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Copyright © 2011 by Li Mendi
Mendi, Li, 1985 Aurora / Li Mendi. – Rio de Janeiro.
História de amor. 2. Ficção brasileira. I. Título
Todos os direitos reservados à autora.
Criação de capa: Rodrigo Ribeiro, Agência 2RD.
Site: limendi.com.br
E-mail: [email protected]
Facebook: Escritora Li Mendi
Twitter: @limendi
Autora
Oi, Leitores.
Podem me chamar de Li. Sou Jornalista, Publicitária, Escritora e
Geminiana. Meu grande prazer é escrever romances. Eles começam na
internet e terminam na prateleira, na cabeceira e na tela dos tablets e
celulares de leitores de todo o Brasil.
Trabalho com Comunicação durante o dia e escrevo diariamente, à
noite, em meu site. A criação é conjunta com meus leitores, pois cada opinião,
comentário ou sugestões são levados em consideração para elaboração das
estórias.
Espero que você se divirta muito com esse livro e entre em contato
depois para me dizer se curtiu. Combinado?
Aurora
Li Mendi
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Sinopse
Aurora mora em uma pequena cidade no ano de 3010 e guarda um
segredo sobre sua natureza, não pode receber partes biônicas em seu corpo,
nem modificá-lo pra retardar sua morte. Como os antigos humanos, é frágil e
precisa se cuidar pra passar desapercebida entre os superhumanos que
estudam em sua escola. Só que a tarefa fica mais difícil quando Douglas
aparece na pequena cidade e chama a atenção das supermeninas,
perfeitamente preservadas pela avançada tecnologia cosmética da qual
Aurora não pode tomar mão. Um livro que vai te emocionar com a força do
amor que dura apenas uma curta e breve vida.
Aos meus leitores sempre,
pelo amor com que recebem minhas estória.
Aurora
Li Mendi
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Mortalmente atingida
(Aurora)
A fome não vinha, tinha que forçar, como chuva que precisamos
produzir quando o período de seca é longo. Eu era uma garota normal de 18
anos. Esse era todo o problema: normal entre os superhumanos significava
ter o dobro de cuidado que eles, já nascidos com gens mapeados para terem
os melhores remédios, produtos de beleza e todo tipo de benefício do avanço
da natureza. Eu precisava me acostumar com a fome para parecer sempre
magra e bonita e ninguém na escola me descobrir.
Parece que meu pai leu meus pensamentos quando comprimi meus
lábios por alguns segundos ao fitar o copo de leite. Seus dedos deslizaram
sobre o tampo da mesa e empurraram o recipiente de vidro, forçando que eu
o considerasse:
-Beba, Aurora. Você precisa. _lembrou-me.
Virei o rosto para o lado. As flores rosas estavam lindas brotando no
jardim em plena primavera, mas não era por elas que um sorriso distraía
meus lábios. A mensagem codificada do meu pai sobre a importância do
cálcio para o meu corpo humano era por enquanto exagerada. Com tanta
juventude, não tinha que preocupar com artrose, artrite, etc. Mas, desde
pequena ele me adiantava a memória do futuro.
_Por nós! Aurora? _ agora era a voz da minha mãe, facilmente se
deliciando com uma torrada coberta de geléia. Sua beleza impecável aos 40
anos em deixavam em dúvida, se sozinha, por minha própria genética,
conseguiria tal feito. Minha mãe já fizera tantas intervenções cirúrgicas pra ser
perfeita que pensei por um momento não ser fácil pra ela também. _ Querida,
precisa se cuidar, está estranha há uma semana. Alguém lhe falou algo na
escola, descobriram que não é nossa filha biológica, que você não pode
receber modificações...? _desesperou-se.
_Não! _respondi, minha voz saindo mais alto do que costume por falta
de medida. Afaguei-lhe a mão. Jamais gostaria que se sentisse aflita pela
possibilidade de que eles me achassem e fizessem mal. _Eu estou
perfeitamente disfarçada. Vou conseguir me formar. Estou com ótimas notas.
_peguei o copo e caminhei até a pia rapidamente. Engoli de uma só vez, sem
respirar e bati a base de vidro no granito.
Só eu sabia o esforço que tinha que fazer para estudar dezenas de
vezes mais que meus colegas, apenas para parecer mediocremente
habilitada a passar de ano. Eu não podia contar com os chips implantados
atrás da minha orelha para buscar toda a gama de informações na nuvem da
internet a qualquer hora.
_Eu não estou preocupado com sua bolsa, sou o professor de lá e
não fariam isso comigo. _ meu pai respondeu, levantando-se com o jaleco
branco já abotoado e pasta na mão. _Eu só não quero que ninguém a
machuque...
_Está tudo ótimo. _apoiei as mãos atrás de mim na pia e mordi os
lábios._ Mesmo! _reafirmei. _Meu cabelo, minha pele, meu corpo, não está
tudo perfeito?
_Está pra você?_ minha mãe questionou.
Levemente balancei a cabeça, encontrando as sobrancelhas na testa.
_É alguém que a está fazendo se sentir feia? _pressionou ela.
Virei-me, meus olhos lhes diriam. Pus-me a deslizar o dedo sobre a
tela na porta da geladeira, clicando nos itens que precisávamos comprar pela
internet para abastecê-la, como forma de distração.
_Aurora, você está apaixonada? _ o seu tom de imediato susto com a
própria hipótese requeria toda a minha ênfase:
_Não, mãe! _quase gritei. _Eu só estou em períodos de prova e
preciso estudar muito. A ansiedade me tira a fome. É normal. Normal pra
mim... _ suspirei e peguei minha bolsa. Ela certamente teria o remédio certo
pra isso e eu precisava agüentar firme pra não enlouquecer ou comer todo o
chocolate da despensa, mantendo minha fome em níveis quase dolorosos.
_Minha carona chegou. _ anuncei num falso tom alegre ao ouvir a buzian do
carro de Sandrinha. Se não saísse logo dali, meus pais adotivos começaria
uma daquelas discussões: “não vai ser bom pra você ficar com um
superhumano, eles vão machucá-la.”
Meus pulmões aspiram o ar úmido e fresco da manhã, florindo minha
alma com o cheiro doce das pétalas. O aroma era tão bom. Coloquei os dois
micropontos no ouvido e liguei o som bluetooth do meu celular no bolso. O
playlist tinha as minhas músicas preferidas. Sentei no carro de Sandrinha que
passava maquiagem no espelho. Enquanto seu carro estava no piloto
automático e automaticamente regulava-se com os outros a nossa frente, não
tinha com que se preocupar. O veículo encontrava sozinho o seu caminho. O
problema é que seu GPS estava com problemas e acabamos fazendo um
percurso mais longo essa manhã.
_Ainda bem que estou com você. _ ela aliviou-se com a segurança de
que estando com a filha do professor e diretor da escola, ninguém nos
barraria na entrada. Mas, será que isso ainda tinha efeito uma hora de atraso?
_Eu esqueci uma coisa no carro. Droga, me espere aqui. _ pediu e eu
continuei parada no meio do corredor do estacionamento ao ar livre, trocando
de música com a ponta dos dedos enfiados no bolso.
A música nos meus ouvidos estava alta, mas não foi suficiente pra
abafar um ruído estridente de motor e depois de pneus cantando. Foi, em um
reflexo de segundo, que meu rosto virou para trás e viu a caminhonete cinza
Aurora
Li Mendi
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seguir em minha direção em toda velocidade. Como disse, era um relance,
um frame de segundo, não havia chance de me mexer... E tudo aconteceria.
Um só golpe me mataria.
_Aurora! _ ouvi o grito da minha amiga, que previu a cena que estava
prestes a ver.
Eu podia fingir ser uma superhumana, mas ficaria claro quando me
levassem para o hospital que eu não era apta a receber transplantes biônicos
ou fazer intervenções complexas, pois sabe-se lá por que meu corpo rejeitava
qualquer procedimento desses quando nasci.
Eu era uma fina e frágil película de bolha de sabão. Sempre pensei
que a morte chegaria bem rápido pra mim, mas não há 120 por hora e a 4x4!
Uma descarga de adrenalina inundou minhas veias e eu só consegui encolher
os ombros quando o veículo virou noventa graus sobre o meu eixo e num drift
perfeito entrou na vaga que eu nem reparava estar ao meu lado. O motor
desligou e o silencioso foi quebrado pelas passadas rápidas de Sandrinha em
minha direção. Só entendi que não tinha morrido quando ela tocou meu braço
e me sacudiu.
_Tudo bem? Quem é esse maluco, alucinado? _ gritou e ameaçou um
xingamento, quando a porta destravou-se e ele pulou pra fora.
Era alto, provavelmente quase dois metros, ombros muito largos e
braços tão fortes que eu juraria ter uns cento e vinte quilos de músculos. Seu
cabelo raspado e o rosto duro, de ossos retos e firmes só não estavam em
harmonia com o doce par de olhos azuis mais lindos que eu já vira em toda a
minha vida. Era incomum as mães escolherem olhos azuis para os filhos, a
moda andava sendo lilás, vermelho, dourado. Mas, aquele azul claro e límpido
era pacífico e amigável.
_Te assustei? _a voz grave e rouca me fizera engolir em seco. Agora
estava tão perto que podia sentir o perfume delicioso vindo de todo o seu
enorme corpo. Eu senti que isso sim podia me matar, pois meu coração
estava desgovernado como aquele carro possante. _Eu costumo dirigir bem,
não ia te atropelar. _piscou e sorriu.
_E, se eu tivesse dado um passo a frente e saído dos seus cálculos?
_ meu cérebro foi rápido em contra argumentar.
Ele ousou dar o passo que diminuía a distância mínima a estranhos.
Pegou a minha mão com a sua palma sobre as costas da minha e o dedo
mindinho tocando meu ponto de pulsação.
_E o que faço por ser tão ruim de matemática? _beijou com os lábios
febris e levemente úmidos a zona abaixo do meu polegar, na lateral da minha
mão, escorregando a carne macia da sua boca por aquela região, o que
eriçou todos os pelos do meu braço. _Acha que pode me perdoar? _a
sedução em sua voz, os olhos fitos em meu rosto e o seu hálito tão perto era
como estar diante de uma grande fera faminta, aguardando a sua hora. Eu
não podia em qualquer hipótese me encantar por um superhumano como
aquele, mas os efeitos estavam sendo devastadores.
_Eu estou atrasada... _tentei puxar minha mão, mas a sua não largou
o meu pulso e isso me assustou mais ainda. _... Tome mais cuidado por onde
anda... _ virei o rosto.
_Meu nome é Douglas, os amigos me chamam de Doug.
_apresentou-se. _E o seu?
Virei o rosto só um pouco e através do meu cabelo olhei pra trás:
_Que importa?
_Sou novo por aqui e é bom conhecer as pessoas... _deu de ombros
e pela primeira vez mostrou o sorriso aberto, o que me fez mudar de opinião
sobre seus olhos, isso sim era de amolecer as pernas. Perfeitamente brancos,
moldados, lindo.
_Eu me chamo... Aurora.
_Aurora. _repetiu e eu sabia que o tempo que dera pra concluir seu
pensamento significava que estava buscando na rede o significado disso. Seu
cérebro aguardava a varredura do seu chip interno. _Como aurora boreal?
_É. _respondi com um sorriso que saiu agora de mim facilmente. Não
tinha mérito ele saber daquilo, mas a simples curiosidade em buscar o
significado me deu um frio na barriga.
_Acho que já está bem agora... Desculpe pelo susto. _ acenou e
partiu.
_Quem é o cara que acaba de quebrar o gelo do coração de iceberg
da Aurora? _ Sandrinha satirizou, grudada no meu braço, soltando risinhos.
_Sem chances... _ ri de nervoso.
Aurora
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Menina de fogo
(Doug)
Minha irmã, Gisele, mordeu o pão e balançou a cabeça em
desacordo. Ela não aprovava que eu aparecesse na mesa do café da manhã,
quando era dia da faxineira, sem camisa e suado depois da minha corrida
diária.
Você precisa ficar se exibindo? Pousa logo para o outdoor da esquina.
Reclamou através da nossa comunicação mental. Nossos pais eram bastante
ricos para nos dar o luxo de ter aquela mais nova geração de chip que permite
a conversa por telepatia. Eles não imaginavam o quanto era útil para nós
poder trocar informações em silêncio.
Ela é uma delícia. Ri alto e bebi o suco de laranja. A garota que
limpava o chão não entendia nada e nos olhava como loucos.
Coitada, é uma humana. Não pode ficar explorando esse tipo de
meninas, elas são pobres e doentes, vão morrer como cigarras. Olha pra essa
pele doente de espinhas. Urrgh, mal posso olhar. E quando tirar a roupa vai
ver aqueles buracos de celulite e estrias, meu deus, isso é uma visão do
inferno! Fez uma careta.
Você podia ser uma delas, se a mamãe não tivesse te feito em
laboratório, nem bancado todas as suas injeções de juventude. Lembrei-a e
sua reação foi atirar um pão na minha cabeça. Parecia que tinha dito que ela
nasceria como um monstro.
E você ia gostar de não ter nascido com esse músculo todo? Metade
da escola já fala de você. Acho bom andar na linha porque a mamãe é a nova
diretora e qualquer coisa que faça vai chamar a atenção. Avisou.
Tipo perder o primeiro tempo de aula? Revirei os olhos. Vou andar de
moto. Ela nos obrigou a vir pra essa cidadezinha, prometendo que nos
divertiríamos muito. Eu vou tentar fazer isso do meu modo.
E o que eu ganho
com o segredo,
caro Doug?
Essa era a primeira desvantagem da mente aberta: ela podia me comprar
descaradamente.
Eu vou pensar bem e te cobro depois, ficou de pé. Ela inflacionaria o
pedido depois de mais meia dúzia de planos que ouvisse na minha cabeça.
Não vai ter esse trabalho de bolar, eu vou pra escola. Era tão divertida
sua cara de desapontamento.
Subimos na minha caminhonete e ela ligou para sua amiga Isadora. A
imagem da garota foi projetada na sua frente por holografia virtual. O assunto
era superficialmente concentrado nos novos produtos contra envelhecimento
que retardavam 20 anos e a coleção primavera verão. Eu aumentei o volume
dos meus fones de ouvido pra não contaminar meu cérebro com aquilo.
Antes que entrasse no estacionamento, pediu pra descer na entrada
do colégio, pois tinha visto de longe uma amiga. Eu queria entender que tipo
de rede social ela já começara a fazer um mês antes de nos mudar que mais
parecia ser a cidadã de honra desse lugar com tantos conhecidos.
Eu ouvi isso! Querido, aprenda comigo, a rede é tudo. Ela piscou,
antes de pular para fora.
Revirei os olhos com tédio e acelerei o carro, pisando com força no
acelerador. Virei o volante para girar a roda do carro para a esquerda a fim de
derrapar a traseira para a direita e encaixar o carro na vaga. Eu adorava
correr em alta velocidade. Aprendi o Power Slide com meu amigo Ricardo, o
cara que mais conhece carros que já vi. É um lunático.
Tem gente que confundi isso com drift. Mas, é diferente, drift é
deslizar o carro de lado e manter isso por uma boa distância, não, girar e
parar.
Quando realizei o último movimento, me dei conta de que o
estacionamento não estava completamente vazio. Olhei através do retrovisor
a garota pálida de cabelos ruivos que parecia em estado de choque. As ondas
de fogo de seu cabelo tinham finas tranças douradas entrelaçadas no meio.
Seus olhos verdes emitiam medo, mas não foi sua voz que comecei a ouvir na
minha cabeça:
Você está maluco? Que matar a minha amiga? Eu vou denunciar você
pra sua mãe!
Procurei com os olhos a dona da voz e encontrei a provável dona de
um chip igual ao meu, capaz de enviar mensagens pelo pensamento. Era uma
garota de cabelo liso preso em um coque, baixa e de olhos vermelhos.
Pode ver que ela está inteira, sorri e saí do carro.
Isso por uma sorte do destino. Ela não está acostumada a esse tipo
de emoção, seu idiota!
Te assustei? Perguntei pra garota de fogo, agora bem mais perto.
Ela não consegue te ouvir! Não tem essa marca de chip ainda. Aurora
é de uma família mais simples, seu pai é um professor cientista daqui.
_Te assustei? _ perguntei, usando minha voz matinal grave. O efeito
desse som sobre ela me deixou em dúvida se gostou ou assustou mais, pois
engoliu em seco e depois abriu os lábios para soltar o ar. Era bem possível
que tivesse medo, mas eu não tinha cara de um maníaco atropelador. Talvez
não colaborasse nos últimos minutos com essa imagem, então, sorri
amigavelmente. _Eu costumo dirigir bem, não ia te atropelar. _tentei abrir um
diálogo pra ouvir sua voz.
_E, se eu tivesse dado um passo a frente e saído dos seus cálculos?
_ desafiou com aqueles olhos de cílios ruivos ainda mais abertos, com um
tom de quem pedia piedade, mas mantinha indignação.
Aurora
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Estiquei o braço e peguei sua mão. O toque me permitiu calcular sua
temperatura. Estava mais alta do que é o padrão e sua pressão sanguínea me
preocupou.
Deixa de ser convencido. Não acha que ela está alterada, por causa
de você, não é? A amiga falou em silêncio. Ignorei-a.
_Acha que pode me perdoar? _perguntei a garota que quase
atropelara, mas o medo não desanuviava de seus olhos e retraiu-se em fuga.
_Eu estou atrasada. Tome mais cuidado por onde anda... _ virou-se
pra sair.
_Meu nome é Douglas, os amigos me chamam de Doug. E o seu?
_insisti, tomado por uma vontade de não deixá-la ir embora.
_Que importa?
Ai, que fora... Sua amiga riu em silêncio.
_Sou novo por aqui e é bom conhecer as pessoas... _usei minha
cordialidade para ganhar sua difícil confiança.
_Eu me chamo... Aurora.
_Aurora. _repeti e busquei o significado que não era estranho.
Aurora é um fenômeno que acontece no céu das zonas polares,
quando poeira espacial trazida pelo campo magnético e o vento solar se
chocam com a atmosfera. Varri mais um pouco a rede por outra resposta:
Galileu Galilei batizou o colorido espetacular do céu com o nome de uma
deusa romana do amanhecer: Aurora.
_Como Aurora Boreal? _ perguntei, me questionando agora porque
escolheram esse nome. Podia ter a ver com seus cabelos ruivos flamejantes.
_É. _ sorriu, abertamente, e me senti vitorioso por aquele pequeno
ganho.
Doug, o que faz aí embaixo? Vá já pra aula!Encrenca, era minha mãe
da janela atrás de Aurora, no segundo andar do prédio, me olhando irritada e
gritando em minha cabeça.
_Acho que já está bem agora... Desculpe pelo susto. _ acenei e parti
em retirada.
_Quem é o cara que acaba de quebrar o gelo do coração de iceberg
da Aurora?
Ouvi aquela última frase pelos meus poderosos ouvidos, virei o rosto
pra trás e dei um misterioso sorriso. A amiga mordeu o lábio, entendendo que
eu tinha percebido sua elétrica alegria feminina.
Estou sendo irônica... Aurora não gosta de caras como você.
Aquela revelação não parecia incoerente com os olhos de medo da
menina ruiva. Ela parecia temer que a jantasse hoje, à noite, como um
assassino sanguinário. Mas, pode ter sido também o choque do quase
atropelamento.
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Frágil borboleta
(Aurora)
Olhei o alaranjado do horizonte e me dei conta de que estava perto do
anoitecer. Eu tinha subestimado meu cansaço, a tarde caia e eu não acabara
a corrida diária. Puxei o ar dos pulmões, emitindo um ruído asmático pelo
cansaço. Apertei os olhos para buscar concentração, mas não deixei os pés
pararem, apesar da queimação na batata da perna, aquecida pelas meias até
os joelhos. A umidade da floresta mantinha a temperatura agradável, apesar
do calor próximo a estrada onde deixara o carro do meu pai.
Eu vinha todos os dias para essa trilha correr 15 quilômetros. No início
da adolescência, quando me parecer uma superhumana se tornara uma
escolha de vida, eu tive que aprender com meu pai a como transformar o meu
corpo hipersaudável da maneira mais animal e menos biotecnológica
possível. Era uma técnica de mil anos atrás, quando a nonobiologia ainda não
tinha inventado os nanoreguladores de gordura e formadores de músculos
que conferem os corpos perfeitos às minhas amigas. Ao contrário delas, ser
linda e perfeitamente esculpida era muito doloroso e cansativo. Mas, ganhei
também com isso um tempo só pra mim, em que eu podia aproveitar o
barulho do rio e dos pássaros voltando para a copa das árvores para pensar.
Na solidão daquele recanto verde, minha mente pode ter a liberdade
de sentir novamente um desejo latente: namorar. Eu já fantasiara paixões
impossíveis com diversos garotos da escola e depois chorava as
incompatibilidades. Nunca aprendia a impedir que voltasse a pensar neles.
Dessa vez, a lembrança trazia o rosto do novo aluno da escola, Doug. Ele
quase me matara, mas também me devolvera um pouco de vida aos nervos.
Quando passava por mim no corredor, era como se um campo de
energia me atingisse com cargas elétricas, por mais que eu tentasse emitir a
mensagem “eu ignoro sua existência”, enquanto abaixava a cabeça, apertava
meu livro e mantinha os passos apressados. Porém, na aula de biologia
dessa manhã, eu não consegui fingir concentração quando ele entrou pela
porta e veio direto em minha direção, como se fosse falar comigo, mas não o
fez, apenas sentou-se ao meu lado. Soltei o mais discretamente possível o ar
dos meus pulmões e mantive os rabiscos no meu caderno.
Eu trazia sempre um computador comigo, mas tinha uma necessidade
de desenhar e mexer com as mãos enquanto os professores ensinavam todas
as maravilhosas descobertas científicas dos últimos séculos que permitiram a
humanidade dominar o DNA, criar órgãos mecânicos, interferir no
Aurora
Li Mendi
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metabolismo celular e criar superhumanos. Nada disso servia pra mim, que
nascera com uma fragilidade genética que não permitia esse tipo de
intromissões. Mas, meu pai me explicara desde pequena que era possível ser
feliz e saudável como uma humana normal, se eu seguisse todos os seus
ensinamentos secretamente, o principal deles: nunca deixar um superhumano
perto o suficiente pra que me descubra. E não era exatamente esse sinal que
eu estava dando com minhas mãos suando ao lado de Doug.
