Concurso [Conto] O velho, o rapaz e a história Chegou o rapaz ao pé do homem velho e pediu-lhe Conta-me uma história. O velho era já muito velho e só tinha um braço mas os seus olhos eram muito brilhantes e brilharam ainda mais ao ouvir aquelas palavras esquecidas. Já há muito que ninguém lhe pedia que contasse histórias, era como se fosse uma ilha desconhecida. E agora, assim, ali, naquela tarde de inverno tardio, sabia bem esse pedido, sabia tão bem como uma manhã de sol ou uma fotografia antiga encontrada no meio de um diário misterioso. Conta-me uma história, que palavras mágicas, que palavras aquelas tão antigas e sempre novas. Perguntou ao rapaz como se chamava e o rapaz disse apenas Manuel. E perguntou ao Manuel a razão da sua vontade e ele respondeu-lhe, como se ficasse um pouco espantado com aquela pergunta ou esperasse que o velho soubesse todas as respostas, que era a mesma de todos os rapazes sonhadores, a de todos os que sabem que vão ser homens e querem inventar esse futuro. Todos os rapazes têm uma vontade, disso já sabia Blimunda, e todos querem encontrar uma passarola e fazer com que o céu se torne terra. O velho, que era já muito velho, muito velho, mas tinha uma alma muito limpa e lisa de menino, sorriu e os seus olhos rasgaram o céu nublado e triste num feixe de fazde-conta. E começou a contar, com muita calma, como se contasse as estrelas numa noite de luar ou compusesse uma música, daquelas que curam a alma e o corpo, a história que o seu pai e o pai dele e antes dele todos os outros pais tinham contado aos filhos com asas no coração. Era uma vez, porque é assim que começam as histórias, disse o velho, uma menina que era muito pobre, não tinha pai nem mãe. Esta menina ganhava a vida a vender caixas de fósforos e por isso toda a gente a chamava ó Menina da Caixa de Fósforos. O negócio que a menina tinha não era muito rentável, pudera, como haveria de ser, comentou o velho, pois já existiam isqueiros e ninguém lhe comprava nada, até porque ninguém parava para olhar fosse para quem fosse. Mas um dia, nesse dia em que o vento soprou de forma diferente e lhe mudou a direção, parou junto dela uma carruagem em forma de abóbora, parecia saída de um conto de fadas. Daquela carruagem ou daquela abóbora, não percebeu muito bem mas o mistério faz parte da vida e nem tudo tem de ter explicação e ser coerente, mania que as pessoas têm, saiu uma senhora muito bem vestida, que a puxou pela mão e a levou consigo. Caramba, pensou o Manuel, há forças que nos arrancam do nosso caminho… será a mão do destino? Quando chegou a casa, uma casa com portões altos e janelas estreitas como olhos semicerrados, estavam à sua espera as filhas da senhora que viajava numa abóbora, uma era gorda e baixa, coitada, a outra era alta e curvada, coitada também, diferentes como a noite e o dia mas iguais como gotas de água na inveja. As irmãs levaram de rompante a Menina da Caixa de Fósforos para o seu quarto na cave e entre risinhos parvos e gargalhadas de escárnio disseram-lhe que ia ser a sua criada. Uma criada! Uma criada! E batiam palmas e o Manuel pensou que a menina se devia sentir humilhada, ninguém bate palmas ao sofrimento alheio. Que aplaudissem a sua própria miséria, pensou ele. A Menina da Caixa de Fósforos achou-as muito antipáticas e peneirentas mas pensou que, pelo menos assim, teria uma casa e um quarto onde se poderia abrigar do frio e Concurso [Conto] da chuva e das coisas más de que não sabia o nome mas que moravam na sua solidão. Como o Manuel desejou, naquele momento em que aquelas palavras nasciam na voz do velho muito velho, confortar a menina e fazer-lhe companhia naquele quarto da cave, onde passeavam aranhas e ratos e sonhos desfeitos. Um dia, enquanto a menina estava na cozinha a cozer um pão-de-ló e o galo da vizinha fazia o que os galos fazem nesta história, bateram à porta e ela, naturalmente, foi abrir. Era o carteiro da corte, um rapaz com uma barba cerrada e com ralo bigode, envergando a farda azul e dourada das entregas urgentes, a entregar o convite realíssimo para o baile em que o príncipe, até então encalhado, perdão, encantado, iria escolher a sua delicada e nobre noiva. Mas a senhora rica, que estava à espera do pão-de-ló, foi à cozinha e descobriu logo o convite, que logo guardou na sua bolsinha de veludo riscado onde guardava as cartas importantes e as chaves das cómodas e o creme das mãos. Sim, porque uma senhora como ela tinha cuidados e não podia descurar as mãos, sobretudo por causa dos anéis que gostava de exibir. Para além do mais, quando era preciso ajudar alguém, ela logo lavava dali as mãos. Saiu da cozinha como se não tivesse sequer entrado e deslizou pelo corredor enquanto chamava as suas filhas, ó filha, a alta e a baixa, ó filha, para irem comprar os tecidos dos vestidos que levariam à festa. Ó filhas! Seriam as mais belas, as mais elegantes, as mais, mais, mais. Certamente o