RELATO DE VIAGEM Parque Nacional La Campana, Chile ISSN 1981-8874 9 771981 887003 00166 Marcelo A. Villegas Vallejos1,2 Embora chileno de nascimento, toda minha experiência de vida, pessoal e profissional, se passou no sul do Brasil, em Curitiba e – em menor grau – em Foz do Iguaçu. Quando ainda não me considerava um observador de aves inveterado, eu fazia viagens ocasionais ao Chile acompanhando meus pais em trâmites burocráticos diversos e raras vezes visitei lugares com o objetivo de contemplar as paisagens naturais da região, ou sua rica e interessante avifauna. Em dezembro de 2009 fui convidado por meu primo e um amigo a acampar no Parque Nacional (PN) La Campana. A ideia era passar apenas uma noite, para conhecer a paisagem da porção central do Chile, conhecida de muitas pessoas por abrigar o morro La Campana, visitado por Charles Darwin em agosto de 1834. Há alguns Figura 1. Situação geográfica do PN La Campana, inserido na V Região (em vermelho) no Chile Central. meses, acompanhando o interesse de observadores de aves pela América do Sul, recordei-me daqueles momentos e, sendo uma experiência tão peculiar do ponto de vista ornitológico, decidi descrevê-la para divulgar esse local, especialmente aos entusiastas por aves que, como eu, não perdem uma chance de passarinhar. Cabe aqui alguns esclarecimentos sobre a geografia de meu país de origem. É de conhecimento geral que a Cordilheira dos Andes percorre todo o Chile, limitando-o a leste da vizinha Argentina. Sobre essa linha de montanhas sei que nem preciso me referir, de tantas informações que o leitor pode encontrar em buscas das mais simples. O que poucos sabem é que o Chile conta também com uma segunda cadeia montanhosa, que percorre o País paralelamente aos Andes. Ela é chamada de Cordilheira da Figura 2. O PN La Campana quando visto de cima, mostra duas áreas bem nitidamente distintas, separadas pela cadeia de montanhas. Um bosque úmido (direita), na face sul, pode ser reconhecido pela Costa e aparece no norte do Chile (na região de Arica), se estendendo até o sul, coloração esverdeada; essa aparência contrasta com a cor acinzentada do “matorral” esclerofilo (esquerda). onde se encontra com o Oceano Pacífico. Sua origem geológica é cos redutos da vegetação seca típica da região. Ali são encontramais antiga que os Andes e, assim, tem altitudes muito mais modedas formações vegetacionais bem características e contrastantes radas. É essa cordilheira que, na região central do Chile, separa para um observador de aves brasileiro (Figura 2). Uma delas é o sua capital Santiago da região costeira de Valparaíso. E é justalocalmente chamado “matorral” esclerofilo, tipo de mata seca mente em sua face leste que se encontra o Parque Nacional La bastante densa com domínio de arbustos e entremeada por árvoCampana, já no município de Valparaíso. res isoladas ou agrupamentos da palmeira-do-chile (Jubaea chiLocalizado na zona central do Chile (Figura 1) e a pouco mais lensis). Essa paisagem contrasta fortemente com as matas hidróde 100 km da capital, essa unidade de conservação é um dos únifilas e esclerofilas nas encostas úmidas da face sul as quais, deviAtualidades Ornitológicas On-line Nº 166 - Março/Abril 2012 - www.ao.com.br 33 Figura 3. As trilhas no interior do PN La Campana recebem manutenção frequente e são ricamente sinalizadas (Foto: Marcelo A. Villegas V.). do às maiores condições de umidade chegam a se parecer com algumas matas alteradas de Curitiba, até mesmo como certas áreas do Parque Barigui. O parque, criado em 1967, conta com uma área de cerca de 8000 hectares, tem três acessos (um pelo norte e dois pelo sul) e é possível acampar em seu interior mediante pagamento de uma taxa (cerca de 12 dólares), além da taxa de entrada (3 dólares). A estrutura de trilhas é muito boa e a sua manutenção é constante (Figura 3). Por elas é possível atingir diversos pontos do Parque, cujos caminhos levam a