Vi pelo canto do olho sua cabeça virada pra mim, com a cabeça
encostada no ombro e isso fez o meu rosto queimar. Por que ele não me
deixava em paz sob o manto do anonimato? Que tipo de diversão queria
comigo? Eu não era uma da sua espécie. Os traços se tornaram mais fortes e
eu rasgaria a folha, se não fugisse dali.
_Me empresta?_ a voz ao meu lado me fez estancar no meio do
coração o desenho que eu começara como um c incompleto. Depois, sua mão
repousou sobre a minha, provocando o meu encolhimento e descarga máxima
de adrenalina pelo meu corpo. Virei o rosto pra encarar o seu e seus olhos
azuis se apertaram em um sorriso que nasceu em seus lábios vermelhos. Era
uma visão da perfeição que meu coração não podia lidar bem, sem contrair-se
no peito.
O professor continuava a falar, movendo-se pela sala naquela
dimensão virtual de projeção holográfica, mas eu já não conseguia prestar
atenção em sua voz ao fundo. A sua discussão proposta com os alunos já o
detinha, não precisava de mim. Estava tão longe, do outro lado do mundo na
frente de um computador, enquanto eu tinha o calor e a presença física de
Doug ao meu lado, escrevendo alguma coisa com a minha caneta na mão.
Contrai a testa e quis saber, curiosa, o que estava aprontando. Meus dedos
tocaram os seus e eu virei a palma para mim. Ele, então, mostrou um boneco
desenhado com o braço delineado sobre o polegar de maneira que ao movêlo, parecia que estava dando tchau. Eu ri baixinho daquela inimaginável
brincadeira infantil do cara que quase me esmagara com sua caminhonete.
Mas, eu nunca tinha chegado tão perto assim de um superhumano e não
sabia que a sensação de prazer e euforia era tão prazerosa.
Peguei a caneta e desenhei uma garota com uma flor no cabelo na
minha mão também, levantei os olhos pra conferir a intensidade do debate
entre os alunos a frente e voltei para a brincadeira particular. Mostrei-lhe a
minha mão sobre a perna e Doug estendeu o antebraço, tocando seu polegar
no meu. Reparei, neste instante, que abaixo da sua pele havia uma superfície
rígida. Ousei deslisar as costas da minha mão sobre a região do seu pulso e
nossos olhos se levantaram no mesmo segundo pra se encontrar.
_É mecânico. _ele respondeu. _Não parece, não é mesmo? Foi em
uma diversão de carro que meu punho partiu...
_Você sente, não é?_passei os dedos agora por seu antebraço e ele
sorriu. Eu devia estar bancando a completa idiota humana. Óbvio que a rede
neural era completamente restituída. Que pergunta de “superhumana frajuta”
era essa que eu acabava de fazer. _Eu preciso ir._ agarrei o caderno,
amassando um pouco as folhas. A situação de perigo me ensinava a fugir.
Nem tomei o cuidado de passar pelo canto da sala, meu corpo atravessou a
projeção do professor e eu agarrei a maçaneta da porta.
Agora, eu estava ali correndo ao entardecer, com meu particular
prazer de relembrar o mais perto que chegara de um contato físico...
Tudo foi rápido como um choque do meu corpo contra um paredão.
Será que eu não tinha visto no dia anterior que construíram uma barreira de
aço na virada daquela trilha? Balancei a cabeça para os lados e senti pelo
alfinetamento nas mãos que minhas palmas estavam sobre o carvalho. Então,
eu caíra? Sim, meu corpo estava sentado no chão. Entre abri os olhos e vi
contra a luz a parede, mas não era nada assim, tinha pernas brancas.
_...stá bem?_a voz pareceu mais próxima e na próxima vez que abri
os olhos concluí que eu devia estar sonhando. _Doug?
Eu tinha dormido no sofá e não viera correr, então, caíra no sono e
agora achava que Doug estava segurando meu punho.
_A gente trombou, desculpe... _mas a voz insistia em parecer tão real
como nas alucinações noturnas perfeitas. _...você está sangrando.
Aquela palavra subira minha pressão arterial e o oxigênio voltara a
minha cabeça. Era Doug mesmo, pois, nem em meu sonho, seu rosto de
preocupação conseguiria ser tão alarmante pra mim. Passei a mão na minha
testa úmida e entendi de onde vinha o sangue.
_Você bateu o supercílio na minha cabeça. _sua mão estava no meu
rosto e tudo que eu conseguia pensar era que tinha que correr o máximo que
minhas pernas cansadas pudessem conseguir. Ele logo descobriria que
minha pele não se refazia em questão de segundos e que o sangue não
pararia de coagular tão rápido.
_Tudo bem, está tudo bem. _levantei e caminhei ladeira abaixo feito
um bicho ferido procurando salvar a própria vida.
_Aonde você vai? Meu carro está aqui perto... eu posso te ajudar...
Ele não podia me ver sangrar tanto. Puxei a camiseta branca e fiquei
apenas com o top por baixo. Enrolei na palma de uma mão e tampei a face
com o pano. Por favor, coagule rápido. Comecei a pedir baixinho.
_Está tudo bem, meu carro está logo ali. Vai parar de sangrar já.
Eu sabia que era uma mentira, então, que entrasse logo no carro do
meu pai para acelerar. Mas, Doug não queria se dar por vencido e mantinha o
passo atrás. Até que sua mão mecânica forte agarrou o meu braço e me virou
com toda força, fazendo os meus cabelos ruivos grudarem no rosto. Ele
descobrira tudo, ele agora sabia que eu era uma humana, o que faria?
Contaria para toda a escola, riria da minha fraqueza?
Sua mão afastou com cuidado meu cabelo e seu rosto sério era o sim
para todas as minhas perguntas: sim, ele sabia; sim, ele me esganaria; sim,
ele...
Aurora
Li Mendi
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O nó de choro em minha garganta ia romper a qualquer momento.
_Seu corpo é perfeito. _ seu fio de voz não seria mais sinistro, se seu
rosto não parecesse dispersivo contemplando todo o meu físico malhado com
muito suor e dor. Ele estava demonstrando uma contradição? Como eu podia
ter corpo perfeito, sendo só uma frágil borboleta?
Ri diante da morte. Ser descoberta era quase como morrer:
_Como pode falar do meu corpo, quando eu estou machucada...?
_Desculpe, eu achei que podia correr aqui, mas não sabia que ia
achar uma companhia. Eu não preciso, mas é só pelo prazer de ficar sozinho,
faz bem pra cabeça.
_É... eu entendo, a gente não precisa, mas faz bem... _tentei
representar o mesmo discurso. _Tenho que ir. _ abri a porta do carro e
acelerei, sem ter coragem de olhar para o retrovisor.
Em casa, sentada na cadeira da cozinha, meu pai costurava minha
testa com suas mãos de cirurgião:
_Não vai poder ir a escola por um tempo. Vai perder as provas.
_Eu sei.
_Ninguém viu isso, Aurora?
Por que aquele tom parecia uma afirmação?
_Não, eu já disse que escorreguei e bati em uma pedra.
Deitada em minha cama, eu fechei os olhos angustiada. Se Doug não
tivera certeza que eu era uma humana, agora teria boas razões para
questionar a minha ausência na escola. Mas, será que ele lembraria de mim a
ponto de sentir a falta? Eu ficava com o benefício da dúvida.
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Meu coração não é mecânico
(Doug)
E aí, pegou?, era a voz da minha irmã Gisele na minha cabeça e seu
olhar zombeteiro do outro lado da mesa de jantar. Eu dei um suspiro de
cansaço e olhei para a empregada, arrumando as travessas na mesa e com
medo de nós, perguntou se podia sair mais cedo. Parecia assustada com o
modo que as pessoas daquela casa se comunicavam. Era ignorante para
entender que falávamos em pensamento por meio dos chips que
implantamos.
Não vou fazer mal a essa pobre mulher, respondi-lhe, remexendo a
comida no prato.
Eu estou falando da garota da escola, a ruiva.
Levantei os olhos e a encarei em total silêncio. Por que estava se
metendo nesse assunto? Sim, porque isso já virara a sua especulação
preferida.
_Querida! _minha mãe entrou pela porta saltitante, largou a bolsa de
compras na cadeira e beijou o topo da cabeça de Gisele. _O que achou?
_ficou com um sorriso aberto, esperando que matássemos a charada. Nós
dois paramos de mastigar e engolimos de vagar, tentando ganhar tempo.
O que foi dessa vez? É o brinco? Ou foi uma plástica nova? , Gi
estava confusa diante daquele jogo de adivinhação e eu não tinha muita
criatividade pra ajudá-la. Minha mãe fazia um retoque em seu rosto a cada
viagem de congresso. Rejuvenesceria tanto que não duvidaria encontrá-la
mais nova que a gente qualquer dia desses ao passar pela porta. Ela
aproveitava sempre a distância pra se recuperar das intervenções rápidas e
chegar novíssima.
_Eu é... que te pergunto: ficou como gostaria? _Gisele tentou ganhar
pistas que confirmasse, se estava falando de uma plástica nova.
_Como assim? Eu ensaiei tanto aquele discurso. Ficou maravilhoso!
_ela respondeu e pegou um pouco do suco. Então, estava nos questionando
se gostamos da sua apresentação! _Saiu na televisão, não vai dizer que não
viram?!
Trocamos olhares e eu senti que o silêncio seria a pior resposta e
resolvi deslizar para fora da mesa:
_A gente não entende daqueles termos técnicos, mas você pareceu
ótima! _ sorri afetuosamente e ganhei o corredor tão logo pude.
_Vai correr? _Gisele falou da janela de cima do seu quarto, vendo-me
alongar a perna no jardim. _Pensa que vai encontrá-la novamente?
_perguntou debruçada.
Aurora
Li Mendi
18
Como sabia sobre o que acontecera? Eu provavelmente devo ter
pensado alto e ela captara
_Ela não foi pra escola esses dias, será que está mesmo se
escondendo pra não vermos sua cicatriz?
Eu franzi o queixo de raiva e olhei-a com as pupilas quase encostadas
nas sobrancelhas. Gi levantou as mãos no ar e saiu em retirada da janela,
entendendo que eu não queria tocar naquele assunto. Eu definitivamente não
poderia ter cometido a besteira de deixá-la ler meus pensamentos sobre a
garota ruiva. Mas, eu chegara muito agitado aquele dia. Estava certa sobre
desconfiar se eu correria para reencontrá-la, porque era o que eu tinha feito
nesses últimos cinco dias de frustradas tentativas. Já não tinha mais certeza
de que ela apareceria por lá
Peguei meu carro e dirigi até a trilha verde próxima a mata. Deixei-o
ali e comecei a correr. Era minha maneira de ficar sozinho, respirar um ar
puro e com cheiro de terra. Uma arte milenar que poucos apreciavam agora.
Eu vinha da metrópole, onde o ar era muito poluído. Li um pouco sobre os
antigos supercorredores de mil anos atrás e comecei a admirá-los. Ninguém
hoje em dia dava valor para esse tipo de coisas, pois há um remédio para
tudo, uma perninha de DNA que muda a composição genética de qualquer
bebê. Contudo, havia um pouco de superação naqueles homens fracos. Não
tendo nossos superpoderes da genética, no entanto, aproveitavam mais o
tempo livro pra ter paz mental, pelo menos, nas longas corridas.
Peguei a montanha e lembrei-me da última vez que encontrei com a
garota ruiva. Eu, primeiramente, estacionara meu carro perto de outro na
parte baixa da elevação e até supus ser de um caçador e temi correr por ali
com medo de alguma bala perdida. Mas, ao olhar mais para cima, constatei
que havia uma figura pequena correndo ao longe e vi que tinha uma
companhia de corrida. Resolvi me aproximar, porém, na virada de uma curva
nos chocamos. Seu corpo caiu para trás como se tivesse batido contra um
muro. Foi, então, que me dei conta de que a garota ruiva, como se
chamava..., Aurora, estava diante de mim, com as mãos machucadas pelo
carvalho.
_Está bem? _agachei-me para ajudá-la, prontamente, pois parecia
tonta. _ A gente trombou, desculpe... _afastei o cabelo do seu rosto e minha
mão se sujou de um líquido vermelho como seu cabelo, como se este
pudesse ter se derretido com o calor. _...você está sangrando
Seus dedos encostaram em seu supercílio e a preocupação que
adiara até então tomou seus olhos como um horror.
_Você bateu o supercílio na minha cabeça. _informei-lhe e tentei ver
melhor, mas ela me afastou insistindo que estava “tudo bem”.
_Aonde você vai? Meu carro está aqui perto... eu posso te ajudar... _
tentei seguir seu ritmo, preocupado com o fato de tê-la machucado, mas um
gesto seu me fez estancar. Suas mãos puxaram a camiseta que passou pela
sua cabeça deixando revelar costas perfeitamente torneadas. Duas covinhas
acima da sua bunda redonda me fizeram sentir a garganta seca. As costas
também definidas revelavam as mãos mágicas do melhor cirurgião escultor.
Aurora enrolou a camisa no punho e levou ao rosto, virando-se para fazer um
gesto com a outra mão pra que eu não a seguisse.
_Está tudo bem, meu carro está logo ali. Vai parar de sangrar já. _
tentou fugir, mas em uma reação rápida, puxei-a com mais força do que
desejei, e seus cabelos voaram no ar até grudar em seu rosto úmido de suor.
Seus cílios e sobrancelhas eram mesclados de tons castanho claro e ruivo.
Meus olhos desceram por seu colo redondo e apertado no top curto
que não cobria o abdômen mais definido e lindo que já vira. Era como se
segurasse um coelho fraco pelos pés de ponta a cabeça, pois seus olhos
tinham medo e tive impressão de que tremia. Me dei conta de que era melhor
soltá-la, apesar de não querer.
_Seu corpo é perfeito. _ pensei alto baixinho. Era a forma de super
mulher mais linda do mundo. Não sei se pareci muito idiota, mas isso a fez rir.
_Como pode falar do meu corpo, quando eu estou machucada...?
Claro! Que comentário sem cabimento o meu?! Estava admirado com
sua perfeição quando se machucara.
_Desculpe, eu achei que podia correr aqui... _comecei a falar coisa
com coisa. _ mas não sabia que ia achar uma companhia. Eu não preciso ..._
dei-lhe explicações que nem me pedira. _... mas é só pelo prazer de ficar
sozinho, faz bem pra cabeça.
_É... eu entendo, a gente não precisa, mas faz bem... _repetiu com
uma voz um pouco vaga, olhando o chão.
Por que não parava de sangrar rápido? Seus super coaguladores não
iniciavam a formação de pele rápido como todos os super humanos...? Meu
cérebro foi interrompido por uma constatação que ela pareceu ler nos meus
olhos: Era uma humana disfarçada?
_Tenho que ir. _ desceu correndo a colina, abriu a porta do carro e
fugiu. Ainda voltei várias vezes desejando o mesmo encontro, mas não
consegui. Ela não me saia da cabeça, se era humana, como seria possível
aquele corpo tão torneado e perfeito?
Nos dias seguintes, eu vi sua cadeira vazia na classe e, de repente,
aquela cidade parada me dera uma certa emoção. Tomei a decisão de
perguntar para os professores se sabiam do paradeiro da garota. A Eliza de
matemática me ajudara com a pista:
_O pai disse que ela teve um problema de saúde, mas que vai voltar.
Está levando todos os dias o trabalho dela, não se preocupe, meu caro...
_Eu posso levar pessoalmente. _me ofereci.
Ela olhou-me sobre os óculos e parou de mexer no papel em sua
mesa.
Aurora
Li Mendi
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_Mas, eu posso enviar por e-mail em um milésimo de segundo e,
mesmo que quisesse impresso, o pai dela é professor daqui e poderia levar
em mãos...
_Não, não, é diferente. _ cortei-a e cheguei mais perto de seus olhos
amarelados. _ Eu, como filho da diretora dessa escola, tenho que dar o
exemplo de espírito comunitário.
_Ãnh... E?
_E queria eu mesmo levar o trabalho e fazer uma visita, se é que me
entende.
_E comer a chapeuzinho disfarçado de vovozinha? Não me canse...
_Ela vai se sentir melhor. Quem aqui se propôs a isso? Quem saiu do
seu próprio individualismo e pensou em ir lá visitá-la?
_Tudo bem. O trabalho eu já enviei, agora é só você pegar essa lábia
toda, essa cara de pau e aparecer lá dizendo que vai ajudá-la a tirar as
dúvidas. É só isso que posso fazer.
_Obrigado. Só mais uma coisinha, onde fica a casa dela?
_Não me pergunte isso. Sabe que eu não falaria... _ela escreveu no
papel uns rabiscos e me deu. Beijei-lhe o rosto e sorri em agradecimento. _
Só pelo seu lado bonzinho cheio de segundas intenções.
_Como pode pensar isso de mim? _ ri e sai pela porta carregando a
chave para a próxima fase de um jogo excitante.
Peguei o meu carro, atravessei a cidade e encontrei o endereço perto
de uma zona arborizada. As câmeras captaram a minha presença e eu me
identifiquei no fone próximo ao portão que se destravou. Uma empregada veio
receber-me e pediu que entrasse.
_Aurora deve estar nos fundos fazendo aquelas coisas estranhas.
Mas... vou dizer que é você, espere aqui. _pediu.
Coisas estranhas? Que tipo? A minha curiosidade falou mais forte e
eu procurei segui-la alguns passos atrás. Nunca teria a chance de descobrir
que tipos de coisas esquisitas seriam essas, se não bancasse o mal educado.
Foi quando me deparei com uma grande varanda envidraçada e uma
garota socando um saco de areia vermelho como seu cabelo. Era realmente
destoante, mas surpreendente a forma como surrava o saco com mãos e pés.
Quem era aquela maluca?! Por que despejava sua raiva ali? Seu corpo era
naturalmente perfeito, não tinha por que se esforçar.
_Eu não quero vê-lo porque deixou que entrasse? _ meus ouvidos
captaram sua voz baixa
_Desculpe, mas pensei que pudesse ser seu namo...
_Ficou maluca?! _gritou. _Nunca!
_Não precisa bater nela. _ eu apareci na porta da varanda e a mulher
ficou desnorteada por ter permitido minha entrada. _Pode nos deixar. _ pedi e
ela sumiu receosa por causa da bronca que acabara de tomar por imaginar
que eu era bem vindo.
Aurora virou o rosto e se escondeu atrás do saco de areia.
_Eu não te convidei, como aparece na minha casa, poderia vir outra
hora?_ sua voz invocada era a energia para implicar com ela.
_Não. _afastei o saco de areia e vi seu rosto, ainda com um curativo
no supercílio. Meu coração feliz bateu aliviado por constatar que estava mais
saudável que pensava, por mais que não houvesse motivo para ainda estar
de curativo.
_Vá embora. _expulsou-me sem me convencer direito que queria isso.
_Não posso ir. Eu te fiz mal, te machuquei. Me disseram que estava
doente. Mas, parece ser feita de ferro.
Ela soltou uma risada e seus olhos cintilaram.
_Tudo bem, mas meu pai não pode te ver aqui. _ olhou para os lados
e a ponta dos seus dedos tocaram o meu abdômen enquanto se certificava
sobre o território e depois olhou-me rapidamente, escolhendo tomar alguma
atitude em relação a mim.
_O quê? Ele não é do tipo antiquado? _usei de toda a estupefação.
_Isso é coisa das cavernas! Você não tem amigos?
_Não! _irritou-se. _Não entende... Você n-ã-o pode estar aqui!
_perdeu a paciência de uma maneira que conseguiu me convencer de que
estava com muito medo.
_Se eu não posso estar aqui, onde posso? Vamos sair daqui?!
_Está louco?_franziu a testa. Ela chutava um saco de areia e estava
contestando minha sanidade?
_Se você não está salva na sua casa, vamos sair daqui!
Onde?_pressionei.
_Por favor, por favor... _ implorou mais perto, testa franzida. _... Sai
por aquela porta e não me faz perguntas._seu olhar me pedia lá dentro pra
insistir só mais um pouco.
_Sem perguntas, eu saio por aquela porta, mas vem comigo. _segurei
sua mão.
_Eu?_ recuou um passo atrás.
_Sem perguntas, prometo, estou de carro._puxei-a comigo.
Respirou fundo.
_Pra onde?
_O caminhar faz o caminho, vamos. _ tomei a frente e olhei pra trás.
Aurora hesitou, mas logo seguiu-me.
Na sala, cruzamos com a empregada que recebeu o recado de que
pra todos os efeitos ela tinha saído sozinha pra correr. Entramos no meu carro
e só aí Aurora pareceu-me mais aliviada.
_Não entendo, parece que você estava com medo que nos
matassem. _brinquei, mas ela não negou.
_Sem perguntas. _lembrou-me de suas regras.
_Mas, foi uma afirmação. _corrigi.
Aurora
Li Mendi
22
Ela sorriu um breve sorriso e colocou o cabelo atrás da orelha,
deixando o curativo da cor da pele aparecer. Mas, cumpri o meu juramento de
não questionar.
_O que estava fazendo correndo aquele dia? _ ela quis saber.
_O mesmo que você, correndo pra sei lá, espairecer a cabeça
_dei de ombro e parei o carro perto da trilha. _Quer andar?
Dei a volta no carro e notei suas pernas musculosas apertadas no
short colado. O olhar nada discreto a enrubesceu. Caminhamos na trilha.
_Você é novo na cidade? _manteve o assunto.
_Sim, minha mãe queria uma vida mais calma longe da poluição da
cidade. É meio bucólica.
_E está gostando? _ fez uma careta repentina de dor. Parei e
perguntei se tinha algum problema._Não... só uma tensão muscular... _
pareceu concentrar-se, respirou fundo e encostou as mãos em uma árvore,
esticou a perna para trás e alongou.
_Pegando pesado? Não precisa, você é perfeita.
_É sempre bom aperfeiçoar a natureza. _ sentou-se em um tronco e
fiz o mesmo.
_Ela não está sendo tão boa com você. _ passei a ponta do dedo na
sua testa, em torno do pequeno curativo, sendo muito difícil não perguntar.
_Está sim. Eu estou aqui... _ sorriu como se isso não fosse
perfeitamente possível.
