Josephine Angelini
Deusa
Tradução
Inês Castro
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Para o meu marido, Albert. A culpa disto tudo foi tua.
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C ap í t u l o 1
À sua esquerda, Helena via o que adivinhava ser o rio Estige. Era uma tor‑
rente ensurdecedora, crivada de icebergues. Nenhuma pessoa no seu juízo
perfeito se atreveria a atravessá­‑lo a nado. Sentindo­‑se encalhada, coxeou
por ali num círculo apertado. Perscrutou com rapidez o horizonte e perce‑
beu que não havia mais ninguém na planície árida.
– Raios – praguejou baixinho, a voz a falhar. As cordas vocais ainda
não estavam saradas. Há menos de uma hora, Ares rasgara­‑lhe a garganta
e, embora ainda doesse quando falava, dizer palavrões fazia­‑a sentir­‑se
melhor. – Tão típico.
Acabara de fazer uma promessa ao amigo Zach. Morrera­‑lhe nos bra‑
ços e jurara que se asseguraria que ele bebia a água do rio da Alegria na vida
depois da morte. Zach sacrificara­‑se para a ajudar e, nos seus momentos
finais, fornecera­‑lhe a dica que lhe permitira matar Automedonte e salvar
Lucas e Oríon.
Helena tencionava cumprir a promessa feita a Zach, nem que tivesse de o
carregar sozinha até aos Campos Elísios e subir as margens do rio da Alegria,
com as costelas partidas e a perna manca e tudo. Mas, por alguma razão, a sua
forma habitual de se deslocar no Mundo dos Mortos não estava a funcionar.
Em geral, bastava­‑lhe dizer em voz alta o que queria e a coisa acontecia.
Era o Descedor, o que significava que era um dos raros Rebentos que
podia descer ao Mundo dos Mortos no seu corpo vivo e não apenas em
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espírito. Em certa medida, até conseguia controlar a paisagem, mas claro
que, quando precisava mais desse talento, lá descobria ele uma maneira de
não funcionar. Era tão grego. Uma das coisas que mais melindrava Helena
no facto de ser um Rebento era que isso significava que existia uma terrível
quantidade de ironia na sua vida.
Frustrada, trilhou os lábios pisados, e ergueu a voz rouca para o céu
vazio.
– Já disse: quero aparecer ao lado do espírito de Zach!
– Tenho a alma desse, sobrinha.
Helena rodou sobre si e avistou Hades, senhor do Mundo dos Mor‑
tos, vários passos atrás dela. Alto e circunspecto, vinha envolvido em som‑
bras que se dissiparam como espirais de fumo, libertando­‑o. O Elmo das
­Trevas e os metros extra de tecido da toga preta que usava obs­cure­ciam­
‑lhe a maior parte do rosto, mas conseguiu discernir­‑lhe a boca sensual e o
queixo quadrado. O resto da toga caía­‑lhe em pregas sobre o corpo como
um ornamento. Metade do peito glabro e os braços e pernas possantes
estavam nus. Helena engoliu em seco e concentrou­‑se em focar os olhos
inchados.
– Senta­‑te, por favor. Antes que caias – convidou ele, em voz suave.
Apareceram duas cadeiras articuladas almofadadas e Helena baqueou
o corpo maltratado numa delas, ao mesmo tempo que Hades se sen‑
tava na outra. – Ainda estás ferida. Por que vieste quando devias estar
a ­curar­‑te?
– Tenho de guiar o meu amigo para o paraíso. Onde pertence.
A voz de Helena tremeu de medo, embora Hades nunca a tivesse
magoado. Ao contrário de Ares, o deus que acabara de a torturar, Hades
fora sempre relativamente bondoso. Mas continuava a ser o senhor dos
mortos e as sombras que o rodeavam estavam repletas dos sussurros de
fantasmas.
– O que te leva a pensar que sabes para onde deve ir a alma de Zach? –
perguntou.
