MULHERES SEJAM VOLUNTARIAMENTE SUBMISSAS AOS VOSSOS MARIDOS: DISCURSOS SOBRE A IGUALDADE DE GÊNEROS EM VISÃO MISSIONÁRIA DAIANE RODRIGUES DE OLIVEIRA Instituto de Estudos da Linguagem /Universidade Estadual de Campinas Rua: Sérgio Buarque de Holanda, 571 – 13083-859 – Campinas – SP – Brasil [email protected] Resumo. Neste trabalho, discutimos como o texto bíblico sobre a submissão da mulher aparece na revista Visão Missionária. Para tanto, baseamo-nos nos princípios da Análise do Discurso Francesa e na noção de Comentário apresentada por Foucault (1970). De acordo com essas noções, analisamos como o texto do apóstolo Paulo é interpretado nesta revista cristã. Palavras-Chave. Análise do Discurso. Condições de Produção. Comentário. Discurso Religioso. Feminino. Abstract. In this paper, we discuss how the biblical text about the woman submission appears in the magazine Visão Missionária. In other to do this, we are based in the principals of the French Discourse Analysis and in the notion of Commentary presented by Foucault (1970). In accordance with these notions, we analyze how the text of the apostle Paul is interpreted in this Christian magazine. Keywords. Discourse Analysis. Conditions of production. Commentary. Religious Discourse. Feminine. 1. Considerações iniciais A teologia cristã toma a Bíblia enquanto Palavra de Deus. Sendo assim, ela é reconhecida nesse discurso como lugar de verdade absoluta. Logo, para esse discurso, tais textos não podem ser simplesmente apagados ou ignorados. Na revista batista Visão Missionária1, esses textos são constantemente citados, resumidos e comentados. Tais paráfrases tentam produzir um efeito de que o discurso batista é fiel aos princípios cristãos. 1 A Revista Visão Missionária é uma publicação trimestral da União Feminina Missionária Batista do Brasil, que funciona como meio educativo e prescritivo da igreja, veiculando as regras e valores da doutrina batista para as mulheres. 1 Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin Pêcheux (2010) adverte que o analista deve levar em conta que um discurso sempre é pronunciado a partir de condições de produção específicas. Tais condições nem são puramente individuais nem globalmente universais, mas são condições específicas a um certo lugar no interior de uma formação social dada. Tendo isso em vista, buscamos analisar, neste trabalho, como o texto bíblico sobre a submissão feminina é interpretado na revista feminina Visão Missionária, levando em conta que as condições de produção dessa revista se dá pós-movimentos feministas. Para tanto, recorremos também à noção de Comentário proposta por Foucault em A ordem do discurso (1970). Antes de analisarmos os textos propriamente batistas, apresentamos sumariamente a constituição do movimento feminista protestante no século XIX. Julgamos necessário apresentar esse posicionamento porque é o momento em que o texto acerca a submissão feminina, como um postulado cristão, foi posto em questão. Esse movimento abre condições de possibilidade para o questionamento do texto. Esclarecemos que as mulheres batistas não se apresentam ou reconhecem como feministas. Porém, a tese de que há algo de “estranho” no texto da submissão feminina, visto como um postulado cristão, também reaparece em Visão Missionária. 2. O feminismo protestante A historiadora Élisabeth Sledziewski (1991) afirma que a Revolução Francesa foi uma mutação decisiva na história das mulheres, na medida em que pôs em causa a hierarquia dos sexos. Com a Revolução, as mulheres alcançaram direitos na sucessão dos bens, a maioridade civil e a possibilidade de testemunhar nos registros civis e, principalmente, direitos sobre o estado civil e o divórcio. A nova lei do casamento abriu uma nova possibilidade: aquela que poderia escolher o marido, também deveria poder escolher o governo. No entanto, a possibilidade da mulher se colocar em pé de igualdade com o homem no corpo político causou reações contrárias mesmo entre os revolucionários franceses. Filósofos justificavam que era a própria natureza (a vocação natural feminina para cuidar do lar e a sua fragilidade) que exigia que as mulheres se mantivessem fora da vida política. No campo da religião cristã, a questão da igualdade entre os sexos toca diretamente o texto bíblico sobre submissão feminina de autoria do apóstolo Paulo: Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo. De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos (Efésios, 5:22-24). Esse texto tem sido objeto de diversos comentários na teologia cristã. Discutindo o papel da mulher na religião, o historiador Jean Baubérot (1991) afirma que o protestantismo se afasta do catolicismo, na medida em que considera a vida secular e a vida conjugal um lugar privilegiado para a mulher, porém, no que diz respeito ao 2 Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin