem; quando estiverem purificadas, aproximai-vos então delas, como Allah vos tem ordenado, porque ele estima os que se arrependem e cuidam da purificação.351 A idéia de impureza ligada á mulher que pode vir a “poluir” o homem, herança judaica, pode ser relacionada, por exemplo, como ressalta a antropóloga Mary Dougals352, com um sistema simbólico, baseado na imagem do corpo que busca a ordenação da hierarquia social. Em outras sociedades este tipo de impureza também se faz presente como é o caso dos Lele, estudado pela autora acima mencionada. Neste grupo uma mulher menstruada não poderia cozinhar para o marido ou atiçar o fogo, senão ele cairia doente. Era também um perigo para toda a comunidade, caso ela entrasse na floresta. Segundo Mary Douglas, entre os 351 352 Alcorão, 2:222. DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976. P.153 132 Leles os homens adquiriam mais controle sobre as mulheres, galgando progressivamente o “status social”. Em nosso caso, ou seja, no Alcorão, os homens por meio de regras como as do casamento, mantinham esta relação de dominação sobre as mulheres. Ao homem cabe a escolha dos respectivos maridos de suas filhas. Estas por sua vez ao se casarem devem ter um dote que lhes é devolvido a metade em caso de divórcio. Porém, há indícios do uso da violência por parte do marido, pois há a possibilidade, caso a mulher queira, dela abrir mão de sua parte no dote afim de “comprar sua liberdade”, caso o marido a force a isso. Este tipo de divórcio chamado em árabe de Khul `a, cujo radical em árabe لsignifica “solução”, indica talvez, casamentos com o propósito financeiro, ou seja, homens que se casavam, ganhavam o dote e depois as forçavam a se separarem por essas vias. A possibilidade de reconciliação também está prevista, porém só pode ocorrer duas reconciliações com uma separação entre elas, depois para reatarem a mulher deve casar-se com outro homem, divorciar-se e então voltar para seu primeiro marido. Em caso de divórcio a mulher deve aguardar três menstruações, para que se verifique se não está grávida, em caso positivo o filho só fica em seu poder durante o período de amamentação, dois anos. Quanto ao comportamento feminino diante do casamento e/ou marido, podemos destacar a seguinte rede isotópica: Elementos Temáticos Boa Esposa Elementos Figurativos Casta Devota Recompensa Paraíso Elementos Axiológicos Conduta Feminina 133 Má esposa Licenciosa Punição Inferno Castigo Exibição Em relação a dicotomia feminino/ masculino, existe toda uma produção discursiva, como já foi ressaltado, colocando a mulher em uma situação de desigualdade. Podemos afirmar, portanto, concordando com Bianquis que “as alterações introduzidas por Maomé no direito da família não modificaram tanto o lugar acordado à pessoa física da mulher dentro do casal quanto o da sua pessoa econômica dentro da sociedade”353, se levarmos em consideração que esta passa a receber o dote, assegurando-lhe alguma autonomia financeira. Além das alianças, as normas de herança também conferem um instrumento no que diz respeito ao “controle econômico” por parte dos homens. Uma de suas atividades econômicas mais ressaltadas é o comércio. Como vimos no primeiro capítulo, desde a antiguidade a região testemunhou o surgimento de rotas comerciais, culminando no domínio poderoso deste pelos árabes nômades. As evidências desta atividade no Alcorão expressam-se pelo uso de termos comerciais que por vezes notabilizam-se em passagens de cunho religioso: E crede no que revelei, que confirma a revelação que vós tendes; não sejais os primeiros a nega-lo, nem negocieis as minhas leis a vil preço, e temei a mim, somente.354 Ai daqueles que copiam o livro (alterando-o) com as suas mãos, e então dizem: Isso