Entrevista Frans Krajcberg
O que estão fazendo
com este País?
POR JOANA GONÇALV E S
O sotaque, carregado; a voz, vacilante; já o andar, firme. O Frans que encontramos está indignado, insatisfeito, revoltado. Impaciente, parece correr contra
o tempo. Diz entrar na floresta que ainda queima e se lembrar do cenário de
batalha que vivenciou nos quatro anos como soldado na Segunda Guerra. No
Brasil, a terra que escolheu como sua, a guerra é outra. Pela arte, desvela
uma natureza em franca agonia. Sua exposição no Museu de Arte Moderna, no
Parque do Ibirapuera, em São Paulo, mostra muito desse inconformismo. Troncos de árvores queimados, com o vermelho escorrendo como sangue; copas de
árvores viradas para a terra, como se penetrassem no solo para tentar nascer
de novo; sala com poeira de cinza e crepitar de madeira, estalos de árvores
em chamas... O artista plástico polonês Frans Krajcberg, 87 anos, conhece o
Brasil como poucos e tem todo o direito de questionar cada um de nós, brasileiros, sem piedade: “O que vocês estão fazendo com esse país, tão rico e tão
miserável?” Acompanhe, a seguir, os principais trechos de seu desabafo.
O que você acha das ações que vêm
sendo tomadas em favor do meio ambiente? Estamos no caminho certo?
Não é fácil falar sobre esse assunto. Já
participei de duas conferências em Davos com os homens mais ricos do mundo.
Percebi que o assunto “saúde do planeta”
está presente hoje no mundo inteiro. Se
quisermos sobreviver neste planeta, não
tem rico ou pobre, todos temos que fazer
alguma coisa. O planeta está em perigo.
Se não pararmos de fazer o que estamos
fazendo, vamos machucá-lo muito mais.
Mas o homem não quer saber desse
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assunto e só grita quando ocorrem desastres ecológicos. Aí, a gente escuta:
“Perdemos tudo, não temos para onde
ir...” Nunca se pergunta por que estão
acontecendo tantos desastres na natureza. Então, algo está errado com o homem
na entrada desse novo século.
tização de todos, ricos e pobres. Vi que
alguns artistas se uniram para fazer um
jardim na Amazônia (risos). Um jardim
artístico na Amazônia! Já fazer algo em
defesa da floresta... Agora, o mundo está
olhando muito para a Amazônia. O planeta precisa de oxigênio.
Mas temos diversas ações em andamento em defesa do meio ambiente.
De nada adiantam se não se mostrar o
que de fato acontece lá em cima, o que
acontece na Amazônia. Não vejo outra
saída senão pela educação e conscien-
O que mais lhe incomoda?
Primeiro, essa estrutura do petróleo, um
sistema completamente errado. Por quê?
Todos sabemos que petróleo faz mal para a saúde do planeta. E cada vez que se
fala sobre isso, se percebe que não é tema
que se aceita pôr em pauta para discutir.
Quando se trata de petróleo, ninguém
permite mudar, não quer ouvir. Mas precisamos mudar e depressa essa estrutura.
O Brasil é o país que reúne melhores
condições de desenvolver fontes energéticas alternativas. Você considera
que esse fator e a rica biodiversidade
aumentam a responsabilidade do País
na busca de soluções?
Como o Brasil pode liderar algo nesse
sentido se é um país que vive só com
mentiras? Qualquer um diz qualquer coisa. “Aqui não vai acontecer a crise.” Três
dias depois, a crise já está aqui. Parece
piada. Não dá para suportar. Falta alguém
com consciência e capacidade de reger
este País. Mas quem conhece a riqueza,
a grandeza do Brasil, que está sendo destruído devagar e completamente? A Mata
Atlântica não existe mais; foi devastada.
A floresta mais rica, mais linda do planeta,
no sul da Bahia, foi destruída num século.
Quem a defendia? E hoje, quem defende
o que ainda nos resta? Reservas inteiras
são destruídas para plantar eucalipto. Todo mundo sabe que o mundo vai ter dificuldades com a falta de água potável.
paulo pepe/nau
E somos coniventes com a miséria de
muitos.
Em Porto Velho (RO), eu chorei ao ver
tantos índios nas ruas pedindo esmolas.
Não dá para compreender. Quem está
defendendo esse povo? Ninguém. Ninguém fala sobre esse assunto. Este País é
muito grande e muito rico, mas a pobreza
é avassaladora e há gente morrendo de
fome. Pode publicar isso.
Como a sociedade pode cobrar essa
responsabilidade dos governos, uma
vez que temos muitos políticos que
compactuam com empresas como
madeireiras, mineradoras, que lhes
financiam as campanhas?
Como eu disse, a gente vive na mentira. Todo dia se descobre mais petróleo.
Aconteceu comigo um fato muito grave: eles descobriram petróleo perto de
Abrolhos (extremo sul da Bahia), mas o
Ibama proibiu a exploração na área. Por
quê? Porque é uma reserva biológica e
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os animais vão lá com os filhotes. Tudo
isso é reconhecido, sabido. Mas os chefes
do petróleo disseram: “Bom, podemos entrar por essa floresta...” E eu lhes disse:
“Se vocês entrarem aqui, não saem mais.
