Defesa de Helena, defesa de Fedra Prof. Dr. Fernando Crespim Zorrer da SILVA UFRGS [email protected] Na Antigüidade Clássica, há dois textos que se dedicam a refletir sobre uma mulher que ama ou que se apaixona por um homem, e que se arrisca por ele; de certo modo, aqui, a mulher comete uma transgressão. Na verdade, está-se referindo especificamente à obra do filósofo sofista Górgias (1993), intitulada Elogio de Helena, e à peça Hipólito1, do dramaturgo Eurípides (1995c). Neste caso, pretende-se discutir os motivos pelos quais Helena acompanhou Páris a Tróia; no outro, Fedra, a madrasta que se apaixona pelo enteado, Hipólito, filho de Teseu. Poder-se-á, inclusive, averiguar os pontos de contato que ambos os textos, de antemão, já demonstram possuir. É preciso que se ressalte que Górgias segue a versão tradicional do mito de Helena, diferentemente de outros escritores que afirmaram que essa heroína não teria ido até Tróia (GAGARIN, 2002, p. 17). Para empreender tal tarefa, é necessário ainda apresentar ainda algumas informações relevantes. Cada uma dessas obras pertence a um gênero distinto do conhecimento humano bem como possui particularidades intrínsecas. Em ambos os textos, o mito é objeto de reflexão. Na tragédia de Eurípides, é apresentado o desenvolvimento da paixão de Fedra até o seu término. No caso do texto de Górgias, há uma reflexão de um ato já consumado; além disso, o filósofo trata das possibilidades que levaram a personagem Helena a sair de sua casa e ir com Páris a Tróia. Helena concretiza o seu amor ao ter acompanhado Páris até Tróia como é observado, por exemplo, na Ilíada, ao passo que Fedra não se aproxima do ente amado, nem dirige-lhe uma palavra ou toca-lhe o corpo. Helena não morre, pelo menos, é o que a tradição transmitiu, conforme os relatos do próprio Eurípides nas peças Helena2, Troianas3, Andrômaca e Orestes; em Homero, tal idéia é encontrada nos poemas épicos Ilíada e Odisséia. No caso de Fedra, essa personagem se suicida com uma corda no pescoço, ao acreditar que não tinha meios de se salvar, uma vez que Hipólito fora informado do desejo da rainha através da aia. 1 Todas as traduções da tragédia Hipólito são de minha autoria. 2 Também pode ser aumentada essa lista conforme Hécuba, ver os versos 265-266; 943-952. No drama satírico Ciclope, versos 179-187, Helena é criticada, pois é aquela que aprecia a troca de esposo; Polifemo também a julga malvadíssima, v. 281-282. 3 Há um debate entre Hécuba e Helena na qual essa tenta se defender das acusações de ser um indivíduo mesquinho. Helena teria chegado a Tróia não porque amava Páris, mas sim pelo desejo de obter riquezas, conforme v. 990 ss. Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 291-298, 2008 Neste contexto, Helena é acusada de ser o motivo de uma guerra que matou muitos homens. É importante recordar nesse momento a imagem apresentada por Aristófanes em relação à Fedra e à Estenobéia, pois essas heroínas foram criticadas na comédia As rãs, conforme os versos 1043-1044. Na verdade, a tragédia Hipólito constitui em uma reescrita de uma primeira abordagem do mito por parte de Eurípides. O motivo foi devido ao modo pelo qual o dramaturgo a compôs, pois o público a repudiou. Talvez uma refinada referência desses fatos possa ser observada no verso 407, já que Fedra reconhecia que o seu ato, isto é, o desejo adúltero seria objeto de ódio por todos (KOVACS, 1980, p.291). Além disso, as heroínas, Fedra e Helena, igualmente são casadas com reis famosos e são figuras emblemáticas do mundo grego. Quanto aos amantes, ainda que Páris, filho de Príamo, seja um hóspede quando visitava o palácio de Menelau, constitui-se aquele em um homem proibido, um ser que, de modo algum, Helena poderia tê-lo tocado. Já Hipólito é o enteado de Fedra, um homem que, a rigor, não pode ser alvo amoroso pela madrasta. Em ambos os casos, os homens padecem por esse envolvimento amoroso. Páris não tem a mesma sorte que a sua parceira, porque ele perece na guerra de Tróia. Já Hipólito morre, de maneira ainda mais dramática, em um acidente no qual é perseguido por um touro e o seu corpo é lançado contra as rochas junto ao mar. Cada um dos escritores, Eurípides e Górgias, não considera