emana de Allah, para negociá-lo a preço 353 354 BIANQUIS, op. cit., p.271 Alcorão, 2:41 134 irrisório. Ai deles pelo que suas mãos escreveram! E ai deles pelo que lucraram!355 Entre os adeotos do livros há aqueles que crêem em Allah, no que foi revelado, assim como no que lhes revelado, humilhandose perante Allah; não negociam os versículos de Allah a preço irrisório. Terão sua recompensa ante o seu senhor, porque Allah é destro em ajustar contas.356 ( alcorão 3: 199) Ao referir-se ao Paraíso, este está repleto dos produtos mais precisos, oriundos de outras regiões e que chegavam até eles pelas caravanas, entre esses produtos estão: Ouro, pérolas, seda, braceletes, pulseiras, etc. Há também menção as estrelas que “guiam os caminhos” tanto na terra quanto no mar. Contudo além desta atividade, nos parece que a agricultura foi também de suma importância. A agricultura, apesar de uma breve referência dos autores sobre os legumes e vinhos produzidos na cidade de Meca357, possui uma importância que é referendada pelas menções diretas e, em sua maioria, indiretas aos gêneros cultivados pelos contemporâneos de Muhammad. Ervas, árvores, gramíferas, odoríferas, frutos, parreiras, plantas, plantações, videiras, romãzeiras, oliveira, grãos, caroços, entre outros, estão presentes ao longo da narrativa corânica. Com isso em mente podemos conjecturar acerca da existência de propriedades, termo, aliás, que emerge por algumas vezes no texto, por exemplo, ao castigar um incrédulo: É possível que meu Senhor me conceda algo melhor do que o teu parreiral e que, do céu, desencadeie sobre o teu um raio, que o converta em um terreno de areia movediça, ou que a água seja totalmente absorvida e nunca possas recuperá-la. E foi arrasada a sua propriedade. E o (incrédulo, arrependido) retorcia, então, as mãos, pelo que nelas havia investido, e, vendo-a revolvida, dizia: Oxalá não tivesse associado ninguém ao meu Senhor!358 355 Alcorão: 2:79 Alcorão, 3:199 357 Ver capitulo I desta dissertação. 358 Alcorão, 18: 40, 41, 42. 356 135 A importância desta atividade também é lembrada quando ao longo do discurso são constantemente salientadas as recompensas, as benesses de Deus com relação aos crentes. Allah os agracia com “terra fértil”, “verdes campos”, “viçosos frupos”, “água que cai do céu e que mescla as plantas da terra”, e algumas de suas ações são “fazer brotar”, “germinar os grãos” e “germinar distintos pares de plantas” . E como “castigo” pode “secar o solo”, “cortar as plantas”, transformar montanhas (criadas por ele, como tudo na natureza, conforme o discurso) em um “plano liso e estéril”. Entre os frutos mencionados a tamareira parece ser o principal produto cultivado e ocupar um papel importante na economia. As referências a ela são constantes, inclusive figurando em “episódios” judaico-cristãos no Alcorão. Na vigésima surata, Taha, ao relatar parte da história de Moiséis, Allah ordena a ele que procure o faraó, pois este teria “transgredido os limites” e permitiu que este levasse consigo seu irmão Aarão. Ao advertir o Faraó sobre o poder de Allah , Moiséis foi impelido a comprovar a veracidade de suas palavras. Os magos do Faraó se prostraram diante do poder de Allah (quando seu cajado “devorou” tudo que havia sido simulado por eles) e diante disso o Faraó ameaçou cortar-lhes a mão e o pé e os crucificar em troncos de tamareiras. Em outra surata, a décima nona, Máriam, maria dá à luz a Jesus sob uma tamareira, cujo tronco foi sacudido por Allah fazendo cair sobre ela tâmaras maduras e frescas e sob seus pés fez correr um riacho, desta forma pode comer e beber. A divisão da herança é feita da seguinte forma: Morte do homem Morte da mulher A esposa recebe ¼, caso não tenha filhos. O marido recebe