Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 O COTIDIANO ESCOLAR EM “MINHA VIDA DE MENINA”1 Maria Aparecida Milagres Machado1 RESUMO Este trabalho analisa a obra "Minha Vida de Menina" de Helena Morley, pseudônimo usado por Alice Dayrell Caldeira Brant focando em aspectos relacionados ao cotidiano escolar vivido pela autora. Este é descrito como enfadonho devido às horas de estudos exigidos pelo currículo de formação de uma normalista. Ainda discute a importância da educação na modernização do país, a reforma de Bejamim Constant e toda crítica relacionada à extensão dos currículos escolares. São analisados também aspectos relacionados à prática escolar tendo como pano de fundo o período em que Helena leciona. De maneira geral é discutida a formação docente no final do século XIX, sob a ótica de uma estudante que busca na educação uma saída aceitável da clausura do lar reservada às mulheres da época. PALAVRAS-CHAVE : : Educação feminina, docência, normalista MINHA VIDA DE MENINA, O LIVRO “Minha Vida de Menina”, de Helena Morley, revela o olhar diferenciado e crítico de uma garota do interior mineiro. Seu livro traz uma agradável história do cotidiano de Diamantina do início década de 1890 com seus personagens comuns e fascinantes. A partir da leitura do livro, e a luz das concepções de Gênero, Educação e Escrita de si, selecionamos algumas categorias de análise como a infância, educação feminina e prática educativas em Escolas Normais como fios condutores para a compreensão das relações de gênero, para ilustrar de que forma ocorreu a educação feminina no final do século XIX em Diamantina. Partindo do ponto utilizados por alguns historiadores ligados a História Cultural, que procura analisar o indivíduo e sociedade mesmo sendo objetos que existem independentes, referem-se a dois níveis inseparáveis do mundo humano, ou seja, são interdependentes. A partir daí buscamos através deste estudo, perceber por meio da análise desta obra o rico manancial de habitus experimentados pela família de Helena Morley entre o ambiente 1 Maria Aparecida Milagres Machado, graduanda em história na Universidade Federal de Viçosa, [email protected] 1 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 familiar e escolar. Destacando, sobretudo a forma como é narrada pela autora os aspectos do cotidiano e as representações da educação feminina, o papel da mulher e as relações de gênero neste dado período. Roberto Schwarz diz que o livro embora despretensioso na origem, conseguiu uma posição inesperada. Ao compará-lo com o grosso da literatura nacional o resultado lhe era favorável, em muitos clássicos da literatura nacional encontramos textos envelhecidos, o que não ocorre com o livro de Morley. Segundo o autor a sua despretensão, ao adotar as expressões do dia-a-dia, criou uma poesia sem aviso prévio, ou seja, “sem o apoio das figuras de linguagem, rebuscamento sintático, referências cultas, termos raros, cuidados com eufonia, sem filiações de escola, climas de mistério, sugestões vagas etc.”2 A singularidade desta obra está no seu prosaísmo, na descrição de um dia-a-dia lento e bucólico, em que nada escapa do olhar vivo de uma adolescente filha de um pai descendente de ingleses protestantes e uma mãe vinda de uma típica família lusitana, católica, protecionista. São abordados diversos temas, desde as lavras decadentes de diamantes, o protecionismo da matriarca rica, a inveja e os mexericos de família, a vida na escola, o convívio com os negros, os rituais e festas religiosas, as diferenças na educação entre duas famílias, e uma infinidade de outros temas. Para este trabalho vou ater me aos aspectos relacionados ao âmbito escolar. A ESCOLA NA ÉPOCA DE HELENA A rotina escolar descrita pela autora a deixava descontente, pois, era carregado por tarefas intermináveis o que a deixava com pouco tempo para fazer coisas mais interessantes como escrever ou mesmo se divertir com seus primos. Ficar horas e horas estudando coisas que em seu julgamento não lhe ajudaria a ensinar meninos burros quando obtivesse o diploma de normalista. A avó, dona Teodora, matriarca rica e protetora da neta pobre e muito esperta, dá muita importância para os estudos dela. Fica admirada com sua capacidade de escrever suas estórias no papel, assim diz Helena sobre a avó: Mamãe nunca olha o que escrevo, mas vovó quer que eu leia tudo para ela e também para as pessoas de fora. Quando estou passando dias na Chácara eu fico aflita para ir para a casa só por isso. Coitada; ela é muito inteligente, mas mal aprendeu a ler e escrever e por isso fica pensando que é uma coisa do outro mundo 2 SCHWARZ, Roberto. Duas Meninas. [São Paulo, Brazil]: Companhia das Letras, 1997. p.107. 