Psicanálise e anorexia: o que a psicose tem a nos dizer sobre isso? Fragmentos de um caso clínico Introdução Este trabalho é fruto de discussões clínicas realizadas em supervisão no projeto de pesquisa “Circulando e traçando laços e parcerias: atendimento para jovens autistas e psicóticos - do circuito pulsional ao laço social” coordenado pela Professora Dra. Ana Beatriz Freire. Esta pesquisa está situada junto ao Programa de Pós Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da UFRJ e está subsidiada pelo CNPQ e pela FAPERJ. O principal objetivo do Projeto é a inclusão de adolescentes com grave sofrimento psíquico e a possibilidade de um laço social. Integram esta equipe estagiários do curso de psicologia, alunos do curso de pós graduação em Teoria Psicanalítica e analistas supervisoras. Nesta pesquisa ainda, realizamos atendimentos em oficinas - individuais ou em grupo -, acompanhamento terapêutico e atendimentos individuais que podem ocorrer tanto no Departamento de Psicologia Aplicada da UFRJ, no set psicanalítico tradicional, quanto em espaços abertos da cidade tais como o campus universitário, shoppings, museus; dependendo da demanda de cada paciente e da condução clínica para cada caso. O escrito que se segue refere-se ao atendimento clínico realizado por Paula Rubea Vieira, estagiária da referida equipe, no atendimento individual de Ester, de 17 anos, jovem esta que havia sofrido um episódio grave de anorexia no início de sua adolescência, com uma recusa radical a alimentação. O caso Ester O atendimento de Ester inicia-se em Dezembro de 2011, por intermédio de sua mãe, que buscou diretamente a coordenadora de nossa pesquisa através da internet. Depois de uma série de trocas de emails a mãe de Ester pôde ser ouvida por Paula e enuncia uma demanda bem clara para a equipe: uma possibilidade de um tratamento por meio de oficinas que permitissem “uma socialização melhor de Ester que hoje possui apenas 2 amigos”. A mãe de Ester - que chamaremos de Patrícia - nas primeiras entrevistas com Paula, narra que o nascimento de sua filha ocorreu em um período “conturbado” na vida do casal. Ela engravida durante o período de internação, devido a um acidente automobilístico, de seu marido Denis. O médico responsável pelo caso dele teria dito a Patrícia que seu marido estava muito depressivo porque queria um filho, se endereçando à Patrícia com a seguinte sugestão: - “Dá um jeito de dar um filho pra ele logo!” (sugerindo que Patrícia ficasse grávida ainda no período de internação de seu marido). Patrícia conta que durante a gravidez de Ester, seu marido realizou 8 cirurgias e, após o nascimento da filha, este ainda permaneceu internado por mais 6 meses. Denis só voltaria a andar um pouco antes do aniversário de 1 ano de Ester. Patrícia já trabalhava nesse período e relata ter vivido um período de intenso cansaço. Ester foi um bebê com grande dificuldade de se alimentar, mamou até 6 meses e depois, espontaneamente, largou o peito. Patrícia nos conta que quando Ester começou a comer comida, não “gostou”; era forçada a comer, “não gostava do sabor”. Salientamos que este significante “gostar” comparece desde o início das entrevistas com a família de Ester, e mais tarde é repetido pela própria paciente, demonstrando ser um significante fundamental no desenvolvimento dos atendimentos. Prosseguindo com o relato, Patrícia se recorda de uma situação onde Ester, ainda criança, fugia das outras crianças dizendo “não gosto, não quero!”. Patrícia atribui à Ester um comportamento tímido que teria começado aos 6 anos. Essa timidez teria aumentado com o tempo e, na idade de 12 anos, os pais resolveram levá-la a uma psiquiatra. Ela foi diagnosticada com síndrome do pânico e depressão profunda. Após o início do tratamento psiquiátrico Ester apresenta algumas reações: desenvolve uma urticária. O ápice é aos 13 anos quando ela teria tido um “surto psicótico”, como relata Patrícia, porém sem circunscrever com maiores detalhes. O que esta mãe consegue dizer sobre este surto é que Ester começou a bater em seu próprio corpo afirmando para ela que não tinha controle sobre seus movimentos, ao que sua mãe respondeu, “bate em mim, mas não bate em você!”