– Foi um herói… Talvez não ao princípio quando ainda se comportava
como um estúpido, mas no fim, e isso é que conta, não é? E os heróis vão
para os Campos Elísios.
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– Não estava a pôr em causa a valentia de Zach – lembrou­‑lhe Hades
com delicadeza. – O que perguntei foi: o que achas que te dá, a ti, capaci‑
dade para julgar a sua alma?
– Eu… ah? – exclamou Helena, confundida. Levara demasiadas pan‑
cadas na cabeça naquela noite e não estava em condições de ouvir uma
lição de semântica. – Escuta, não vim aqui para julgar ninguém. Fiz uma
promessa e só quero cumpri­‑la.
– Porém, sou eu quem toma as decisões aqui. Não tu.
Helena não tinha argumentos contra aquilo. Aquele mundo era dele.
Tudo o que podia fazer era fitá­‑lo de forma suplicante.
A boca macia de Hades arqueou­‑se num sorriso distante e pareceu
considerar o que Helena dissera.
– A forma como lidaste com a libertação das Fúrias provou que eras
compassiva. Um bom começo, mas receio que a compaixão não seja sufi‑
ciente, Helena. Falta­‑te compreensão.
– Então aquilo era um teste? As Fúrias?
Um tom de acusação insinuou­‑se na sua voz quando relembrou o que
Oríon e ela tinham passado na sua última missão no Mundo dos Mor‑
tos. Ficou ainda mais zangada quando pensou no que as próprias Fúrias
tinham passado. Se aquelas três raparigas tinham sido atormentadas
durante milhares de anos só para provar que Helena era uma pessoa com‑
passiva, então havia algo terrivelmente errado com o universo.
– Teste. – A boca adorável de Hades retorceu­‑se com amargura à volta
da palavra, como se conseguisse ler os pensamentos de Helena e concor‑
dasse com ela. – Se a vida é um teste, então quem pensas que o classifica?
– Tu? – sugeriu.
– Continuas sem compreender. – Hades suspirou. – Nem sequer com‑
preendes o que isto é. – Fez um gesto para a terra em seu redor, indicando
o Mundo dos Mortos. – Ou o que tu és. Chamam­‑te o Descedor porque
podes entrar aqui à tua vontade, mas a capacidade para entrares no Mundo
dos Mortos é a manifestação mais pequena do teu poder. Ainda não com‑
preendes o que és, o suficiente para julgares outros.
– Ajuda­‑me então. – Hades parecia tão triste, tão abatido com o seu
fardo na vida. De repente, desejou muito ver­‑lhe os olhos e debruçou­‑se
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mais para ele, tentando inclinar a cabeça para divisar por baixo do tecido
que lhe obscurecia o rosto. – Quero compreender.
As sombras alargaram­‑se de novo, escondendo­‑o e murmurando as
penas dos mortos. As entranhas de Helena arrepiaram­‑se. Recordou­‑se das
palavras da profecia do tirano: nascido para a amargura. Recostou­‑se para
trás.
– Mestres das Sombras – sussurrou Helena. – És tu que lhes dás
o poder que possuem?
– Há muito tempo uma mulher conhecida como Morgana Le Fey da
Casa de Tebas teve o mesmo talento que tu tens, o que te permite descer
ao Mundo dos Mortos. Deu à luz um filho meu chamado Mordred e desde
essa altura que o meu fardo assombra a Casa de Tebas. – A voz apagou­‑se
pesarosa, antes de se levantar e estender­‑lhe a mão. Helena ofereceu­‑lhe a
sua e permitiu que a ajudasse a levantar­‑se. – Agora tens de voltar. Vem ter
comigo quantas vezes quiseres, sobrinha, e farei o possível por te conduzir
ao discernimento. – Hades inclinou a cabeça para o lado e riu­‑se baixinho
para si mesmo. Os lábios entreabriram­‑se, revelando incisivos em forma de
diamante. – Foi por isso que te deixei, e aos que tinham o mesmo talento
antes de ti, entrar no meu reino, para aprenderem a conhecer­‑se. Mas neste
momento estás demasiado ferida para estares aqui.