a paixão como algo que deva ser simplesmente evitado, criticado, como é sugerido posteriormente, por exemplo, por Sêneca que censurou a conduta da rainha na sua peça Fedra. Górgias assume explicitamente, no início de seu texto, que refutará aqueles que detrataram Helena, pretende libertá-la da má reputação que lhe foi outorgada (§ 2). No caso de Hipólito, a questão é mais complexa, porque não há uma afirmação taxativa a respeito do ato amoroso da rainha, mas sim é exposta a situação dessa personagem, da sua realidade psíquica, da gravidade do ato de uma mulher que ousa amar o enteado. No caso da esposa de Teseu, tudo não passa das especulações de um desejo que não é consumado, de um adultério que não ocorre efetivamente, que unicamente permanece no plano dos pensamentos e de um mal-entendido perpetuado por uma serva, tudo isso pertence ao universo do proibido, isto é, a personagem não poderia pensar em qualquer outro homem. Eurípides consegue, pois, ressaltar as características da culpa feminina, não envolvendo um casal de amantes, no sentido romântico do termo, contudo acentua que o intento amoroso da rainha carrega todos os constrangimentos e punições psíquicas bem como, uma vez que está em um estado psíquico periclitante (não come há três dias e, de um momento para outro, tem delírios), isso tudo contribui para que realize escolhas erradas em momentos decisivos e que possa contribuir na morte de um indivíduo. Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 291-298, 2008 292 Agora no plano da beleza física, quando o assunto é a descrição das duas heroínas, Górgias enfatiza que a de Helena é divina e, por causa desse aspecto, atraiu muitos homens que tinham genealogia, dinheiro, sabedoria e coragem (§ 4). Na sua argumentação, o filósofo aponta que Helena utilizou o seu corpo e não o escondeu. Esse pensador salienta que não tratará dos motivos pelos quais alguém decidiu saciar o seu desejo amoroso, raptando-a e carregando-a para Tróia, além de explicar as causas pelas quais a ida de Helena a Tróia consistiu em algo natural (§ 5). Agora sobre o corpo de Fedra, o texto trágico não fornece mais detalhes a não ser, no prólogo, em que o dramaturgo valoriza a juventude de Fedra, ao apontar que ela se apaixona pelo enteado (LATTIMORE, 1962, p. 7). Neste sentido, há poucas referências de Fedra a Hipólito, com exceção de uma na qual desconfia de sua própria sexualidade, “Quem quer que este seja, o filho da amazona ...”, “o3stij poq’ ou[to/j e0sq’, o9 th=j 0Amazo/noj ...”. Na verdade, essa tragédia trata mais do sofrimento e das especulações da paixão amorosa e não descreve o objeto amado; dessa forma, não há uma descrição concreta dos seres que estão envolvidos no intento amoroso. Na seqüência do texto do filósofo, esse apresenta os motivos pelos quais sugere que a ida de Helena a Tróia pode ter ocorrido pelos ditames do Destino (Tuxh/), por resoluções dos deuses, por decretos da Necessidade ('Ana/gkhj), por ter sido levada à força ou por ter sido seduzida pelo discurso ou por Eros (§ 6), explicando, na seqüência, cada um desses aspectos. Realmente esse texto de Górgias é o fundador de muitas discussões que giravam em torno da liberdade e do determinismo (KENNY, 2004, p. 31). Na verdade, essas seis possibilidades, que são mencionadas pelo filósofo, podem ser divididas em dois grupos: o primeiro, abarca o agenciamento dos deuses ou de uma entidade acima deles nas ações dos homens, como é o caso das primeiras três possibilidades e mais a referência, em particular, ao deus Eros; o segundo, simplesmente envolve o ato individual de um mortal sem que esse esteja acompanhado de um deus, como é o caso do discurso e da força. Esse é o esquema que explicaria as ações nas quais Helena é objeto de investigação a respeito do seu modo de agir. No texto de Eurípides, algumas personagens procuram dar esclarecimentos sobre o motivo de os mortais agirem de um determinado modo ou de outro. É significativo o argumento da nutriz de Fedra que tenta convencer a sua senhora para não resistir ao ímpeto e à força de Afrodite, visto que a rainha está amando devido à interferência dessa divindade. Além disso, a serva emprega uma questão retórica ao indagar se Fedra