metade, caso não tenha prole. Se tem filhos, recebe somente 1/8, Se deixou filhos, o marido recebe 1/4. Com relação aos outros herdeiros temos a seguinte distribuição: 136 HERDEIROS Filhos varões Filhas (mais de duas) Uma única filha Pais (caso tenham netos) Pais (sem netos) Mãe (caso o falecido tenha deixado irmãos) Co-laterais (caso o falecido não tenha deixado descendentes ou ascendentes) , ou seja, irmãos O equivalente a 2 filhas 2/3 Metade 1/6 Mãe recebe 1/3 1/6 Recebe 1/6 . Mais de um irmão, herdam 1/3. Devemos salientar que o Alcorão não deixa claro se os filhos varões recebm cada um o dobro da filha ou se a quatia é dividida em ter eles. Também não referência sobre qual o destino do restante do patrimmônio, após a distribuição que por sua vez é realizada depois do pagamento das dívidas deixadas pelo falecido. Notemos, contudo, que a mulher sempre está, dentro dessas normas, em uma posição de desvantagem, herdando sempre bem menos que os homens, ao menos em relação a herança deixada pelo marido à esposa, e talvez, às filhas. Poderíamos então relacionar ao fato de estarem zelando pela não divisão do patrimônio, com estas normas a maior parte dele continua dentro da família do homem. A filha ao se casar, transfere pouca parte dele para outra família, quando o casamento é relaizado fora, pois como vimos, pelo menos para a Idade Média, em um período posterior, era dada preferência a membros da mesma família, como os primos. As quatro escolas de jurisprudência islâmica359 conferem às relações entre os indivíduos uma especial atenção. Porém, estas que formam a ortodoxia islâmica sunita 359 FAZER NOTA SOBRE AS ESCOLAS. 137 diferenciam-se da jurisprudência xiita, por exemplo em relação à herança. Entre os xiitas360 além dos textos acima referidos, também são levados em conta os relatos referentes a vida de Ali e sua família. Fátima, filha do Profeta, foi lesada na herança do pai e por isso os xiitas reservam ás filhas mais direitos sobre á herança do pai do que entre os sunitas. Há também uma especial atenção com relação aos órfãos. Seu patrimônio era, normalmente, “administrado” por algum “tutor” que o devolvia na época de seu casamento. Esses cuidados vislumbrados em versículos como: Concedei aos órfãos os seus patrimônios. Não,lhes subtraias o bom pelo mau, nem absorvais os bens com os vossos, porque isso é grave delito.361 Testai os órfãos, até que cheguem a idade de se casarem. Se porventura observardes amadurecimento neles, entreguai-lhes, então seus patrimônios; porém abstende-vos de consumi-los desperdiçada e apressadamente, (temendo) que alcancem a maioridade. Quem for rico, que se abstenha de usa-los; mas quem for pobre, que disponha deles com moderação. E quando lhes entregardes seus bens, fazei-o perante testemunhas, pois basta Allah por julgador.362 360 As origens do xiismo estão ligadas aos “problemas” em torno da sucessão de Muhammad após sua morte em 632 d.C.. Abu Bakr (632-634) foi o primeiro a receber o título de Khalifa (sucessor) do Profeta, sob a condição de que manteria intacta sua herança. Seguido de Umar (634-644) e Uthman (644-656). O quarto Califa Ali (656-661), genro do profeta, foi “destituído” de seu cargo por Mu´awiya então “governador” da Síria. Os seguidores de Ali que se auto-denominavam Sh’ia Ali, ou seja, “o partido de Ali”, origem do termo “xiita”, tentaram de todas as formas mantê-lo no poder com base no parentesco entre Ali e o Profeta. O episódio é conhecido como a primeira fitna (colocar à prova) do mundo muçulmano, termo usado geralmente para designar as crises enfrentadas pela comunidade, como na Espanha muçulmana com o fim do Califado de Córdoba em 1031. ver LEWIS, Bernard. Os Árabes na História. 