O mundo deslocou­‑se e Helena sentiu a mão de um quilómetro de
comprimento a erguê­‑la do Mundo dos Mortos e a colocá­‑la com suavi‑
dade na cama.
– Espera! E então Zach? – perguntou.
Quando Hades a soltou, Helena ouviu­‑o sussurrar­‑lhe ao ouvido:
– Zach bebe do rio da Alegria, juro. Descansa agora, sobrinha.
Helena estendeu o braço para lhe afastar as sombras do rosto, mas
Hades já partira. Afundou­‑se num torpor profundo, o corpo partido
a absorver, voraz, o sono, tentando curar­‑se.
Depois de Ares ter sido selado no Tártaro e a fenda no solo se ter fechado,
Dafne pegara com cuidado no corpo partido da filha, ao mesmo tempo
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que Castor transportava Lucas e Heitor transportava Oríon de volta à casa
dos Delos. Dafne corria há apenas uns instantes quando a filha lhe adorme‑
cera nos braços. Por um momento, Dafne ficou preocupada. Os ferimentos
de Helena tinham sido horríveis, de entre os piores que já vira, mas quando
procurou escutar­‑lhe o som do coração, ouviu­‑o a bater, com lentidão, mas
com um ritmo regular.
Não passava muito da madrugada quando chegaram a Nantucket vin‑
dos das cavernas do Massachusetts. À primeira luz da manhã, carregando
Helena, Dafne subiu as escadas da casa dos Delos e seguiu pelo corredor
até ao primeiro quarto que encontrou que parecia pertencer a uma rapa‑
riga. Fitou com pesar o bonito edredão de seda que a sua filha toda suja
e encharcada em sangue estava prestes a estragar. Não que isso tivesse
importância. A Casa de Tebas tinha fortuna que chegasse para o substi‑
tuir. Uma fortuna que, em parte, pertencera outrora a Dafne e à Casa de
Helena, a Casa de Atreu.
Tântalo podia gritar «guerra santa» e proclamar aos quatro ventos que
era a «vez de os Rebentos» governarem, mas nunca enganara os Chefes
das outras Casas. A Purga, há alguns vinte anos, fora tanto uma tentativa
para se apoderar da riqueza das outras Casas como para alcançar a imor‑
talidade.
A profecia que iniciara a Purga dizia que quando as Quatro Casas se
transformassem em Uma Casa por derramamento de sangue, a Atlântida
se ergueria de novo. As palavras exactas que Dafne memorizara afirmavam
que, na nova Atlântida, os Rebentos poderiam encontrar a imortalidade.
A profecia não dizia que os Rebentos se tornariam imortais, dizia apenas
que poderiam encontrar aí a imortalidade. Dafne não era tão optimista que
pensasse que a imortalidade era um facto garantido. Mas Tântalo sim
e utilizara esta profecia para reunir os Cem Primos de Tebas à sua volta
para exterminarem todas as outras Casas.
Tudo aquilo era uma impostura, julgava Dafne, consagrada por uma
série de tolices ditas pela última Oráculo que, todos sabiam, enlouquecera
depois de fazer a sua primeira profecia. Mas funcionara.
Muitos Rebentos tinham abandonado os seus vastos bens para serem
pilhados pela Casa de Tebas, fingindo­‑se mortos para evitar a chacina,
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como Dédalo e Leda, os pais de Oríon. Como a própria Dafne. Mas Dafne
nunca quisera saber de dinheiro. Por outro lado, nunca sentira quaisquer
escrúpulos em apropriar­‑se dele quando precisava. Outros Rebentos,
como Oríon e os pais, tinham escrúpulos em roubar e tinham passado
dificuldades nas duas últimas décadas, ao passo que a Casa de Tebas vivia
no luxo. Recordando­‑se disso, Dafne pousou Helena sobre a cama e des‑
truiu o bonito edredão com um pequeno sorriso.
