O/0&3S SEXTA-FEIPA. 11 DE OUTUBRO DE 1996 D& - O ESTADO DE S.PAULO FIM DE SEMANA Helena Meirelles lança 'Flor da Guavira' Luiz Prado/AE Violonista faz três shows no Tuca para divulgar seu segundo disco, pela gravadora Eldorado TOM CARDOSO Especial para o Estado C om 63 anos de carreira e muitas histórias para contar, a lendária violonista brasileira Helena Meirelles está de volta a São Paulo com o show de lançamento do seu segundo disco, Flor da Guavira (Eldorado), hoje, amanhã e domingo, no Tuca. Analfabeta, Helena pode ser c o n s i d e r a d a uma p r o f e s s o r a quando o assunto é música — toca viola caipira de dez cordas, violão, bandolim e violino, sempre com a mesma desenvoltura. Aos 72 anos e morando numa casa de madeira em Presidente Epitácio, cidade localizada na divisa de São Paulo com Mato Grosso do Sul, a instrumentista, que promete contar alguns "causos" sobre .sua vida no espetáculo, adianta que o repertório do show ainda não está pronto. "Vou definir na hora, toco o que vier na cabeça." Reclamando do frio, mas animada com a cidade — "é lugar de gente civilizada" —, Helena deu entrevista ao Estado. • Estado — Com foram as gravações do segundo disco? Helena Meirelles — No primeiro disco as gravações foram terríveis. Comecei a ter problemas de coração, mas mesmo assim continuei gravando. Foram nove dias de sofrimento. Quando tudo acabou, estava esgotada, passei mal e tive de ir para um hospital em São Paulo me recuperar. Desta vez, o único problema foi com a faixa Limpa Banco. Ela não ficou do jeito que eu queria, porque, durante a gravação, o baixista tocou com uma corda a menos e, quando fui ouvir, percebi os estalos. Mas tudo bem. No geral, o disco está muito bom. Estado — Você compôs a maioria das músicas? Helena — Há algumas composições de gente desconhecida tvo disco, mas a maioria das músicas é minha. Em Saudades do Velho Pai, chamei um sanfoneiro para fazer uma homenagem ao meu pai. Quando eu era criança, ele vivia tocando pé-de-bode (sanfona com oito baixos) para a gente. Acabei aprendendo a dançar por causa dele. A faixa Vida de Cachorro também ficou um barato. 0 som das cordas parece um latido de cachorro. Estado — Como está sua vida em Presidente Epitácio? Helena — Estou levando a vida simples de sempre. Meu primeiro disco, apesar de o pessoal ter gostado bastante, não foi o suficiente para eu juntar um pouco de dinheiro. Moro numa casa simples, de madeira, que o vice-prefeito de Epitácio alugou para mim. Em Mato Grosso, dificilmente sou convidada para shows. Só agora, época de eleição, que um político de uma cidade lá perto me chamou para fazer uma apresentação para ele. Mas tudo acaba em bagunça, é tiro para todo lado. Fico triste pela falta de interesse do pessoal da minha terra pelo meu trabalho. Em São Paulo é diferente. O público é civilizado, me adora, gosto muito de tocar nessa cidade. Helena Meirelles, aos 72 anos, professora quando o assunto é música: Estado — Por que a senhora Mas acabei não indo por causa não se muda para São Paulo? Helena — J á tentei. Quando do frio. Aqui em São Paulo já é resolvi morar em Santo André, duro agüentar este frio danado, meu filho, que é deficiente men- imagine no Exterior. Eu tenho tal, fugiu de casa, só fui achá-lo problema de sáude, não posso fidois dias depois. Ele ficou assus- car gripada. tado com o tamanho da cidade. Por E s t a d o — No A cada canção, Helena causa disso resolvi ano passado, a seaplica a genialidade voltar para PresiARTISTA NÃO nhora foi detida, de seu toque límpido e dente Epitácio. A no