Histeria e Corporalidade: O Corpo histérico através dos tempos Este trabalho tem por intuito verificar quais as transformações sofridas pelos sintomas histéricos ao longo dos anos. Esta indagação se deve ao fato de ser possível observar que os grandes sintomas de paralisias, anestesias, desmaios, contraturas e outros que acompanhavam as histéricas de Freud, muitas vezes já não aparecem mais desta maneira, enquanto novas manifestações sintomáticas que podem ser consideradas histéricas tem ocupado o cenário atual. Nos “Estudos sobre a Histeria” os autores Breuer e Freud observaram diversos casos de sujeitos hipoteticamente histéricos e notaram que nem sempre o paciente em questão conseguia se lembrar do momento em que o sintoma foi desencadeado, assim constataram a importância da hipnose, utilizada com a finalidade de trazer a tona as recordações ligadas a manifestação sintomática. No tratamento com suas pacientes histéricas, Freud notou que algumas delas não podiam ser hipnotizadas, foi então que substituiu o método da hipnose pelo da associação livre, que consistia em fazer com que a paciente dissesse tudo o que lhe viesse a cabeça, em estado de intenso relaxamento, com a finalidade de chegar ao ponto traumático situado a nível inconsciente. ( BREUER; FREUD,1969) Com a implantação deste novo método foi percebido que os sintomas apresentados na histeria tomam forma e conteúdo de acordo com o fator desencadeante, isto é, com as lembranças iniciais relacionadas ao trauma. Para Freud o sintoma seria uma conseqüência do processo de recalque, Isto é, quando alguma satisfação instintual não conseguiu emergir do estado inconsciente, sendo colocado em seu lugar um substituto que seria o sintoma propriamente dito. Quando a criança é assolada por algo que é da ordem do encontro com o conteúdo sexual, esta não encontra significação suficiente para o ocorrido, transportando tal representação para um nível inconsciente, bem como a investindo de um afeto extremo e com isto situando neste ponto a fonte do sintoma histérico. A Histeria seria provocada pela inabilidade com que o ego pretende neutralizar o trauma sexual que para ele foi intolerável, passando assim a isolar esta representação sexual de todas as outras representações, fazendo isto de modo exaustivo, o que acabaria por torná-la cada vez mais insuportável para o aparelho psíquico. (NASIO,1991) A partir daí ocorre a conversão, que seria a passagem da libido de um estado primário para um estado secundário, isto é, deixaria de ser a sobrecarga de uma representação intolerável a nível inconsciente para constituir-se em sofrimento corporal. De acordo com sua primeira teoria acerca da conversão, Freud propunha que o sintoma era decorrente de um trauma real e datável que assolava o sujeito, no entanto, acabou percebendo que na maioria das vezes o que ocorria era uma fantasia de sedução e não o fato em si. Isto o fez constatar que as fantasias infantis equivaleriam a traumas e que tais fantasias se situariam na origem da histeria.Deste processo resultaria um duplo efeito clínico: uma excitação que envolveria o corpo de maneira global e ao mesmo tempo uma inibição da região genital. Para Lacan o sintoma não é definido senão pelo modo como cada um goza de seu inconsciente, na medida em que o inconsciente determina; nesta concepção o sujeito é patológico por definição e obedece, na neurose, a lógica dos significantes. O real se articula com o sintoma de modo que o sintoma se produz no campo do real. Freud defendia a idéia de que o acomodamento do ser humano a civilização exige renúncia a um gozo, pois é necessário que o indivíduo se adapte a realidade externa; para Lacan este acomodamento é impedido pela ação do real. A psicanálise postula que um dos efeitos da linguagem é o de separar sujeito e corpo; do ponto de vista do inconsciente é preciso constituir-se um corpo, pois não se nasce com ele, ou seja, o corpo só se constrói a posterióri no psiquismo e é efeito da palavra. Porém nem tudo pode ser representado pela linguagem que constitui o campo do simbólico, de modo que na histeria, sobretudo, a história do sujeito é escrita nos sintomas corporais que muitas vezes tem por finalidade fazer borda e constituir este corpo que por algum motivo não pôde ser mapeado a nível inconsciente. O corpo, para advir necessita de um trabalho psíquico que o sujeito empreende no campo dos três registros: imaginário, real e simbólico. A partir da imagem o homem se vê enquanto corpo, o que ocorre no momento em que o Outro lhe aponta este corpo no estádio do espelho; no campo do imaginário o sujeito e seu corpo estarão para sempre parcialmente alienados ao Outro. No campo do real trata-se do gozo que vem dizer de algo da ordem do impossível, remetendo á pulsão, ao gozo do Outro que é gozo do corpo e portanto