_Eu não vou poder perguntar nunca nada?
_Isso já é uma pergunta.
_O que eu posso então? _olhei direto para o centro do seu rosto.
_Fica quieto. _ pediu baixinho, olhou-me longamente e não parecia
feliz. _ Doug, por que veio atrás de mim?
_Eu não tenho resposta.
_Nenhuma que seu superchip possa trazer?
_Ele ainda não está no meu coração, mas na minha cabeça.
_O que te falta? _questionou.
_Perguntas. _ sorri.
_Você precisa ter certezas pra gostar de mim? Como amiga.
_Não.
Aurora ergueu o rosto para a luz do fim de tarde, de olhos fechados,
cabelo para trás.
_Primeiro eu quase te atropelei de carro, depois te atropelei com meu
corpo naquela trombada, acho que eu tinha que atropelar o seu caminho.
_Como você que é quase um robô pode acreditar em destino?
_ironizou.
_Eu já falei que meu coração ainda não é mecânico.
_Temos que ir, meu querido robô. _ brincou e soltou uma gargalhada
que trouxe uma força inexplicável para o ar. _Eu... _apontou para o peito. _
Posso chegar antes que você lá no carro. _ começou a correr, deixando sua
cabeleira de ondas de fogos pelo ar.
Corri também, sem o mesmo esforço, admirando seu rosto virando
para trás sorridente. Quando chegou, levantou os braços para o alto em
vitória, pulando e gritando.
_Você não é normal por tudo que já vi. _ abri a porta pra que
entrasse. Mas, ela continuou lá brilhando, irradiando tanto vida que eu podia
agarrá-la tão fácil, só que não me jogaria na vertigem daquele sentimento. Ela
não era convencional. Depois, como boa menina, passou por mim e sentouse.
_Doug. _ela disse antes de sair do carro, na frente da sua casa. _
Obrigada. Não precisa mais...
_Te pego amanhã. _atropelei suas palavras.
_Não, eu vou pra escola com meu pai.
_Eu disse que te pego pra corrermos. Sozinhos. Sem perguntas. O
que teria de errado com isso?
_Nada. _ falou pra baixo, destravando a porta.
Segurei sua mão que escapava do banco e beijei na região do seu
pulso, sentindo em meus lábios seu coração pulsando e umedeci ali minha
marca.
Aurora
Li Mendi
24
5
Me leve pra onde possa amá-lo.
(Aurora)
Minha mãe organizava junto com nossa empregada Alice as compras
que o supermercado acabara de deixar com o carrinho em nossa porta. Era
tão prático poder receber tudo em casa e não poluirmos o ambiente com
sacolas plásticas. Eu mastigava meu pão integral e pensava sobre isso,
enquanto olhava nossa empregada, humana como eu, tratar-nos como
superhumanos perfeitos e saudáveis. Ela não entendia muito porque eu me
esforçava tanto para fazer exercícios. Dizia sempre que eu fazia coisas
malucas em prol da beleza e que não podia ser escrava desse mundo. Eu não
podia dizer-lhe que não fazendo isso terminaria enrugada e feia logo como
ela.
Estar bonita e perfeita me permitia estudar em uma escola de
superhumanos, só não me dava a liberdade para me apaixonar por um deles.
Esse era um dos problemas dos quais meus pais não me arrumaram uma
solução, mas já começavam a perceber que chegara a hora de lidar com isso.
Minha vontade era não tocar no assunto, mas meu coração também queria
solução para um assunto que não me importara até dois anos atrás.
_Já viu como a Aurora está com cara de quem viu um passarinho,
senhora? _ Alice piscou para minha mãe e as duas riram. Mas, vi no olhar da
minha mãe para mim uma pitada de preocupação que só eu pude captar.
Levantei da mesa e fui para a varanda. Alice tinha bastante intimidade
conosco por todos seus anos de trabalho e dedicação e logo captaria que
dera o tiro certo. Sentei em minha esteira de meditação, alonguei o pescoço
de um lado para o outro e, em posição de lótus, comecei a controlar minha
respiração. Ninguém viria me perturbar enquanto eu estivesse ali de olhos
fechados.
Meu pai sempre me ensinara a sabedoria milenar dos gregos sobre
mente sã, corpo são. Porém, minha mente estava em conflito com meu
coração e isso me trazia um aperto no peito. Eu não queria pensar nele, mas
nem a ausência na escola por conta do machucado me ajudara a pelo menos
esfumaçar sua visão da minha lembrança. Eu rezava, por pura fraqueza, pra
que me esquecesse quando eu retornasse ou, ao pra o universo ser mais
bondoso comigo, o mandasse embora dali pra bem longe, quando tudo que
meu coração queria era mantê-lo perto!
Irritada por não meditar, levantei-me e coloquei minhas luvas
emborrachadas. Comecei a chutar o saco de areia. Havia muita energia retida
em mim e eu tinha que gastá-las.
_Você quer conversar? _minha mãe sentou-se na espreguiçadeira da
varanda com seu fino computador na mão e foi ler sua revista de fofoca de
artistas.
Continuei calada e chutando.
_Acho que já poderá voltar pra escola. Está tensa por causa disso? _
perguntou, tocando várias vezes com o dedo indicador e polegar na tela de
led.
_Não, a cicatriz está quase boa, vou usar um penteado que cubra e
sentar no fundo da sala... _respondi sem fôlego, entrecortadamente.
_Está ansiosa?
_Por quê? _ abracei o saco pra que parasse de balançar no ar e a
olhei.
_Deve ter alguém esperando por você...
_Eu não tenho...
_Sabe que não pode mentir pra mim, eu te conheço, Aurora.
_Senhora, tem uma visita na porta. Não conheço. _ Alice anunciou.
_Parece jovem...
Meu coração encostado no saco pareceu querer socá-lo, pois bateu
no peito com força e eu senti o suor esfriar. Não pode ser ele?! Nem sabe
meu endereço!
_Hum... Interessante, vamos ver. _ Minha mãe acessou as câmeras
de segurança na tela em sua mão e sorriu. _ Que gato! Uau. Aurora está
escolhendo bem seu namorado! Deixa ele entrar... Eu vou lá para o quarto
tomar um banho e não vou atrapalhar os pombinhos...
Era melhor não segurar o saco de areia pra não cair no chão. Minhas
pernas estavam moles.
_Mãe, não... _sussurrei pra ela, de costas pra Alice. _ Ele é um
superhumano... _ tentei fazer com que lesse meus lábios. Ela levantou a
sobrancelha com um ar “e daí?”. Minha mãe estava querendo subverter as
regras do meu pai? _ Não posso, ele vai descobrir...
Ela se aproximou de mim e falou ao meu ouvido:
_Querida, você vai viver menos, então, que viva mais que puder. E só
o amor faz o tempo ter sentido. Ninguém precisa saber se você souber fazer
direito...
_Eu não quero me machucar...
_Não há como não se machuca, nem os superhumanos podem estar
imunes a isso.
_Se meu pai souber, ele vai ficar muito bravo.
_Ele vai viver mais tempo que você pra superar isso. _ acariciou
minha bochecha. _Alice, mande o namorado da Aurora entrar... _minha mãe
falou alto e foi para seu quarto.
Aurora
Li Mendi
26
_Alice, não deixe ele entrar. _pedi.
_Alice, manda ele entrar! _minha mãe gritou do alto da escada.
_Não! _ainda implorei sem moral e me vi em pleno estado de nervos.
Soquei o saco de areia várias vezes.
_Aurora, ele está chegando....
_Eu não quero vê-lo, por que deixou que entrasse?
_Desculpe, mas pensei que pudesse ser seu namo... _ respondeu,
levada pelas insinuações da minha mãe.
_Ficou maluca?! Nunca! _ franzi a testa. Queria poder lhe explicar o
quanto era complexo ter que me esconder dos superhumanos me fazendo
passar por um deles.
_Não precisa bater nela. _ a voz grave de Doug me estremeceu o
coração. Alice olhou para ele preocupada por ter entrado até ali ao meu
contragosto. _Pode nos deixar. _ ele pedi com seu ar de comando que me
faria também seguir todas as suas ordens. Transmiti pelo olhar meu
consentimento pra Alice que saiu sem entender mais nada.
Dei um passo a frente, ficando o saco de areia entre nós e me dei
conta de que o curativo estava em minha testa. Ele logo faria
questionamentos sobre isso.
_Eu não te convidei. Como aparece na minha casa? Poderia vir outra
hora?_ comentei seca pra desestimulá-lo.
_Não. _ele afastou o saco de areia e seus olhos se fixaram
diretamente no meu supercílio. Já sabia as perguntas que deviam estar
passando em sua cabeça e não queria ter que me esforçar para respondê-las.
_Vá embora. _pedi com cansaço.
_Não posso ir. Eu te fiz mal, te machuquei. _ explicou. Se soubesse
que não fizeram nenhum mal ainda do que era capaz enquanto me achasse
uma super humana. Eu conhecia muitas estórias ruins de garotas mortas e
que sofreram violência quando tentaram bancar a esperta e dar o golpe.
Caras como ele não iriam querer um tipo de gen como o meu para suas
futuras gerações. _ Me disseram que estava doente. Mas, parece ser feita de
ferro. _comentou.
Eu ri daquela visão míope. Não, eu era feita de gens fracos e não
tinha nenhuma maquina dentro de mim me sustentando a longo prazo.
Minhas células morriam e envelheciam a cada dia.
_Tudo bem. _ suspirei. Já que tinha me visto, precisava tirá-lo daqui.
Era perto da hora do meu pai chegar. _ Meu pai não pode te ver aqui. _pensei
um pouco.
_O quê? Ele não é do tipo antiquado? Isso é coisa das cavernas!
Você não tem amigos?
_Não! Não entende... Você n-ã-o pode estar aqui!
_Se eu não posso estar aqui, onde posso? Vamos sair daqui?!
_propôs e eu parei de respirar por alguns segundos realizando aquele pedido.
Eu iria para um lugar bem longe da civilização pra poder ficar com ele. Mas,
esse planeta ainda era impossível de chegar.
_Está louco?_chutei o saco de areia e tentei não demonstrar muita
empolgação por tê-lo na varanda da minha casa, quando na verdade parecia
que tinha sido trazido pela força dos meus pensamentos.
_Se você não está salva na sua casa, vamos sair daqui!
_Por favor, por favor... Sai por aquela porta e não me faz perguntas.
_Sem perguntas, eu saio por aquela porta, mas vem comigo.
_segurou minha mão e estremeci, mordi meu lábio com a boca seca.
_Eu?
_Sem perguntas, prometo, estou de carro._puxei-me.
_Pra onde?
_O caminhar faz o caminho, vamos.
Aqueles olhos azuis me levariam pra dentro da armadilha e eu estava
perdida pelo feitiço que se apoderava de mim. Sua mão quente apertando
meus dedos me cortou o fio de sanidade que tentava se ligar ao meu coração.
Falei pra Alice que sairia pra correr. Eu não podia estar vivendo
aquilo, era um sonho, mas eu estava na porta de casa, diante do carro do
cara mais supergato da escola?
_Não entendo, parece que você estava com medo que nos
matassem. _ele se divertia com fogo.
_Sem perguntas. _cortei-o, apertando os cintos.
_Mas, foi uma afirmação. _lembrou-me com aquele jeitinho doce que
me quebrava. Sorri.
_O que estava fazendo correndo aquele dia? _ perguntei pra ouvir
mais sua voz.
_O mesmo que você, correndo pra sei lá, espairecer a cabeça. _ falou
e logo depois estávamos perto da trilha onde tivemos nosso primeiro
encontro. _Quer andar?
Como poderia exigir mais que aquilo? Era um lugar vazio, calmo e
distante. Ao mesmo tempo, temi que se descobrisse tudo, resolvesse me
fazer algum mal onde ninguém ouviria meu pedido de socorro. Como eu me
arriscava tanto?
Sai do carro e desenrolei a borda do meu short e o peguei já do meu
lado me admirando. Senti minhas bochechas esquentarem.
_Você é novo na cidade? _tentei ficar dentro das obviedades.
_Sim, minha mãe queria uma vida mais calma longe da poluição da
cidade. É meio bucólica. _ revelou, iniciando a caminhada.
_E está gostando? _ perguntei e senti uma fisgada na minha perna.
Tentei andar mais um pouco e vi que não ia parar.
_Que houve?
_Não... só uma tensão muscular... _ respirei fundo e tentei alongar a
perna.
_Pegando pesado? Não precisa, você é perfeita.
Aurora
Li Mendi
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Virei o rosto para o lado, que estava entre os braços esticados e
apoiados na árvore para que eu alongasse a perna.
_É sempre bom aperfeiçoar a natureza. _ disse-lhe tentando não
parecer irônica e sentei-me em um tronco tombado.
_Ela não está sendo tão boa com você. _ encostou o dedo em minha
têmpora e li todos os seus questionamentos angustiantes nos olhos que não
paravam de ir para um lado e outro tentando captar qualquer expressão
minha.
_Está sim. _ Como eu podia reclamar da minha natureza? Eu estava
linda o suficiente para enganá-lo de superhumana e ter esse pequeno
momento de normalidade. _ Eu estou aqui... _ sorri.
_Eu não vou poder perguntar nunca nada?
_Isso já é uma pergunta.
_O que eu posso então? _olhei direto para a minha boca.
_Fica quieto. _ pediu baixinho quando ameaçou o rosto para frente. _
Doug, por que veio atrás de mim
_Eu não tenho resposta.
_Nenhuma que seu superchip possa trazer?
_Ele ainda não está no meu coração, mas na minha cabeça.
_O que te falta?
_Perguntas. _ sorriu com os dentes perfeitamente brancos.
_Você precisa ter certezas pra gostar de mim? Como amiga. _corrigi e
estabeleci os limites.
_Não.
O céu estava lindo. Alaranjado e azul. Fechei os olhos e tombei o
pescoço para trás.
_Primeiro eu quase te atropelei de carro, depois te atropelei com meu
corpo naquela trombada, acho que eu tinha que atropelar o seu caminho.
_Como você que é quase um robô pode acreditar em destino?
_Eu já falei que meu coração ainda não é mecânico.
_Temos que ir, meu querido robô. _ ri _Eu... _apontei para mim. _
Posso chegar antes que você lá no carro. _ apontei e começou a correr.
Ele sorriu fazendo rugas nos cantos dos seus lindos olhos e correu
atrás, sabia que podia fazer melhor, mas queria me deixar vencer.
_Você não é normal por tudo que já vi. _ disse quando abriu a porta
pra que entrasse.
Eu fiquei parada no meio daquele campo verde e tive vontade de dar
alguns passos, puxá-lo e beijar seus lábios pra sentir seu gosto. Mas, me
resignei a só entrar no carro.
_Doug, obrigada. _ agradeci quando parou na frente da minha casa.
Eu sabia que aquele dia de doces ilusões era uma exceção em minha vida._
Não precisa mais...
_Te pego amanhã. _cortou-me.
_Não, eu vou pra escola com meu pai.
_Eu disse que te pego pra corrermos. _ corrigiu. _ Sozinhos. Sem
perguntas. O que teria de errado com isso?
Tudo. Tudo daria errado.
_Nada. _ destravei a porta.
Segurou minha mão e me beijou daquele jeito que fazia meu coração
virar uma gelatina de morango.
Quando entrei, minha mãe veio correndo até mim. Senti um pânico.
Meu pai estava bravo com algo?
_Eu disse que estava lá em cima no seu quarto estudando. Deixei a
luz acesa. Corra pra lá que seu pai está no banheiro. Precisava ter demorado
tanto!
Eu ri e corri na ponta dos pés descalços pela escada.
Meu celular tocou em cima da minha cama. Era uma mensagem da
minha amiga dizendo que Doug pedira meu número. Depois, outra de Doug:
“Cuide dessa perna.”
Eu tinha que cuidar do meu coração que não podia ser substituído por
um mecânico menos burro.
Aurora
Li Mendi
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6
Virando o jogo para o meu lado
(Doug)
Eu estava com o coração mais acelerado que o meu carro pra chegar
à casa de Aurora. Isso suava infantil quando eu podia beijar e transar com
qualquer garota da escola. Mesmo assim, me excitava a idéia de sair com a
menina de fogo. Claro que minha irmã tirara sarro de mim, correndo atrás
como um cachorrinho possessivo.
_Vão fazer um programinha juntos? _ se jogou na poltrona do meu
quarto e começou a me olhar com a inspeção de uma estilista. _Que tal
aquela calça ali meio desfiada no joelho, ela ressalta sua bunda. _apontou pra
o meu guarda-roupa aberto diante de mim. _ Ela vai querer te agarrar, confia
em mim. _piscou o olho e resolvi seguir sua intuição por não ter mais tempo
pra escolher. _A branca. _puxou do cabide a camisa e empurrou contra o meu
peito. _Esse perfume aqui e tire essa pulseira ridícula de couro do braço!
_tomou todo o controle e isso era sinal de barganha. _Agora, me conte qual
vai ser? _cruzou os braços e sorriu.
_Hum, cinema. _falei baixinho na esperança de não entender o meu
resmungo controverso.
_Ela sabe disso? _questionou sem a menor coerência. Franzi a testa
e ela emendou. _Se você levou dois minutos pra se arrumar, irmãozinho, a
sua garota vai levar umas três horas para combinar todos os sapatos,
vestidos, maquiagens e acessórios. Isso significa que, se bancar o idiota que
faz surpresinhas, ela vai querer te pegar. Só que, dessa vez, eu quero dizer
enfiar uma faca bem aí no meio! _gesticulou como se enterrasse um punhal
na palma da outra mão.
Pensei na promessa de que correríamos e na minha intenção de
trocar o programa para o cinema através de uma ligação no meio do caminho
da sua casa e, de repente, minha irmã pareceu um pingo razoável. Mesmo
que Aurora não fosse discípula escrava da moda como minha irmãzinha do
esquadrão da beleza, ela poderia ficar indisposta com a idéia de estar de
moletom para ir ao cinema.
_ Vou avisar.
_Você sempre precisa de mim. _suspirou e continuou apoiada na
minha escrivaninha estudando o meu semblante. Relutava por eu ter fechado
seu acesso a minha mente nos últimos dias. _Conseguiu matar a charada
sobre ela ser humana ou não? Eu posso ajudá-lo, se quiser.
_Nem pense nisso! _levantei e seus olhos se ergueram por eu ser
mais alto e forte que seu corpo miúdo. _ Eu não preciso de uma protetora.
_Mas, ela vai precisar de um protetor quando todos descobrirem
quem ela é.
_Não me importa.
_O que disse? _falou alto e pegou meu braço. _ Sabe o que isso pode
significar? Aurora está em uma escola de super-humanos e vão expulsá-la de
lá! Pra você não faz diferença, porque é super em tudo, super gato, super
rico, super saudável, super inteligente... Não tem que fazer o mesmo esforço
que ela pra jogar tudo por terra por um puro capricho hormonal de levá-la...
_Não é isso que quero!_botei um fim naquela conversa. Era isso que
eu queria, mas não dessa forma, nessa seqüência comum, eu queria alguma
coisa diferente que não sabia explicar. _ E estou atrasado.
_Então, vai ser pior ainda. _balançou a cabeça para os lados. _ Já
pensou quando nossa mãe souber que seus gens vão ser propagados por
uma humanóide fraca que morrerá logo?
_É só um cinema. Me deixe em paz. _pedi, sem deixar minha
mententransformar sua profecia em imagens. Não queria que Aurora
desaparecesse. Desci a escada da entrada da minha casa aos pulinhos
querendo correr da realidade tão óbvia. Aurora se machucara e não se curara
rápido, tinha dores musculares, se preocupava demais com a saúde e queria
se afastar de mim. Era a equação equivalente a uma humanidade frágil.
Agora, eu dirigia com a única vontade de vê-la e, droga, não ligara pra
avisar.
_Alô? _ disse quando ela atendeu. _Oi. Eu queria saber se podíamos
ir ao cinema...
Seus dois segundos de mudez me fez pensar que eu podia ter trazido
uma roupa de corrida e tênis como plano B. Agora era começar a torcer pra
aceitar. Nem que eu tivesse que incentivar:
_Tem um filme legal passando e...
_Tudo bem. Pode ser. _aceitou facilmente e eu agradeci a sorte.
_Estou no caminho da sua casa. Eu posso esperar você se arrumar...
_Não, tudo bem, eu me arrumo muito rápido. Quando chegar, me
espera no carro e me liga, ok?
_Ãnh, ok. Como preferir. _respondi, suspeitando ter algo que ver com
seu pai. O que começava a ter total ligação com a possibilidade de ela ser
mesmo uma humana. Mas, como era possível com um pai cientista e uma
mãe superhumana, também?
Como pedira. Desci do carro na frente de sua casa e fiquei do lado de
fora. Liguei pra avisar que chegara e me apoiei com a mão no bolso. Quando
menos pensei, a vi sair do portão me fazendo piscar duas vezes pra acreditar.
Usava um vestido solto, com as mangas caídas e um colete de couro marrom
meio envelhecido e muitos cordões prateados pendendo entre seus seios. O
cabelo brilhante emoldurava tudo em uma fogueira de cachos vermelhos.
Aurora
Li Mendi
32
_Oi. _ela cumprimentou-me com um sorriso amplo e brilhoso. Minha
resposta retardada foi o silêncio e então correspondi: _Oi. Foi rápido mesmo.
Já estava pensando em correr assim? _ lembrei-me da conversa com minha
irmã.
_Ah! Esse é meu look de terças e quartas pra correr. _olhou-se de
cima abaixo em tom de brincadeira e riu, passando o polegar na alça de
argolas douradas da bolsa atravessada no seu peito como um sinal pra eu me
tocar e fazer alguma coisa, tipo abrir a porta do carro.
(...)
Ela com os ingressos do filme na mão, eu agradeci por estar abraçado
ao saco de pipoca, pois não saberia onde colocar as mãos, se na sua cintura
ou nos meus bolsos. Pedi pra que ela pegasse minha carteira na parte de trás
do meu jeans e com uma risadinha ela se divertiu tentando tirá-la e foi
inevitável me questionar, se minha irmã estava certa sobre querer agarrar a
minha bunda.
_Esse filme é bom? _ela perguntou enquanto caminhávamos para
nossa vez de passar pela inspeção das carteirinhas.