2 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 contar as coisas com a pena. Engraçado é que ela não se admira de eu contar com a boca. É que ela pensa que escrever é mais custoso.3 A admiração da avó da capacidade da neta nada mais é que o reconhecimento e a valorização da escolarização pela qual a neta estava tendo acesso. No período em que o diário foi escrito o índice de analfabetismo no Brasil era enorme, fato este que também corrobora para o apreço da avó com a capacidade da neta em contar estórias com a pena. A família Morley também mantinham uma grande estima pela instrução escolar e pela inteligência, afirma Schwarz. O pai e as tias de Helena elogiavam a sua capacidade intelectual, porém ela não tem muito claro se é ou não inteligente, idéia confirmada pela mesma com as primeiras aulas na Escola Normal, em que se acha burra e diz que não irá conseguir aprender. Também se queixava sobre a necessidade de ficar sentada em uma sala de aula ou mesmo estudando em casa, e conclui que, em conseqüência disso será má aluna, mesmo se for inteligente. 4 Nesta época o discurso sobre a importância da educação na modernização do país era recorrente, principalmente nas camadas mais abastadas da sociedade. Havia uma ampla discussão sobre o abandono educacional da maioria das províncias, e os anos passavam e o Brasil estava caminhando para o século XX com a maioria da sua população analfabeta.5 Em meados do século XIX, em resposta a necessidade de escolas preparatórias de professores e professoras, foi criada as primeiras Escolas Normais para a formação de docentes. Estas deveriam receber moças e rapazes em turmas separadas, entretanto um interessante fato ocorreu, pois pouco a pouco essas escolas recebiam e formavam mais mulheres do que homens, o que propiciou uma “feminização do magistério” 6 No final do século XIX com a reforma de Benjamin Constant (1890) foi introduzido um currículo estritamente positivista no ensino secundário que passa a ter disciplinas deixando os currículos mais extensos. Helena critica esse amplo espectro de matéria ao ter que traduzir uma fábula de La Fontaine e diz ser desnecessário para o que ela está estudando: “Que precisão eu teria de fábula de La Fontaine se for professora no Bom Sucesso, Curralinho 3 MORLEY, Helena. Minha vida de menina. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 86. 4 SCHWARZ, Roberto. Op. Cit. p.110. 5 LOURO, G. L. Mulheres na sala de aula. In PRIORE, Mary (org) e BASSANEZI, Carla. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 443-444. 6 Ibidem. p. 449. 3 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 ou mesmo em Diamantina?”7 Critica muito pertinente, pois, questiona como teoria irá ajudar na sua prática docente. O cotidiano das jovens no interior dessas escolas é como o cotidiano de qualquer instituição escolar, planejado e controlado. Seus movimentos e suas ações são distribuídos em espaços e tempos regulados e reguladores. Elas devem estar sempre ocupadas, envolvidas em atividades produtivas. É importante notar que o tempo escolar se constitui, em suas origens, como um ‘tempo disciplinar’. 8 A Escola Normal, em uma cidade como Diamantina, era a única forma das jovens saírem da clausura histórica o qual estavam submetidas. Trabalhar fora era coisa de homem e o magistério era o único trabalho tolerado pela sociedade até o casamento. Helena fala sobre o primeiro dia de aula na Escola Normal, e achou tudo difícil e complicado. Muitas exigências, ter freqüência nas aulas, estudar em casa, prestar a atenção nas aulas. Mas logo a garota de Diamantina pensa em uma estratégia e diz: “O que me vale é que eu tenho facilidade de decorar. Quando eu não puder compreender, decoro tudo.”9 Na época de Helena Morley, a memorização era fundamental para ser bem sucedido nas escolas. As matérias eram dadas por meios de pontos, que se o aluno tivesse o “dom” para decorar passaria nas matérias. “Quando é para decorar, eu decoro mesmo andando de um lado para o outro, em qualquer parte...”10 A rigidez e a alta disciplina deixavam a jovem chateada, pois seu espírito de liberdade não condizia com essa realidade. Muitas vezes a autora considerava a escola um castigo, pois seu espírito era propenso a não ficar presa e parada em um mesmo lugar. Uma das artimanhas usada por Helena para burlar as exigências e esforços necessários para passar de ano eram as colas. Porém certa vez este artifício não deu certo e isto lhe custou o primeiro ano e ao ser descoberta disse: Tive de entregar a sanfona e Seu Artur só querendo que eu explicasse por que fazia aquilo em vez de estudar. Respondi que eu mesma não sabia; que me ensinaram assim e eu achei o sistema bom. Depois desse exame, os outros foram na mesma toada. Vinham os professores se distrair comigo e as outras colavam descansadas.11 7 MORLEY, Helena. Op. Cit. p. 180. 8 LOURO, G. L. Op. Cit. p. 455. 9 MORLEY, Helena. Op. Cit. p. 11 10 Ibidem. p. 62. 11 Ibidem. p. 85. 4 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 Uma grande inquietação da autora eram os sacrifícios feitos pelos pais. O pai que labutava nas lavras de diamantes já sem grandes resultados. A mãe que fazia os afazeres domésticos e ainda tinha que viver longe de seu amado, que tentava tirar o sustento longe de casa. Seu sonho era conseguir dar aulas e tirar os pais desta vida difícil. Eu, tirando meu título de normalista, sei que tudo vai melhorar, pois irei até para o fim do mundo dar minha escola. Já fiz meus planos, tão bem assentadinhos, que até poderemos guardar dinheiro. Mas deixar meu pai nesta peleja, furando a terra à espera de diamantes que não aparecem, é que não deixarei. 