Diálogo de Surdos João Saboia1 O salário mínimo brasileiro é reconhecidamente baixo. Comparações feitas pelo DIEESE com outros países latino americanos deixa o Brasil numa situação bastante desfavorável em termos do poder aquisitivo do SM. Tal situação é ainda mais grave tendo em vista o nível de desenvolvimento econômico alcançado pelo país. A recuperação do valor real do SM, entretanto, não é uma questão simples. Há um reconhecimento geral de que o SM poderia e deveria ser mais alto. Ocorre entretanto que, por ter se transformado no piso das aposentadorias e benefícios sociais, qualquer elevação do SM representa aumento das despesas públicas. Segundo documento da CUT, cada real a mais no SM representa um aumento de gastos de R$ 181 milhões no orçamento federal2. Isto para não mencionar a elevação dos gastos ao nível estadual e municipal. Este é o ponto central que deveria ser enfrentado na discussão sobre os efeitos de um aumento do SM na economia. Outros argumentos como seus efeitos sobre a inflação, sobre o desemprego, sobre a informalidade etc são secundários na atual discussão. Insistir na elevação do SM sem enfrentar a questão acima representa um total desencontro entre seus proponentes e as autoridades governamentais. Enquanto os primeiros argumentarão que o valor do SM é muito baixo, os segundos responderão que não há recursos suficientes para aumentá-lo. Podese argumentar que o COFINS deveria estar sendo utilizado para financiar a seguridade em vez de contribuir para o aumento do superávit primário. Para isso, entretanto, seria necessária uma revisão completa da atual política econômica do governo Lula, o que dificilmente ocorrerá. Portanto, uma visão pragmática deve enfrentar a discussão sobre o aumento que o salário mínimo teria sobre os gastos sociais e como financiar tais gastos. A título de ilustração apresentamos o que seria o valor real do SM ao longo de um período de dez anos se fosse reajustado anualmente de quatro formas distintas: a) pela inflação; 1 João Saboia é diretor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ver As Propostas da CUT para uma Política de Recuperação do Salário Mínimo, mimeo, São Paulo, março de 2004. 2 b) com aumento real de 2% ao ano; c) com aumento real de 5% ao ano; d) com aumento real de 10% ao ano. Para efeito dos cálculos abaixo, considera-se que seu valor inicial seja 100. Ano 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Inflação 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 2% a.a. 102 104 106 108 110 113 115 117 119 122 5% a.a. 105 110 116 122 128 134 141 148 155 163 10% a.a 110 121 133 146 161 177 195 214 236 259 Conforme pode ser visto, um aumento pequeno de 2% ao ano no SM representaria um crescimento de apenas 22% em dez anos. Um aumento mais forte de 5% ao ano elevaria seu valor em 63% ao final de dez anos. Caso o aumento real fosse de 10% ao ano, o crescimento do salário mínimo poderia atingir 159% no mesmo período. Os efeitos sobre o orçamento federal de tais aumentos no décimo ano seriam, respectivamente, R$ 10 bi, R$ 30 bi e R$ 75 bi. Enquanto no primeiro caso seria relativamente fácil argumentar que as contas públicas poderiam absorver com facilidade o aumento das despesas decorrentes da elevação do SM, no segundo caso o crescimento das despesas públicas poderia ser considerado elevado, a menos que a economia crescesse bastante aumentando a arrecadação federal. O terceiro caso nos parece bem mais difícil de ser implementado, mesmo com forte crescimento econômico. A pré-condição necessária para um aumento sustentado do SM é o crescimento econômico. Desta forma, haveria aumento das receitas públicas, permitindo o financiamento do aumento dos gastos sociais decorrentes da elevação do SM. Quanto maior o crescimento econômico, maior poderá ser o aumento do SM. A proposta mais conservadora poderia ser o SM acompanhar o crescimento do PIB per capita. O argumento, neste caso, seria que, como o PIB per capita é a medida mais geral de produtividade do país, seu repasse ao SM significaria manter relativamente estável a distribuição de renda sem qualquer pressão inflacionária. Isto nos parece muito pouco, inclusive pelo reconhecimento unânime de que a distribuição de renda no país é extremamente desigual devendo ser melhorada. Uma segunda proposta poderia ser o repasse integral do aumento do PIB ao SM. Neste caso, os trabalhadores remunerados pelo SM estariam aumentando a cada ano sua participação no PIB pois sua renda estaria crescendo mais que o aumento da produtividade (medido pelo PIB per capita). Como a receita de impostos cresce no mesmo ritmo que o PIB3 o governo não teria, em princípio, dificuldades para pagar aos aposentados, pensionistas e beneficiários de programas de assistência social o piso de 1 SM, desde que o número de beneficiários permanecesse relativamente estável. O mais provável, entretanto, é o crescimento do número de beneficiários, o que requereria transferências orçamentárias. Qualquer aumento do SM superior ao crescimento do PIB teria repercussões sobre o peso dos gastos sociais nas despesas governamentais, na medida em que uma maior parcela do orçamento teria que ser repassada para sustentar o novo piso da seguridade social. Neste caso, a própria composição do orçamento federal e do nível do superávit primário teriam que ser discutidos. A utilização do COFINS estaria no centro das discussões. Deve-se notar que quanto mais intensa for a política de elevação do SM real, mais difícil ficaria a manutenção de seu valor como piso para os benefícios da seguridade social. Apesar do conteúdo simbólico de sua manutenção, seria desejável que a própria questão do piso assistencial e previdenciário fosse discutida. Seria aceitável desvincular tal piso do valor do SM se houver uma regra que garanta a evolução sustentada do nível do piso? Digamos que o piso dos benefício parta do valor atual do SM e seja reajustado a cada ano segundo a inflação mais a evolução do PIB per capita? É pouco? E se crescer em termos reais segundo a taxa de crescimento do PIB? Conforme mencionado acima, esta última regra seria compatível com a manutenção da parcela dos gastos sociais no orçamento federal se não houver aumento do número de beneficiários. Utilizando nosso exemplo numérico, se a economia crescer 5% 3 Nos últimos anos, os impostos têm crescido mais que o PIB. Supõe-se, entretanto, que a carga tributária permaneça constante em relação ao PIB no futuro. ao ano, no final de dez anos o piso dos benefícios teria crescido 63% em termos reais se tal regra fosse aplicada. É verdade que há sempre o risco de que a economia cresça menos, reduzindo o ganho real do piso. Se o crescimento do PIB não passar de 2% ao ano, o aumento real do piso não passaria de 22% ao final de dez anos. O que deseja a sociedade brasileira? Reajustes menores do SM e sua manutenção como piso dos benefícios da seguridade social? Ou reajustes mais fortes junto com regras claras de proteção do valor do piso dos benefícios sociais? No primeiro caso, dificilmente o SM poderá ser reajustado muito acima da evolução do PIB. No segundo, não haveria qualquer limite a priori. É preciso que haja coragem para se enfrentar tal tipo de discussão. Caso contrário, o debate sobre o crescimento do SM no país continuará um diálogo de surdos sem solução à vista.