sacerdócio feminino, esse também ainda não é aceito. De um lado, a concepção do sacerdócio universal proposta por Lutero faz com que haja uma preocupação com a instrução das mulheres nos países protestantes. Mas, por outro lado, as mulheres são excluídas de exercerem a função pastoral, por causa da concepção social dominante da repartição dos papéis masculino e feminino e, principalmente, pelas passagens das epístolas de Paulo relativas às mulheres. De acordo com Baubérot, nos Estados Unidos, as mulheres protestantes participaram de campanhas antiescravagista. Essa participação começou com um artigo de um jornalista calvinista que pedia que as mulheres da alta sociedade lutassem pela libertação das mulheres negras. Diante dessa conclamação, essas mulheres organizaram um movimento antiescravagista feminino. Elas acusavam as igrejas de manter em situação de inferioridade os negros, mesmo quando livres. Muitas faziam protestos diante de um numeroso auditório, o que fez com que a associação dos pastores congregacionalistas publicasse uma carta na qual, a partir de citações do Novo Testamento, defendia que o papel das mulheres não consistia em tratar de assuntos públicos. Em resposta a carta dos pastores congregacionalistas, Sarah Grimté publica, em 1838, Letters on Equality of the Sexes, and the Condition of Woman, considerado o primeiro manifesto feminino protestante. Neste, a autora afirma que a Bíblia, se corretamente traduzida e interpretada, não ensina a desigualdade entre homens e mulheres, mas, ao contrário, propõe que ambos foram criados com os mesmo direitos e deveres. Chamamos a atenção nessas cartas para a interpretação que Grimté (1838) faz das postulações do apóstolo Paulo a respeito da mulher. A autora defende que quando o apóstolo afirma que a mulher deve ser submissa ao marido, ele estava sob influência de preconceitos judeus, os quais não permitiam, por exemplo, que mulheres lessem nas sinagogas. Nesse sentido, para a autora, Paulo não falava como um cristão, mas como um judeu. Ou seja, para ela, nessa questão, o apóstolo se filia ao discurso judaico e não ao cristão. 3. As interpretações da submissão feminina 3.1 A submissão voluntária em Visão Missionária Desde as cartas de Grimté (1838), o texto que trata da submissão feminina é uma questão polêmica na teologia protestante. Na revista Visão Missionária, enquanto revista cristã, o texto bíblico da submissão feminina é um tema imposto. Nessa revista, o texto é comentado de diversos modos. Foucault (1999) propõe que entre os procedimentos internos de controle do discurso, ao lado do autor e das disciplinas, está o procedimento do comentário. Assim, entre os discursos, há um certo desnivelamento. De um lado, estão os atos de fala que desaparecem no próprio ato que os pronunciou, de outro, aqueles discursos permanecem e estão na própria origem do dizer. Acredita-se que em tais discursos guardam um tipo de segredo ou riqueza, por isso, são, indefinidamente, repetidos, retomados e transformados. São discursos que, como explica o autor, “para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer” (Foucault, 1999, p.22). Entre esses, o filósofo inclui os textos religiosos. Tais 3 Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin textos circulam, como se guardassem um tesouro de sentido, o qual deve ser indefinidamente comentado. Em Visão Missionária, encontramos alguns comentários do texto sobre a submissão feminina. Na edição do segundo trimestre de 1983, a revista veiculou um artigo intitulado “Chaves Bíblicas para o sucesso no lar”, no qual a submissão feminina é apresentada como uma dessas chaves: A submissão é o desígnio de Deus para a mulher: é o ato de adoração a Deus, quando é uma atitude adotada por decisão livre, deliberada e voluntária dela para com o marido (grifos nossos). O texto defende que a condição para que a submissão seja um desígnio de Deus e um ato de adoração é que esta seja uma “decisão livre, deliberada e voluntária”. Tal condição cria um efeito de que esta não é imposta, mas é derivada da vontade da mulher. Assim, a submissão ganha uma interpretação de que não é uma imposição, mas uma livre escolha da mulher. A questão da submissão também é discutida no texto “Relacionamento horizontal no lar” no primeiro trimestre de 1988, do qual selecionamos os seguintes excertos: O marido, como cabeça da família, tem a solene obrigação de estabelecer uma atmosfera de amor e tranqüilidade no lar; a mulher, com sua submissão voluntária, colabora com esse clima de felicidade (grifos nossos). Aqui a submissão da mulher é especificada pelo adjetivo como “voluntária”. Essa especificação também aponta para um efeito de sentido de que a submissão não seria uma ordem ou obrigação, mas uma atitude derivada da livre vontade de ser submissa. Há um efeito de sentido