2 ed. Lisboa: Estampa,1996.; ANTES, Peter. O Islã e a Política. São Paulo: Paulinas, 2003.; SÉNAC, Philippe. Le monde musulman: des origines ai 11e siècle. Paris: Armand Colin, 1999.; DJAÏT, Hichem. La grande discorde. Religion et politique dans l`Islam des origenes. Paris: Gallimard, 1989. 361 362 Alcorão, 4: 1. Alcorão, 4: 6. 138 Porque aqueles que consomem o patrimônio dos órfãos injustamente, introduzirão fogo em suas entranhas e entrarão no Fogo Abrasador.363 Podem ser vistos como um instrumento facilitador dos casamentos já que o números de órfãos com as guerras teriam aumentado e uma preocupação particular do profeta com a questão, já que próprio teria conhecido a orfandade. De uma forma geral podemos perceber que apesar de estarmos diante de uma comunidade cujos laços de pertença estivessem intrisecamente ligados a crença religiosa, as relações de parentesco não foram subjugadas totalmente, foram antes de tudo, mais um instrumento político cujos alicerces foram também os alicerces da liderança de Muhammad. Provavelmente, fixou os costumes antigos, talvez introduzindo novos critérios e limites, ou como ressalta Bianquis364, procurou tratar dos indivíduos, principalmente, as mulheres, como sujeitos independentes, porém não deixou de demarcar a preponderância dos homens, como nas velhas tribos. 363 364 Alcorão, 4:10. BIANQUIS, op. cit., p. 213 139 Conclusão Bagdá e Madinat A-Salam. Estes eram os nomes da capital do Império instaurado pelos Abássidas em 750 d.C., após 89 anos de conquistas empreendidas pela Dinastia Omíada. A cidade, cujo nome persa Bagdá365 significa “Dádiva de Deus”366, foi fundada em 762 d.C. entre o Tigre e o Eufrates, ponto em que se formava uma rede de canais que oferecia a possibilidade de irrigação das terras e o abastecimento da cidade, além de fornecer receitas ao governo, pois era localizada em um cruzamento de rotas que a ligavam ao Irã, à Síria e ao Egito367. Madinat A-Salam ou “Cidade da Paz”, nome oficial durante o califado Abássida368, foi planejada pelo Califa Al-Mansur (754-75), que, segundo geógrafos árabes, teria traçado o plano da cidade em círculo, pois desta forma o Califa, personificação da autoridade e poder estaria eqüidistante de todos os pontos de sua cidade369. O Iraque era considerado, usando a expressão dos cronistas, o “Umbigo do Mundo” e a residência do Califa deveria estar, portanto, no centro de Bagdá370. A concentração de poderes, cujo auge ou período de maior expressão manifestouse durante os califados de Al-Mansur e Harum Al-Rashid (786-809), não foi conquistada facilmente. Entre os vários obstáculos enfrentados pela nova dinastia apresentou-se a árdua tarefa de transformar os vários interesses dos grupos que se uniram contra os Omíadas em 365 O nome Bagdá faz referência a uma aldeia que teria existido no local. LEWIS, Bernard. O Oriente Médio: Do advento do cristianismo aos dias de hoje. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1996. p.34 367 HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. 2 ed. São Paulo: Cia das Letras,1994.p. 51 368 LEWIS, Bernard.Os Árabes na História. 2 ed. Lisboa: Editorial Estampa,1996. p.95 369 Foi planejada para expressar o esplendor e a distância do governante. No centro da margem ocidental do Tigre, ficava a cidade redonda, contendo palácio, quartéis e escritórios feiras e bairros residenciais ficavam de fora. 370 LEWIS, Bernard. A linguagem política do Islão.Lisboa: Edições Colibri, 2001. p. 41 366 140 uma aliança duradoura, estável. E ainda conter os conflitos presentes dentro da própria família. Habilidosamente, seus membros foram nomeados governadores, formando assim uma elite de altos funcionários e amenizando as dissidências. Buscando sua afirmação como dinastia legítima, o Califado Abássida procurou