. Neste mesmo período, Ester ficou sem comer por 2 meses, emagrecendo 23Kg. Ao ser questionada sobre o motivo de sua recusa, ela diz que teme ser envenenada, “querem me envenenar” ela diz, se recusando inclusive a beber água. Em uma medida extrema, seus pais e a pediatra decidem internála; na véspera de sua internação, porém, sua mãe tem uma conversa com ela, mostrando fotos na internet de moças com anorexia e falando da necessidade de comer para manter a vida. A partir desse momento, Ester aceita iniciar o tratamento, “reaprendendo a comer”, iniciando com líquido, depois com comida pastosa até chegar ao alimento sólido, “como um bebê” reitera a mãe. Depois deste episódio aos 13 anos, os pais relatam manter uma forte preocupação com relação à sua alimentação. A partir de então ela apresenta períodos em que se recusa a se alimentar ou se alimenta muito pouco, seguidos de períodos de compulsão alimentar. Nas primeiras sessões realizadas com Paula, Ester fala uma pouco de si, e do seu convívio com sua família. Diz que o pai tem “brincadeiras sem gosto”, e que a escola “não tem um gosto bom”. Paula nestes primeiros atendimentos recupera da fala de Patrícia o episódio a respeito do período em que ela ficou sem se alimentar (envenenamento) e Ester diz não gostar de falar sobre isso, para, em seguida, dizer que este tempo já havia passado e que agora ela acredita que ao comer, o alimento poderia fazer mal para ela. Ela explica a Paula que agora faz pesquisas na internet sobre a química dos alimentos e de suas combinações: “não gosto de misturar pipoca com pudim”, por exemplo. Identificamos três momentos de Ester e sua relação com a alimentação e os alimentos: em um primeiro momento aparece a questão do vômito, que estava presente desde antes de sua crise aos 13 anos. Desse período, ela nos relatou que já havia uma preocupação na ingestão dos alimentos; onde ingerir era igual a vomitar. Nesse momento o mal maior seria o vômito, mas ela ainda não conseguia localizar aquilo que no alimento ou na alimentação seria o responsável por seu mal estar. Em um segundo momento, o alimento seria envenenado e por isso faria mal. Neste caso, existiria ai um Outro perseguidor que teria a intenção de matá-la, porém sem que Ester pudesse localizá-lo. Finalmente, pode-se reconhecer um terceiro momento - aos 15 anos quando através de um saber científico apreendido a partir das aulas de biologia e química na escola, Ester começa a explicar o mal que o alimento pode causá-la a partir de certas combinações químicas entre os alimentos e dos processos que sofrem dentro do trato digestivo. Desse modo, já é possível para ela escolher o alimento mais adequado para ingerir. Ela pode pesquisar na internet as combinações químicas que os alimentos apresentam e escolher o mais adequado. O mal estar que a avassalava é aos poucos se circunscrevendo, localizando-se nessa pesquisa inédita e própria. Nossa hipótese é que Ester vai criando com esta pesquisa uma lógica que classifica os alimentos – uma taxonomia – a partir de suas combinações e localiza neles o que faz bem e o que faz mal, ou dito de outro modo, os alimentos que ela gosta e os que ela não gosta. Se num primeiro momento há um corpo que sofre os efeitos de uma invasão que se confunde com a alimentação e que se defende através do vômito, no segundo momento isso se desdobra em uma ideia delirante de envenenamento culminando numa recusa radical em se alimentar, caracterizando um episódio aparentemente similar à recusa anoréxica neurótica. O terceiro momento é uma modalização e um saber fazer com os alimentos, a invenção de uma lógica que possibilita daí fazer uma escansão frente à invasão do Outro por meio de uma restrição, mas que não impossibilita a alimentação. Entendemos esta pesquisa alimentar realizada como um trabalho, como uma modalização de um gozo invasivo, de uma dimensão pulsional louca, sem regramento e que perturba esta jovem. Ali onde há um desregramento pulsional pôde haver um reviramento, se tornando material simbólico - a combinação, a substituição e a exclusão. Acreditamos que para esta jovem essa modalização foi uma saída frente à perseguição delirante e a recusa mortífera, valendo-se de uma abertura da cultura a seu favor – no caso, a internet, sempre à mão para que ela realize este trabalho. Considerações Teóricas A partir do trabalho que esta jovem realiza podemos começar a tecer algumas considerações a respeito de uma hipótese de psicose associada a um transtorno alimentar, a anorexia. Para Recalcati, psicanalista italiano, a anorexia corresponde ao que Lacan nomeou como um “comer nada”, há uma eleição, uma escolha pelo nada. Em seu texto “Os dois nadas na anorexia” (2003) circunscreve a partir de sua clínica, dois “nadas” distintos em casos de anorexia: um que se refere à anorexia neurótica e outro à anorexia devastadora da psicose. Seriam duas modalidades do “comer nada”, duas