de que a mulher não é obrigada a ser submissa, mas é porque quer ser. De acordo como Foucault (1999), o comentário tem dois papéis, a saber, a construção (indefinidamente) de novos discursos e a possibilidade de dizer o que realmente estava no texto primeiro, ou seja, “dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito” (Foucault, 1999, p.25). Desse modo, explica o autor, o comentário permite dizer algo além do texto primeiro, porém “com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado” (Ibidem, p.26). Nos textos analisados, o enunciador de Visão Missionária tece um comentário a respeito do texto bíblico. O mesmo é reafirmado/retomado: a mulher deve ser submissa. No entanto, para que o texto bíblico não seja julgado preconceituoso ou “injusto”, o enunciador desse discurso comenta-o, visando anular o sentido impositivo de submissão. O comentário tenta acabar com as possíveis resistências, apelando para o caráter voluntário da submissão. Dessa forma, o comentário atualiza o texto bíblico às condições 4 Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin de produção pós-movimentos feministas, na medida em que defende que a submissão proclamada na Bíblia tem um caráter optativo e voluntário. Assim, diferentemente de Grimté (1838) que descreve o texto acerca submissão feminina como não derivado de um discurso cristão, nesses artigos de Visão Missionária, o texto é repetido e apropriado. Entretanto, o texto é comentado para anular um sentido de submissão como algo imposto e, portanto, negativo, caracterizando-a como uma “atitude voluntária e livre”. 3.2 Maridos sejam sujeitos às suas mulheres: o cotexto do texto Outro exemplo de comentário do texto bíblico encontramos publicado na revista Ultimato (Março-Abril 2011). O texto “Maridos: sejam sujeitos às suas mulheres” é de autoria da psicóloga batista, Dagmar Grzybowski. Para a autora, a chave da interpretação do texto acerca da submissão está em seu cotexto: O fato de haver uma divisão de assunto entre os versículos 21 e 22 faz com que se perca a fluência natural do texto escrito. [...] em Efésios, imediatamente antes de falar sobre a submissão da mulher, Paulo afirma: “Sujeitem-se uns aos outros” (Ef. 5.21). Ora, uns aos outros significa que os maridos devem sujeitar-se à esposas da mesma forma que elas aos maridos (GRZYBOWSKI, 2011, p.31). Segundo a autora, para compreender a questão, é preciso considerar o texto bíblico anterior ao da submissão feminina, que diz que cada um deve sujeitar-se ao outro. Assim como a mulher estaria submissa ao marido, o marido estaria à esposa. Dessa forma, a submissão seria um comportamento próprio do caráter cristão. 4. Considerações finais Pêcheux (2008) defende que a língua não é transparente, mas opaca e atravessada pelo equívoco e pela falha, o que abre espaço para a interpretação. Uma vez que não há acesso direto ao real e a realidade é uma construção simbólica, as palavras não têm, em si mesmas, um sentido a priori, mas pela equivocidade da língua sempre podem tornar-se outras, dando lugar a novos sentidos (o que abre espaço para a interpretação). Logo, um texto não tem um sentido que lhe seja próprio, mas a interpretação está na base da constituição dos sentidos. Desse modo, em Visão Missionária, encontramos uma interpretação do texto bíblico sobre a submissão feminina como uma atitude voluntária. Com essa interpretação, o texto ganha um caráter optativo e cerceia a interpretação de que a mulher seria oprimida ou julgada inferior, interpretação esta que poderia fazer com que o texto fosse julgado preconceituoso. Assim, ao citar um texto que pode parecer polêmico, o discurso batista comenta-o, não para anulá-lo, mas para defendê-lo, mesmo que seja para afirmar que é um comportamento próprio de todos os cristãos, sejam homens ou mulheres. 5 Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin Referências BAUBÉROT, J. Da mulher Protestante. In: História das Mulheres no Ocidente. O século XIX. DUBY, G. PERROT, M. (org.). vol. IV. Porto: Afrontamento, 1991. pp.239-255. FOUCAULT, M. (1970) A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999. GRIMTÉ, S. M. Letters on the equality of the sexes and the condition of woman. Boston: Isaac Knapp, 1838. GRZYBOWSKI, D. F. Maridos: sejam sujeitos às suas mulheres. Revista Ultimato. Ano XLIV, Mar/Abr. 2011. p.31. PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (ADD). In: GADET, F. HAK, T (org.). Por uma análise automática do discurso. Trad. E. P. Orlandi. 4.ed. Campinas: Editora Unicamp, 2010. pp. 59-158. ______. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 2008. SLEDZIEWSKI, E. G. Revolução Francesa. A viragem. In: História das Mulheres no Ocidente. O século XIX. DUBY, G. PERROT, M. (org.). vol. IV. Porto: Afrontamento, 1991. pp.41-57. 6 Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin