P€TALA DO L•CIO por Jos‚ Plƒnio de Oliveira* Naquela manh„ Helena sentiu uma vontade irresistƒvel de caminhar pela cidade. Desde que se separou do marido e retornou de Salvador para a sua cidade natal que deixava em estado de desassossego as mulheres casadas e de rela…†es est‡veis. Uma mulher jovem, bonita, rica, elegante e sensual representava uma tenta…„o para os homens comprometidos, mas vulner‡veis aos apelos da carne. H‡ uma cultura arcaica na Bahia que incita a indivƒduos que vivem na capital do Estado e que aspiram desesperadamente a ascenderem nas carreiras polƒticas ou nas hostes burocr‡ticas do governo a procurarem casamentos “bem sucedidos” com mo…as do interior, filhas de famƒlias abastadas e de grande influŠncia polƒtica nos neg‹cios pŒblicos do Estado. Nesse sentido, h‡ uma forma de canoniza…„o das oligarquias dominantes do Sert„o de Canudos, por exemplo, que abre uma esp‚cie de abismo entre os poderosos canonizados e as massas oprimidas; o que enrijece as rela…†es de Poder e Domina…„o ao longo das eras, tamb‚m manipulando os neg‹cios matrimoniais como forma de perpetua…„o do poder nas m„os dos poucos privilegiados. Mas ainda assim, o casamento ‚ a realiza…„o de um sonho, a conquista de um mundo de felicidades, a constru…„o de uma famƒlia pr‹spera e est‡vel, para a grande maioria das mo…as de famƒlias nobres e tradicionais do universo sertanejo. Logo, h‡ um c•nion reduplicado que tanto privilegia as musas do sert„o quanto os mo…os bem nascidos da capital. Cultos, educados, bem apessoados e candidatos a futuros muito promissores. Para esses mo…os, os cons‹rcios matrimoniais canŽnicos muitas vezes representam as garantias das suas pretens†es pessoais: ocupa…„o de espa…os privilegiados na sociedade, poder polƒtico e sucesso financeiro. Quer dizer, nessas circunst•ncias, o casamento ‚ um neg‹cio bem sucedido em que os fins justificam os meios. Nesta perspectiva de interesse aristocr‡tico, ‚ muito comum a potestade declarar em pronunciamentos pŒblicos: “Eu fui casado, agora sou divorciado, por‚m, a amizade com a ex-mulher ‚ a mesma”. Como se a condi…„o de divorciado seja uma qualifica…„o especial para o exercƒcio de poder na esfera pŒblica oficial. Mas, tamb‚m, h‡ certa ostenta…„o de prestƒgio e vaidade da parte das famƒlias nobres e tradicionais do sert„o no sentido de que as suas filhas casem-se com mo…os de Salvador. Todavia, atendidas as expectativas de prosperidade do esposo, o casamento entra em crise e se desfaz. Ent„o a divorciada – na maioria das vezes – volta a viver nas suas terras de origem, sob os Žnus de grandes frustra…†es, decep…†es, recalques, angŒstias, depress†es e outras mazelas decorrentes da difƒcil experiŠncia da vida conjugal arquitetada por rela…†es de interesses. Nas cidades do interior da Bahia n„o se busca desenvolver culturas liter‡rias e de outras Artes, que produzam subjetividades e positividades elevadas, em um sentido simb‹lico, mas propiciando um estado de espƒrito capaz de harmonizar e sublimar as tens†es do cotidiano, convertendo-as em materiais de agenciamentos de individua…„o perante cl‡ssicos da Literatura, da MŒsica de qualidade, do Teatro, da Dan…a e das fontes primordiais em que a Alma Humana vai dessedentar-se e nutrir-se do que h‡ de mais desej‡vel e saud‡vel, para uma mudan…a de textura confort‡vel. Isso n„o quer dizer que as Artes tenham fun…†es determinadas nos espa…os concretos das sociedades humanas. N„o. N„o ‚ isso. Entretanto, n„o se pode negar que a Arte ‚ uma pr‡tica humana, e como tal, est‡ presente no espa…o concreto em que o homem tamb‚m se faz presente e se produz enquanto ser. – Rapaz, aquela mulher deve ser um fod•o! Menelau costumava dizer quando Helena saƒa de casa logo no inƒcio da manh„ para a sua caminhada er‹tica, circulando pela Pra…a da Igreja em trajes exageradamente provocantes. Desde que a mo…a voltou a residir na cidade que os homens de melhor posi…„o social passaram a deixar os seus aposentos muito mais cedo e vir para a pra…a pŒblica a vŠ-la desfilar naquelas manh„s sertanejas, carregadas de beleza, encanto e sensualidade. Ela tinha plena consciŠncia do fascƒnio que exercia sobre eles, mas portava-se com absoluta indiferen…a. Na manh„ daquele dia, Helena despertou muito inquieta, cuidou da toilette, tomou o caf‚ da manh„, foi ao guarda-roupa, escolheu o short mais provocante, pegou por engano da pressa uma jaquetinha de Œltima moda da filhinha quase adolescente, vestiu, passou pela garagem, deixou os autom‹veis e saiu a p‚, alongando mais o percurso. – VocŠ ‚ gostosa! VocŠ ‚ gostosa! VocŠ ‚ gostosa... As vozes pareciam vir do interior da edifica…„o do novo col‚gio municipal. Ela n„o deu import•ncia e continuou a andar. Quando Helena