Experimentem entrar aqui e fazer estrada para explorar petróleo. Aqui, não vão
entrar.” E não entraram. Que absurdo o
que estão fazendo!
neta precisa de oxigênio, repito. O Brasil
não é um planeta, mas é um grande país
dono de um tesouro que se chama Amazônia. Ter consciência desse fato é muito
importante. Temos de escolher: plantar
soja transgênica para engordar porcos
da China ou deixar esse povo viver como
vive e explorar terras que já foram destruídas e abandonadas em outras regiões?
E o que dizer sobre os latifundiários que estão engordando gado na
Amazônia?
Há pessoas que têm terra, muita terra por
lá. Viajei por três dias pelo Rio Purus e via
sempre a mesma placa: “Terra particular –
entrada proibida”. Três dias. Você sabe o
que isso significa? É uma extensão maior
que a Bélgica. Pergunto: De quem? Quem
vendeu essa terra? Ninguém vende...
A solução passa pela conscientização
de todos?
Não podemos esperar leis para conter essa barbárie contra a natureza. Quem faz
as leis são os que poluem, os que desmatam. Precisamos de consciência política,
Quer dizer que é uma questão de sair
do inconformismo, da inércia, e se
informar e brigar para que absurdos
assim não sejam praticados.
Tem que se questionar: com tanto lugar já
destruído, por que precisamos ir até a Floresta Amazônica plantar soja transgênica
e vender à China para engordar porcos? É
impossível, insuportável ver que isso ocorre enquanto nosso povo morre de fome.
Não dá para compreender. Por que em
lugar da soja transgênica não plantam alimento e o vendem pela metade do preço?
E o dinheiro que vem de fora, onde está?
Com quem está? Ninguém pergunta. E,
do outro lado, vemos homens que não sabem mais quanta terra têm, sem comprar
e gastar um centavo. Na Amazônia, não
se compra terra. Se pega. Destrói. Você já
viu alguém que destrói florestas ir para
a cadeia?
Você acha possível aliar progresso
econômico e sustentabilidade?
Eu não compreendo essa palavra “sustentável”. E não compreendo por que
insistem em ir para a Floresta Amazônica se temos milhares de hectares de terra
abandonados no sul da Bahia, no Espírito
Santo... É uma destruição sem propósito.
Basta plantar nessas terras que já foram
destruídas! Não. Agora, o mundo está
olhando muito para a Amazônia. O pla20
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“
Precisamos de
consciência
política, que cada
um de nós veja a
realidade e se
manifeste, lute
por mudanças
que cada um de nós veja a realidade e
se manifeste, lute por mudanças. Mas só
existe um jeito de conscientizar o povo
e as crianças nas escolas: mostrandolhes a verdade. Pergunte quem conhece
este País de verdade, um país tão rico e
com tanta miséria que dá para chorar. A
rea­lidade está lá na Amazônia, mas está
escondida. O silêncio sobre os índios é
absoluto. Qual o intelectual que defende esses índios? Você já viu alguém falar
sobre eles? As árvores estão queimando.
Para onde vai esse povo que está sendo
descartado, jogado fora? Não sabem aonde ir, nem têm para onde ir. Estão nas
ruas, com chuva e sem chuva, pedindo esmolas para sobreviver. Isso é humilhante
em um país com tanta terra, com tanta
riqueza. O que eu vi na Amazônia não
dá para descrever, não. Ninguém acreditaria que isso acontece de fato. Mas é a
realidade. Quer continuar fugindo dela?
O que posso dizer mais? Insistimos que
estamos devastando as florestas... Mas e o
povo que está lá? Ninguém faz nada por
ele, ninguém quer saber dele.
Gostaria que falasse um pouco da responsabilidade dos supermercadistas.
O Brasil é campeão mundial do desperdício de alimentos. Como o setor
pode contribuir?
Mundial, nada. Tire essa palavra “mundial”. O Brasil tem os mesmos problemas de todo o mundo hoje em dia. O
problema é que está fora do que se
discute nesse novo século. Olhe bem a
falta de estrutura! Temos o maior vazio
político no mundo. O que fazer nesse
novo século? Que rumos tomar? Destruir a Amazônia? É esse o rumo? Temos
problemas estruturais nessa entrada de
século. No início do século 20, tínhamos
mil razões para evoluir dia a dia. Primeiro, o telefone; depois, a luz elétrica;
tudo o que a gente conhece foi conquista
do século passado. E agora, eu pergunto:
que século vamos ter? Que arte vamos
inventar? Estamos fora. Todo mundo
tem medo de abrir a porta de casa...
Pense bem na minha revolta.
Mas a gente vê uma ação aqui outra
ali. Paliativo?
Não significa nada dizer uma palavra
aqui, outra ali. Precisamos mostrar o que
acontece de fato e educar o povo para a
realidade que está aí. Você não quer que
o comércio funcione? Eu também quero.
Ninguém é contra isso. Mas destruir brutalmente como se está fazendo em nome
do comércio, do lucro? Isso é barbárie,
que o homem praticava contra o próprio
homem no início dos tempos.
Estou achando você bem mais revoltado do que no nosso último encontro
no Rio...
Desculpe-me por ter me soltado de maneira mais brutal. Estou vendo as pessoas
tão passivas, tão sem interesse. Não posso
falar de outra coisa. É revoltante! Ricos
e pobres, estamos destruindo completamente a natureza. E vamos ter um país
sem memória.
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