_Pra dizer a verdade, escolhi pelo horário... _respondi vagamente
enquanto eu me questionei rapidamente se ela tinha uma identidade de
super-humana. Eu devia esquecer aquelas dúvidas, mas era impossível.
O governo tinha um banco de dados central que guardava nossos
dados como cartões de crédito, movimentações bancárias e compras de
qualquer gênero. Era difícil tecnicamente falsificar, por exemplo, uma carteira
de estudante que nos isentava de pagar o cinema. Uma vez que estávamos
em fase de aprendizado, era óbvio que devíamos ter o máximo de acesso a
cultura de graça pra ganharmos o máximo de conhecimento.
_Não é possível.
_Ãnh? Desculpe, não prestei atenção no que perguntou. _voltei a
realidade e observei em sua expressão que não gostara nada dos meus
devaneios. _Nada. _passou a frente, entregando as carteiras, em uma rápida
manobra passou a roleta e me deu as costas.
_Sério, desculpe, o que falou?
_Que não é possível que não checou na sua cabeça aí poderosa o
trailler, roteiro... _ comentou com voz entediada e baixa, devolvendo-me
dessa vez com frieza.
Suspirei e senti que suava com tanta pressão de possibilidades. Eu
tinha que relaxar.
_Eu posso fazer isso. _concentrei-me buscando na rede com ajuda do
meu chip dados sobre o filme.
_Esquece. _ disse aquilo com o mesmo tom de “morre!” e partiu
marchando para a sala.
Entrei na sala redonda e me juntei ao grupo de pessoas que
esperavam a projeção de 360º começar. Logo as holografias começariam a
aparecer e o cenário nos envolveria completamente.
_Pode comer a pipoca, pelo menos ela não está tão ruim quanto eu.
_dei um gole no refrigerante e senti que havia muito gelo. Eles deveriam
descontar os 250 ml de gelo naquele combo.
_Foi mal, eu só... _ela balançou a cabeça para os lados e senti que
era sua vez de tentar relaxar. _... Está boa mesmo? _mastigou um punhado
de pipoca e fez um sim com a cabeça.
Deixamos nossas coisas em cima de uma bancada e nos sentamos.
Eu podia baixar qualquer filme em casa, mas nada substituía a sensação de
estar completamente imerso na estória, vendo os personagens passarem por
mim como se eu fosse parte do enredo e estivesse no local. Agora, melhor
que isso era ter uma super garota como aquela como companhia.
Parece que a nossa fome estava maior que a demora do início da
sessão, pois acabamos rápido com a pipoca.
_Eu só não gosto de terror. Nada pior do que filme de espíritos. _ ela
comentou e senti que dera a mancada do dia, pois fora justamente sobre isso
que eu estava tentando lhe contar quando entramos. Acho que eu estreava
nosso encontro com uma grande mancada.
_Hum... _levantei os olhos, estudando se a porta já havia sido
trancado pra escaparmos.
_Não pode ser! _parece que Aurora entendera minha expressão de
fuga. _É dos terror de pegar no nosso pé?
A luz se apagou e era como se eu a tivesse jogado no inferno de
dantes sozinha, pois agarrou o meu braço e imediatamente pude medir sua
pressão arterial.
_Acalme-se, é tudo mentira, você vai achar até divertido. _ri e me dei
conta de que tudo se virara ao meu favor. _Eu estou aqui. _envolvi-a com os
dois braços por trás até que minha respiração ficasse em seu ombro.
Ela abaixou mais a cabeça e fechou os olhos, esfregou a nuca com
uma mão e me questionei se era algum sinal para que eu progredisse para
aquela área agora nua, sem a cabeleira deslocada para o outro ombro.
Aurora
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7
Perdendo ou ganhando
(Aurora)
O teto do meu quarto parecia uma tela por onde eu projetava várias
cenas nunca filmadas pela memória, apenas criações solitárias. Foi uma
manhã inteira inútil de sábado assim sobre a cama. Minha mãe apareceu na
porta do quarto preocupada por eu não ter descido para o almoço.
_Precisa se alimentar, querida. _passou a mão na minha testa,
afastando o cabelo do rosto. _Alguma coisa a ver com aquele belo par de
olhos azuis?
Fechei as pálpebras e suspirei.
_Céus, muito pior do que eu pensava. Chega pra lá. _pediu e deitou
no travesseiro que eu acabava de ceder.
Quem não soubesse nosso grau de parentesco poderia dizer que era
uma irmã mais velha com um corpo incrível e uma vivacidade de garotinha.
Deitadas sobre essa cama king, já resolvemos boa parte dos meus conflitos
existenciais. Minha mãe sempre conseguia tornar mais emocionante o que
meu pai me fazia acreditar ser perigoso.
_Em que ponto vocês estão agora? _perguntou como se eu estivesse
em alguma parte de um livro de estórias para dormir.
_Estamos na parte em que ele dá em cima e eu fujo. Depois, me sinto
uma grande fraca.
_Eu também ficaria com medo! Imagina ter um cara lindo e gostoso
daquele na minha cola! _ abanou-se.
Virei o rosto franzido pra o lado e quase gritei “Manhê!”, mas ela pediu
desculpas antes disso. Como conseguia fazer parecer que todo o dilema se
resumia a popularidade de estar com o aluno mais incrível da escola quando
o real problema era que eu nem podia estudar lá misturada a eles!
_Eu ouvi dizer que uma garota foi morta por tentar se passar por uma
superhumana em outra escola. Bateram nela e fizeram outras coisas...
_minha voz mostrava o quanto minha alma estava mortalmente preocupada.
_Pelo que já conhece dele, acha que te mataria? _ fez pouco caso.
_Só se fosse de amor...
_Não entende? Quando decidiram me fazer passar por uma
superhumana, me tiraram o direito de me apaixonar por um humano pra que
não desconfiassem, nem por um superhumano pra que não me
descobrissem. Eu sou um ser indefinido, híbrido...
_Querida... _pegou no meu rosto e aproximou o seu do meu. _ Você
pode escolher o caminho que quiser, cada um terá as suas conseqüências.
Ficar aqui trancada sem fazer escolhas é a pior escolha.
_Ele vem me buscar pra corrermos hoje. _anunciei.
_Então, já fez uma escolha. _sorriu, exultante com meu progresso.
_Desculpe por eu falar essas coisas, não quero que se sinta culpada
de nenhuma forma. Eu agradeço por poder estudar na melhor escola e ter
direito a uma super vida.
Meu celular começou a vibrar de baixo de alguma parte do edredom e
das almofadas. Começamos a tatear a superfície fofa e macia da minha cama
e rimos. A luz do aparelho nos ajudou a achá-lo.
_É ele. Os superhumanos já podem nos ouvir a quilômetros de
distância? _ perguntei retoricamente e atendi, sentada sobre as minhas
pernas. _Alô?
_Oi. _sua voz meio rouca me arrepiava até o cabelo da nuca. _ Eu
queria saber se podíamos ir ao cinema. Tem um filme legal passando.
Cinema?! Mas, não era corrida? Isso muda completamente o roteiro!
É como se eu tivesse me preparando para um casamento de dia e
descobrisse no convite que era festa à noite de gala.
_Tudo bem. _tentei colocar simpatia na voz. _ Pode ser. _acho que
me sai bem com o tom de pouco caso quando queria apertar seu pescoço.
_Estou no caminho da sua casa.
O quê? Já?
_ Eu posso esperar você se arrumar...
Qual é? Achava que eu não podia ser uma mulher prática? Olhei para
o meu guarda-roupa enorme e pra fileira de sapatos na estante perto do
banheiro e tive certeza de que ele começava a me conhecer muito bem.
_Não, tudo bem, eu me arrumo muito rápido. _segurei meu último
pingo de orgulho. _Quando chegar, me espera no carro e me liga, ok?
_Ãnh, ok. Como preferir. _disse.
É o mínimo que pode fazer depois de me aprontar essa
Desliguei.
_Mudança de planos? _ minha mãe com a cabeça apoiada na mão,
deitada de lado, me viu saltar pra fora da cama e abrir meu guarda-roupa.
_Ele teve a capacidade de me informar que está a caminho e quer ver
“um ótimo filme que está passando”. _ carreguei de ironia. _ Agora, me diga
como vou fazer uma mínima combinatória em vinte minutos, se é que ele não
está chegando?! _meu mau humor e nervosismo extremo podia azedar tudo,
então, ela se levantou em um ato de compaixão pela minha momentânea
crise de estilo.
_Você quer um look “é hoje”, “vai com calma”, “não é o que você está
pensando”...?
_Eu estava imaginando roupa e sapato, não algo mais complexo que
isso!
Aurora
Li Mendi
36
_Querida, a roupa passa uma mensagem...
_Eu não tenho tempo de aula de moda contemporânea, o que devo
usar? _puxei um cabide com força e botei na frente do seio.
_Totalmente promíscua. _torceu o nariz. _Ele disse cinema pornô?
_Esse vestido?
_ Você quer beijar na boca ou que ele te leve a um templo religioso?
Quem te deixou comprar isso?!
_Eu ganhei. Arrggghhhh... _grunhi, sapateando no assoalho de
madeira com meus pés descalços.
Meu pai passou pelo corredor, avisando que havia chegado do seu
jogo e perguntou sem tom de que queria resposta sobre o que estávamos
aprontando. Que bom, porque eu podia facilmente lhe dizer: “Estou querendo
ficar linda para um superhumano”.
_Coloque esse vestido solto, tem um ótimo decote. _esticou o cabide.
_ E joga um colete por cima. Valoriza seu corpo sem parecer “quero tudo logo
no primeiro encontro”. Agora, o resto é com você porque vou ter que tirar seu
pai de longe daqui pra poder sair com seu príncipe superhumano.
_Não acha que isso é totalmente loucura- insano-suicida? _perguntei,
esperando de alguém como a minha mãe, um pingo de juízo pra me botar
com os pés no chão.
_Insano é ficar na cama, linda como você é. Ele vai duvidar sempre
de que você é super perfeita como é pra mim.
Sorri. Não diminuía meu nervosismo, mas levantava meu pobre e
restrito ego humano. Quando eu terminara a maquiagem e fechara o rímel, o
telefone vibrara na penteadeira, eletrizando meu coração que entrou quase
em curto. Chegara.
Abri a porta com a certeza de que eu ia me meter em uma grande,
muito grande enrascada e que estava adorando.
Doug estava com uma calça jeans perfeita que realçava a curva das
suas pernas fortes e o rosto parecia mais lindo do que qualquer ator de
cinema dos meus velhos pôsteres da porta do guarda-roupa.
_Oi. _sorri.
_Oi. Foi rápida mesmo. Já estava pensando em correr assim?
_brincou e apesar de merecer uma resposta “eu procuro sempre correr de
salto agulha pra fortalecer a batata da perna”, achei fofo e encarei como um
elogio.
_Ah! Esse é meu look de terças e quartas pra correr. _segui seu bom
humor pra quebrar o clima tenso de primeiro encontro.
Eu já estava imaginando um filminho de comédia ou de romance bem
gostoso que desse a deixa pra pegar na sua mão, mas a notícia de que Doug
não tinha preparado tudo tão perfeitamente assim, me trouxe um arrepio. Ele,
como típico homem prático que nem parece ter um chip super potente em sua
cabeça, comprou pelo horário. Mas, tarde demais descobriu por uma busca
mental na internet que era sim o que eu temia, um filme de terror.
Entrei na sala de cinema com indisposição pra aquela sessão de
tortura.
_Acalme-se, é tudo mentira, você vai achar até divertido. _riu do meu
pânico quando as luzes se apagaram _Eu estou aqui. _abraçou-me
carinhosamente por trás e, por três segundos achei que seria como a
descrição nos livros de que o mundo parou de girar e que eu já não ouvia
mais nada além da sua respiração... Mas, durou só os três segundos mesmo
porque o filme começou com uma música pesada de suspense que me fez
tremer. Dali pra o vexame público foi questão de chegar alguns minutos
depois quando os espíritos deformados e assustadores começaram a andar
entre nós e eu dei um grito de pavor.
Empurrei-o pra longe com tanta força que quase caiu. Corri para a
saída, tateei a porta e sai para a luz forte e estourada do corredor encapetado
de vermelho.
Passei a mão na testa suando frio e tentei me acalmar. Ao abrir os
olhos encontrei o rosto preocupado de Doug que acabara de sair pela porta a
minha procura. Dei as costas. Eu queria correr dali e nunca mais vê-lo,
tamanha vergonha.
_Eu não sabia que ia levar tão a sério. _riu.
_Desculpe, eu tenho o péssimo defeito de levar as coisas a sério. _
aquilo soou como uma indireta e meu humor o fez engolir em seco. Droga,
estava se esforçando pra ser fofo e eu estragara tudo! _Eu quero ir embora,
pode ser? _ pedi, sem coragem de olhá-lo.
Chegando ao meu quarto, enterrei o rosto no travesseiro e ouvi a
porta abrir. Minha mãe ia querer detalhes e eu só gostaria esquecer que
aquela noite patética tinha existido. Contei-lhe ainda com a voz abafada no
travesseiro o resumo daquele encontro de terror e ela riu como o Doug.
_É um sinal. Só pode ser um sinal pra que eu não me meta nisso.
_Você até acabou acertando, sem saber o que estava fazendo.
_garantiu e isso me fez desenterrar a cara do travesseiro, olhei-a, fazendo
bico de raiva e frustração. _Você disse pra ele com bastante indiferença
“Vamos embora agora?”.
_Em qual a parte eu faço um ponto nisso?
_Bom, você pode tê-lo deixado ficar com mais vontade de te
conquistar, afinal, nada que é fácil é tão emocionante...
_Mãe, você está falando da pessoa certa? Ele é tipo o cara mais
divino, lindo, incrível, perfeito, super, ultra, mega, extra galáctico Doug e eu
acabei com a nossa noite.
_É só uma questão de aprender a ficar no controle. Você consegue. _
piscou o olho.
A sua teoria não pareceu tão válida assim quando eu cruzei o portão
da escola e dei de cara com uma garota loira pendurada sobre os ombros de
Aurora
Li Mendi
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Doug lhe dando um beijo que eu devia ter tido a mínima capacidade de roubar
ontem.
Meu coração pareceu freiar e eu estanquei naquele ponto, vendo-o
segurar sua cintura. Eu quero vomitar! Entrei a passos firmes e desapareci
pelo corredor cheio de alunos.
8
Um veneno na dose certa
(Doug)
Minha irmã pedira carona aquela manhã para a escola e eu sabia
que isso significava mais que uma obrigação fraternal com sua pequena
irmãzinha mais nova e sim um trajeto repleto dos pequenos detalhes sórdidos.
Seria um prato cheio contar o grito de Aurora e seu pedido pra cair fora do
cinema. Bastava manter minha boca calada e o som nas alturas tocando
música eletrônica.
O problema é que a cabecinha de Gisele não parava de fuçar as
redes e não foi difícil ela sozinha descobrir vestígios da noite ruim. Seu
primeiro gesto foi diminuir o volume do som.
_Sua ruiva está meio confusa hen? Que música é essa que ela
postou? “É como se eu vivesse 1000 vidas/ Ainda procurando por aquela que
é a certa/ Veja, seguir em frente não está funcionando; /Você acendeu o fogo
que eu estou queimando./ E tudo que eu estou fazendo é proteger isso, /uma
mentira pelo bem do meu orgulho/ Enquanto todos os outros me deixaram
pensando/ Nós poderíamos ser mais do que apenas maravilhosos."
_Para de bisbilhotar a vida dela.
_Isso não é bisbilhotar, seu antiquado. É parte da vida social! Ontem,
antes de dormir ela escreveu: “Quero voltar atrás.” O que você aprontou?
_Sua escolha da calça não fez muito efeito.
_Como assim? Você esperava que a calça sozinha falasse, abraçasse
e fizesse tudo? É como uma garota que chega no salão pra lavar o cabelo e
quer sair de lá com ele tão sedoso como se tivesse feito um tratamento de mil
reais com base em...
_Por favor, pode se manter no nível da coerência masculina?
_Se não me contar, não poderei ajudar. _ cantarolou aquilo com fina
perversão.
_Ela simplesmente pediu pra ir embora quando achei que tudo estava
começando!
_Querido, com dois ovos e farinha não se faz um bolo, fale mais!
_Ãnh, não tem mais, foi isso! Ela fugiu!
_Está dando de difícil...
_Não...
_Confie em mim, a PhD nisso sou eu. Está fazendo de difícil. Então,
você tem que jogar o mesmo jogo. _ ela continuou usando sua voz de
treinador na beira de quadra passando os comandos mais óbvios com um ar
de profeta. Saímos do carro e caminhamos para a entrada da escola. _
Aurora
Li Mendi
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Rosaniiii... _gritou e fez um gesto para que uma menina loira sentada um
degrau acima de outras garotas mais novas que pareciam suas discípulas
veneradoras viesse até nós. Ela tinha lindas pernas sob a saia curta pinçada.
_ Esse é meu irmão Doug.
_Oi. _ ela me olhou de cima abaixo em um exame de raio X rápido.
_Que tal você passar lá em casa hoje para ver o meu guarda-roupa?
Lembra que na aula de finanças domésticas ficamos de montar um site de
troca de roupas entre garotas?
Eu estava tentando entender a união entre o site, eu, ela, minha irmã
e Aurora. Mas, me mantive calado porque podia não ter coerência alguma e
eu tinha a deixa pra cair fora.
_Será ótimo.
_Mas, antes eu preciso de um favorzinho seu... _ minha irmão pegou
na ponta do seu cabelo e o alisou. Sua voz mais baixa me fez crer que ali
estava a cola que uniria todas as pontas dos personagens. _... Tem uma
pessoa precisando de um castigo e eu acho que você será perfeita pra isso...
Pessoa=Aurora? Ou meu cérebro fora rápido demais?
_Não... _segurei o braço de Gisele. Mas, seu rosto focou em alguém
atrás de mim. Pude ver pela sua mente aberta para minha intercepção que
era Aurora chegando. Ela sussurrou o comando para a amiga, que
simplesmente se apoiou nos meus ombros, ficou na ponta dos pés e me
beijou.
Por quê...? Questionei em silêncio, não negando o beijo.
Pude ver pelos olhos da minha irmã transmitindo imagens para minha
mente que Aurora estava chocada me vendo com outra garota. Eu alimentava
meu ego masculino idiota por mostrar que ela não podia me esnobar, mas
parecia uma dose cavalar demais.
Eu sei que está doendo nela mais que em você, mas confie em mim,
o veneno está na dose correta e Aurora vai se curar desse orgulho bobo de te
dar um gelo. Segure na cintura com vontade agora, Doug. Se ela está usando
a técnica do sapateado de pisar em você, então, você irá pisar com um salto
alto agulha, quanto menor a superfície de contato, maior a força do pisão. A
voz de Gisele parecia de uma bruxinha invadindo minha mente.
Aurora desapareceu e eu afastei o rosto. O que eu diria pra a garota?
Obrigado pelo beijo sem sentido e pode ir com a minha irmã curtir as roupas?
Meus olhos se fixaram em Gisele e lhe perguntei em silêncio se machucar
Aurora valia uma tarde discutindo moda.
Não, claro que não. É bem mais caro que isso, na verdade, você me
deve. Pois quando Aurora acordar que não pode deixar Doug, o cara mais
legal dessa escola, de castigo, você vai me agradecer. Falou com toda a sua
arrogância, piscou e deu as costas. As duas saíram rebolando e eu fiquei
parado por alguns segundos.
De repente, meu olhar se encontrou com o de Sandrinha, amiga de
Aurora, que deve ter visto todo o joguinho. Ela não precisou emitir nenhuma
opinião à distância, seu balançar de cabeça para os lados me fez me sentir
um troglodita ridículo filha da mãe.
Aurora
Li Mendi
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9
Levantando a moral
(Aurora)
Ver Doug beijando outra garota logo de manhã era tão indigesto.
Isso podia não significar nada. Nem que eu o beijasse não significaria nada
(pra ele). Afinal, hoje em dia, beijar virou quase um aperto de mãos. Eu
começava a querer reivindicar a posse do que eu não tinha direito, a posse da
exclusividade.
_Aurora! _ouvi o berro do meu treinador no meu ouvido quando pedira
tempo pra falar com a equipe. _Onde você está com a cabeça?! Nós vamos
ou não vamos ganhar esse jogo? _estava tão feroz que eu podia medir o
quanto de passes errados eu perdera por conta daqueles pensamentos. _
Isso aqui é coisa séria!
Eu sabia que as prévias para o campeonato juvenil de handbol (onde
eu era a pivô) eram tão sérias pra tradição de campeã da escola que eu não
podia estar flutuando em outra dimensão pensando em Doug. Mas, pela
primeira vez eu estava também me apaixonando e perigosamente levantando
a possibilidade de ficar com um superhumano, isso era realmente importante
para mim, que tinha a tradição de perdedora no amor.
_Seja lá em que planeta você está hoje, volte já pra quadra.
_ordenou. _Limpe sua mente, esqueça, ok? Jogo, jogo, jogo.
_Vamos lá! _gritei para as garotas da equipe e bati palmas.
Elas me olhavam como a rainha de um clã. Eu tinha as pernas e
braços perfeitamente definidos e jogava mais do que todas juntas, sem que
elas soubessem que eu também sofria mais do que todas juntas pra atingir
aqueles índices com minhas limitações humanas.
_Acho que o treinador vai ter que passar o recado para ele também,
se quiser que você jogue bem hoje. _Sandrinha falou baixinha virando sua
cabeça para o meu ombro quando estávamos no esquema de defesa 6x0.
Olhei para onde ela estava indicando e vi na beira da quadra o grupo
dos meninos se aquecendo pra entrar para a próxima partida e, claro, “o meu
planeta”, Doug. A bola passou por mim e foi direto para o gol. As coisas que
deu pra ler nos lábios do treinador indicavam que ele agora realmente queria
me matar e eu ficaria esquentando o banco pro resto do ano, se não agisse
já.
A jogada começou a ser armada e eu me dirigi pra o lado do ataque,
onde as 5 jogadores adversárias formavam uma linha de defesa. Nossas
meninas começaram a passar a bola de um lado para o outro enquanto eu
tentava abrir um espaço pra penetrar na defesa. Posicionei-me como
havíamos treinado inúmeras vezes, recebi da armadora, girei e arremessei
com uma força que fez a bola estourar no gol.