foi passando pela cal…ada do edifƒcio do F‹rum, estavam: o nobre Doutor Ulisses, o candidato ApolŽnio – pretendente • Prefeitura Municipal – o vereador Aquiles, o mo…o Jaciel, Presidente da C•mara de Vereadores e um grupo de correligion‡rios a aguardar o inƒcio do expediente, para tratarem de algumas pendŠncias de deferimentos de candidaturas. Para isso, vinha da capital o nobre Doutor Ulisses, que, justamente, naquele momento explicava um preceito cl‡ssico da jurisprudŠncia eleitoral: – Toda e qualquer les„o do direito ‚ passƒvel de tramita…„o pelo crivo do ofƒcio judicante... Caramba!!! O que ‚ aquilo? – Ora, uma mulher... – N„o! Aquilo n„o ‚ uma mulher. € uma obra de Arte... Ali‡s, uma das mais belas que os meus olhos j‡ contemplaram... Aquilo ‚ uma Obra canŽnica. E se j‡ n„o se encontra l‡; tem que ser elevada ao c•none... – Doutor, o que ‚ o c•none? – O c•none ‚ uma consagra…„o absoluta de uma Obra de Arte. € a eleva…„o, o reconhecimento de uma Obra de rara beleza, uma Arte que extasiante, atrai e fascina um pŒblico mais esclarecido, confunde a crƒtica, exaspera a teoria, dilacera o m‚todo, desestrutura as formas, arrebenta os conteŒdos, funda, inaugura uma concep…„o de Belo... Enquanto ia dissertando, o Doutor Ulisses caminhava no sentido do Hotel do Conselheiro, absorto, inebriado, embevecido e como que embriagado e atraƒdo por uma for…a misteriosa que o arrastava para o desvario, foi alcan…ado pelo vereador Jaciel quando Helena j‡ adentrava ao espa…o da imensa quadra de eventos. – Doutor Ulisses... Doutor Ulisses... Doutor Ulisses, o Juiz j‡ chegou. – Hein!!! *********************************************************************** Quando Helena pŽs os p‚s no •ngulo da quadra de eventos, o Sol projetou um raio de luz sobre um p‚ de algaroba e ent„o as flores ‡ureas da ‡rvore esparramaramse sobre a imensa laje, formando um tapete espraiado de p‚talas reluzentes. Quem olhava da extremidade angular do hex‡gono que aponta para os lados de Aribic‚, via como que um imenso tabuleiro revestido de estilha…os de estrelas por onde passeava a musa. – VocŠ ‚ gostosa! VocŠ ‚ gostosa! VocŠ ‚ gostosa... Ent„o ela desconfiou de que era seguida discretamente por um mo…o tƒmido que tanto desejava aproximar-se dela, mas que temia uma negativa ‡spera ou talvez um xingamento, uma humilha…„o, uma rea…„o inusitada. Entretanto, ela passou achar interessantes os elogios e at‚ a idealizar a pessoa opaca que vinha sendo arrastada pelos seus encantos. V‡rios foram os pretendentes imaginados, at‚ que lhe veio • mente a figura do jovem P‡ris, um t‚cnico da EBDA que veio para a cidade trabalhar projetos de cria…†es de caprinos e ovinos nas terras da Aldeia Indƒgena de Massacar‡. H‡ dias que Helena vinha notando – como se diz no Sert„o de Canudos – as quedas de asa do mo…o. At‚ estava gostando, mas o rapaz n„o se decidia. Para encoraj‡-lo passou a dar voltas pela quadra. E aquele espa…o salpicado de p‚talas douradas instaurava um ambiente po‚tico. Signos poesia sobre que pisava com o rumor sublime de uma gazela sagrada dos prados de Apolo, naquela manh„ de Primavera sertaneja. Foi ent„o que ela passou a ouvir como que versos de um Soneto de Cam†es, sussurrados pelo vento: Amor é fogo que arde sem se ver... O sussurro leve que insistia em varrer o c•ntico apaixonado na lƒngua do vate lusitano – a Flor do L‡cio – compungia a alma da mo…a, tal como uma sŒplica devotada a uma deusa canonizada. No entanto, o mo…o n„o deu ar da gra…a e ent„o Helena passou a refletir sobre o seu lugar no c•none e a imaginar que a canoniza…„o exagerada dificulta as coisas, as pessoas passam a ter receio ou medo de se aproximar delas. Como das literaturas cl‡ssicas, das obras elevadas ao inatingƒvel. “Ah! O c•none n„o devia ser uma forma de distanciamento, mas um meio de aproxima…„o. Devia ser ele um estƒmulo aos relacionamentos, aos encantamentos, aos enlevos todos que a vida oferece, •s leituras todas de que o cora…„o tem sede. Ah! O c•none n„o devia aprisionar as preciosidades no hex‡gono superior da Biblioteca de Babel, mas trazŠ-las para o mundo”... Pensou. Depois decidiu voltar para casa, e a voz continuou: – VocŠ ‚ gostosa! VocŠ ‚ gostosa! VocŠ ‚ gostosa... Entrou depressa na sala e atirou-se no sof‡. Exausta. Pediu ‡gua, retirou a jaquetinha e atirou-a no ch„o. Ent„o, caiu do bolso um aparelho celular, vociferando desesperado: – VocŠ ‚ gostosa! VocŠ ‚ gostosa! VocŠ ‚ gostosa... Era o da sua filhinha quase adolescente pelo que o amante septuagen‡rio tentava marcar um encontro no S„o Jo„o de Quijingue. Serrinha, 20/09/2012 *PROFESSOR DE LITERATURA NO DEPARTAMENTO DE EDUCA‘’O – CAMPUS XIV DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM CONCEI‘’O DO COIT€.