Helena Era a filha do meio. Tinha mais quatro irmãos, a primogênita, o único irmão e as duas mais novas. Parecia uma menina, mesmo já perto dos 40. Helena era mignon, bem pequenina. Da adolescência ao inicio da sua fase adulta gostava de sorrir, sorria muito. Contava piadas e ria muito das que contavam para ela. Helena inspirava uma felicidade que parecia jamais abandoná-la. Não foi bem assim que o destino escreveu. Ainda jovem Helena foi aprovada no concurso do Banco do Brasil. Ser bancária àquela época era ter bom emprego, tinha até certo status. Helena tinha um noivo, um geólogo. Rapaz distinto, estudioso e muito querido pela família dela. Eram muito felizes juntos e parecia que o seriam para sempre. Não foi bem assim que o destino escreveu. Geologia era uma profissão que, em meados dos anos 70, não tinha demanda no Nordeste. Por essa razão, o noivo de Helena migrou para Porto Velho, Rondônia. Era longe, muito longe. Mas estavam noivos! A Helena restou ir terminando o enxoval e aguardar o casamento. Naquele tempo, as boas coisas eram um tanto inacessíveis para uma família de classe média. Telefone era uma delas. Como não o tinham em casa, Helena e seu noivo se comunicavam por cartas ou, muito esporadicamente, ele ligava para o telefone da prima da mãe de Helena, que era sua vizinha. Num fatídico dia, a mãe de Helena precisou ligar para o noivo da filha. Era o destino começando a escrever suas linhas tortas. Do outro lado da linha telefônica atendeu a mãe do filho com a qual o noivo de Helena tivera. Eram milhares de quilômetros e uma distância infinitamente maior que a fidelidade do noivo de Helena pudesse suportar – em que pese fosse enorme seu amor por ela. A moça era uma das nativas do lugar, uma quase índia. Nem de longe tinha a alegria, a doçura e o preparo de Helena, mas esses são detalhes que não interessam aos hormônios ou ao instinto masculino. Não foi diferente com o noivo de Helena. Eram milhares de quilômetros e uma desilusão infinitamente maior que a pequena Helena pudesse suportar – em que pese fosse enorme seu amor por ele. Acabou o noivado. Acabou o sonho. Acabou o sorriso. Helena não mais contava piadas muito 1 menos sorria das que contavam para ela e foi aos poucos se transformando. Aos poucos Helena foi se fechando para a vida. Habilidosa, tinha o dom de pintar. Refugiou-se um pouco na arte da pintura, mas foi mesmo na religião que encontrou consolo para tamanha desilusão. Embora de família católica, Helena sempre tendenciou a acreditar em reencarnação. Depois da perda mãe, essa crença se tornou mais forte para ela. Foi então que se entregou de corpo e alma à Doutrina de Alan Kardec e decidiu dedicar-se intensamente a uma prática que já lhe era afim, a da caridade. Precisava encontrar no vazio da dor ou na dor do vazio uma forma de compensar a desilusão e, muito embora já fizesse algum tempo que ela ocorrera, há feridas que nunca cicatrizam. Aquele noivado interrompido, certamente, era uma delas. Foi quando Helena decidiu renunciar aos prazeres da carne. Começou pela abstinência do próprio alimento. Tornou-se vegetariana. Além disso, adotou para si hábitos que a assemelhavam a uma monja. Acordava cedo diariamente para suas orações, praticava ioga todos os dias e ia para a cama, pontualmente, às 9 horas. Tudo levava a crer que era uma receita de longevidade. E talvez o fosse mesmo, caso o destino não voltasse à cena novamente, Certa noite, sua irmã mais nova, que morava com ela, percebeu que Helena acordou no meio da noite falando coisas desconexas. Achou que era um pesadelo. Mas na noite seguinte aconteceu de novo. E na outra também. E de novo, E mais uma vez. No quinto dia, sua irmã reuniu a família. Foi quando perceberam que além de falar coisas sem sentido, Helena estava sem a coordenação motora de seu lado esquerdo, não conseguia caminhar normalmente e não tinha mais condições de dirigir. Daí pra frente, uma longa jornada. Helena perdeu a voz subitamente e gradativamente foi perdendo seus movimentos. Não respondia aos chamados e convulsionava. A família foi a São Paulo, melhor centro médico do País. Algumas suspeitas (dentre elas o Mal da Vaca Louca), todas descartadas. Nenhum diagnóstico. Helena volta para sua cidade. Já se alimentava por uma sonda nasogástrica, continuava sem sinais de consciência e com frequentes convulsões. Ao visita-la, um médico amigo da família disse que melhor seria que Helena tivesse perdido a consciência. Palavras duras, difíceis de serem entendidas naquele momento. Depois, 2 chegou-se à conclusão de que ele estava certo. Era muito sofrimento para a pequena Helena, bem como para sua família. Próximo destino: Recife. No pequeno avião, uma UTI aérea, Helena, numa maca, seu irmão, suas duas irmãs mais novas, piloto e copiloto. Uma viagem tensa, num bimotor que sacodia muito. Nenhum medo. A coragem que vinha da esperança da recuperação da pequena Helena era muito maior que qualquer outro sentimento, inclusive, o medo. Chegada ao hospital. Vinte e um longos dias de expectativa e muita frustração. A pequena Helena voltava para casa depois de quase um mês de internamento com um diagnostico de metástase, sem sequer se saber de onde tudo começou. Madrugada de 3 de novembro de 1993. Um dia após o Dia de Finados, dentro do quarto que há sete meses havia se transformado em um cômodo de hospital, na casa da sua irmã mais velha, deu seu último suspiro. Depois de tantas batalhas, a pequena Helena perdia a guerra contra o destino. A família, em frangalhos, pois ainda que ante à dor e o sofrimento, a esperança jamais os havia abandonado. A doença de Helena foi uma incógnita para a medicina, assim como o foi sua vida para os que a conheceram. Em que ponto de sua vida o destino lhe traiu? Teria sido ao término de seu noivado? Teria o destino se incomodado com a alegria esfuziante da pequena Helena? Ou será que o destino se sentiu desafiado quando Helena o chamou para uma queda de braços, ao optar pela suposta longevidade? Helena perdeu a voz em menos de um mês que começou a apresentar sintomas da intrigante enfermidade e nunca mais falou. Falou alto seu destino, que parece tê-la escolhido desde mesmo o seu nascimento. Por que Helena era tão diferente? Tão pequena, tão alegre, tão desprovida de vaidade, tão caridosa? Por que uma enfermidade tão intrigante, um mal sem diagnostico? Helena não constituiu família, não casou e teve sua vida abreviada aos 40 anos, por uma misteriosa doença não diagnosticada a tempo. De fato tem razão o filósofo. Há mais coisas entre o céu e a terra que a nossa vã filosofia é capaz de compreender. E foi assim, talvez, baseado nessa premissa, que o destino escreveu a história da pequena Helena. 3