O treinador não sorriu, apenas fez um gesto de fechar o punho. Eu
precisa me esforçar um pouco mais para conseguir sua simpatia. Mas, foram
os assovios do grupo dos meninos que me trouxeram emoção as veias.
Vamos dar um pouco de exibicionismo para eles. Retomamos a bola,
que me foi entregue livre para eu voar sobre a linha e arremessá-la como um
tiro de canhão que quase rasgou a rede. Agora sim um sorriso do treinador,
que não me importou tanto quanto Doug que se aproximou da grade e
debruçou-se pra me observar com seu cabelo molhado, os brilhantes olhos
azuis e os braços fortes saltando da camiseta vermelha. Abaixei a cabeça pra
não sorrir e me segurar. Ele não podia ter a vaidade de saber que minha
atuação conseguia melhorar consideravelmente por conta apenas da sua
presença.
Eu poderia ter arrasado de goleada se não fosse uma falta que me
deixou no chão. O treinador correu até mim e perguntou se eu conseguia
continuar. Falei que não depois de pensar que era injusto isso acontecer
quando estava com Doug ali me admirando. Mas, se eu pegasse pesado teria
que explicar a eles porque minhas recuperações não eram tão rápidas.
Saí mancando e muito chateada, peguei minha mochila em um ombro
só e fui pra o corredor do vestiário.
_Hei, precisando de ajuda aí? _ouvi a voz que tocava meu coração
nos últimos dias e por um momento me esqueci da dor.
_Acho que amanhã eu chego à enfermaria com esse passinho de
tartaruga filhote desengonçada... _ri, apertando o saco de gelo na coxa.
_Por isso que eu perguntei se estava precisando de ajuda.
Franzi ligeiramente a testa quando ele se aproximou. Mas, o que
estava faz...
Aurora
Li Mendi
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10
Qual será o tratamento?
(Aurora)
Doug se aproximou e meu coração pareceu querer dar a última
batida porque era impossível realizar um corpo tão perfeitamente sexy e
atraente querendo me tocar. Segurem minhas pernas porque meus joelhos
vão se dobrar e não é pela pancada, mas por conta da fraqueza feminina.
Quase mandei um tchau e um beijo pra a menina que me fizera falta, eu
praticamente a devia pro resto da vida.
Seu braço passou pelas minhas costas e me envolveu. Sua mão
puxou a minha pra ficar apoiada sobre seus ombros. Eu podia perfeitamente a
passos de manca chegar ao meu destino, mas precisei colocar meu lado de
atriz carente pra fora e até fiz força pra mostrar que estava realmente
precisando me apoiar em seu corpo modelado pelos anjos. Eu podia jurar que
metade das meninas tinha os olhos na minha nuca e que em segundos as
fotos estariam na rede pra todos da escola saberem que o novo rei escolhia
sua preferida. Eu mais que nunca queria estar no páreo e procurava esquecer
o quanto isso era inofensivo.
_Seu time vai sentir sua falta. Belas jogadas. _elogiou.
_Elas são muito boas também.
_Eu não disse que você era muito boa.
_Não sou? _perguntei com um certo tom de convencimento virando
meu rosto para o lado de forma que ficou muito perto do seu.
_Eu acho que a enfermaria é ali. _disse e eu quase lhe perguntando
se ia me largar bem ali no meio do corredor, mas preferi fazer um doce
levantando a dúvida se tinha alguém naquele horário para me atender.
_Deve ter. Se não, eu ligo pra minha mãe.
Ele quase não usava essa vantagem, parece que tentava se passar
ao máximo como o aluno normal. Não tentava tirar vantagem do cargo de
diretora da mãe.
_Não tem ninguém, mas a porta está aberta. _ ele inspecionou e veio
ao meu reencontro oferecer apoio. Caminhei até uma cadeira e com excesso
de ajuda me fez sentar. Seu rosto inclinado sobre mim quase roçou o meu
quando levantei o queixo. Percebi que suas pupilas se fixaram no meu
supercílio ligeiramente marcado e quase lhe pedi pra deixarmos por um
momento essa coisa de super humanidade de lado e apenas curtirmos o
momento.
_O que está sentindo? _agachou-se e retirou o saco de gelo,
deixando a superfície arroxeada e cheia de gotículas da minha coxa exposta.
_Você... _apontei pra ele com minha unha grande e vinho, reclinei
meu busto pra frente e a voz saiu mais rouca do que eu quis. _... vai ser o
médico?
O vento que entrava pela janela fez os fios do meu cabelo vermelho
dançarem no ar.
_Qual o tratamento que você prefere? _ sorriu e eu semi cerrei os
olhos com um sorriso de lado.
_ Desde que tentou me matar até agora está se saindo bem em me
salvar...
_Não parece que eu fui tão bem ontem à noite.
_Ah, você também escolheu aquele filme idiota! _saiu sem pensar e
suas sobrancelhas se levantaram.
_Você também não precisava ser grosseira querendo ir embora.
_acho que ele também falou mais rápido do que escolheu as palavras, mas,
pelo que eu tinha entendido o clima acabara e descambara para uma troca de
farpas.
_Pode voltar para o seu jogo que já deve estar começando... Deve ter
alguma coisa aqui pra dor nessa droga de lugar que não tem um enfermeiro!
_tentei me levantar, mas senti uma fisgada na minha perna e não foi pra
chamar sua atenção.
_Senta. _me empurrou delicadamente de volta para o assento.
_Chamo seu pai?
_Por favor, não!
_E como vai voltar pra casa?
_Eu já agüentei coisas piores. _falei e imediatamente prometi que
deixaria minha língua impulsiva dentro da boca pro resto do dia. _ Digo, ser
atleta não é fácil...
_Se me esperar jogar, posso te levar em casa... _ofertou.
Ok, eu vou falar com a minha amiga Sandrinha pra não me oferecer
carona hoje.
_Hum, não quero atrapalhar...
_Eu só não queria te deixar aqui sozinha... _Doug interrompeu sua
fala e pareceu prestar atenção em alguma coisa. Ficava tão bonitinho quando
usava seu chip pra ligar pra alguém. Seu rosto se tornou mais sério e
contrariado. Virou-se pra porta, como se premeditasse a chegada de uma
pessoa.
_Oi. _uma garota apareceu e sorriu pra nós dois. _Sou irmã do Doug,
Gisele.
_Oi. _correspondi com um sorriso.
_Pode ir... _ela lhe falou e fiquei assustada com o seu grau de
preocupação. Tinha chamado a irmã pra ficar comigo e não me deixar sem
cuidados?
Aurora
Li Mendi
46
11
Amigas, não!
(Doug)
“Doug, pode voltar para o seu jogo. Eu fico aqui com a sua deusa
humana de fogo.”, Gisele disse.
Eu não gostava nada do modo como minha irmã encarava aquilo
como a mais nova diversão. Já estava atrasado para o jogo. Ameacei-a com
um só olhar pra não pegar pesado com Aurora, mas só revirou os olhos e
sentou-se de pernas cruzadas.
_Se não correr, vai ficar no banco. Estou bem... _ Cabelo de fogo
sorriu, um bichinho inocente perante aquele urso babando de fome ao seu
lado.
Mais um olhar pra Gisele: “Nada de publicar qualquer coisa sobre
isso.” Lembrei-a com uma última frase fincada em sua mente. “Como acha
que descobri onde estavam? Todo mundo está falando sobre isso. Já são
vinte mensagens postadas e duas fotos enviadas para a grande rede. Quem é
a garota que está se fazendo de machucada para ficar com Doug? Você está
colocando a luz em cima dela, maninho.” Gisele tinha uma voz irritante e eu
saí de perto para não ouvir mais nada. Estava contra mim ao meu lado?
Voltei suado do jogo e não encontrei-as na enfermaria onde havia
visto pela última vez. Parecia cena de filme de terror, eu realmente estava
com medo em excesso do desastre da escola descobrir que Aurora era
humana. Mas, quem provava sua natureza incorruptível? Eu tinha sido
envenenado pelas teorias de Gisele e ela provavelmente tinha um dedo no
sumiço.
Acionei uma ligação para o chip da minha irmã e atendi sem muita
paciência: cadê vocês? Para o que respondeu: “Aurora e eu? Estamos
ótimas. A propósito, você vai precisar de uma carona.”
Eu senti minha boca secar. Carona? Meu car... Virei-me para a janela
do corredor e olhei o estacionamento. Minha caminhonete não estava mais lá!
“Qual é a brincadeira, Gisele? Você não sabe... não pode dirigir.” Eu não
duvidava das suas habilidades. Desci até a vaga onde deixara o carro, ainda
sem acreditar que aquilo não era um ilusão de ótica. Encontrei um bilhete
pendurado na grade: “Estávamos precisando do carro mais do que você. Bjs,
Gi.”
“Estamos em casa. Há lugar mais seguro que a nossa casa?”,
gargalhou e eu fechei os olhos para não perder a cabeça. Sacodi a grade com
força e minha mão metálica a contorceu. “Doug, você vem almoçar
conosco?”, perguntou com inocência.
“Quem está aí, Gi?”, questionei e fiz sinal para o táxi que passou pela
rua da escola. Joguei minha mochila no carro. “Como quem? A Aurora, eu e a
empregada humana. Mamãe não está dessa vez, ela tem uma reunião do
conselho de professores e preferiu fazer presencialmente, você sabe que ela
ainda é muito antiquada e não quer reuniões em videoconferência 3D.”
Gisele está prenunciando que eu me preparasse logo para o momento
em que colocaria Aurora de frente com nossa mãe?!
O táxi parou na porta de casa. Digitei rapidamente o número do cartão
de crédito no aparelho e olhei para o visor que identificou a minha íris. Pronto,
pago, pulei do carro. Eu parecia um pouco desesperado abrindo a porta, por
um segundo me critiquei. Logo, porém, percebi que estava certo, havia algo
de assustador: as gargalhadas das duas vindo do andar de cima. Gisele e
Aurora estavam começando a ficar amigas?!
Aurora
Li Mendi
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12
Uma estranha amizade
(Aurora)
Gisele ofereceu-me carona como quem segue um ritual comum entre
amigas de infância e aquilo só não me pareceu mais estranho que eu
compactuar com a criação daquela cena irreal e aceitar. Seria algum encanto
sobre mim que ela começava a exercer desde o primeiro instante? A mesma
energia magnética que partia de seu irmão? Seus olhos vermelhos estavam
claros quase rosa e sua roupa ainda cheirando a perfume das lojas da
avenida Roier, onde só as garotas muito ricas poderiam encostar os narizes
na vitrine. Melhor, elas nunca precisavam se sentir gordas nos cabines de
roupa apertadas com um espelho que te dá 10 cm de cada lado. Elas
experimentavam tudo em casa e devolviam o que não queriam depois. Eu já
soubera da fama de seu mágico guarda-roupa pela boca das outras garotas
recém discípulas que conheceram sua casa na festinha que deram durante a
viagem de seus pais. Por que agora queria que eu a acompanhassem? Não
achava realmente que eu pegaria seu lanche ou passaria respostas das
provas pelo chip que eu nem tinha? Poderia eu, então, dizer logo que não
tinha chip, que era humana e nunca poderia receber mutações genéticas?
Não, claro que não! Arggghhh.
_Você vem?_ ela bateu no banco de couro já dentro da caminhonete
no lugar do motorista e eu ainda estava virada, olhando para grade onde ela
deixara um bilhete. Se não havia qualquer problema de estarmos pegando o
carro do seu irmão emprestado, por que precisava avisar? Ou não seria mais
prático avisá-lo por seu chip? Eu não entendi bem sobre essa tecnologia,
quem sabe a marca deles não pegava com tanta distância? O que deu pra
notar é que Gisele não sabia bem por onde começar e quase achei que me
pediria pra pegar algum manual básico de primeira- pilotagem- no- carro- doirmão no porta-luvas. Ia oferecer a minha pouca experiência guiando o carro
do meu pai, mas ela superou a própria hesitação e deu partida. _Ele faz tudo,
não é mesmo?_ programou o GPS e eu rezei pra que tivesse tão certa disso
quanto a segurança de que sua blusa lilás combinava com o cinto azul e a
bota marrom. Eu queria mesclar peças tão desconexas com uma assinatura
perfeitamente fashion o meu look de todas as manhãs.
_O que vamos fazer na sua casa mesmo? _ perguntei, querendo um
pouco de obviedade naquela prematura amizade de meia hora.
_Ora, esperar meu irmão. Eu não ia te deixar lá sozinha.
_Claro... _ completei, um pouco desconcertada com a agilidade com
que juntou as duas peças. _ Quero dizer...err, claro que não quer me deixar
sozinha. _
Teria a ver com Doug a idéia de me raptar pra sua casa? Não parecia
loucura, desde a última vez que eu dera a entender que na minha não
podíamos ficar na minha.
_Seu irmão pediu pra me trazer? _o pensamento incômodo se
expressou mais rápido que minha vontade de recolher as palavras já lançadas
no ar.
_Não. _ Gisele riu uma mistura de sarcasmo e diversão pelo que
interpretei. Ela realmente devia pensar que eu não era nada a altura de Doug.
Onde apertava o botão pra descer imediatamente?_ Chegamos._ disse,
parecendo ler meu pensamento. Foi quando meus olhos pararam em uma
belíssima casa em meio a mata e a visão daquele lugar lindo me impediu de
pensar em qualquer outra coisa. O jardim florido com muitas cores e a grama
perfeita como em estádios de futebol em final de campeonato mundial.
Iríamos parar com aquela investigação sobre o motivo da minha vinda
daquele ponto em diante, porque agora eu mesma gostaria de entrar!
Gisele passou na minha frente tão rapidamente, que eu só ouvira o
som da porta do carro batendo atrás de nós. Eu estava estado de slow
motion? Pisquei os olhos e umedeci os lábios entreabertos. Ela sorriu, parece
que entendendo pelas minhas feições que ficara encantada com sua
maravilhosa casa. Assim, fui atraída para segui-la. A graciosidade como
andava me fazia me sentir uma pata gorda e feia. Seus cabelos loiros
brilharam no sol ameno. Quando aproximou-se da porta de madeira grande e
pesada, um pequeno ponto luminoso reconheceu sua íris e se abriu para uma
ampla e bela sala em tons branco, com piso de madeira. O teto era muito alto
de telhas, com vigas de madeira escura cortando os ambientes, mas com
muitos pontos de luz iluminando tudo na medida certa. Era um choque entre
uma arquitetura clássica de castelo com mobília ultra moderna. As paredes
eram de vidro em alguns ambientes, mas com o acender da luz incidindo
sobre a superfície, a transparência dava lugar a um enorme espelho que
refletiu a nós duas no grande quarto em que entramos, duplicando o ângulo
de profundidade.
_Essa hora o seu irmão já deve ter acabado a aula, deve estar vindo
pra cá, acredito... _comentei, sem acrescentar que estava um pouco
preocupada com o fato de estar íntima da sua casa sem seu convite.
Ela suspirou, parecendo não me ouvir, com o olhar perdido. Eu já
estava acostumada quando as pessoas faziam aquela cara ao usar seus
chips e tentava sempre parecer natural, mesmo sem poder imaginar como
seria. Será que falava com Doug? Mas, ela não me revelou nada, apenas
retirou a pulseira de couro e argolas de ouro do pulso, que
parecia incomodá-la e deixou na cômoda branca.
_Vamos dar um mergulho?_sugeriu.
Aurora
Li Mendi
50
_Agora? _ dei-me conta de que se referia a uma piscina e logo pude
ver o azul vindo de uma das amplas janelas atrás do seu ombro.
Definitivamente dar de cara com Doug em trajes mínimos seria o abuso
máximo, sem contar que eu não era como aquelas garotas que contava com
as maravilhas genéticas de ter quase nenhum pêlo nos lugares certos.
Precisava me depilar na quinta, coisa que adiei no sábado por conta de
estudar para a prova de história. Aposto que roupa e biquínis não seriam
problema dentro daqueles guarda-roupas de 12 portas que se escondiam
atrás de nós. _Não estou com meu joelho bom ainda. Podemos fazer algo
menos agitado?
_Ok._ colocou as mãos na cintura e suspirou. _Não sabia quais
planos tinha pra mim, mas pareceu que eu estava dando tanto trabalho
quanto uma criança arteira, quando eu só queria ir embora. Ao mesmo lado,
minha outra parte queria ver Doug, apesar de ser totalmente contra as regras
de humanos não são amigos de super humanos. _Você quer uma roupa pra
vestir?
Eu me olhei pra ver se não estava enrolada em trapos, mas ali estava
o uniforme de educação física. Seria tão aterrorizante algumas horas a mais
com eles?! Não perguntei, ela se explicou:
_Roupa é o que não falta. _suspirou e disse para o armário: _ “abrir”.
Este comprimiu as portas em formato de sanfona até a lateral e o que vi me
fez quase tossir! Era uma arara gigantesca dourada repleta de todos os
vestidos, blusas e calças mais fashion que eu já vira. Nenhuma garota tinha
um armário daqueles. No chão, sapatos se enfileiravam em todos os
tamanhos, formas e cores. _Não fui eu quem comprei.
Por que ela me contava aquelas coisas e me mostrava seu armário?
Procurei no tom morno da sua voz uma justificativa. Estava com tédio por sua
mãe ter comprado a última coleção de todas as lojas mais incríveis do
shopping em seu número? O que importa? Eu a entendia por não conseguir
ficar algumas horas a mais com roupa de educação física.
_Eu faço propaganda.
_Ãnh? _voltei a olhá-la, sentada na beirada da sua cama alta e larga,
repleta de travesseiros e almofadas felpudas. Não lembrava de Gisele como
garota propaganda de nenhuma campanha. Nem ela parecia exatamente
bonita o suficiente de corpo...
_Não é como está pensando. _impediu-me de continuar o
pensamento. _Eu sou uma Garota Alfa.
_ Garota Alfa? _repeti arrastadamente, na expectativa de que aquele
alfa ganhasse algum sentido, como nas provas de matemática em que eu
murmurava baixinho as variáveis da questão pra tentar lembrar das fórmulas.
_Sim, Garota Alfa. _caminhou até a arara graciosamente, pinçou um
cabide com uma blusa bordada a mão, com rendas nas costas e um tecido
acetinado, meu Deus, era seda pura?! _As empresas escolhem garotas que
são influentes, as vestem completamente e exigem que elas influenciem as
demais meninas de maneira “subliminar”. _revelou e estendeu pra mim o
cabide. Isso queria dizer que eu tinha que guardar seu segredo? O que
esperava? Que contasse os meus também? Ela ficaria muito decepcionada,
se soubesse que eu tinha muito a esconder sobre minha fragilidade física e
intelectual? _ Dá muito trabalho convencer as pessoas, estar “in” na
sociedade, freqüentar todas as festas...
_Ter todos os caras que quiser? Que tarefa difíciiiil. _ ri e abracei a
blusa contra minha cintura, enquanto encostava o cabide no queixo, me
deparando no espelho.
_O garoto que eu quero não ligaria se eu estivesse vestida de roupa
de educação física._ revelou. (Ela quis dizer “como se eu vestisse trapos”).
_Seu irmão é um garoto Alfa? _ perguntei e calculei que já havia
gastado minha cota de perguntas imparciais que não quer dizer que estou
dando em cima do seu irmão.
_Sim, toda minha família é. Mas, cada um com um tipo de público pra
atingir.
_A companhia que “patrocina o luxo de vocês” também escolhe seus
namorados?
_Você quer saber, as namoradas do Doug Alfa?
Eu prendi a respiração por um tempo, sentindo as bochechas
queimarem.
_Algumas sim, mas Doug é um Alfa difícil de se controlar... Já trocou
três vezes de empresa por conta de probleminhas de relacionamento com
amigos e mulheres erradas.
_Hum. Mas... eles ficam... tipo fiscalizando a vida dele? Sabendo de
tudo tudo...?
_Com-ple-ta-men-te tu-do. _falou pausadamente e eu senti vontade
de correr. Vi no brilho dos seus olhos vermelhos, cor de sangue e na voz
maquiavélica, que tudo aquilo não me cheirava bem. Por que eu estava ali,
ganhando roupas, sabendo de seus segredos? Aquela era uma armadilha pra
quê?
Aurora
Li Mendi
52
13
Alfas
(Aurora)
Aquela história toda sobre os Alfas me deixava ainda mais
apreensiva. Será que precisavam de um escândalo pra poder popularizá-los
ainda mais? Já farejava em mim o cheiro de humanidade?
Por que Gisele queria ficar comigo era a segunda pergunta a me
preocupar, a primeira era: “O que diabos eu ainda fazia ali, odiando- e ao
mesmo tempo adorando - sua conversa maluca sobre roupas, moda,
influenciar pessoas?”.
Éramos os opostos. Eu andava sempre à sombra, margeando a vida
sob um capuz de casaco, incógnita. Ela era o símbolo, a referência, apesar de
mais nova e mais imatura, era mais safa. Sua superhumanidade ajudava, mas
conseguia ser a super das super. E seu ar de tutora fashion me deixava
completamente submissa e serva de suas vontades. Como era ridícula,
mesmo assim, vesti a blusa apertada preta e a saia xadrez vermelha curta em
um biombo de madeira no canto do quarto.
_Não coube em mim._comentei e antes que eu voltasse pra meu
velho confortável pijama- uniforme, ela apareceu em um pulo do meu lado.
_Como não?! Fechou perfeitamente em você.
O conceito de se vestir pra ela era fechar os botões? Eu sentia meus
seios pulando do decote e as pernas envoltas em um cinto que ela confundia
com saia. Sairia daquilo agora, mas Gisele me impediu:
_Espera!_ espalmou as mãos na minha direção e eu bufei, me
sentindo sua bonequinha. _vasculhou uma caixa e colocou um colar de
corrente, onde por dentro passava uma fita rosa e pendiam algumas pérolas e
penduricalhos de cobre. Eu não era um manequim pra ficar brincando com a
composição. Mas, eu estava gostando. _Deixa eu ver o que faço pra tampar
suas pernas, anhhhh..._mordeu o canto da unha de porcelana enorme. Como
assim tampar minhas pernas?! Era mais perfeitas e naturais que as suas
recém lipoaspiradas e cheias de hormônios. _Coloca essa meia grossa preta
aqui com listras. _estendeu na minha frente e eu gostei da idéia. Era só pra
brincar, não? Algumas horinhas não iam deixar meu pai completamente
furioso, hãn?_ Coloque esses sapatinhos aqui de boneca. _ jogou aos meus
pés e o som do salto no assoalho fez um estalido oco._Olha só, agora você é
uma das minhas. _ colocou o braço no meu e sorriu como um anjo para o
espelho a nossa frente. Olhei-me completamente sexy e ingênua naquela
composição que era muito sensual e muito discreta ao mesmo tempo, como
uma ilusão de ótica, que dependia do ângulo. Eu nunca poderia ser uma das
suas, mas tentei manter o sorriso no rosto e curtir o momento.