não-todo, estando fora do registro da linguagem; neste campo o corpo goza na superfície e nas bordas das chamadas zonas erógenas. No simbólico que traz em seu cerne a linguagem podemos encontrar uma via possível de esvaziamento do gozo acumulado no corpo, fonte do sintoma conversivo. Na obra “Corpo e Escrita”: Relações entre memória e transmissão da Experiência, Ana Costa aponta, de modo muito interessante, que o corpo não apresenta apoio na forma como o percebemos, ele tem apoio nas bordas. Nas bordas se produziriam toda e qualquer troca com o Outro,afinal, quando faltam as palavras ou estas apontam para o furo significante, restam-nos as bordas orificiais do corpo a nos falar com sua linguagem própria...a ruborização pode ser um belo exemplo disso. Na histeria é verificado que o sujeito, por prevalência, apresenta uma questão muito evidenciada com a corporalidade devido ao fato de fazer de seu corpo um palco para representar e en- cenar a Outra cena, que é recalcada e tem relação com conteúdo de ordem sexual, buscando, com isto responder a si mesmo a seguinte questão: “Sou homem ou sou Mulher?” Levantamos a hipótese de que existam algumas diferenças sintomatológicas entre a histeria de um século atrás e a histeria de hoje em função dos discursos vigentes a cada época. No século passado a religião ocupava o lugar do discurso do mestre, se valendo de recursos como culpa e punição para regular a vida dos sujeitos de sua época; literalmente a religião queria tapar todos os orifícios corporais do sujeito, impedindo que este falasse, ouvisse, sentisse, penetrasse ou fosse penetrado...enfim, se valesse das bordas e furos de seu corpo da maneira como bem lhe aprouvesse. A histérica, por sua vez, desbancava o mestre e seu discurso apontando que ninguém pode fazer calar o desejo e que este fala não só a partir das construções significantes, mas acima de tudo através da linguagem muda e ao mesmo tempo eloqüente de um corpo que é palavra, palavra viva de conteúdo sexual; assim, apresentavam sintomas conversivos impactantes como, por exemplo, o arco histérico (tão minuciosamente descrito por Charcot), bem como as freqüentes paralisias parciais e totais que deixavam tais sujeitos imobilizados, além de muitas outras manifestações igualmente graves. Com isto, estas mulheres escreviam nas bordas de seu corpo a impossibilidade da relação sexual ao mesmo tempo em que denunciavam o discurso vigente (do mestre) como o responsável por este impossível. Na atualidade, o discurso do mestre é representado pela ciência, que , ao contrário da religião, desresponsabiliza o sujeito de tudo o que se passa com ele, indicando fatores externos que possam ser medidos e comprovados cientificamente como os únicos responsáveis por tudo o que se refere ao sujeito. No discurso do “mestre ciência” o corpo é virado do avesso e a proposta é que todos os orifícios e bordas sejam investigados e manipulados, a fim de descobrir de que sofre este corpo. No entanto, o corpo/objeto que a ciência manipula é um corpo morto, um corpo que já se calou há muito tempo porque o sujeito que habita nele foi eliminado, afinal, em tempos de discurso da ciência não há mais espaço para a subjetividade e por isso todos os corpos, orifícios e bordas são vistos como iguais... uma massa homogeneizada que se enquadra em uma categoria nosológica de DSM e por isso está apta a ser medicalizada. É claro que diante disso, o sujeito histérico, que sempre reivindica um saber a mais a respeito de si, seu corpo, seu gozo e sua sexualidade, foi extinto destes pretensos manuais. O presente discurso do mestre elimina aqueles que não estão dispostos a se “enquadrar”, e neste sentido parece ter havido poucas mudanças com relação ao antigo discurso que ocupava esta posição, a saber, a religião. Deste modo percebemos que tanto a religião quanto a ciência oferecem a mesma proposta: Barrar o sujeito do inconsciente. Tais mudanças referentes a articulação do discurso do mestre podem ter acarretado alterações significativas nos sintomas histéricos, afinal hoje estes sujeitos não entregam mais seus corpos como enigma para a religião, e sim para o “Deus ciência”, e isto faz toda a diferença. Cefaléias e vertigens que constituem queixas tão usuais na atualidade, muitas vezes são “adotadas” pelo sujeito histérico que relata de forma imprecisa e indefinida seu sofrimento ao médico, fazendo com que este acabe por não considerar suas dores como autênticas devido a sua falta de objetividade. Ele não pode compreender, em seu pensamento tecnicista, que estas queixas são a expressão daquilo que a histérica tenta dizer através de seu corpo. (ISRAEL, 1995) Uma das queixas mais constantes da histérica de hoje, seria a chamada tensão prémenstrual, que muitas vezes não apresenta nenhuma justificativa a nível de organismo biológico, no