justificar seu governo em termos islâmicos, recorrendo sempre à simbologia religiosa. O Califa governava por autoridade divina e por ser membro da família do profeta. Agia sempre pautado no comportamento deste último e de acordo com o Alcorão. Além disso, possuía um exército regular, designava cargos e funções, como sultões e vizires, necessários se levarmos em conta a extensão do Império. A dinastia teria, portanto, concluído o desenvolvimento da formação do Estado, pois a linhagem teria dado lugar a uma hierarquia de funcionários.371 Após o período denominado por Robert Mantrand372 como o período de hegemonia (750- 905), o califado entraria no tempo das cisões. Impossibilitado de controlar efetivamente do Iraque o Marrocos e a Espanha, os Abássidas testemunharam a fragmentação do Império com o surgimento do Califado Fatímida do Egito e o Califado Omíada de Córdoba. Aliado a isso, os funcionários e dinastias locais vão tornando-se cada vez mais autônomos, concorrendo com a autoridade, em tese suprema, do califa de Bagdá. Em resposta foram produzidas inúmeras formulações políticas acerca da natureza do califado e do papel a ser desempenhado por seu soberano. A mais importante exposição foi a de Al-Mawardi que alegava ser a existência do califado não uma necessidade natural, mas sim uma ordenação de Deus, baseando-se para isso em afirmações do Alcorão tais como: “Ó crentes, obedecei a Allah, ao mensageiro e às autoridades, dentre vós!” (4,59). O dever do Califa era proteger a comunidade e administrá-la baseando-se sempre nos preceitos religiosos. Em suma, o Califa deveria possuir os seguintes atributos: saber religioso; senso de justiça; coragem e pertencer à tribo dos Coraixitas, tribo que pertencia o profeta. Ele poderia delegar poderes limitados ou não à emires, mas estes deveriam reconhece-lo como autoridade suprema. Desta forma, o Califa preservava seu poder legitimamente e o conciliava com poderes “paralelos”. As discussões acerca da natureza e legitimidade dos poderes do Califa não cessaram. Na prática o Califa disputava o poder com os Sultões, vistos como chefes militares, mas que aos poucos ganhavam cada vez mais prestígio local, e com os 371 372 LEWIS, Bernard.Os Árabes na História. 2 ed. Lisboa: Editorial Estampa,1996. p.96 MANTRAN, Robert. As grandes datas do Islão.Lisboa: Editorial Notícias, 1990. p.21 141 Ulemás373, que buscavam definir um modelo ou a maneira correta de seguir os preceitos religiosos. Outras formulações foram empreendidas no campo da política, como a de Al-ghazali (1085-1111); Ibn Taymiyya (1263-1328); Al-Farabi. Entender o discurso político no mundo muçulmano na época medieval pressupõe duas premissas básicas. A primeira é de que não havia no vocabulário do Árabe Clássico, nem no das línguas cujo vocabulário político derivasse do árabe, palavras que apontassem para uma distinção entre “Igreja e Estado”, “não existiam pares de palavras correspondentes aos termos espiritual e temporal, laico e eclesiástico, religioso e secular.”374 De acordo com Bernard Lewis, a linguagem contemporânea utilizada no discurso político muçulmano teria sofrido influências externas e, em alguns casos teria sido até mesmo distorcida, daí a importância de se buscar as origens desta linguagem que estariam na época pré-islâmica e, fundamentalmente, no Alcorão e no exemplo dos primeiros muçulmanos.375 O objetivo principal do presente trabalho foi perceber as articulações políticas da primeira comunidade muçulmana, formada a partir da Migração (Hégira) do Profeta Muhammad e de seus primeiros seguidores, para Medina em 622 d.C que tornaram-se paradigmáticas. Assim buscamos traçar primeiramente um panorama geral acerca do contexto no qual emerge o islamismo, a Península