não estaria cometendo hybris em querer ser mais forte que os deuses, v. 473-475. Nesse sentido, observa-se o quanto ela é pretensiosa a respeito dos desígnios dos imortais; em contrapartida, a esposa de Teseu deveria cometer o adultério. É importante ressaltar que, no prólogo dessa tragédia, o servo de Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 291-298, 2008 293 Hipólito declara a respeito de Afrodite que “É preciso que os deuses sejam mais sábios que os mortais”, “sofw/terouj ga\r xrh\ brotw=n ei]nai qeou/j”, v. 120; com efeito, há a aceitação dos atos dos deuses como melhores e como mais adequados que os dos mortais e ainda mais se essa declaração for comparada com o texto de Górgias que igualmente salienta: “A divindade é mais poderosa que o homem, tanto na força como na sabedoria e em tudo o mais”, “qeo\j d’ a0nqrw/pou krei=sson kai\ bi/ai kai\ sofi/ai kai\ toi=j a1lloij”, (§ 6). Uma das conclusões finais do texto de Górgias, que, na verdade, já é mencionada no início, e que o filósofo repete ao longo de suas explicações, é que não há motivos para se acusar Helena. Se fosse transposta a argumentação que o filósofo propôs para defender a esposa de Menelau, para a tragédia de Eurípides, também se poderia assinalar que Fedra não teve culpa em desejar Hipólito, ainda mais pelo fato de que, no prólogo, Afrodite assume como sendo a responsável pela paixão de Fedra, quando proclama “Fedra, viu-o e ficou possuída em seu coração, / pelos meus desígnios, por uma terrível paixão”, “i0dou=sa Fai/dra kardi/an kate/sxeto / e1rwti deinw=i toi=j e0moi=j bouleu/masin”, v. 28-29. Tal idéia pode ser ainda reforçada quando Hipólito sugere que Cípris interfere no desejo das mulheres, ao acusála que “A vilania, Cípris produz mais nas sábias”, “to\ ga\r kakou=rgon ma=llon e0nti/ktei Ku/prij / e0n tai=j sofai=sin”, v. 642-643. Nesse caso, todas essas especulações partem do seguinte pressuposto: que a deusa Afrodite é responsável pelos atos que na peça se desenvolvem. Tanto é verdade que, no êxodo da tragédia, a deusa Ártemis comenta que, em relação ao ato de Teseu que contribuiu na morte de seu próprio filho, Hipólito, “Sem querer o mataste, e aos homens / é natural que errem se os deuses assim o ordenam”, “a1kwn ga\r w1lesa/j nin, a0nqrw/poisi de\ / qew=n dido/ntwn ei0ko\j e0camarta/nein”, v. 1433-1434. Na verdade, o que está aqui mais uma vez em questão é o poder divino que intervém no agir dos mortais; também é importante esclarecer que essas afirmações aqui realizadas apóiam a perspectiva teórica que considera as divindades não como forças psíquicas, conforme outros helenistas defendem em suas teorias. Uma vez que já foi abordada a possibilidade da intervenção divina no texto de Górgias, são examinados, a seguir, os agenciamentos humanos. Nesse caso, o filósofo sofista sugere a possibilidade do ato de Helena em seguir Páris ter sido cometido pela intervenção dos seguintes fatores: a força, o discurso e o amor; além disso, no final de cada um dos raciocínios e das especulações apresentadas, Górgias descarta a possibilidade de que Helena tenha alguma culpa. Como foi já afirmado anteriormente, Helena acompanhou Páris, porém Fedra não realizou qualquer tipo de aproximação. No caso de Helena, Górgias declara que se foi um Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 291-298, 2008 294 bárbaro que a raptou pela força (bi/ai) — esse é o primeiro motivo, — a sair de sua casa, ainda assim, pode-se retirar a culpa de Helena (§ 7). A aia de Fedra igualmente comenta que os escritos dos antigos mencionam que Zeus desejou Sêmele, e Aurora raptou Céfalos, v. 453456. Neste caso, dois mortais sofrem algum tipo de violência por parte dos deuses, ressaltando que os primeiros devem obedecer aos imortais e que a rainha necessita fazer aquilo que a divindade manda. O coro dessa peça, formado pelas mulheres de Trezena, ressalta o poder de Afrodite, v. 530-532, que é ajudado por Eros, além de mencionar o mito da poldra Ecália (Íole) que foi dada por Cípris a Héracles, quando Íole não aceitava esse tipo de relação amorosa, v. 545-554. Além disso, observa-se um caso interessante: pode-se sugerir como um ato de violência, a seguinte circunstância, e considerá-la