modalidades de recusa que implicariam aí duas estruturas clínicas distintas. No primeiro caso, o nada se apresenta como uma tentativa de separação do Outro. O nada é um objeto separador e “comer nada” possui a função de marcar uma defesa em relação ao desejo do Outro. Procura cavar no Outro uma falta: Precisamente por meio da função do nada como objeto separador, o sujeito anoréxico lança o outro a uma impotência angustiante e conquista uma posição de supremacia imaginária sobre ele. (RECALCATI, 2003, p.23) O nada aí teria valor fálico, dialético, tendo como consequência reduzir a onipotência do Outro que a todo custo tenta alimentar o sujeito (confundindo assim desejo, demanda e necessidade) a uma impotência, através da recusa a aceitar o que ele oferece. Em efeito, se configura um modo de negar a dependência estrutural (simbólica) do sujeito ao Outro. Esta seria uma modalidade neurótica de recusa. Existiria ainda um segundo nada, ou uma segunda modalidade de recusa, que não implicaria o desejo, não implicaria aí um valor fálico de interrogação do desejo do Outro. O nada aqui não se dirige ao desejo do Outro e sim ao gozo do Outro: “este segundo nada não está em conexão com o Outro, mas expressa uma recusa radical do Outro”. (Op. Cit., p. 26) Uma modalidade que se mostra desconexa do simbólico, sem relação com o falo e se reconhece como uma pura negação mortífera. Pura oposição ao Outro, aos seus significantes, inclusive de maneira delirante. Ou seja, como uma resposta frente a um real invasivo e sem tratamento pelo simbólico. Voltando ao caso de Ester, após a leitura do texto de Recalcati, talvez ficássemos tentados a adimitr que esta jovem, pela crise aos 13 anos com a ideia delirante de envenenamento e a grave perda de peso, se incluiria na segunda modalidade de recusa. O trabalho, porém, que esta jovem realiza com sua pesquisa alimentar nos pede para irmos além e interrogarmos um pouco mais antes de nos decidirmos em classificações. É com Freud que talvez possamos encontrar uma luz para um impasse que se apresenta no caso em questão. No texto “A Negação” (FREUD, 1925, p. 269), o autor dirá: O prazer universal de negar, o negativismo de mais de um psicótico deve ser entendido provavelmente como sinal do desamalgamar das pulsões por subtração dos componentes libidinais. A partir desta citação Freud liga a atitute negativa ou a própria negação, recusa do psicótico, como uma resposta a uma retirada da libido - do investimento libidinal tendo como efeito um pulsional desamalgamado, caótico. A negação é uma recusa frente ao excesso pulsional ou frente ao que Lacan definiu como gozo, a um gozo não localizável. Encontramos ainda neste mesmo texto um Freud que nos introduz sua perspectiva sobre a dupla função do juizar: atribuição e existência. O juízo de atribuição nega ou atribui qualidade a uma coisa – que pode ser boa ou má, proveitosa ou nociva -, enquanto o juízo de existência impugna ou concede a existência de uma representação na realidade. Para ele “expresso na língua das mais antigas moções pulsionais orais” o eu come ou cospe, introduz em si e expulsa. Desta maneira “isso deve estar em mim ou fora de mim” (Op. Cit., p.267). Para Freud é sempre uma questão de fora e dentro. Ele dirá: A experiência ensinou que não só importa se uma coisa (objeto da satisfação) possui qualidade “boa” e, portanto, merece a admissão no eu, mas também, se ela existe no mundo de fora, de modo que possa apoderar-se dela segundo a necessidade (Op. Cit., p. 267) Freud afirmará ainda que o objetivo e o subjetivo não existem desde o começo, necessitando o psiquismo de uma nova exposição ao objeto experimentado para que o teste de realidade se realize. O julgar é fruto do próprio binário “incluir e excluir” “realizadas originalmente conforme o princípio de prazer” (Op. Cit.,p. 269), onde esta polaridade corresponde a oposição pulsional vida e morte. Esta formulação é muito importante para nos ajudar a pensar sobre a função do significante “gostar” para Ester. A partir do gostar, nós depreendemos duas nuances: o gostar como verbo, que permite dizer o que ela quer ou não quer e o gosto como adjetivo, que já atribui alguma qualidade a algo experimentado. Não seriam essas duas invenções próprias a essa paciente homóloga às funções constitutivas das quais Freud postula no texto de 1925, a saber, ao que vimos anteriormente, o juízo de existência e atribuição? Quer dizer, do ponto de vista de Recalcati, em um primeiro movimento, Ester estaria recusando o Outro de maneira radical, mas num movimento