entanto apresenta todas as justificativas no que se refere ao inconsciente feminino; ela se utiliza de algo que é comum somente as mulheres e faz da TPM uma bandeira de martírio e incompreensão, assim tais mulheres entendem estar fazendo jus ao mistério da feminilidade. A LER- Lesão do Esforço Repetitivo também pode ser considerada uma manifestação dos novos sintomas histéricos, pois na maioria das vezes não se constata nada orgânico que fundamente tais manifestações, e isto pode ser um forte indício de conversão. Nesta mesma linha temos também a fibromialgia caracterizada por persistentes dores generalizadas no corpo que não podem ser evidenciadas por exame algum... as dores estão ali no gozo mortífero carregado por estes corpos que têm algo a dizer...algo da ordem do sexual, que, sendo dito possa dar sentido ao que é sentido e com isto esvaziar isso que trans-borda. Não se pode deixar de citar a anorexia e a bulimia, como as mais importantes manifestações de sintomatologia histérica atual (lembrando que tais sintomas não se restringem exclusivamente a histeria). Nestes dois casos verifica-se uma disputa do orgânico e do sexual por um órgão, mostrando que o sujeito histérico sabe como fazer predominar o desejo sobre a necessidade, o apetite sobre a satisfação alimentar; apontando sempre que o preenchimento da função oral pelo alimento deixa algo a desejar. (ISRAEL, 1995) Todo este percurso nos leva a constatar que o corpo histérico, ao longo da história, Já foi visto sob os mais variados ângulos e se deu a ver sob as mais diferentes formas, porém sempre se “mostrando” de acordo com o olhar de onde se percebia olhado. Se, em tempos remotos, o discurso do mestre indicava um olhar atento a corpos que se contorciam e que revelavam a cena sexual impossível de ser dita... Lá estava o corpo histérico pronto para re-velar o que este mesmo discurso (religioso) se propunha a manter velado. Se, em tempos atuais, o discurso vigente (ciência) sugere um interesse por corpos enigmáticos, esquálidos, doloridos, com a finalidade de poder medicá-los e assim fazer girar a grande engrenagem capitalista... O corpo histérico se oferece a esta proposta e traz a cena novos sintomas que colocam suas bordas corporais em evidência e seu enigma em discussão... Porém, há algo que mesmo com o passar do tempo e com todas as mudanças discursivas que isto acarreta, a histérica nunca deixou de gritar: “ Nós podemos ser um corpo, mas um corpo dificilmente é tudo o que somos”. (APPIGNANESI, 2008) REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS: ANDRÉ, Serge. O que quer uma mulher?. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1997. APPIGNANESI, Lisa. Tristes, loucas e más: A história das mulheres e seus médicos desde 1800. Rio de Janeiro: Ed. Recorde LTDA, 2008. COSTA, Ana. Corpo e Escrita: Relações entre memória e transmissão da Experiência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. FREUD, Sigmund. Fragmentos da análise de um caso de histeria. Rio de Janeiro: Imago,1997. _______________.Estudos sobre a histeria: Publicações pré analíticas e esboços inéditos.Rio de Janeiro: Imago,1969. ISRAEL, Lucien. A histérica, o sexo e o médico. São Paulo: Escuta 1995. LACAN, Jackes. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1998. ____________.Seminário livro 5: As formações do Inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. _____________.Seminário livro 20: Mais, Ainda.Rio de Janeiro: Zahar, 3 ed. 2008. NASIO, JD. A Histeria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1991. QUINET, Antonio. A descoberta do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2000. SOLER, Colete. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005 ROUDINESCO, Elizabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1998. [email protected] Nome: Janaina Bianchi de Mattos Endereço: Rua Paulo César 87/89 Edifício Vivenda de Icaraí. Bairro: Jardim Santa Rosa Niterói- RJ CEP-24240000 Aluna do Programa de Pós Graduação em psicanálise- PGPSA da Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ em nível de mestrado Bolsista pela CAPES- Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Psicóloga, graduada pela Universidade da Grande Dourados-UNIGRAN e Pós Graduada e Psicoterapia de Orientação Analítica pela Universidade para Desenvolvimento do Estado do Pantanal-UNIDERP [email protected] Nome: Ana Maria Medeiros da Costa Endereço:Rua Eduardo Guinle,60,apt 302,CEP-22260-090 Botafogo Rio de Janeiro-RJ Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ, ligada ao PPG em Psicanálise onde ministra disciplinas e orienta mestrado e doutorado. Psicanalista e diretora executiva do Instituto APPOA- Associação Psicanalítica de Porto Alegre.Coordena junto com Dóris Rinaldi a rede de pesquisa interuniversitária Escritas da experiência (CNPQ)