Aeroporto de convivência com Brasília, por levar VIAJA AO interpretação única meu filho é muito na b a g a g e m um d i f í c i l . Ele n ã o revólver calibre MAURO DIAS EXTERIOR POR gosta do pai dele, 38. Ainda anda aré complicado. Se mada? ascida em Campo Grande CAUSA DO FRIO fosse só eu e o meu (MS), numa sexta-feira, Helena — Hoje marido seria mais 13 de agosto, há 72 anos, só uso um canivefácil, a gente alugava um aparta- te para me defender. Ando semHelena Meirelles foi lavadeira, mento em São Paulo e tudo esta- pre com ele em Epitácio. Mas parteira — fez os próprios 11 parva resolvido. tos —, benzedeira e violeira desde pretendo, em breve, tirar porte sempre. Viveu cantando entre de arma para poder comprar um boiadeiros e em bordéis, bebeu, 32 cano curto. As pessoas da ciEstado — O seu primeiro álbateu e apanhou nas brigas caracbum, Helena Meirelles, foi mui- dade acham que sou rica, preciso terísticas do ambiente e também to elogiado nos Estados Unidos e tomar cuidado. aprendeu o que havia para saber chegou a merecer destaque espeda música de sua terra. cial na Guitar Player americana, SERVIÇO A biografia incomum não deve uma das mais importantes revisprojetar exotismo sobre sua músitas especializadas em instruHelena Meirelles. Hoje e ca. Helena é tão guardiã da mementos de cordas. A senhora já amanhã, às 21h30; domingo, as mória das cordas genuinamente foi convidada para fazer shows 20 horas. Ingressos: R$ 20,00. brasileiras quanto Clementina de no Exterior? Tuca. Rua Monte Alegre, 1.024, Até domingo Helena — Fui convidada sim. ^873-3422. ela toca viola caipira de dez cordas, violão, bandolim e violino, sempre com a mesma Violeira N Jesus o foi da voz ancestral de rentes — o esclarecimento é ainda de Inezita —, a saber a oitavada, nosso composto étnico. Em Flor de Guavira, o segundo especial para o rasqueado; o paradisco, Helena ilumina mais os guaguaçu (vai no masculino; é o nome próprio da contornos da múafinação típica da sica fronteiriça, fronteira do Paraque absorve eleguai); e o direito, mentos caracterísIODA em que se usa o vioticos dos países de lão sem a sexta corlíngua espanhola SEXTA-FEIRA da. Além disso, fa— é neta de parabrica suas palhetas, guaios —, e os junSANTA, ELA usando chifre de ta aos negros, ínboi. Dedica aisso as dios, europeus. FABRICA SUAS madrugadas das No encarte do Sextas-Feiras SanPALHETAS CD, a cantora Inetas. Termina a tarezita Barroso (oula sempre antes de COM CHIFRE tra especialista em o sol nascer. música brasileira) afirma (é autoriDE BOI Emoção — Flor da dade para tanto) Guavira é um disco que Helena é a maior artista de nossa cultura nos absolutamente emocionante. Ninguém ficará imune ao som da sandias de hoje Helena usa três afinações dife- fona que abre Saudades do Meu desenvoltura etnias Velho Pai (tocada por Toninho Ferragutti) — evocação da música que o pai tocava para ela e as irmãs aprenderem a dançar — e ao desenho melódico, marcado sobre passo íernário, que Helena assume em seguida, solando sobre os violões de Franciso Machado e Pedrão. O disco tem polcas (Cambaqua, Chão Batido, Chuita), xote (Bemte-vi), arrasta-pé (lÁmpa-Banca, que tem esse nome, também usado para designar o estilo, porque quando é tocada ninguém fica sentado) , toada (Lembrança de Mato Grosso, uma dança de fronteira), rasqueados (Linda Manhã, Flor daGuavird) — e a cada ritmo Helena Meirelles aplica a genialidade de seu toque límpido e interpretação única. Flor de Guavira celebra sem discursos uma nacionalidade nossa, implícita: o peito não se ufana, aperta, somente.