posterior o que se apresenta é, por meio de um significante eleito por ela e destilado do campo do Outro, a possibilidade de flexibilizar a demanda e principalmente o gozo do Outro, que a princípio seria mortífero, Esse trabalho de modelação permite inclusive com que ela se constitua, constitua um eu: o que ela gosta e o que ela não gosta. Através dessa invenção, ela produz um tratamento ao Outro, uma barreira ao Outro, uma escansão que possibilita fundar um dentro e um fora, sem o risco do envenamento, e do teor de uma versão deste muito persecutória. A criação de um universo simbólico particular (já que os critérios aí de gostar são dela e não partilhados), mas não sem o próprio significante, ou seja, não sem o Outro. Segundo Lacan (1964, p. 193), o Outro: “é o lugar em que se situa a cadeia significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito”. É da constituição do sujeito que se trata aqui, sempre aparecendo primeiro como falado pelo Outro, marcado por seus significantes – pela linguagem -, e em um segundo tempo, situando, a partir destes significantes mesmo, algum que o represente, um S1. A psicose aí nos introduz a um problema. Lacan, em seu Seminário Livro três faz a seguinte formulação: “o psicótico, em vez de habitar a linguagem é habitado por ela” (LACAN, 1953-54, p. 284). Esta formulação incorre em outra, qual seja, a de ser muito mais falado do que falante. O Outro aí comparece como invasivo; ele tagarela sobre o sujeito, não deixando margem ao psicótico a possibilidade de vir a constituir uma fala própria, uma cadeia significante. Isso é relativo, já que a clínica com a psicose nos informa que o acesso à linguagem não estaria vedada a eles, porém, constatamos os efeitos de gozo desregulado na constituição da fala destes sujeitos: discurso desconexo, fenômenos de código, neologismos etc. É o próprio mecanismo da foraclusão do nome do Nome-do-pai, ordenador psíquico por excelência, que entra em jogo aqui lançando o psicóico na deriva significante (a ausência de um ponto de basta na cadeia). Os significantes do outro ganham uma atribuição mortífera. O psicótico experimenta ser tomado como objeto do gozo do Outro, que tudo sabe sobre ele e que o preenche com seus significantes – uma experiência de ser todo falado pela linguagem, ser usado por ela como um puro significado. Resta-nos, a partir dessas reflexões, algumas interrogações: De que maneira o psicótico poderia vir a constituir um intervalo a esse Outro maciço, às vezes persecutório? Haveria chances de recortar algum S1, ou algum significante que fizesse função de organizador do campo simbólico para estes sujeitos? Para concluir É Ester quem nos ensina, através de seu trabalho, que o psicótico está às voltas com a linguagem e a língua que o constitui. É exatamente por que o Nome-do-Pai não se inscreveu que esta jovem ainda precisa reiteradamente organizar seu mundo através deste gostar, significante privilegiado por ela e que apostamos faz função de mediador com o outro, de tratamento das palavras e que permite minimamente que ela possa estar no laço. Numa sessão com Paula, em que Ester diz ter brigado com seu pai, ao ser interpelada sobre o motivo da briga ela diz: “-É que meu pai tem umas brincadeiras sem gosto”. Paula devolve uma pergunta para confirmar: “sem graça?”. Ester afirma “é sem gosto”, pontuando para Paula seu significante destacado. Nossa aposta é que através desse trabalho, ela possa inscrever algo do gozo aí, da maneira particular com a qual ela se serve da linguagem, para além da recusa anoréxica. Algo como um “gosto que não se discute”, algo só dela, singular. Essas são as primeiras considerações que levantamos sobre este caso e que nos instiga a continuar acompanhando e apostando no trabalho desta moça. E, evidentemente, do desejo do analista. Referências Bibliográficas: FREUD, S. A denegação, in: S. Freud, Obras psicológicas completas de Sigmund. Freud: edição standart brasileira. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1925. LACAN, J. Seminário 3, As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (1964) ________. Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (1953-54) RECALCATI, Los dos nadas de La anorexia. In: Recalcati M. Clinica del vacio: anorexias, dependencias e psicosis. Madrid: Editorial Sintesis; 2003. (p.19-31) VIDAL, Eduardo A. Comentários sobre Die Verneinung. Apud LETRA FREUDIANA. ESCOLA, PSICANÁLISE E TRANSMISSÃO. Die Verneinung / A Negação. Tradução de Eduardo A. Vidal. Rio de Janeiro: Letra Freudiana, 1988, ano VIII, nº 5, 08-3.