Antes de Dafne se poder virar para ir buscar água e gaze para limpar
os ferimentos da filha que saravam já com rapidez, Helena desapareceu e
um frio de morte assumiu o seu lugar. Dafne percebeu que Helena des‑
cera. O tempo começou a passar. Dafne esperou, a ansiedade a aumen‑
tar a cada instante. Pensara que as viagens ao Mundo dos Mortos eram
instantâneas, que o tempo não passava. Porém decorreu tanto tempo que
começou a ponderar se não deveria acordar o resto da casa, mas, antes de
poder tomar uma decisão, Helena reapareceu. O seu corpo cheirava ao ar
árido do Mundo dos Mortos.
Os dentes de Dafne batiam, não por causa do frio, mas por causa das
recordações assustadoras que o cheiro desse ar despertava nela. Estivera
quase a morrer tantas vezes que conseguia adivinhar que parte do Mundo
dos Mortos Helena visitara. O cheiro não era seco para ser das terras áridas e
havia um pouco de lama húmida agarrada aos pés de Helena. Dafne calculou
que isso significava que devia ter estado nas margens do próprio rio Estige.
– Helena? – sussurrou. Acariciou o cabelo da filha e perscrutou­‑lhe
o rosto gelado.
Helena sofrera ferimentos bastante horríveis no seu combate contra
Ares, mas, se fosse morrer, Dafne sabia que já estaria morta. Devia ter uti‑
lizado a sua capacidade para descer ao Mundo dos Mortos de propósito,
se calhar para procurar o amigo que morrera, o invejoso que, por azar, fora
escravizado por Automedonte.
Mais do que uma vez, Dafne empreendera viagens semelhantes à pro‑
cura de Ájax, mas não possuía a capacidade da filha para entrar e sair do
Mundo dos Mortos à sua vontade. Tivera de quase morrer para lá entrar.
Depois de Ájax ter sido assassinado, perdera a vontade de viver, mas sabia
que matar­‑se não a reuniria com o marido perdido. Teria de morrer em
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combate como Ájax ou nunca iria parar à mesma parte do Mundo dos
Mortos. Os heróis iam para os Campos Elísios. Os suicidas iam… quem
saberia para onde? Atirara­‑se com entusiasmo a todas as lutas honrosas
que conseguia descobrir. Procurou os outros Rebentos que se escondiam e
defendeu com temeridade os fracos e os jovens, tal como fizera com Oríon
quando era um rapazinho. Muitas vezes quase morrera em combate e fizera
a sua viagem até ao Mundo dos Mortos, sempre à procura do marido junto
às margens do rio Estige.
Mas só encontrara Hades. O inexorável e enigmático Hades que não
faria reviver o marido, nem a levaria em sua substituição, por mais que lhe
suplicasse e tentasse negociar uma troca. O senhor dos mortos não fazia
acordos. Esperava que Helena não tivesse descido com a esperança de con‑
seguir ressuscitar o amigo. Era uma ideia condenada à partida, por agora,
pelo menos. Mas Dafne trabalhava há quase duas décadas para alterar esse
estado de coisas.
– Não consigo ver­‑te – murmurou Helena e flectiu os dedos como se
estivesse a tentar agarrar alguma coisa.
Dafne entendeu logo. Ela também quisera ver Hades e tentara puxar­
‑lhe o Elmo das Trevas da cabeça. Por fim, depois de quase ter morrido
vezes suficientes para saldar todas as suas dívidas de sangue e libertar­‑se
das Fúrias, Hades mostrara­‑lhe o seu rosto.
Fora a identificação de Hades que pusera o seu plano em marcha.
O plano que despedaçara o coração da filha única por a ter separado do
jovem que amava.
– Oh! Perdão – disse Matt da soleira da porta, sobressaltando Dafne
e arrancando­‑a aos seus pensamentos.
Secou o rosto molhado, virou­‑se e viu que Matt trazia Ariadne, pros‑
trada, nos braços. Esta apresentava uma tonalidade cinza fantasmagórica
e mal estava consciente, tendo­‑se esgotado a tentar curar Jerry.
– Ela queria dormir no seu próprio quarto.
– Tenho a certeza que cabem as duas – retorquiu Dafne, fazendo um
gesto para a cama larga. – Não sabia para onde havia de levar Helena.
– Parece que há uma pessoa ferida em todos os quartos desta casa –
respondeu Matt. Deitou Ariadne com suavidade ao lado de Helena.
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Rapaz forte, pensou Dafne, fitando o amigo de Helena.
– Aliás, será mais fácil vigiá­‑las às duas juntas – disse Dafne, ainda
a observar Matt.
O rapaz estava em melhor forma física e ganhara bastante músculo
desde a última vez que o vira, mas mesmo assim… Ariadne era uma rapa‑
riga roliça, não tão esbelta como Helena, e Matt nem sequer respirava mais
depressa depois de a trazer pelo corredor.
Ariadne balbuciou qualquer coisa ininteligível para Matt antes de este se
afastar, o rosto enrugado num protesto contra a sua partida. Ele parou para
lhe afagar o cabelo. Dafne quase conseguia cheirar o amor que se despren‑
dia dele e enchia o quarto, como algo doce e delicioso a assar num forno.
– Volto já – sussurrou ele em resposta.
Os olhos de Ariadne agitaram­‑se e depois aquietaram­‑se quando caiu
num sono profundo. Matt passou­‑lhe os lábios pela face, roubando­‑lhe um
pequeno beijo. Virou­‑se para Dafne e olhou para Helena.
– Precisas de alguma coisa?
– Trato de tudo. Vai. Faz o que precisas de fazer.
Ele lançou­‑lhe um olhar agradecido e Dafne viu­‑o sair do quarto a pas‑
sos largos, costas direitas e ombros retesados à luz nova da manhã.
Como um guerreiro.
Helena viu­‑se a correr por uma praia em direcção ao maior farol que já vira.
Ao princípio, foi estranho. Como poderia estar a ver­‑se como se assis‑
tisse a um filme? Não parecia um sonho. Nenhum sonho parecera tão real
ou fora tão lógico. Ainda sem compreender o que se passava, depressa se
envolveu na história e acompanhou­‑a.
A Helena do sonho usava um vestido branco comprido e diáfano, preso
por uma faixa ricamente bordada. O véu simples soltara­‑se dos ganchos do
cabelo e ondulava atrás dela enquanto corria. Parecia assustada. Quando
o farol gigante ficou mais perto, Helena viu o seu eu do sonho reconhecer
uma figura de pé numa das pontas da base octogonal. Enxergou um faiscar
de bronze quando a figura desapertou as fivelas no pescoço e na cintura
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e deixou a couraça tombar na areia. Viu­‑se a si própria a gritar de alegria e
a acelerar.
Após largar metade da sua armadura, o jovem alto e escuro virou­‑se
com o som da sua voz e correu para ela, encontrando­‑se os dois a meio
caminho. Os amantes chocaram. Ele apertou­‑a contra o peito e beijou­‑a.
Helena viu­‑se a si própria a passar os braços à volta do pescoço dele
e a retribuir­‑lhe o beijo, depois a afastar­‑se para lhe poder beijar o rosto,
repetidas vezes, numa dúzia de sítios diferentes, como se quisesse cobrir
todos os bocadinhos. A mente de Helena aproximou­‑se do par enlaçado,
já sabendo quem a outra Helena beijava.
Lucas. Estava vestido de forma estranha e usava uma espada à cin‑
tura. Tinha sandálias nos pés e as mãos envoltas em tiras de couro gastas
e cobertas com guantes de bronze, mas era mesmo ele. Até a risada que
soltou quando a outra Helena o encheu de beijos era a mesma.
– Tive saudades tuas! – gritou a outra Helena.