paisagens áridas e, por sua peculiaridade, verdadeiramente fascinantes. Visitei essa localidade em 29 de dezembro de 2009, quando adentrei pela porção sul, no setor Granizo, e percorri parte do parque em direção ao setor Ocoa, ponto inserido no coração do matorral esclerofilo, tipo vegetacional tão peculiar. Ali os maiores atrativos ornitológicos são, tradicionalmente, as espécies endêmicas locais que podem ser encontradas com relativa facilidade. Essas aves, ilustradas pela turca (Pteroptochos megapodius), o tapaculo (Scelorchilus albicollis) e o canastero (Pseudasthenes modesta), podem ser encontradas nessa região. A visita rendeu cerca de 20 registros, uma riqueza bastante pequena se comparada com passeios em outros lugares onde estou habituado como a Serra do Mar. No entanto, o que me trouxe grande interesse foram justamente os endemismos locais. Já no caminho para o parque flagrei algumas aves interessantes e bastante comuns na região, como o zorzal (Turdus falcklandii), grupos de tordos (Curaeus curaeus) ao longo das estradas, e os primeiros endemismos: a tenca (Mimus thenca) e alguns indivíduos da loica (Sturnella loyca; Figura 4)! Logo na entrada do parque Figura 4. As primeiras aves a serem avistadas são usualmente as mais comuns, mas não necessariamente as menos interessantes. Acima dois endemismos: a tenca (Mimus thenca) e a loica (Sturnella loyca). Abaixo a pomba-araucana (Patagioenas araucana) e o “carpinterito” (Veniliornis lignarius) (Fotos: Fábio Olmos). 34 Atualidades Ornitológicas On-line Nº 166 - Março/Abril 2012 - www.ao.com.br Figura 5. Detalhe da cor avermelhada das costas do “aguilucho” (Geranoaetus polyosoma), de outra forma virtualmente idêntico a seu primo, o gavião-de-cauda-branca (G. albicaudatus) (Foto: Fábio Olmos). fomos bem recebidos e devidamente informados pelos guardaparques sobre locais de acampamento, mapas com as trilhas, onde há guaritas, banheiros etc. Iniciamos a subida pelo setor Granizo, portanto na face sul e pela vertente mais úmida e florestada. Ali é comum ouvir ao longo do caminho diversas aves, sendo o fio-fio (Elaenia chilensis) uma das mais frequentes. Como todo representante do gênero, é muito difícil visualizá-la sem auxílio de chama eletrônica, mas como é uma espécie bastante comum, mesmo em parques de Santiago, não me esforcei demais para avistá-la. Também figurou a pomba-araucana (Patagioenas araucana; Figura 4), semelhante à minha velha conhecida pomba-amargosa (P. cayennensis) e, em altitude maior e fora das florestas, um avistamento custoso de um “carpinterito”, ou picapauzinho (Veniliornis lignarius; Figura 4). Esse pica-pau é bastante “sem sal” se comparado a seus parentes brasileiros, afinal, é simplesmente cinza! Um fato interessante desse grupo de pica-paus é que a cor de suas plumagens varia geograficamente de acordo com a vegetação predominante, ou seja, os que vivem em áreas florestadas são oliva e aqueles que ocupam regiões áridas são acinzentados. Dentre aquelas aves que costumam passar por sobre nossas cabeças registrei o urubu-de-cabeça-vermelha (Cathartes aura), o chimango, localmente “tiuque” (Milvago chimango), e o “aguilucho” (Geranoaetus polyosoma; Figura 5), que forrageava planando contra o vento, imóvel e sem bater as asas, de forma semelhante a seu congênere gavião-de-cauda-branca (G. albicaudatus) e algumas outras espécies do gênero Buteo. Essas aves ocorrem também no Brasil, mas apenas ali podem ser observadas associadas a esse tipo especial de paisagem, o que confere um sabor todo especial ao momento da observação. Depois de uma boa caminhada morro acima, se chega a uma zona de transição entre as vertentes úmida e seca, onde vi diversos objetivos ornitológicos pessoais (Figura 6): o carpintero (Colaptes pitius), habitante comum mesmo em áreas agrícolas; o “tijeral” (Leptasthenura aegithaloides) típico representante do gênero, do qual sou bem familiarizado ao nosso grimpeiro (L. setaria); e um dos mais interessantes para mim, o “cachudito” (Anairetes parulus), simpático tiranídeo de pequeno porte que, pelo comportamento, me lembrou um alegrinho (Serpophaga subcristata). Aqui também o observador já tem contato com os endemismos mais interessantes, alguns rinocriptídeos muito vocais e muito tímidos, de difícil visualização. A voz da turca (Pteroptochos megapodius) é ouvida de longe – que curiosamente me remeteu à voz de Nyctibius griseus – assim como do “churrín” (Scytalopus fuscus), aquela característica voz repetitiva. Usualmente, e para desespero do observador mais ansioso, esses primeiros contatos vêm de muito longe e o uso do playback é virtualmente inútil… Atualidades Ornitológicas On-line Nº 166 - Março/Abril 2012 - www.ao.com.br Figura 6. Mais três peculiares aves locais: o “cachudito” (Anairetes parulus), o “tijeral” (Leptasthenura aegithaloides) e o “carpintero” (Colaptes pitius). (Fotos: Gonzalo Gonzalez C., Juan José Soto Sanhueza e Fábio Olmos). Quando se chega finalmente ao Portezuelo Ocoa, e finalmente pode-se vislumbrar a paisagem do “matorral” (de um local muitíssimo privilegiado, diga-se de passagem), é possível perceber a grande representatividade e imponência dos agrupamentos da palmeira-chilena (Jubaea chilensis), que salpicam a paisagem seca até onde a vista pode alcançar (Figura 7). A descida não guardou muitas surpresas, provavelmente pelo intenso calor e sol constante! Aliás, o clima local é bastante agressivo com seus moradores. A aridez é constante ao longo do ano, e o clima varia entre verões (bem) secos e (muito) quentes e invernos chuvosos e muito frios. A concepção de “chuvoso”, no entanto, deve ser contextualizada. A precipitação anual na região de La Campana varia entre 400 35 Figura 7. O Portezuelo Ocoa se localiza na crista que dá acesso ao monte El Guanaco e permite uma excelente vista da paisagem de ambas as faces. Acima e à direita uma vista da paisagem com destaque para a distribuição da palmeira-do-chile em meio à vegetação arbustiva. Abaixo, dois típicos e endêmicos representantes da flora local, a palmeira-do-chile (Jubaea chilensis) e o quisco (Echinopsis chiloensis). mm – a barlavento, portanto na face sul - e 300 mm a sotavento, na região mais árida da face norte. É válida uma comparação destes valores, pois são menores que aqueles registrados no semi-árido brasileiro, no nordeste do país, cuja precipitação anual varia entre 300 e 800 mm! A umidade relativa do ar, em média, varia entre 75% e 70%, respectivamente nos setores mais úmidos e secos do parque. Garrafas de água são fundamentais, especialmente considerando que ao longo de todo o trajeto não encontramos sequer uma fonte de água. No local que escolhemos para acampar ainda consegui observar brevemente a codorna-da-califórnia (Callipepla californica; Figura 8), ave exótica introduzida no Chile em 1870, aclimatan36 do-se rapidamente e que hoje conta com populações distribuídas por boa parte do país. Ao entardecer ainda tive a oportunidade de chamar e vislumbrar o canastero (Pseudoasthenes modesta; Figura 9), este sim um dos endemismos restritos à vegetação seca dessa porção do Chile. Estas aves têm comportamento bem interessante. Assim como muitos furnarídeos, fazem seus ninhos em locais facilmente avistados: grandes estruturas feitas de ramos secos. Tal como acontece entre nossos Phacellodomus, uma das melhores maneiras de avistá-los é encontrar os ninhos, pois sempre ficam nas imediações. Também como muitos parentes da família, são bastante agressivos e, portanto, respondem bem ao playback, ficando bem agitados ao redor do observador. Atualidades Ornitológicas On-line Nº 166 - Março/Abril 2012 - www.ao.com.br Figura 8. A codorna-da-califórnia (Callipepla californica) é uma espécie exótica no Chile, ou seja, não é nativa do país. Adaptou-se muito bem ao clima e vegetação locais e hoje pode ser encontrada em quase todo o Chile em