12 CASAMENTO OU SER PROFESSORA? Helena fala do exemplo das tias inglesas que mesmo depois de mais velhas entraram para a Escola Normal e se formaram professora. Este título propiciava um salário o qual criou a possibilidade, aceita socialmente, para elas fugirem da condição reservada as mulheres da época que se resumia a dedicação ao casamento e aos filhos. Muitas normalistas eram atraídas pela necessidade de ampliação do seu espaço de atuação para além do âmbito doméstico. Porém este trabalho fora de casa, na maioria das vezes era interrompido pelo chamado da verdadeira vocação feminina de esposa e mãe. Então o atividade docente só era aceita até o momento do casamento ou para as viúvas e solteironas.13 Louro afirma que os cursos normais era a meta mais alta que uma jovem poderia almejar. Nem sempre uma normalista seria professora, mas o fato de estar cursando o normal era muito valorizado. Para muitas alunas esse era em curso espera marido.14 Hoje, quando chegamos à casa de Júlia, ela disse a mamãe: ‘Os planos de Helena já se vão por água abaixo, Dona Carolina. A senhora já soube que vou me casar breve? Já arranjei até substituta. Agora vai ser mais difícil para Helena’. Respondi: ‘Eu também não tenho esperança de tirar meu título tão cedo, Júlia. Se no primeiro ano já encalhei, avalie nos outros. Também a gente não sabe do futuro. Quem sabe se eu também, quando ficar moça, não vou encontrar, como você, um rapaz de quem eu goste e não vou ter precisão de dar escola?". Júlia disse: "Isto é que vai ser o mais certo’.15 12 Ibidem. p. 50-51. 13 LOURO, G. L. Op. Cit. p. 453. 14 Ibidem. p.471. 15 MORLEY, Helena. Op. Cit. p.91. 5 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 A idéia de que a mulher tinha um destino já traçado de ser mãe e esposa era muito comum na época de Helena. E essa vocação era afirmada pela família na formação feminina ao lhes reservar tarefas como cuidar da casa, dos irmãos mais novos e das crianças da vizinhança, ou mesmo as lições de economia doméstica. VOCAÇÃO PARA O MAGISTÉRIO O aspecto de uma professora deve ser sóbrio e reto não deixando transparecer o que ela pensasse ou mesmo sentisse. O seu principal objetivo é a manutenção da disciplina e da ordem sendo o aspecto de “durona” muito pertinente. “Os uniformes sóbrios, avessos à moda, escondiam os corpos das jovens, tornando-os praticamente assexuados, e combinavam com a exigência de uma postura discreta e digna.”16 Aspectos esses que Helena não tinha, e isso pode ser notado claramente no seu primeiro dia de aula: Desço a ladeira e entro na escola. Pergunto a um menino dos maiores como devemos começar. Levantam-se todos ao mesmo tempo e dizem que é preciso cantar o hino. Mando cantar. Todos cantam sem ordem e tudo desentoado. Mando parar no meio, batendo com a régua na mesa: Chega! Não precisa mais! Os meninos já vão vendo a professora que têm.17 Os alunos estavam acostumados com a sala de aula controlada pela antiga professora e ao verem a inexperiência da nova professora logo montam a maior algazarra. Ao perceber que não iria conseguir dominar a turma sozinha Helena pediu a ajuda de outra professora, um pouco mais experiente em domar alunos rebeldes. Helena não estava disposta a enfrentar uma sala de aula. Pensava que se fosse necessário exercer a profissão seria até o casamento. Não estava disposta a viver como suas tias inglesas pelas quais tinha tamanha admiração, pois conseguiam se sustentarem sozinhas e se tornaram independentes, porém a sala de aula era muito sacrifício para a garota. Helena assim com a maioria das estudantes do magistério da época não exerceu a profissão de professora. Diante de uma formação excessivamente teórica que não preparava as alunas para o dia a dia em sala de aula e de uma sociedade que espera da mulher uma posição reservada ao lar ficava realmente difícil escolher o magistério como opção de vida. Helena escolheu o casamento e a vida familiar. 16 MORLEY, Helena. Op. Cit. p. 461. 6 Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281 As análises que poderiam ser feitas com a narrativa escrita por Helena Morley são muito variadas. Porém me ative somente em alguns aspectos relacionados ao cotidiano escolar. Relatos esses que dão uma boa idéia do funcionamento a estrutura escolar e o pensamento vigente na época. Fica então depois da leitura do livro o gosto pela narrativa de Morley e a vontade de dar continuidade as pesquisas sobre o universo feminino tão bem desenvolvido pela autora. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS: LOURO, G. L. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, Mary; BASSANEZI, Carla. História das Mulheres no Brasil. 1. ed. São Paulo: Contexto. 1997. MORLEY, Helena. Minha vida de menina. São Paulo: Companhia das Letras. 2004. SCHWARZ, Roberto. Duas Meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 7