bom gosto e a educação requintada do príncipe fariam com que ele escolhesse e desposasse uma das suas belíssimas e prendadas filhas, disso estava tão certa como sabia distinguir favas de ervilhas e outras inusitadas maravilhas. Ai, minhas ricas filhas! A menina, já longe da esperança mas sempre atenta ao seu trabalho, abriu a porta do forno para ver se o pão-de-ló já estava cozido e, para sua grande surpresa, o bolo começou aos saltos dentro da forma e dela rapidamente se desprendeu, começando a fugir pela cozinha, depois pelo corredor e pela sala até rebolar pelo jardim. Ela, a menina, que nunca tinha visto um pão-de-ló a desaparecer assim sem deixar migalhas, pensou que tinha exagerado no fermento ou no tempo de cozedura. Os olhos do Manuel estavam esbugalhados de espanto, nunca tinha ouvido falar de algo semelhante. Ambos, bolo e menina, correram durante muito tempo, muito tempo, através da densa floresta até que encontraram uma grande casa muito bonita. O bolo não quis entrar, não porque fosse tímido mas porque aquela casa de chocolate lhe parecia muito suspeita e resolveu fazer-se ao caminho. Dizem as más línguas e as boas bocas que entrou num convento e se tornou num devoto pão de Deus. Mas a menina, cansada e curiosa, entrou, depois de trincar uma lasca de chocolate branco do postigo, tão doce como amarga tinha sido toda a sua vida. No quarto desarrumado estavam três camas desmanchadas, uma muito pequena, uma de tamanho médio e outra muito grande. Como estava muito cansada resolveu deitar-se. Não te deites, pensou o Manuel, não te deites. Já ouvi essa história antes, olha os ursos, olha, estão a chegar, foge! Só um bocadinho, é só um bocadinho, pensou ela, só fechar os olhos, só isso, nem vou dormir, é só descansar um pouco. Escolheu a cama mais pequena mas logo adormeceu profundamente e só acordou quando ouviu passos, passões e passinhos. Com medo de que a obrigassem a fazer as camas, saltou pela janela e mudou de história com a ajuda de sete anões que iam a passar. Ufa, suspirou de alívio o Manuel, desta escapou. Por isso, quer dizer, por causa da solidariedade dos sete anões, a menina ficou a viver na sua casa durante uns tempos, até porque o tamanho dos anões não era Concurso [Conto] proporcional ao seu carinho e a menina dos fósforos descobriu que às vezes o coração é maior do que as pernas. Muito maior e também corre mais depressa. Enquanto os anões passavam os dias a trabalhar na mina e noutras armadilhas, ela tratava da casa, do jardim, dos passarinhos que chilreavam nos beirais e, claro, jogava à bola. Todas as meninas adoravam jogar à bola e ela não fugia à regra. No entanto, um dia, a bola caiu no poço, que era daqueles sem fundo, e a menina teve de pedir a um sapo muito verde e anafado para a ir buscar. O sapo, no início, não estava com muita vontade, que diabo, deixem-me descansar, não entendia ser sua função aquela de apanha-bolas, mas lá acedeu. Só que, a partir daí, o sapo não mais largou a menina, achava estar no seu direito poder usufruir da sua companhia e das suas brincadeiras. Aos poucos, a companhia do sapo tornou-se irritante, sufocante, a menina queria estar sozinha e lá estava ele, sempre a coaxar e a caçar moscas com a língua, sem qualquer tipo de pudor. Sapo dum raio! A Menina da Caixa de Fósforos entrou em desespero e começou a chorar e desejou nunca mais ver o sapo. E disse-lhe Vai-te embora, sapo, és um peso na minha vida, deixa-me em paz, preciso de silêncio. E o sapo respondeu na sua língua de batráquio Eu vou, mas antes tens de me dar um beijo, pelo menos um, ou morrerei de desgosto à beira do lago. O Manuel pensou que gostaria de ser sapo por uma vez na vida. A menina pegou numa ponta do avental e limpou as bochechas luzidias ao sapo. E deu-lhe um beijo e o sapo transformou-se de imediato num belo rapaz que andava com um arco e uma flecha. Este rapaz disse que se chamava Robin dos Bosques e que tinha sido encantado por uma velha com 4 um fuso a mais e um parafuso a menos. E então, desfeito o feitiço, cresceu entre o Robin dos Bosques e a Menina da Caixa de Fósforos um grande amor. O Manuel estava com um pouco de raiva a este príncipe mas ouvia o velho com muita atenção e respirava muito devagar para não afastar nenhuma palavra. Era tão bom ficar assim, suspenso, alheado de tudo, mergulhado num outro mundo… E o velho disse Rapaz, rapaz, acorda, esta história é muito antiga e perde-se nos tempos embora a memória a guarde. Fala de coisas fantásticas e que são tão reais como tu e eu. Não há fronteiras entre anões e gigantes, entre fadas e bruxas, entre sapos e gente… as histórias são o que há de igual no que é diferente. Todas se ligam, todas vão dar ao mesmo mar… basta ouvir, basta contar. Queres tentar? E o velho pediu Vá, agora é a tua vez… Um, dois, três… Autora: Carolina Figueiredo | E. Secundário Escola Básica e Secundária Padre José Augusto da Fonseca, Aguiar da Beira