– Uma semana é demasiado – concordou ele com ternura.
As palavras não eram inglesas, mas Helena entendia­‑as na mesma.
O significado ecoava na sua cabeça, tal como o alívio que a percorria por
se ter juntado ao seu amor, como se fosse o seu corpo que estivesse a ser
comprimido contra o dele. De repente, Helena percebeu que era o seu
corpo, ou fora, antigamente. Falara esta língua e sentira este beijo antes.
Não era um sonho. Parecia mais uma recordação.
– Então vens comigo? – perguntou ele com premência, segurando­
‑lhe o rosto entre as mãos e forçando­‑a a olhar para ele. Os olhos bri­
lha­vam­‑lhe de esperança. – Fazes isso?
O rosto da outra Helena entristeceu.
– Por que falas sempre do amanhã? Não podemos apreciar o agora?
– O meu barco parte amanhã. – Largou­‑a e afastou­‑se, magoado.
– Páris…
– És a minha mulher! – gritou, andando de um lado para o outro em
círculos e enfiando a mão no cabelo tal qual como Lucas fazia quando se
sentia frustrado. – Dei a maçã de ouro a Afrodite. Escolhi o amor, escolhi­
‑te, desprezando tudo o resto que me ofereceram. E disseste que me que‑
rias também.
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– E queria. Ainda quero. Mas a minha irmã não tem cabeça para
a política. Afrodite não pensou que era importante mencionar que,
embora estivesses a guardar ovelhas naquele dia, não eras um pastor
como acreditei, mas um príncipe de Tróia. – A outra Helena soltou um
suspiro exasperado para a sua irmã e depois abanou a cabeça, desis‑
tindo. – Maçãs de ouro e tardes roubadas não importam. Não posso ir
contigo para Tróia.
Estendeu­‑lhe outra vez os braços. Por um instante, pareceu que ele
queria resistir, mas não o fez. Pegou­‑lhe na mão e puxou­‑a para si como se
não tivesse coragem para a rejeitar, mesmo quando estava zangado.
– Então fugimos. Abandonamos tudo. Deixamos de ser realeza e tor­
namo­‑nos pastores.
– Não desejo mais nada – retorquiu ela, com ansiedade. – Mas, para
onde quer que vamos, continuo a ser filha de Zeus e tu um filho de Apolo.
– E se tivermos filhos, teriam sangue de dois olimpianos – replicou ele,
a impaciência a tornar­‑lhe a voz áspera. Ao que parecia já ouvira aquele
argumento muitas vezes. – Acreditas mesmo que é suficiente para criar o
Tirano? A profecia diz qualquer coisa sobre misturar o sangue de quatro
casas que descendem dos deuses. Seja lá o que for que isso significa.
– Não entendo nenhuma das profecias, mas o povo receia qual‑
quer mistura do sangue dos deuses – retrucou. A voz baixou de repente.
– Perseguir­‑nos­‑iam até aos confins da Terra.
Ele passou­‑lhe a mão pela barriga, segurando­‑a de forma possessiva.
– Já podias estar grávida, sabes?
Ela imobilizou­‑lhe as mãos. O rosto mostrou­‑se triste e, só por um
instante, desesperado.
– Seria a pior coisa que nos poderia acontecer.
– Ou a melhor.
– Páris, pára – disse Helena com firmeza. – Magoa­‑me só de pensar
nisso.
Páris assentiu e encostou­‑lhe a testa à dela.
– E se o teu pai de criação, o rei de Esparta, tentar casar­‑te com um
desses bárbaros gregos como Menelau? Quantos reis estão a pedir a tua
mão agora? Dez ou vinte?
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– Não me interessa. Recusá­‑los­‑ei a todos – disse a outra Helena.
Depois abriu­‑se num sorriso. – Não é que alguém me possa obrigar.
Páris riu­‑se e fitou­‑a nos olhos.