Arábica, suas regiões, populações e seu modo de vida. Esta caracterização é de suma importância para tentar apreender as dimensões e a possível repercussão entre as tribos da mensagem que Muhammad alega ser oriunda de Deus. Organizados em um sistema político no qual um conselho de anciãos que deliberavam acerca das questões que envolviam o grupo e o chefe da tribo era conhecido como Sayyid ou Sheikh, mas não detinha poderes coercitivos depararam-se após a formação da Umma, com um novo conceito de liderança. Neste, o Profeta deliberava acerca das decisões do grupo, ditava as normas sociais que regiam a vida no grupo. 373 Para os sunitas os Ulemás eram os “sábios religiosos”. Eram homens dedicados ao estudo do Alcorão, dos Hadiths e da Sharia. Intitulavam-se “guardiões da consciência moral da comunidade”. Haviam chegado à conclusão de que o califa poderia ser chefe da comunidade, mas não um intérprete infalível da fé. Acreditando que eram os guardiães da fé, os Ulemás acreditavam também ser herdeiros do Profeta. HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. 2 ed. São Paulo: Cia das Letras,1994. p. 170 374 LEWIS, Bernard .A linguagem política do Islão.Lisboa: Edições Colibri, 2001. p.13 375 Ibid., p.13-14 142 Contudo pudemos perceber que as mudanças também vêm acompanhadas de antigas tradições, por vezes envoltas de um novo sentido. Desta forma, o conceito de monoteísmo, ainda não praticado pelos árabes politeístas de Meca, e sua efetiva “implantação” foi um rompimento com o antigo credo, mas que se reveste de uma linguagem que se apropria de valores caros a essa sociedade tais como honra, fidelidade e generosidade, que formam os atributos de Allah e regem sua relação com os crentes. Com base nos versículos referentes à guerra, pudemos perceber que sua liderança foi essencial por ocasião de conflitos. Da mesma maneira o Profeta estabelece normas, estratégias e táticas que juntos são indicadores de sua proeminência política. Sempre valorizando à lealdade dos crentes em relação à Allah, afinal lutavam pela “causa de Deus” e ressaltando o sacrifício e o martírio, que são uma espécie de “código de honra” entre as tribos da Arábia pré-islâmica, pois eram bem vistos os que se empenhavam na defesa de sua tribo e morriam em combate. Uma das muitas faces da liderança de Muhammad foi a implementação das normas que regiam o parentesco. A questão do parentesco foi abordada com o intuito de perceber como e porque Muhammad, apesar de estipular um novo critério de pertença ao grupo, que não está mais vinculado aos laços de sangue, firma acordos políticos e alianças por meio de uma estratégia que fez parte da lógica tribal, ou seja, alianças matrimoniais. Uma nova concepção religiosa, a crença em um Deus único que se sobrepõe aos antigos deuses cultuados pelos árabes. Uma revelação feita a um homem pertencente as tribos e feita em língua árabe, como ressalta tantas vezes o próprio Alcorão. Uma nova liderança política, carismática, mas que foi conduzida aos moldes dos grandes Sheiks e embasada em velhos conceitos e estratégias. 143 BIBLIOGRAFIA I- FONTES PRIMÁRIAS IMPRESSAS EL CORÁN. Edición preparada por Julio Cortés. Texto árabe de la edicióm oficial patrocinada por el rey Fuad I de Egipto. El Cairo, 1993. O SIGINIFICADO DOS VERSÍCULOS DO ALCORÃO SAGRADO. Ed. de Samir El Hayek. São Paulo: Marsa Editora Jornalística, 2001. OS POEMAS SUSPENSOS. Al- Muallaqat. Tradução direta do árabe, introdução e notas Alberto Mussa. Rio de Janeiro: Record, 2006. THE HOLY QUR`ÃN. With original arabic text. Translated by Abdullah Yusuf Ali. New Delhi: Islamic Book Service, s.d. 144 II- OBRAS DE REFERÊNCIA AMMAR, Sam; DICHY, Joseph. Les verbes arabes. 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