do ponto de vista contrário. Neste sentido, Fedra persuade Teseu, seu esposo, que Hipólito havia a ultrajado sexualmente, empregando da força (bi/ai), conforme o verso 668. Além disso, Górgias salienta que se deve ter piedade daquela que sofreu da violência, isto é, de Helena; Teseu se compadece do sofrimento de sua esposa, acredita em tudo que essa relatou, sofre pela dor da esposa, embora não tenha derramado uma única lágrima a respeito disso. O segundo motivo arrolado por Górgias consiste no emprego do discurso cujo tópico é o mais extenso de todos (§ 8-14). Neste sentido, o discurso age como um senhor soberano, que pode afastar o medo, deter a dor, produzir a alegria e fortificar a compaixão (§ 8). Na verdade, essa capacidade do discurso de permitir que as pessoas se movam por sua interferência sobre uma determinada audiência faz parte dos fundamentos da Retórica (KASTELY, 2004, p. 222). Deste modo, se Páris empregou o discurso e persuadiu Helena, de modo algum ela teria culpa, pois esse poder é invencível. Trata-se, deste modo, da supremacia do rigor da Retórica, pois não importa os méritos dos argumentos, visto que se registra, neste contexto específico, que o pathos é superior ao logos (Id. Ib.). Górgias também afirma que há uma relação idêntica entre a força da qual dispõe o discurso e disposição do espírito; da mesma maneira, isso ocorre entre o medicamento e a saúde do corpo (§ 14). Os medicamentos expulsam certos humores, e os discursos podem inquietar, encantar, atemorizar, proporcionar a coragem, bem como enfeitiçar o espírito. Aqui, observa-se a presença das drogas e do discurso que seduz; ainda, a idéia de se retirar os humores aproxima-se de Hipócrates. É importante referir, além disso, que Górgias acompanhava o seu irmão que era médico; de fato, o sofista compreendia o paralelismo que havia entre duas ciências, uma que se referia à alma e a outra ao corpo, isto é, reconhecia a comparação que havia entre a Medicina e a Retórica (ROMILLY, 1973, p. 162). Na tragédia Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 291-298, 2008 295 de Eurípides, há um jogo de palavras que a serva emprega quando se refere aos filtros que poderiam suavizar a paixão da rainha. A aia, com tal atitude, dispõe de um mecanismo a fim de ganhar tempo e de fazer o pedido amoroso diretamente a Hipólito, sem que Fedra descobrisse a verdadeira intenção da serva. Em compensação, a nutriz faz o oposto: os filtros que ela menciona representam as palavras com as quais tentará convencer Hipólito a amar Fedra. Além disso, a serva empregou a sua influência sobre a sua senhora, isto é, a nutriz comporta-se como mãe de Fedra. O último argumento de defesa sustentado pelo filósofo assinala que Eros foi o responsável por tudo (§ 15-19). Através dessa concepção, a mente é afetada em seu comportamento. Além disso, Górgias apresenta exemplos nos quais a visão contempla aspectos que geram temor no homem, como o deleite, no caso dos pintores que pintam o corpo com a perfeição das obras que trazem o prazer aos sentidos. Górgias introduz tais explicações antes que passe à análise do comportamento de Helena quando indaga o que há de errado quando o olhar de Helena afeiçoou-se ao corpo de Alexandre e aquele conduziu à mente a luta de Eros (§ 19). Agora no prólogo da peça de Eurípides, pronunciado por Afrodite, Fedra é mencionada como aquela que viu Hipólito e que se apaixonou por ele. Uma das explicações para essa paixão que surge através do olhar de um objeto (sem admitir Cípris como a responsável direta da paixão da rainha) é que a natureza humana, a parte instintiva, fez com que a heroína agisse dessa forma. Nesse caso, o início da paixão ocorre devido à percepção do olhar que justamente é considerado o sentido mais importante, tanto em Platão4 como também em Aristóteles5. Já nos versos 525-526, o coro declara, ao invocar Eros, que esse destila o desejo sobre os olhos; assim, mais uma vez, o texto dramático ressalta o poder desse sentido. Na verdade, podem-se apontar, aqui, diversos exemplos na cultura grega que demonstram que o olhar é perigoso: Orfeu perde Eurídice; Narciso consegue perder a si mesmo; Édipo torna-se cego para enxergar aquilo que antes não conseguia ver; Perseu defende-se da Medusa que o obriga a olhar para ela (CHAUI, 1988, pp. 31-63, p. 33). O texto de Górgias finaliza com a explicação de sua escrita, pois o discurso serviu para livrar Helena da ignomínia, tentou acabar com a injustiça, com a falta de informação e com a ignorância que imperava a respeito de Helena. Também teve como objetivo elogiar a personagem citada — ao final do texto, Górgias declara que a sua escrita provocou-lhe 4 Conforme o diálogo Fedro, 250b, de Platão, a “visão”, “o1yij”, é considerada a percepção mais aguda que há no corpo humano. 