– Não. Embora gostasse de ver um ou dois tentarem. Pergunto­‑me se
os gregos cheiram melhor depois de terem sido atingidos por um raio. Pior
de certeza que não cheirarão.
– Não mato ninguém com os meus raios – riu­‑se ela entredentes,
enroscando os braços à volta do pescoço dele e moldando o corpo mais
colado ao dele. – Talvez só chamuscá­‑los um pouco.
– Oh, então por favor não! Parece­‑me que grego chamuscado cheira‑
ria muito pior do que frito – retorquiu Páris, a voz a tornar­‑se pesada ao
mesmo tempo que lhe sorria. De repente, o humor desapareceu­‑lhes dos
olhos e foi substituído pela tristeza. – Como é que vou partir no meu barco
sem ti, amanhã de manhã?
A outra Helena não tinha resposta para lhe dar. Os lábios dele encon‑
traram os dela e passou­‑lhe os dedos pelos cabelos, inclinando­‑lhe a cabeça
para trás e aguentando­‑lhe o peso quando ela se entregou. Tal como Lucas
fazia.
Helena sentia tanto a falta dele que até doía, mesmo a dormir. Doía
tanto que acordou, rolou para o lado e gemeu quando por acaso exerceu
demasiada pressão nos ossos que saravam.
– Helena? – perguntou Dafne baixinho, a voz a centímetros da filha na
escuridão. – Precisas de alguma coisa?
– Não – respondeu Helena e deixou que os olhos inchados se fechas‑
sem de novo. O sonho que a recebeu fê­‑la desejar ter permanecido acor‑
dada, apesar dos seus ferimentos.
Uma mulher aterrorizada debatia­‑se com uma garra compacta que lhe
envolvia a cintura. Asas enormes, debruadas a penas maiores do que
uma pessoa, batiam no ar e a ave gigantesca içava­‑a para o céu nocturno.
Os contornos dos telhados de Nova Iorque passaram a faiscar enquanto
a mulher estrebuchava.
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Helena viu a ave inclinar a cabeça com o bico para olhar para baixo,
para a mulher presa nas suas garras. Por um brevíssimo momento, o olho
ameaçador da águia arredondou­‑se até adquirir a forma do de um homem.
Tinha olhos cor de âmbar. Um raio azul faiscava no centro preto das suas
pupilas. A águia gritou, gelando o sangue de Helena e provocando­‑lhe arre‑
pios no corpo adormecido.
O Empire State Building ergueu­‑se à frente deles e depois Helena não
viu mais nada.
Oríon estava a berrar que nem um desalmado.
Helena soergueu­‑se com o som, empurrou a mãe para o lado e come‑
çou a correr. Investiu pelo corredor escuro e já ia a meio do quarto, com
Lucas uma mancha esbatida a seu lado, quando os dois compreenderam
de repente a situação e se imobilizaram.
– O que raio…? – rugiu Heitor da cama desdobrável montada ao lado
da de Oríon. Acendeu uma luz.
Oríon estava de pé em cima do seu colchão, vestindo apenas um
par de calções curtos, e apontava para uma minúscula figura escura aga‑
chada no espaço estreito entre as duas camas. Era Cassandra, aninhada
no soalho de madeira dura com apenas uma almofada e um cobertor
fino para dormir.
– O que estás a fazer aí? – clamaram várias vozes para Cassandra. Cas‑
tor, Palas e Dafne tinham surgido atrás de Helena e de Lucas na soleira da
porta.
– Mordeste­‑me! – uivou Oríon, ainda a dançar em cima da cama,
a passar­‑se.
Noel, Kate e Claire, correndo a uma velocidade humana, chegaram
entretanto e encheram o quarto.
– Desculpa! – lamentou­‑se Cassandra. – Mas pisaste­‑me!
– Pensei que era um gato até que… Quase te arranquei a cabeça! Podia
ter­‑te matado! – retrucou Oríon furioso com ela, alheado da numerosa
assistência. – Nunca te aproximes de mim dessa forma furtiva!
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