_Eu vou tomar um banho. _avisou. Era o sinal soando para o fim-tiraa- roupa- vamos- acabar- com- essa- palhaçada? _Podia me fazer o favor de
descer e avisar a empregada que chegamos? Ela vai colocar a comida na
mesa.
_Hum, ok. _ concordei em fazer aquele favor e, na volta, tirar a
roupa._ adiei por alguns minutos o fim daquela brincadeira de colocar roupa
em boneca.
Quando atravessei o corredor em direção a escada que dava para o
primeiro andar, ouvi uma música com voz rouca surgindo de alguns pontos no
teto. Enruguei a testa. Escorreguei a mão no corrimão dourado como ouro e
olhei para cima, deixando meus pés sozinhos por inércia procurar o espaço
dos degraus. Assim fui descendo enquanto descobria micropontos de fones
nos cantos do teto. Meu corpo oscilava, deslocando o peso do corpo ora para
um pé, ora para outro, pisando pesadamente.
Meus olhos, de repente, se depararam com Doug na base da escada,
apoiado nas costas de um sofá, com as duas pernas cruzadas e os braços
fortes e apertados no abrigo do time, me admirando descer. Enquanto eu
estaquei, meu coração rolou escada abaixo e parou inconsciente lá embaixo,
pois fiquei lívida. Foi minha vez de dizer “oh, my god!” mentalmente. Era uma
ilusão, Gisele deve ter me dado drogas injetadas na malha da roupa que
atravessou a minha pele. Ele não estava ali e eu não estava ali. Enquanto
pensava sobre essa possibilidade física de invisibilidade, seu canto da boca
levantou em um meio sorriso que me fez fechar ainda mais a cara e a
respiração alterar.
Doug deu um impulso pra frente e num relance de segundos subiu os
dois degraus que nos separavam e segurou uma mão no corrimão,
impedindo-me de passar.
_Vocês dois combinaram alguma coisa? _ perguntei, irritada com
essa chance. _Acha que posso ser o coelhinho de estimação de vocês?
_Não sei o que está falando..._ abaixou o queixo e de boca
entreaberta e olhos arregalados, passou a mão no cabelo da nuca e fez um
suspense, até soltar o ar. _ Você está...
_Ridícula! _revirei os olhos e virei-me para subir, mas sua mão de
ferro puxou-me, me fazendo chocar-me contra o paredão do seu corpo,
provando um terremoto em meu corpo. Eu provavelmente cairia junto com ele
se fosse humano, mas era extremamente forte para me segurar. _O que
quer?
_Eu não sei o que queria até então, mas agora tenho certeza! _olhoume com tanto desejo que a voz saiu grave demais e felina.
Franzi a testa e balancei a cabeça para os lados.
Aurora
Li Mendi
54
_Fique longe de mim. _continuei a subir a escada, voltando a dar-lhe
as costas. Era para seu bem. Por que tinha me escolhido desde o primeiro
encontro de quase atropelamento?
_Aonde vai? _perguntou-me, seguindo meus passos.
Bati a porta do quarto no seu nariz e vi Gisele sair do banheiro
enrolada no roupão branco, ainda de cabelo seco. Ela tomava banho à vapor
ou voltara porque esquecera de pegar alguma coisa? Sem dar-lhe qualquer
explicação, comecei a desabotoar a saia e a blusa.
_Está tudo bem? O que houve? Parece que tem um bicho na
roupa._riu.
_Obrigada, foi muito divertido, mas..._pulei de um pé só, busquei a
minha roupa, fui para trás do biombo me trocar.
_Você pode me explicar o que está acontecendo? Viu algum
fantasma? _não se importou de invadir a área do biombo e me ver de costas
nuas e calcinha.
_O seu irmão acabou de chegar! _quase gritei, mas o tom foi
suficiente para entender o quanto eu estava com raiva.
_E? _com tranqüilidade levantou as sobrancelhas. _Isso não estava
previsto?
_Hum... _procurei meu tênis.
_Aquele idiota fez alguma coisa com v...?
_Não, não fez nada._cortei-a.
_Ele não fez nada, a única coisa que te incomodou foi o fato dele
chegar...
Ela era tão idiota ou isso era um joguinho pra que eu dissesse com
todas as letras de que estava com vergonha de ter sido vista vestindo suas
roupas como alguma cabeça mole facilmente influenciável?
_Você previu que ele estava pra chegar e me mandou descer vestida
daquele jeito?
_Olha, eu acho que realmente você está confundindo as coisas. _fezse de magoada._ Desculpe se tem algum problema em parecer interessante e
prefira se vestir assim, mas não tenho como prever a vida do meu irmão, se
entra ou não em casa na hora que deseja. Podem almoçar sozinhos que vou
sair. Licença, vou voltar para o meu banho.
Dei um passo a frente na direção das suas costas, mas desisti de
pedir desculpas, lá no fundo eu desconfiava daquela raça que tinha poderes
que eu não dominava.
Desci as escadas rapidamente, prevendo que o encontraria em
seguida. Mas, Doug não estava por ali. Abri a porta facilmente por dentro,
ganhei a luz do sol e escapei sem dar explicações. Fugindo. Eu sempre
fugiria?
14
Ela é dona do jogo
(Doug)
_“Doug, vou ganhar uma viagem fabulosa de férias! _ A voz de Gisele
parecia de uma trabalhadora árdua que esperava suas férias com um fundo
de hino de Aleluia. Na verdade, minha irmã se vangloriava de ter o duro
trabalho de colocar emoção na minha vida. _ Já estou até me vendo num
resort do Caribe tomando drinques na piscina.”
Enquanto eu estava a caminho de casa de táxi por conta de Gisele ter
pego meu carro sem minha autorização, ela vinha zumbindo na minha cabeça
através da nossa comunicação por chip aquele papinho de férias garantida. _
“Você está no topten. Todos só falam de você agora.” _anunciou como se
abrisse o envelope do Oscar emocionada e esperasse de mim um belo
discurso de agradecimento no palco. _“Os nossos seguidores estão adorando
sua estória.” _ vangloriou-se. Porém, eu podia calcular que Aurora estava
sendo usada na sua estratégia de barganhar as férias, sem se importar com a
possibilidade de machucar os sentimentos da garota, que não devia sonhar
que milhares de pessoas acompanhavam agora seu encontro entre amigas na
minha casa.
Nossa família foi convidada a entrar no clã Alfa de pessoas bonitas,
ricas e influentes com uma sonhada vida patrocinada por marcas que nos
fazem experimentadores de todos os objetos de desejos que saem da
fabulosa indústria do luxo. Somos verdadeiros cabides e vitrines ambulantes.
Você pode estar achando uma vida triste e infeliz. Mas, Gisele e eu não
somos do tipo revoltados com o destino que nossos pais escolheram para
nós. Pelo contrário, até agradecemos muito pela educação com até certa
liberdade e privacidade que nos deram. Nossos desejos foram levados em
consideração mais do que muitos Alfas que conhecemos. Claro que, no início
foi difícil perceber isso.
Como todo bom superhumano, aprendemos desde os cinco anos a
usar nossos chips pra nos comunicarmos com a velocidade que a nuvem de
informação da internet nos permitia. Achávamos que éramos sortudos por ter
todos os lançamentos de brinquedos, roupas, sapatos e eletrônicos e
creditávamos apenas à aparente riqueza de nossos pais que faziam tudo
parecer presentes diários. Eles tinham a habilidade de colorir o mundo com
um filtro de fantasia e ilusão de pureza.
Assim que a adolescência chegou, julgaram já estarmos grandinhos
pra entender a revelação quer fariam. “Sabe o carro esporte que temos,
Aurora
Li Mendi
56
aqueles eletromésticos que trituram até madeira na cozinha e aquele colar de
brilhantes? Não foram comprados por nós, mas trazidos por algumas
empresas para nos emprestar.
(Eles ainda usavam palavras doces
“emprestar” pra atenuar o golpe que não podia prever a reação.) Na cabeça
de Gisele que pude ler, só havia uma questão: “vamos parar de ter tudo isso?”
Era como se o mundo se tornasse muito pior sem suas roupas, bolsas e
maquiagens de marca. Minha mãe sorriu: “não querida, pode ter até mais.” Eu
estava certo que Gisele aceitaria matar, se minha mãe dissesse que “basta
agora sair por aí matando uns humanos fracos que ganhará em dobro todo o
luxo que já tem.” Mas, a regra era estranhamente mais fácil (aparentemente e
vão entender por que). Só tínhamos que seguir a vida como sempre fora,
usando tudo que chegasse para nós.
Gisele e eu achamos muito suspense para a conclusão ser “siga sua
vida e saiba que o que usa foi um presente de alguém”. Franzimos a testa
desconfiados. Meu pai fez um sinal de olhar pra que minha mãe parasse de
esconder todo o jogo. Eu sabia que existia um preço muito alto que estava
prestes a ser colocado na mesa. “Acho justo que saibam que não estão
sozinhos”, ela começou a explicar e Gisele abriu a boca e depois de alguns
segundos sem falar, ficou penalizada pela falta de exclusivismo, “há outros de
nós? “, quis saber. “Sim, meu anjo, eles tem a tarefa de divulgar as empresas
assim como nós temos esse trabalho. “ (trabalho? toda minha vida fora um
trabalho?). “Mas, nossa importância não está apenas em ser a demonstração
viva dos produtos. Nós fomos eleitos para participar de um reality show dos
Alfas.”
Reality Show? Estávamos em um programa de TV? As pessoas nos
assistiam o tempo inteiro? O mais rápido apreensão do significado disso me
trouxe de imediato náusea e calafrios. De quantos milhares de pares de olhos
estamos falando? Eu seria visto fazendo xixi no banheiro ou dormindo com
uma namorada por todos os amigos da escola? A corrente de pensamentos
meus e de Gisele cruzados preocuparam nossos pais que se levantaram do
sofá e sentaram ao nosso lado na outra poltrona de oito lugares. “Não
funciona assim! Não na nossa família. Não podemos negar. Há sim alguns
Alfas que não fazem qualquer censura e abrem 100% da sua vida para outros
observadores. Mas, no nosso caso, só mostramos para as pessoas que
querem nos acompanhar aquilo que desejamos. Basta dar acesso aos seus
chips pra que elas vejam através dos seus olhos. Você pode falar de coisas
legais, passar bons ensinamentos, trazer exemplos saudáveis.”
Eu ainda sim queria ficar no meu quarto trancado sozinho, sem
ninguém me vendo por dentro da minha cabeça. A escolha existia, mas era
tão esmagadora que parecia impossível: se pedíssemos total privacidade,
deixaríamos de ser Alfas. Eu não tinha direito de privar toda a família. Havia a
chance de mostrar só o que eu quisesse, certo? Era só essa minha tarefa?
_Vocês conhecerão várias pessoas que irão lhe dar sempre
conselhos. _minha mãe tentou dessa vez forçar a barra. O que ela chamava
de sugestões eram ordens de comando. _É divertido, vocês estão
participando de uma espécie de jogo. Existem muitas pessoas do outro lado
que vão aconselhar vocês a fazer certas coisas. O livre arbítrio de escolher ou
não seguir com a sugestão é de vocês. Não perdem o comando. Agora, se
aceitarem, todos saem ganhando. Vocês vão ter mais presentes e os
jogadores ao acumular pontos também são bonificados pelas marcas.
Eu tinha que agora entender que nossas vidas eram um game em que
eu entrava na fase 1.
_Como vou conhecer essas milhares de pessoas?_Gisele questionou,
preocupada com espectro de popularidade.
_Ter um Alfa é coisa pra gente muito, muito rica e poderosa. Assistir
já é para um segundo nível de pessoas que podem pagar pelo acesso a esse
“filme contínuo”. Só poucos podem interferir e enviar mensagens de
direcionamento pra nós Alfa. São pessoas selecionadas pelas marcas.
Era um pouco apreensivo para um adolescente que já tentava
administrar ordens de dois pais, acompanhar os pedidos de algumas dezenas
de ricos com um hobby estranho de jogar com a vida de pessoas de verdade.
A adaptação a essa realidade foi mais divertida e natural para Gisele.
Talvez porque o efeito colateral mais difícil para ela fora o excesso de
popularidade por ser sempre in e deixar suas jogadores patricinhas felizes no
tabuleiro de jogo. Mas, nossos amigos da vida real não sabiam que éramos
Alfas e que havia pessoas nos assistindo por meio das imagens de nossos
chips que liberávamos acesso de vez em quando. Isso fazia com que não se
afastassem de nós. Poucos eram aqueles que tinham dinheiro pra se
interessar por esse tipo de jogo.
Da minha parte, levei tudo com proveito até o fim do ano passado,
quando me apaixonei por uma Alfa sem saber. Era muita coincidência, mas
nossas marcas rivais ganharam bastante com isso e nossos jogadores se
divertiram enquanto nos manipulavam um contra o outro sem sabermos, até
nos levar ao maior índice de destaque no portal do reality. Foi assim que
descobri que ela estava com outros caras ao mesmo tempo em que parecia
curtir nossas saídas. Foi uma fase crítica da minha família, onde pensei em
abandoná-los. Mas, nossos jogadores nos aconselharam ir para uma cidade
menor, onde podíamos viver uma vida mais tranqüila. Agora que já tinham
recebido seus presentes e, eu, minha caminhonete nova, consideravam que
podíamos passar para a próxima fase do jogo. Meu coração porém, não era
uma máquina que podia sofrer um reset. A garota Alfa sumiu e eu peguei o
carro e a mudança e segui com minha família pra longe. Não sozinho, nossos
jogadores nos acompanhavam sempre de algum lugar do panótipo virtual.
Eu não queria que Aurora virasse um tema de discussão dos
jogadores e que Gisele se divertisse editando nossa estória com cortes e
colagens de cenas como se montasse ao seu bel prazer nosso enredo. Ela
Aurora
Li Mendi
58
sabia como ninguém chamar atenção para os maiores lances. Os seus níveis
de recompensa já estavam tão altos quanto uma viagem em grande estilo no
Caribe. Acessei direto a mente de Gisele pra acompanhar o que aprontava. O
campo estava aberto para mim, sinal de que todos os jogadores podiam ver o
que se passava diante dos olhos da minha irmã.
Acompanhei Aurora encolhida no banco do meu carro, saindo da
escola com Gisele. Ela era muito magra, meu banco muito grande ou estava
mais encolhida que o normal por retração diante do convite incomum? Gi
esboçou não saber o que fazer direito com o volante e duvidei se não fora
isso que a deixara Aurora tão recolhida e apreensiva. Mas, logo um jogador
lançou a frase no chip de Gisele pra ajudá-la a fazer o óbvio: ligar o GPS pra
pilotar automaticamente. Outros deles comentaram que tinha que ser uma
loira burra mesmo. Nem todos eram bonzinhos.
_Seu irmão pediu pra me trazer? _Aurora quis saber e eu quase
agradeci a Gisele por ter dado um empurrão tão ousado quanto este. A
garota, contudo, estava com a respiração mais alterada que o normal e a sua
pele parecia suar pelo que dava pra perceber com minha supervisão. Não
confiava na minha irmã, que não parecia ajudar com tanta simpatia e falsa
hospitalidade. Chegou a ser ridícula quando a convidou pra tomar banho em
nossa piscina, por mais que eu adorasse a possibilidade de ver o palito de
fósforo mergulhar na água. Apagaria todo o seu fogo? A menina parecia só
pensar em mim, nem que fosse pra tirá-la daquela, pois comentou alto: “Essa
hora o seu irmão já deve ter acabado a aula, deve estar vindo pra cá,
acredito.”
Minha irmã e suas jogadoras invisíveis achavam que roupas eram
como comida para famintos, podia conseguir qualquer coisa com elas. O
efeito fora imediato aos olhos de Aurora. A menina era bonita o suficiente pra
qualquer roupa, mas não parecia ter dinheiro para ser uma top como Gisele.
Eu não queria que aquele velho costume dos Alfas de se aparecerem como
leões imperiais a constrangesse. Porém, Gisele mostrou-se atenciosa como
não era com todas as suas discípulas seguidoras. Estendeu uma roupa na
frente de Aurora, naturalmente escolhida por suas jogadoras que queriam se
entreter com a cena. Cada uma escolheu uma peça e eu não estava
preocupado na composição e sim em ver Aurora sem nenhuma delas.
Abri um canal de comunicação particular com Gisele e disse-lhe pra
fechar o acesso dos jogadores ao corpo de Aurora, pois não merecia ser
exposta assim. Ela respondeu: “quer ter a exclusividade e deixá-los furiosos?
Você não vai acabar com as minhas férias!”, irritou-se.
A imagem de Aurora na saia de pregas e na blusa preta com uma
renda me fez esquecer por um momento os jogadores, as mensagens
frenéticas que os espectadores enviavam, o ibope subindo. Eram apenas
letras, frases, em um pano de fundo atrás do belo quadro que me irmã me
permitia ver por seus olhos. Aurora não devia sonhar que tínhamos esse
poder, senão, estaria preocupada. Mais não era só eu que estava em
adoração, todos aquele marmanjos e garotas riquinhas sem ter o que fazer
também curtiam a situação. Ordenei pela última vez pra que Gisele fechasse
o seu campo visual. Foi nesse momento, que Gisele revelou o que nunca
falávamos a ninguém, que éramos Alfa. Gritei em sua mente que era louca.
Mas, ela retornou de volta que sabia ser honesta com as pessoas. Eu ri
irônico e perguntei por que não contava a história completa sobre a nossa
vida telepaticamente transmitida e jogada.
_Seu irmão é um garoto Alfa? _Aurora questionou e eu também fiquei
interessado na sua reação à resposta positiva de Gisele. Um dia até pensaria
me lhe revelar, mas Gisele já me suprimira a possibilidade de decepcioná-la
com alguma mentira e explicou todo o significado do que era ser Alfa.
Quando toquei na maçaneta da porta, Gisele tirou o time de campo e
correu para o banheiro, entregando para mim a presa, inofensiva, caminhando
a passos quase suaves de bailarina. Gisele enviou um pensamento privado
de que desejava que eu fosse feliz, depois daquela decepção horrível com a
garota Alfa, mas que não tirasse suas férias paradisíacas. O paraíso, porém,
já estava vindo a minha frente na escada. Gisele lançou a pergunta aos
jogadores sobre que música poderia ser o fundo daquela cena e eles
rapidamente escolheram. Gi colocou, então, a canção nas caixas de som de
nossa casa, o que chamou atenção de Aurora, tão absorta com a procura
pelos alto falantes que quase caiu da escada, mas segurava com uma
pressão excessiva o corrimão dourado.
Suas pernas pareciam maiores olhando de baixo, seu queixo mais
arrebitado e seu cabelo ainda maior e mais vermelho. Tudo naquela garota
vermelha era fogo incandescente. Seus olhos verdes brilharam quando me
viram e o jogo da vida deu uma pausa para mim, pois esqueci de tudo e subi
rapidamente nos degraus para chegar até ela.
_Vocês dois combinaram alguma coisa? _ ela perguntou. Eu quis
dizer “eu, nada. Eles, quase tudo”. _Acha que posso ser o coelhinho de
estimação de vocês?
_Não sei o que está falando..._ tentei fazer parecer com que
entendera tudo errado. Mas, eu tinha que confessar que estava certa por não
termos o direito de colocá-la naquele jogo. Deveríamos afastá-la de nós. _
Você está...
_Ridícula! _bradou e percebi que considerava a roupa ingenuamente
seu maior problema.
Muitos jogadores começaram a me dar ordens: “beija ela”, “está
esperando o quê? Pega ela”, “Puxa agora”... As frases em seqüência tinham
o poder de me controlar quando eu estava emocionalmente mexido. Puxei-a
pra mim e pude ouvir a sua respiração, sentir na pele do meu ombro por meio
da minha supersensibilidade a direção do seu hálito quente.
_Fique longe de mim. _Aurora deu-me as costas e subiu as escadas.
Senti-me um monstro, mas, mesmo triste, acompanhei sua chegada no quarto
Aurora
Li Mendi
60
através dos olhos da minha irmã que tentou persuadi-la sobre não ter sentido
desconfiar de mim. Mas, alguma coisa naquela casa parecia normal? Tudo
dava sinais pra Aurora que era melhor que fosse embora.
Agora com tristeza pedi pela última vez que Gisele fechasse seu
campo visual e ela atendeu, para a vaia geral dos jogadores irados. Apenas
me enviou privadamente a imagem de Aurora retirando a roupa com furor,
enquanto eu estava encolhido em um canto da sala no andar de baixo. Não
falou nada, ficou em silêncio, dando-me a chance de admirá-la.
Vimos algumas cicatrizes em suas costas e continuamos sem
compartilhar nossas indagações por um tempo. Até que Gisele pareceu
confusa sobre sua certeza de que Aurora era humana. Pode ser das cirurgias
de mutação? Não podiam ter feito uma plástica?
Se ela for humana, você vai usar disso pra entreter os jogadores? Eu
perguntei, mas ela não respondeu e Aurora passou pela escada correndo,
deixando seu rastro no ar. Meu coração apertou.
15
Alguém tem que pagar as contas de casa
(Doug)
Desci os degraus da arquibancada do ginásio coberto da escola,
fazendo o mínimo de barulho possível. Já eram 8 horas da noite e não havia
mais nenhum aluno. Quase nenhum. Logo meus olhos encontraram o que
vieram procurando por todos os corredores. Já fazia dois dias que eu lia os
pensamentos dos outros na escola falando sobre o novo lance entre mim e
Aurora e ela mesma fazia que nem me conhecia ou me permitia tirar alguma
pista do seu rosto. A atualização das redes sociais da minha irmã andava
informando mais sobre nós dois do que as suas novas coleções de roupa.