ambientes nativos (Foto: Juan José Soto Sanhueza). Figura 9. Uma das aves mais interessantes e atrativas do PN La Campana, o canastero (Pseudoasthenes modesta) é facilmente atraído com auxílio de chama eletrônica (playback) (Foto: Fábio Olmos). Passei somente uma noite em La Campana e na manhã seguinte tive o privilégio de ouvir todas as espécies de maior interesse nas proximidades do local de acampamento. As vozes da turca (Pteroptochos megapodius; Figura 11) e do churrín (Scytalopus fuscus), desta vez fortes e abundantes, dominaram o cenário acústico no amanhecer, deixando breves janelas para se ouvir o canto do tapaculo (Scelorchilus albicollis; Figura 10), pássaro enigmático que é consideravelmente raro em outras localidades, mas que ali tem população aparentemente saudável, como testemunhei e pela sinfonia de vozes que ouvi nessa manhã. Com auxílio de playback pude contemplar todos eles, embora apenas brevemente, pois são todas aves muito tímidas. Além disso, como tínhamos pla- nejado um passeio curto, já não tínhamos mais água para suportar um retorno em pleno sol. Fomos obrigados a iniciar a volta ainda de manhã! O caminho de volta se passou sem grandes surpresas, mas pude avistar novamente grande parte das aves que vi no dia anterior. Essas oportunidades são ótimas, pois pode-se reparar em outros aspectos do comportamento ou da plumagem que em um primeiro momento não se presta atenção. Como é comum quando se está passarinhando, uma diuca (Diuca diuca; Figura 12) resolveu nos surpreender nos últimos momentos da passagem por essas terras tão secas, deixando claro que uma única visita, e tão curta, não é suficiente para o observador aproveitar a avifauna local. Lenta- Figura 10. O tapaculo Scelorchilus albicollis é bastante tímido e um dos endemismos mais desafiadores do PN La Campana (Foto: Gonzalo Gonzalez C.). Atualidades Ornitológicas On-line Nº 166 - Março/Abril 2012 - www.ao.com.br 37 Figura 11. Outro representante da família, a turca (Pteroptochus megapodius; esquerda) é facilmente ouvida no PN La Campana (Foto: Fábio Olmos). À direita o local de acampamento, de onde se podem registrar vários dos endemismos locais e muitas aves que habitam essa vegetação. mente deixamos a paisagem árida para trás, substituindo os cantos ásperos típicos da sequidão da face norte, pelas vozes melodiosas e menos sujeitas às rudezas da vertente mais úmida do parque. Destaco que esta viagem não foi especificamente para passarinhar. Estava acompanhado de meu primo e um amigo, ambos não aficionados por aves como eu, e por isso todo o trajeto foi menos privilegiado por buscas pelos emplumados do que seria se fosse um grupo exclusivamente ornitófilo. Lembro também, ao leitor, que o parque está muito próximo a centros urbanos, e há uma entrada diretamente pela face norte, aonde se chega diretamente à vegetação seca (Sector Ocoa). Sem sombra de dúvidas, o cenário pitoresco e a sensação de grandiosidade da região fazem valer qualquer incursão ao PN La Campana (Figura 13). Figura 12. Ilustre residente local, a diuca (Diuca diuca) nos presenteou com uma ultima aparição antes de partirmos de La Campana (Foto: Gonzalo Gonzalez C.). Agradecimentos Fábio Olmos, Gonzalo Gonzalez C. e Juan José Soto Sanhueza gentilmente cederam grande parte das imagens que ilustram o texto. Agradeço também aos amigos Rodrigo Alarcón Vasquez e Larry J. Gonzalez pela companhia na excursão. Links interessantes http://www.geo.puc.cl/pdf/ moreira/actualizacion_2012/ LaCampanapag1_26.pdf 1 Figura 13. Uma bela imagem que o visitante tem no PN La Campana: a vista privilegiada do Cerro La Campana, local explorado entusiasticamente por Charles Darwin em 1834 (Foto: Marcelo A. Villegas V.). 38 http://www. redobservadores.cl/ category/chiricoca/ Equipe Atualidades Ornitológicas. E-mail: [email protected] 2 Hori Consultoria Ambiental Atualidades Ornitológicas On-line Nº 166 - Março/Abril 2012 - www.ao.com.br