5 Ver a Metafísica, 980 a, quando Aristóteles considera a visão como o melhor dos sentidos. Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 291-298, 2008 296 divertimento. O drama de Eurípides não termina do mesmo modo, porém na sua parte final são sugeridas dúvidas sobre os atos dos personagens. Ártemis questiona, inclusive, os atos de Fedra, reforça o grande erro de Teseu, além de defender Hipólito; entretanto, institui-lhe um ritual que talvez seja um ato irônico, quando as mulheres, antes de se casarem, cortariam os cabelos por esse personagem, mas isso é estranho, tendo em vista que Hipólito fez severas críticas às mulheres no decorrer da tragédia. Uma das perguntas que deve ser realizada agora é se Fedra e Helena são realmente passivas em seus atos. Dependendo da maneira e da orientação que for adotada na interpretação, isso pode ser algo afirmativo como negativo. Fedra não teve como suprimir a sua paixão; na verdade, o texto revela que ela procurou diversos mecanismos como a razão, o silêncio e o suicídio a fim de eliminar o seu intento amoroso. Helena, de certo modo, é protegida pelos deuses, como o próprio Górgias assinala no início do seu texto, ela é filha de deuses (§ 3). É interessante também registrar que, na tragédia Orestes, do próprio Eurípides, no momento no qual Helena seria morta, essa personagem é salva por uma divindade, e essa façanha não ocorre em Hipólito. Deste modo, a esposa de Menelau pode passar praticamente dez anos ao lado de Páris e depois, sem maiores problemas, retornar à sua casa com o seu marido. De certa forma, há um impasse que deve ser resolvido. Como pode Eurípides acusar Helena, conforme ocorreu em outras peças, e não fazer o mesmo com Fedra de maneira tão evidente? Em ambos os textos aqui analisados, a situação de cada uma das personagens é distinta. Górgias protege Helena, ao passo que Eurípides deixa explícitas as tensões interiores da rainha. Além disso, a intenção de Górgias é revelada desde o início de sua obra, isto é, defender Helena; no entanto, esse propósito não é similar ao de Eurípides que procura explorar uma situação dramática e encaminhá-la até os seus últimos limites. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHAUI, Marilena. Janela da alma, espelho do mundo. In: NOVAES, Adauto. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 31-63. GAGARIN, Michael. Antiphon the Athenian: Oratory, Law and Justice in the Age of the Sophists. Austin: University of Texas Press, 2002. GÓRGIAS. Fragmentos e testemunhos. (sofista grego, século V a. C.). Trad., coment. e notas de Manuel José de Sousa Barbosa e Inês Luisa de Ornellas e Castro. Lisboa: Colibri, 1993. (Mare Nostrum). Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 291-298, 2008 297 EURÍPIDES. Children of Heracles. Hippolytus. Andromache. Hecuba. Trad. de David Kovacs. London: Harvard University Press, 1995. v. 2. KENNY, Anthony. A new History of Western Philosophy. Ancient Philosophy. v. 1. Oxford: Clarendon Press, 2004. KASTELY, James L. Pathos: Rhetoric and Emotion. In: JOST,Walter; Olmsted, Wendy (ed.). A companion to Rhetoric and Rhetorical Criticism. Malden: Blackwell, 2004. (Blackwell Companions to Literature and Culture). KOVACS, David. Shame, pleasure and honor in Phaedra's great speech (Euripides Hyppolytus 375-87). The American Journal of Philology, v. 101, p. 287-303, 1980. LATTIMORE, R. Phaedra and Hippolytus. Arion, Brookline, v. 1, p. 5-18, 1962. ROMILLY, Jacqueline de. Gorgias et le pouvoir de la poesie. The Journal of Hellenic Studies, v. 93, p. 155-162, 1973. Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 291-298, 2008 298