Não importava o assunto com quanto que desse ibope, Gisele faria bem seu
trabalho de paparazzi. E a fofoca era o cimento social naquela escola. Coisa
que Aurora parecia ignorar.
Eu ficara esperando minha mãe sair da diretoria para dar uma carona
de volta pra casa, mas no fim viu que realmente precisava ficar mais e eu
saíra de sua sala um pouco irritado. Por que não percebera isso antes? Esse
bolo ao mesmo tempo veio com uma grata surpresa.
Vi uma mensagem de uma amiga na minha página pessoal que dizia
“treino acabou, agora só ficou Aurora tentando dar o triplo de si. Tchau, não
quero tanto ser vencedora, vou pra casa.” Eu tinha criado filtros pra que tudo
escrito sobre o nome de Aurora chegasse rapidamente a mim. Então, se
estava treinando só podia estar no ginásio. Andei até o fim do corredor de
madeira e abri vagarosamente o portão de ferro vermelho.
O lugar era uma obra olímpica para uma simples escola do interior.
Havia quatro blocos de divisões da arquibancada com mais de cem degraus,
descendo em cascata até a quadra polivalente. A luz era baixa naquele
horário, apenas o canto superior direito estava com um refletor ligado na
direção da minha procurada. Ali, ficavam os aparelhos de exercício físico feito
para aquecimento. Alguns colchonetes azuis e barras de ginástica olímpica
sujos do pó branco de magnésio indicavam que houvera um treino ali pela
tarde. Mas, só sobrara a garota de fogo.
Não sei por que Aurora preferia a sombra, o silêncio e a solidão, mas
independente do seu motivo, eu respeitei seu retiro e me mantive também no
outro extremo. Minha visão era suficientemente poderosa que podia a muitos
metros de distância enxergar seus cílios e ouvir sua respiração mais ofegante.
Se ela tivesse um chip como o meu certamente já teria dado por minha
presença. Nem por isso se tornava menos desafiadora.
Aurora
Li Mendi
62
Eu não sei o que buscava, mas Aurora estava já fazia 20 minutos
desde que eu chegara subindo e descendo pesadas barras de ferro que
contorciam seus músculos em curvas firmes e definidas. Pra que precisava de
tanta força física com exercícios de repetição? Era alguma técnica milenar
que os antigos humanos faziam pra se manterem mais jovens por algum
pouco tempo? Havia remédios e mutações pra isso. Mas, sua obstinação me
intrigava. Se antes eu tinha muita pressa pra que minha mãe acelerasse para
ir embora, agora eu queria ficar ali quieto, sem vontade de ir pra casa.
No jantar de ontem, discutimos por conta da visita de Aurora a nossa
casa, que viera a tona. Enquanto eu tentava comer a salada de macarrão,
meu pai elogiou minha performance entre os Alfas. Imediatamente meus
olhos cruzaram com os de Gisele que parou por alguns segundos com o garfo
apontado para a boca, mas disfarçou e comeu o pedaço de carne. Minha mãe
espetou com força de mais seu legume, fazendo um ruído metálico na louça.
_Vocês querem que aconteça de novo o que houve da última vez?_
olhou primeiro pra Gisele e depois pra mim, como se compartilhássemos a
culpa de uma travessura. _Nós já sabemos que todos só falam do seu novo
caso, Doug.
_Meu? Não há nada! _fiz pouco caso e peguei a taça de vinho.
_Querida, nós precisamos, já conversamos sobre isso... _ a mão de
meu pai sobre a da minha mãe tinha o poder de calá-la, mas não de impedir
seu leve tremor. _Será bom pra toda a família, é só eles... se controlarem
mais dessa vez..._ voltou a divisão de responsabilidades para nós e foi a vez
de Gisele e eu não termos tanta segurança assim para devolver-lhe.
Eu pude ler a mente da minha mãe que se abriu exclusivamente para
mim: “seu pai está com muita dívida pra pagar, se descontrolou um pouco e
agora a marca de carro ofereceu quitar tudo se você conseguir levar a garota
na sua caminhonete mais uma vez. Os jogadores querem vê-la e as garotas
querem saber como vocês vão ficar juntos. Eu não sei que pó mágico jogaram
sobre você, mas atrai os dois públicos. Eu não quero que se sinta obrigado a
mostrar nada pra eles, se...”
Gisele e meu pai perceberam pelo olhar fixo entre mamãe e eu que
estávamos nos comunicando descaradamente excluindo-os da conversa.
“Ok, eu posso fazer isso. O que tem demais levá-la de carro algum dia
se isso resolve o problema financeiro de vocês?”, aceitei mais pela boa
desculpa que pelo meu pai. Mas, não fora pra manter esse trato com meu pai
e o contrato com a marca de carro que eu estava ali sentado no ginásio
quieto. Era puramente por mim, apesar de todos os que acessavam por meus
olhos a mesma cena. Ocultei suas vozes e mensagens pra que me sentisse
mais autônomo.
Aurora estava em um ângulo que a placa da base do leg press me
impediam de vê-la deitada no equipamento. Ainda sim podia ouvi-la inspirar e
soltar o ar fundo quando seus joelhos se flexionavam enquanto os quadríceps
tocavam seu tórax. Talvez o cansaço ou um descuido fez com que a trava de
segurança se soltasse e a placa desceu sobre Aurora, impedindo que
pudesse se soltar do aparelho. Meus ouvidos potentes ouviram seu grito
quando eu já tinha pulado três degraus e descia correndo com o coração
acelerado. Saltei na quadra e meu tênis já anunciou minha chegada enquanto
atravessava toda a quadra a passos apressados.
_Calma, vou te soltar. _disse-lhe.
_O que..._tentou respirar._faz aqui?
Em vez de lhe dar essa resposta, expliquei que tiraria os pesos do
aparelho um a um pra que pudesse esticar a placa e controlar a trava de
segurança novamente pra escapar do aparelho. Aceitou em silêncio e, mesmo
livre, permaneceu deitada, agora com as pernas esticadas, relaxada, olhando
daquele ângulo de baixo diretamente pra mim. Seu cabelo ruivo pendia para
um lado, preso em um rabo de cavalo.
Ofereci-lhe a mão e seus dois grandes olhos verdes primeiro
analisaram minha mão na sua direção e depois ficaram admirando a sua
própria mão aceitar a minha, como se tivesse ido sozinha contra suas ordens.
Estava fria pelo recente contato com o metal ou era a sua frieza corporal? A
temperatura caia e ela ainda estava com um colan preto e uma calça enrolada
na cintura, apenas com os pés aquecidos por um tênis cinza e lilás.
Depois, dei-lhe um impulso pra que se levantasse, o que exigiu uma
força que puxou de mim, mas não subiu muito acima da nossa já inegável
diferença de altura.
_O que faz aqui sozinha?_ perguntei.
_Eu acho que fui a última a fazer essa pergunta. _ Aurora caminhou
até o pote de pó branco e ficou de costas para mim. _Está há muito tempo ali
sentado me vendo?
Como ela sabia? Será que a cena do leg press fora proposital e eu
caíra como um pato? Nunca desvendaria, mas confesso que aceitaria o papel
de tolo para ter um motivo que encurtasse tantos metros de distância. A
desculpa não precisa ser nobre quando o fim era um desejo latente.
_Está querendo treinar mais que as outras?_ lembrei do comentário
da minha amiga, mas ela pareceu achar uma graça debochada. Voltou a
formar uma linha reta nos lábios, deixando apenas por alguns segundos
aquela meia lua de ironia. Brincou pensativa com o pó entre os dedos, passou
por mim e pareceu se contentar com a pergunta, como se eu não tivesse
dado o tom certo de que queria que respondesse. Deu de ombros.
Ela caminhou entre o cavalo com alças, as argolas, as barras
paralelas, a fixa e assimétricas, a trave olímpica e pensei por um segundo que
estava brincando de se achar no labirinto, ou ela achava que o aparelho a
escolheria? Ficou olhando para as próprias mãos e como por uma decisão
repentina (ou predestinada que eu não tenha captado).
Aurora
Li Mendi
64
Sua empunhadura era tão forte agarrando-se à barra que eu podia
entender porque tanto exercício, mesmo assim não explicava a escolha dessa
forma tão dura e antiga pra si mesma que por outros métodos.
Eu estava mais concentrado em suas pernas carpadas, formando com
suas coxas torneadas um ângulo com o tronco. Seu corpo brincava no ar em
um pêndulo delicado e perfeito. Aquela exposição era só um treino alheio a
mim, ou, pelo contrário, era exclusivo? Aurora largou a barra por alguns
segundos, passando de costas por cima dela de pernas abertas o que me fez
imaginar que cairia. Senti a minha mão suar com a idéia. Mas, antes que eu
pudesse ver seu tombo, graciosamente pegou a barra novamente e fez outro
giro. Imaginei que duraria mais tempo, só que Aurora chegara ao limite do
cansaço e caíra com pouco de desequilíbrio em um salto nada gracioso à
frente.
Ela deitou sobre o colchonete e fechou os olhos, parecendo dormir.
Eu fiquei ali ainda mais sem saber o que dizer ou fazer. Era um convite para ir
embora, apontando que eu a estava desconcentrando? Ainda bem que logo
falou:
_A culpa é a falta de música... _ falou baixinho. Ela procurava uma
desculpa?
Então, que as máquinas falassem. Meu chip se comunicou com o
equipamento de som. O sistema tinha um esquema tão fraco de segurança
que não foi difícil fazer uma rádio começar a tocar nos alto falantes. Aurora
não só abriu os olhos como enrugou a testa e levantou a cabeça procurando o
dono da travessura. Mas, dois segundos depois pode descobrir que era obra
minha e finalmente fixou seus olhos verdes em mim.
Ela sentou-se graciosamente, com as pernas flexionadas para um só
lado. Não pude conter e com a força do pensamento liguei um dos holofotes
que estouraram sobre ela, iluminando toda sua beleza. Meu corpo como
eclipse impediu de ofuscar seus olhos.
_Melhor não ter tanta luz..._ disse-me rouca.
Melhor não ter tanta luz quer dizer que...?
Atrapalhadamente pela a ansiedade acabei desligando tudo,
permanecendo apenas os fachos que vinham pelos buracos dos tijolos abaixo
do teto de aço. Ficamos só com a música de fundo tocando. Sentei ao seu
lado.
Não estava agüentando mais segurar. Queria beijá-la agora. Não
havia nada demais em beijar a boca de alguém, mas em Aurora isso parecia
representar os beijos românticos do início do antigo milênio anterior aos
superhumanos. Talvez porque eu esperasse dela uma aceitação que não
tinha mais paciência de esperar chegar.
Estendi o braço e toquei sua bochecha, aprofundando a mão por seu
cabelo vermelho. Não foi toda a minha força que trouxe sua cabeça pra mim,
foi seu sim também. Abri um sorriso que talvez ela não viu. Meu cérebro era
todo dopamina e eu nem tinha injetado nada. Aurora tinha o poder natural de
me deixar salivar por satisfação.
Eu podia fechar agora meu campo visual, mas isso pagava as contas
de casa e não era difícil esquecer os outros quando eu me concentrava em
sua boca vermelha e úmida tão perto. Aurora ajoelhou-se na minha frente e
suas mãos demoraram a decidir, mas tocaram o cabelo da minha nuca,
massageando-a. Era uma técnica pra me relaxar.
_O que está acontecendo aqui? _pensei ter ouvido a pergunta de
Aurora, mas seus lábios não se mexeram e eu ainda não tinha o poder de
trocar pensamentos com ela. Então, de quem...? Minha mãe ainda na escola!
Olhei para o portão e vi o pequeno corpo à distância.
Por favor, pode ir na frente de táxi que vou levar Aurora de carro!
Lembra sobre o contrato? Acabei a encontrando. Pedi mentalmente e ela
aceitou.
Nesses poucos segundos em que pareci pensar demais, Aurora
levantou-se e foi buscar sua mochila. Eu tinha parecido desistir? Que idiota!
Eu podia consertar:
_Posso te levar em casa?_ saiu mais como pedido que como uma
afirmação. _Estou de carro novo.
_E daí seu carro novo?! Agora dá pra acender a luz que eu preciso
sair?
A marca não ia gostar nada de seu comentário e eu quase ri. Ela
ficara irritada por eu não ter lhe dado o beijo que começara com as
promessas dos meus gestos?
_Você não vai pensar nisso quando chegar em casa super rápido e
bem... aquecida, está frio lá fora. _caminhei ao seu lado. Não fora bem esse o
pedido de propaganda que eu recebera. Falar do aquecedor?! Eles cobrariam
todo o dinheiro de volta.
_Qual é, Doug? _ela parou.
Eu quase falei uma frase sobre os atributos do motor, mas ela não
entenderia nada. Neste momento queria saber minha intenção e eu estava
preocupado em pagar uma conta.
_A minha?_senti que puxara o fio que explode a granada.
Aurora
Li Mendi
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16
Meu super amor humano
(Aurora)
Eu segurava com uma mão um livro de páginas velhas que parecia
pinçado de um sarcófago e a outra mão apoiava a cabeça. Estendida na
minha cama, meus olhos fixaram em um ponto atrás do livro, o pensamento
suspenso com as palavras que acabara de ler. Era uma estória de romance
secular sobre um amor impossível entre dois humanos com uma vida curta.
Era o tipo de livro que não saíra da biblioteca da minha escola de
superhumanos obviamente, mas de uma velha livraria do bairro de humanos.
Será que minha mãe morava em um desses lugares e tinha vivido
alguma estória de amor? Já havia morrido, já havia partido? Mais do que uma
saudade que eu não costumava ter, gostaria de saber que conselhos daria
pra mim? Qual seria o papo de humana pra humana?
Eu amava meus pais superhumanos e sentia culpa pelo simples
desejo de desapontá-los. Mas queriam pra mim um roteiro de vida tão
anticéptico e cirurgicamente comedido que a casca do ovo começava a
apertar e rachar.
Minha segunda mãe era mais complacente e queria me deixar curtir
tudo que a idade me reservava. Porém, meu pai sempre estava ali pra me
lembrar que se minha rebeldia custasse descobrirem que não tinham uma
superhumanidade, eu poderia ser completamente expulsa e até linchada pela
mesma sociedade que me ensinaria muito.
Só que não era uma questão de aprender, desafiar, sobreviver. Era
amor. Tão perigoso e violento quanto a própria ousadia de ser humana entre
superhumanos. Ele me machucava por tentar prendê-lo em um espaço muito
pequeno no peito.
Nenhuma superhumana amaria alguém em tão pouco tempo. (ok,
que esse alguém não fosse tão lindo, sexy e inteligente quanto Doug). No
máximo, aceitaria dizer que era paixão. Rápida, arrebatadora, quente e
passageira como todos os relacionamentos deles.
Amor era um sentimento humano, porque implica a perda, quem ama
sabe que pode perder. Os superhumanos têm super saúde, super vida, super
chances, super auto-suficiência. Eu sabia que amava Doug porque apesar de
não poder nem querer tê-lo, eu o desejava relutantemente à distância, sob o
fardo da condição de que eu seria um sopro em sua vida 3 vezes maior do
que a minha longevidade. Mas, o jovem só consegue ler a hora que o relógio
marca. E agora e tínhamos os ponteiros no mesmo lugar.
A única solução era uma intervenção que trocasse meu coração e
cérebro. Mas, como eu não podia ser submetida a cirurgias assim por conta
de problemas genéticos raros de rejeição a mutações, eu tinha que controlar o
meu ser inteiro pulsando e reagindo à cada vez que Doug estava por perto.
Ir até sua casa fora um total ato de irresponsabilidade, mas que fizera
descobrir a revelação sobre a família alfa. A explicação que Gisele dera sobre
o assunto fora mais superficial do que o que procurei na internet assim que
chegara em casa.
As empresas ainda não assumiam publicamente por questão de ética
o uso dos Alfas, mas já havia dissidentes da prática que contavam terem
vivido realidades de filme de TV em lugar de suas vidas. Agora, havia uma
geração menos amoral dos Alfas, em que famílias inteiras eram convidadas
apenas a expor as marcas naturalmente em seu dia-a-dia. O problema era
que a prática anterior ainda realizada por empresas menos preocupada com o
que os consumidores pensam e mais desesperadas em influenciar, ainda
faziam coexistir as duas formas.
Ironicamente parecia um pouco com a minha situação, ser humana
entre humanos era um paralelo entre os Alfas do bem e os Alfas do mal.
Como eu podia ser tão ingênua em querer achar um ponto em comum entre
Doug e eu? Até onde esse amor me levaria? Eu digo apenas “me” levaria
sozinha, pois Doug não aceitaria viver nada mais que um fortuito caso, se não
viver vários em que eu era um deles. Eu gostaria de ter nascido na época em
que os humanos eram violentamente monogâmicos. Mas, isso se
enfraquecera com a morte do amor pleno no último milênio.
Fechei o livro e lembrei-me que o treinador marcara um treino bem
para essa linda tarde de sábado de sol. Eu tinha que malhar e retardar meu
envelhecimento se quisesse que ao menos meu tempo corresse mais de
vagar que o de Doug. Certifiquei-me com minha amiga Loren que tinha um
namorado no time de futebol se havia pra eles treino também e a resposta
positiva me deixou mais animada pra ir pra escola. Só tentei transparecer
menos para meus pais quando passei pela sala. Eu começava a ficar
neurótica com isso.
Infelizmente, o treino dos garotos fora fechado por conta do treinador
ter achado que as escolas vizinhas mandariam espiões para verem suas
táticas antes do campeonato. Sábado perdido. Depois do treino de handebol,
as meninas foram embora e eu ficara sozinha me exercitando. Não queria
voltar pra casa, sentia-me triste, com um vazio que era parecido com as
minhas abstinências de chocolate quando precisava emagrecer.
Enquanto eu corria na esteira, percebi uma pessoa entrar no ginásio
vazio. Primeiro estranhei o motivo de alguém sábado a noite querer ficar ali
sentado. Meu coração de repente disparou e não era por conta da velocidade
10 da esteira. Eu estava tendo visões ou eu conseguira desejar tão forte ver
Doug que ele aparecera ali pra me ver? Ele tinha marcado encontro com
alguma outra garota do time? Por que só havia eu ali...
Aurora
Li Mendi
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Tomei fôlego com a boca seca e diminui a velocidade. A esteira mais
sua presença me enfarariam. Sequei o rosto, bebi água e deitei no leg press.
Esperei o sangue correr até a cabeça e oxigenar meu cérebro pra que eu
voltasse a ter pensamentos mais conseqüentes. Estava tendo visões. Olhei
novamente e tive certeza. Era muito longe e escuro. Mas, eu podia
reconhecer a cor do abrigo, da mochila, do cabelo. Eu estudava Doug de
longe que era capaz de saber seus perfumes, roupas, sapatos tudo. E não era
por conta de ser Alfa e eu desejar seus produtos. A embalagem não era o que
importava. Apesar de ser efeito que as empresas desejassem, que
percebêssemos as marcas como uma escolha preferida dos Alfas atrativos.
Eu não queria que ele fosse embora! Como chamaria sua atenção? Apenas
passando por ali e dizendo Oi? Não podia ser tão oferecida assim. E se
fizesse vir até mim? Dando um gritinho: “Hei, você aí, vem aqui?” Não!
Minha ansiedade fazia minhas mãos suarem. Planejei uma coisa
insensata. Eu deixaria ficar travada no aparelho e pediria ajuda. No mínimo se
não fosse ele, teria uma boa alma qualquer pra me tirar dessa. O amor nos
levava ao ridículo! Vamos à tarefa de atraí-lo pra cá...
Peguei a alavanca e... Aiiii... Esqueci-me que havia peso demais e me
dei conta de que talvez não desse tempo pra que alguém me ajudasse antes
de ter uma contusão. O treinador me mataria... Meu pai reclamaria meses
porque eu não poderia aparecer na escola daquele jeito e não ir a escola era
não ver mais Doug.
_Calma, vou te soltar. _era o próprio Doug, como eu desconfiava, já
do meu lado. Sentindo o seu perfume maravilhoso masculino de banho recém
tomado após seu treino, tive certeza que agüentaria mais um pouco só pelo
prazer de revê-lo. Eu tentara nos últimos dias fingir que era alheia ao impacto
da sua fama na escola, mas não havia uma célula do meu corpo que não
ficava túrgida de emoção quando o via em algum corredor conversando com
alguém.
_O que faz aqui?_procurei parecer assustada e surpresa. Estava
virando boa atriz.
_ Eu vou tirar os pesos pra que puxe a trava. _ respondeu
compenetrado em sua tarefa e prontamente me libertou do aparelho. Daquele
ponto, conseguia ver tão bem seu lindo rosto preocupado em me livrar
daquela trapalhada secretamente premeditada. Seus olhos azuis era um mar
onde eu gostaria de me atirar de cabeça e me deixar loucamente ser tragada
pela maré alta pra qualquer lugar longe e fundo dentro dele. Acho que fiquei
nesse pensamento poético por muito tempo, pois demorei alguns segundos
pra me dar conta de sua mão estendida em oferta. Prontamente deixei-me
levar por aquele forte e quente toque de sua pele.
_O que faz aqui sozinha?_ perguntou-me e eu lhe cobrei a resposta
pra essa mesma pergunta que fizera há pouco pra ele. _Está há muito tempo
ali sentado? _cansei um pouco do jogo “eu sei que está me vendo”.
_Está querendo treinar mais que as outras?_ quis saber. Será que me
achava prepotente? Queria lhe dizer que eu precisava dobrar meus esforços
humanos pra ficar como elas. Não poder revelar e deixá-lo pensar mal de mim
me fez morrer meu sorriso. Concentrei-me em passar pó nas mãos pra fazer
meus exercícios de ginástica, prática que eu fazia desde muito pequena. Não
era nisso que eu competia, mas gostava de não perder a prática e aproveitava
o silêncio do ginásio pra treinar. Fiz alguns giros sem muita classe nas barras
e não tive a melhor das minhas paradas no final, mas já estava cansada e era
o fim do treino. Deixei-me ficar caída no colchonete, relaxando os músculos
exauridos.
_A culpa é a falta de música... _ murmurei só pra mim. _Eu me saio
melhor com música... _ falei num fio de voz e não imaginei que captaria de
longe.
De repente, uma música começou a sair dos alto falantes do ginásio,
como se meu cérebro pudesse se comunicar com elas e emitir um comando.
O meu não, mas o de Doug. Virei o rosto para o lado e encontrei seu belo
rosto travesso. Juntando forças, apoiei o cotovelo, depois o antebraço e
sentei-me de lado. Era como se quisesse me ver ainda mais, pois ligou um
holofote em cima de mim. Ok, é estranho dizer que tinha ligado uma coisa
sem nem piscar os olhos. Isso tinha um efeito de disparar meu coração. Era
bom que ele não chegasse mais tão perto ou eu o beijaria de uma vez por
todas. Só não seria bom ter nenhuma testemunha.
_Melhor não ter tanta luz..._ pedi e ele desligou tudo e sentou-se ao
meu lado. Eu não me mexi nenhum centímetro pra que não o intimidasse.
Mas, Doug estava bem vontade quando esticou o braço e acariciou minha
bochecha, dedilhando meu cabelo.
O clima era perfeito. A música, a pouca luz e mais ninguém. Era o
momento e o que eu tinha mais que esperar? Ele era só um cara lindo
superhumano que fala com máquinas, tem corpo biônico e logo teria três
namoradas incríveis superhumanas pra me esquecer. Não era em nada
parecido comigo, nem me amaria. Quais os impactos de um beijo que só eu
sentisse realizar a consumação de um desejo tão humano e apaixonado? Era
só em mim que aconteceria o céu de fogos e eu guardaria muito bem a
lembrança.
Aproximei-me de joelhos, até que fiquei na sua frente há um palmo
mais alta que seu rosto. Toquei seu cabelo e experimentei o toque,
registrando a seda dos fios escorrendo por meus dedos pra me lembrar pra
sempre. Ele tinha o poder de ouvir o meu coração de longe? Porque eu ficaria
vermelha se soubesse que sim. Que importa, está escuro, a música estava
tocando e era o nosso momento...
Doug olhou para o lado em alerta e eu senti como se alguém desse
um tapa no meu rosto pra me acordar quando eu acompanhei sua atenção e
vi um vulto no portão do ginásio. Só podia ser sua mãe, o que era
aterrorizador. Bastaria o próximo café com meu pai que ela lhe diria que
Aurora
Li Mendi
70
estava ficando muito perto de seu filho. Pra ela, seria um inocente comentário
incentivador de mãe e pro meu pai seria a previsão de castigo eterno em
cativeiro domiciliar! Mas não sei como Doug fizera aquilo, sua mãe
simplesmente foi embora e era hora de eu fazer o mesmo. Fiquei de pé pra
pegar minha mochila.
_Posso te levar em casa? Estou de carro novo.
_E daí seu carro novo?! Agora dá pra acender a luz que eu preciso
sair? _eu juro que queria não continuar naquele fingimento de rejeição, mas
ele precisava ficar longe.
_Você não vai pensar nisso quando chegar em casa super rápido e
bem... aquecida, está frio lá fora.
Não, Doug! Você não tem que ser legal comigo. Pára já com isso!
_Qual é, Doug? _parei na frente do portão, sendo seguida por ele.
_A minha? Só estou tentando ser educado com você! _aquilo era uma
chantagem emocional! E funcionava muito bem, porque me senti uma
grosseira.
_Tudo bem. _ eu não devia, mas aceitei.
Quando eu decidiria qual posição tomar? Pra isso, ia precisar de sua
ajuda mantendo-se bem longe, o que não cooperava em nada.
Caminhamos até sua caminhonete, onde joguei minha mochila para
dentro e fechei logo a porta por conta do frio. À noite, a temperatura caía
bruscamente.
_Podemos parar no caminho pra comer alguma coisa? _ ligou o carro
e programou um caminho antes que eu respondesse. _O treino foi puxado e
preciso repor. _explicou pra não parecer um encontro. Já sabia muito bem
que eu ia bancar a difícil. _ Já estamos infringindo os horários ou ainda dá
tempo? _perguntou.
Infringindo? Depende do que o seu mundo pensaria em sair com uma
garota tão normal.
_Ok, acho que posso te ver devorar um sanduíche.
Oh, céus! Eu podia fazer qualquer coisa ao seu lado, se tudo não
fosse tão complicado!
_Sanduíche? Não... _ riu e eu senti um ligeiro medo. _Eu não te
levaria a uma lanchonete gordurenta.
Aquilo era voltar a ativar meu senso de proteção. Pensei em mudar,
mas Doug captou:
_Ãnh-ãnh, você já aceitou! _virou o carro e ganhou estrada. _No
banco de trás sempre tem coisas da Gisele. Veja se tem alguma coisa que
sirva por aí?
Do que estava se referindo? Virei pra trás e puxei um sobretudo que
eu venderia o cabelo pra comprar e um sapato alto largado sobre o acento.
Mas, por que eu usaria aquilo?
_Só tem umas coisas aqui formais. Não serve... _falei com a voz
abafada, tentando pinçar o outro par do salto.
_Claro que vai servir. _acelerou mais o carro.
Doug estava me levando para um lugar não só público, mas
totalmente em evidência? Por isso, eu precisava do casaco? Minha casa
estava já muito longe pra trás e eu queria muito seguir aquele caminho...
Então, vesti o salto de cinderela por uma noite.
Aurora
Li Mendi
72
17
Eles pensam em tudo por mim
(Doug)
Começava a desconfiar seriamente de que Aurora me forçava nosso
afastamento. Se ela queria tornar as fases desse jogo mais difícil pra me
desestimular, não sabia que havia incansáveis jogadores por trás
interessados em um ótimo desafio. Expliquei-lhe que a oferta de levá-la em
casa não passava de uma questão de educação. Pareceu simplista depois
que argumentei, mas surtira efeito. (Quando eu digo que é difícil prever suas
reações!)
Enquanto Aurora pegava no vestiário as roupas e toalhas do armário
pra poder levar pra casa na mochila, verifiquei o que os jogadores pediam.
Eles queriam que eu a convidasse pra jantar. Mas, como? Fora uma luta
conseguir convencê-la a ir pra casa comigo! Cocei a cabeça e olhei a hora.
Aceitei, iria chamá-la para... Logo surgiram algumas sugestões de lugares.
Eles pensam em tudo por mim.
Abriu-se um foro de como Aurora deveria ir vestida. Revirei os olhos.
Eu só queria ir a uma lanchonete e começavam a travar uma guerra de
marcas de roupa e sapato?!
Esperava que fossem rápidos, pois Aurora não podia desconfiar que
estava sendo manipulada. Até que ponto todos nós não somos guiados pelo
que as empresas querem que achemos bom pra comer, pra vestir, pra usar.
Por que achamos que a escolha é nossa só pelo fato de que apenas pagamos
o que oferecem pra nós?
Recebi uma mensagem de que as roupas e sapatos já fora escondida
no banco de trás do meu carro. Era muito estranho saber que sempre
estavam por perto e me amparavam como sombras. Mas, naquele momento,
só queria estar com Aurora, não importava o que usasse. Caminhamos até o
meu carro rapidamente, pois o frio estava forte. A temperatura do planeta
nunca fora tão instável.
_Podemos parar no caminho pra comer alguma coisa? _ usei a voz
mais displicente que achei e torci pra que aceitasse. _O treino foi puxado e
preciso repor. _ era preciso levar para o lado prático. _ Já estamos infringindo
os horários ou ainda dá tempo?
O tempo que Aurora custou pra pensar me trouxe dez segundos de
desamparo.
_Ok, acho que posso te ver devorar um sanduíche.
Ótimo! Segurei o suspiro pra não parecer desespero. Sanduíche? Eu
não conseguiria pedir sanduíche no lugar onde eles planejavam que eu
fosse...
_Sanduíche? Não... Eu não te levaria a uma lanchonete gordurenta.
_Olhei-a e vi que sua veia no pescoço pulsava. Estava em fuga? _Ãnh-ãnh,
você já aceitou! _coloquei o carro no caminho do vale Rotsu. Agora era o
momento de descer o pano do acaso forjado sobre a cena. _No banco de trás
sempre tem coisas da Gisele. Veja se tem alguma coisa que sirva por aí?
Ela virou-se pra procurar e achou que aquilo não lhe serviria, pois era
muito formal. Ai ai, as notícias devem ser dadas em doses homeopáticas.
_Claro que vai servir. Gisele é conhecida por ser a mais atualizada em
moda...
_Uma garota Alfa?_ perguntou e senti que olhava pra mim. Cocei o
queixo e não lhe respondi. Era um pouco estranho saber que Aurora me via
como Alfa. Por que diabos Gisele lhe entregara o ouro? Será que queria testála pra ver se estava comigo por gostar de fato ou para ficar próxima de um
cara que tem tudo? Seja lá a intenção de Gisele, nos juntar ou repelir, ou
onde quer que os jogadores nos levariam, havia uma certeza: eu gostava de
estar ao seu lado.
_Está muito frio, o casaco vai te aquecer. _ falei-lhe sobre utilidade,
mas quando ela colocou os dois braços e ajeitou a gola, percebi porque uma
roupa de alta grife com um corte perfeito em uma garota linda como ela
significava a perfeição. Depois de calçar os sapatos, no lugar do tênis, ela
procurou o espelho a sua frente e passou o batom que tirou da sua bolsa. Seu
cabelo vermelho que estava enrolado no coque ganhou ondas sobre seus
ombros e o perfume do seu xampu ficou no ar.
_Aonde é que vamos? Caçar alguma coisa pra comer?_ questionou
quando percebeu que íamos pegar o caminho da colina.
_Você verá a vista mais bonita de toda sua vida. _dei um clima de
suspense que achei que já pudesse suportar sem reclamar, estávamos
suficientemente longe de tudo. Aurora inclinou a cabeça e procurou na nossa
frente o restaurante todo envidraçado e iluminado no topo do monte voltado
para o lago norte. A lua estava linda, deixando o facho de luz sobre o lago
prateado.
_Não era só comer alguma coisa?_agora estava quase sendo chata!
Eu ia levá-la para o restaurante mais caro e mais incrível que veria em toda
sua existência! Vestia um sobretudo que pagava a anuidade do colégio e um
sapato feito a mão, por que não simplesmente começava a se sentir uma bem
aventurada entre todas as garotas?!
Entramos no estacionamento e meu chip foi lido pelo scanner da
entrada. Sabiam que um Alfa estava ali. Eu podia imaginar como todos se
colocavam a postos pra me receber como uma celebridade a fim de me
proporcionar a experiência do melhor jantar que eu pudesse reverberar
Aurora
Li Mendi
74
depois. No meu GPS já começou a piscar o lugar pra estacionar próxima a
entrada. Eles sabiam ser eficientes.
_Vamos nessa. _desliguei o carro e dei a volta pra abrir a porta pra
Aurora.
_Hum... Como faço? Devo levar a mochila...? Não tenho uma bolsa.
Não estava preparada para isso..._ olhou pra frente e vi que a maître já
estava ansiosa nos observando.
_Não se preocupe, tudo que precisamos está comigo._ fiz com a
cabeça um sinal pra me seguir. Quem precisava de qualquer coisa com um
cartão black no bolso? Eu estava um pouco informal, calça jeans e blusa
estampada. Mas, eu sabia que não importava que fosse de pijama, meu chip
com meu limite bancário e meu histórico de compras diriam quem eu era.
_Boa noite, Douglas. _ a maître sorriu e olhou pra Aurora sem
entender por que não conseguia ler seu chip para saber todos os seus dados.
Era como se eu andasse com uma incógnita e até começava a gostar disso.
Ela era uma porta fechada e eu uma janela aberta pra qualquer um espiar.
_Temos uma mesa lá fora para vocês admirarem a noite. _sinalizou com a
mão pra passarmos.
_Você reservou? _Aurora murmurou baixinho.
_Não, não, ela sabe dos meus gostos... _ dei de ombros.
_Hum, ela sabe que sempre traz garotas aqui pra ver “o luar”?_ era
ironia ou nojo no tom da sua voz?
Ok, os jogadores começavam agora a travar uma aposta sobre se eu
a beijaria ou não com aquele humor tão arisco. Pra começo de conversa eu
decidiria quando e se eu queria beijá-la!
Aurora parou diante da sacada e vislumbrou a vista espetacular, seus
lábios se entreabriram pra recuperar o fôlego. Minha perfeita visão noturna
pode capturar o cintilar dos seus olhos. Era emoção?
_Eu nunca trouxe ninguém especial aqui. _ quase menti. A última
pessoa não fora especial. Não mais. _Foi uma boa sugestão da Maître. _ na
verdade, dos jogadores.
Aurora virou o rosto pra mim e seus olhos verdes escuros brilhavam o
fogo das tochas próximas. Ela era o próprio calor da noite.
_Se isso é um lanchinho rápido, o que seria um grande encontro? _
riu.
Eu imaginei rapidamente pirâmides, resorts, montanhas, castelos,
mas Aurora enrubesceu e retirou a pergunta.
_Quero dizer..._gaguejou. _Como amigos, imaginei uma batata frita
e..._sua voz sumiu da garganta com o movimento que fiz de segurar sua
cabeça pela nuca por baixo de seu cabelo vermelho. Seus olhos dilataram-se
ainda maiores. Inclinei o rosto pra beijar seus lábios úmidos, mas virou o rosto
ligeiramente pra trás, deixando apenas o gosto do canto dos seus lábios.
_Doug, melhor não... _gemeu baixinho, apertando minha camisa. Era tão
doloroso assim um beijo? Eu não fora criado com negativas.
_O que falta pra ser um encontro? _ segurei seus cabelos com a mão
fechada e olhei com dominação seus olhos verdes agora miúdos. _ Isso?_
beijei-a com toda a vontade que ela vinha retendo em mim, agora eu
desaguava abrupto, deslizando lábios sobre lábios. O que podia fazer se não
entreabrir mais a boca e me receber. Sua cabeça reclinou pra trás e eu a
apertei em um abraço fechado, não a deixaria cair, não deixaria que nada
pudesse pô-la em risco. Seus braços recolhidos em proteção uniam seus dois
punhos e a ponta dos dedos tocava meu queixo. Não queria derrubar seus
muros se já tinha conseguido que abrisse a porta para mim. Afastei um pouco
o rosto e sorri. _Está com fome?
Aurora abaixou um pouco a cabeça e levemente a balançou
recobrando a vida, se situando no espaço.
_Acho que é pra isso que viemos, não? _sorriu um meio sorriso.
Sentamos em uma pequena mesa iluminada com pequenas velas
quadradas.
_Quer pedir alguma coisa em especial? _deslizei o dedo sobre a fina
tela no canto da mesa e com poucos toques pude ver o menu.
_Confio em você. _ disse e seus olhos estavam perdidos no céu
estrelado atrás de mim. Confiar em mim parecia ser uma decisão conflituosa
pra ela.
Escolhi uma massa e um vinho, coloquei o tempo estimado que eu
esperava que chegasse e selecionei um estilo musical de música lenta que
começou a tocar abaixo da nossa mesa, vindo de um pequeno dispositivo no
teto que permitia que apenas nós pudéssemos apreciar a canção sem que
outras pessoas a ouvissem.
_Está gostando da cidade? _perguntou, bebendo o vinho que acabara
de chegar.
_É legal... _assenti.
Cidades como aquelas eram poucas no mundo com água pura,
árvores, animais. As megalópoles possuíam toda a tecnologia e indústria
avançada, mas não tinham a paz desses recantos. Era muitíssimo caro viver
aqui, pois o lugar era disputado. Os humanos ficavam nas cidades servindo
de empregados para as fábricas e montadoras. As ofertas de trabalho eram
bem reduzida na era das máquinas que podem se comunicar e se
reprogramar sozinhas. O pai de Aurora não era rico como os meus, mas um
grande cientista que conseguira ao longo da sua vida unir reservas pra manter
sua família aqui. Por suas aulas na escola eu podia imaginar a educação que
ela recebia. Ele estava muito mais preocupado com respirar o ar puro, com o
sol, a lua e o rio do que meus pais com plásticas, chips e remédios feitos na
medida da necessidade dos nossos gens.
_Você sempre morou aqui? _ perguntei, já sabendo a resposta. Eu
era a pessoa que mais prestava atenção nas exposições do seu pai em sala.
Aurora
Li Mendi
76
_Não consigo me imaginar em outro lugar. É tão tranqüilo, bonito..._
olhou o lago e a lua e suspirou. Por um segundo achei que era tristeza, mas
ela me enganava com sorrisos bondosos. _... Você pretende voltar para o
lugar de onde veio?
_Estamos bem aqui. _dei de ombro.
Percebemos um leve flash. Aurora e eu viramos o rosto pra ver quem
tirara a foto, mas nenhum rosto se denunciou. Podia não ser com a gente, a
noite estava bonita e qualquer um poderia tirar uma foto. Aurora, no entanto,
estava menos relaxada que eu e pediu licença pra ir ao banheiro. Eu sabia
que estava com o celular no bolso e iria ver na rede o que publicaram sobre
nós. Joguei o guardanapo com força na mesa e meu punho se chocou contra
o vidro, produzindo um leve tremor nos pratos e talheres.
As câmeras eram os outros. Eles viam, teciam e escreviam a nossa
estória. Enquanto alguns jogavam, outros assistiam. Recostei-me na cadeira e
olhei o lago ao lado. A lua estava menor. Varri a Rede e logo encontrei um
vídeo do nosso beijo. “Doug teve que apostar alto hoje com aquela garota,
qual o nome? Hum... rapidinho vão lembrar, porque agora ela está na fatura
do preto e brilhante cartão de crédito de Doug Toulevar. Será que é só por
uma noite? Doug, querido, tem um lugar bem gostoso no pé da montanha,
estrategicamente te esperando. Ou escolheu esse lugar por causa da lua?
rsrs”
Se Aurora tinha lido aquelas fofocas sem fundamento, era bom que eu
ficasse longe da sacada pra que não me empurrasse ali de cima.
Surpreendentemente, ela voltara sorrindo e de cabeça erguida
Acompanhei todos seus movimentos com desconfiança e o rosto
tenso. Sentou-se ao meu lado, tomando o cuidado de puxar a cadeira mais
para perto. Isso estava me dando medo! Quem ela encontrara no banheiro?
Aurora pegou a taça balançou levemente e bebeu o vinho. Seus olhos eram
uma floresta verde de um verão quente. Era pra eu fazer algum movimento
agora ou se me mexesse estragaria tudo? Por que eu temia que Aurora
estivesse querendo chamar atenção? Sua mão encontrou o cabelo da minha
nuca e o afagou. Seu olhar sobre a minha boca era o sinal pra que eu não
perdesse mais nenhum tempo. Beijei-a com vontade e o contato quente e
macio de sua boca só fora interrompido pelo jantar que acabava de chegar.
_A gente podia depois ver a lua mais de perto. _sugeriu.
Em qualquer lugar a lua tinha a mesma distância, não? Ela queria
dizer longe de todo mundo?
_Quer alguma coisa de sobremesa?
_Não..._falou com a veemência de um ex-dependente nervoso.
_Ok...
Ela balançou a cabeça para o lado, punindo-se, mas tentou me dar
um sorriso pra não ficar má impressão. Eu tirei o cartão Black do bolso e
entreguei ao garçom. Senti seus olhos alguns segundos sobre ele e não
exerceu o mesmo feitiço que acontecia com todas as garotas. Aurora não
reagia com a mesma previsibilidade que as outras.
Entramos no meu carro e ela respirou fundo e soltou o ar. Aquilo era
alguma espécie de alívio? Inclinei-me um pouco sobre o volante e perguntei
qual o caminho.
_Qualquer lugar por aí... _deu de ombro e ligou o som do carro.
Desci pela estrada sinuosa com cuidado enquanto ouvíamos uma
música antiga que ela escolhera por qualquer motivo que eu não me
importava, com quanto chegasse no lugar que queria. Ganhamos a estrada e
em um dado momento, ela pedira que parasse. Aqui? Havia floresta de um
lado, estrada, céu limpo e estrelado. A lua, nós, ninguém mais.
_Pode ser perigoso a gente aqui... _comecei a falar, mas ela já tinha
descido do carro. Estava frio, por que não era mais convencional e escolhia
um lugar menos a ermo?
Desci também e a encontrei encostada no carro, ao lado da minha
porta. Não viemos ali pra conversar. Não imaginei que terminasse assim, mas
foi Aurora que me puxou primeiro e nos beijamos com muita vontade e
desespero. Fazia calor como se ela emanasse uma fonte própria de
aquecimento mais forte que o normal.
De repente, ouvimos grunhidos de um animal raivoso e nossos lábios
se descolaram com um leve estalido. Aurora viu sobre meus ombros algo que
a apavorou.
_Não se mexa..._ela sussurrou. _Parece ser um cachorro mutante...
_Não tinham exterminado...?
Os cães modificados em laboratório pra que tivessem maiores
habilidades de proteção, caça e força nem sempre davam certo. Uma espécie
ruim e muito perigosa havia sido produzida e tentávamos lutar pra exterminála. Mas, seu maior perigo era justamente não aparentar esses sinais enquanto
pequenos, o que fazia com que famílias facilmente os adotassem e depois
descobrissem que criaram monstros.
_Entra primeiro no carro... _instrui-a.
Aurora conseguiu entrar, mas não demorou alguns segundos pra
sentir a mordida em meu ombro.
_Doug! _ela gritou e eu usei a força do meu braço metálico pra
cotovelá-lo. Foi só aí que me virei e pude ver o bicho de pelos pretos, olhos
vermelhos e dentes afiados pingando sangue. Ele tinha a altura do meu peito
de pé e podia me matar se conseguisse me derrubar no chão. Minha camisa
começava a ensopar de sangue. Aquele animal arrancara um pedaço da
minha carne com uma só mordida.
_Aurora, não saia daí! _pedi e pensei como fazer pra entrar no carro o
mais rápido possível.
A luz dos faróis que Aurora acendeu pra afugentá-los me permitiu ver
que eram uma matilha de cães famintos em uma fileira. Eu não sobreviveria
ao ataque de todos eles e isso me deu um terror de morte.
Aurora
Li Mendi
78
Quando dei um passo atrás pra entrar no carro, tropecei e caí de
costas, o que agora os deixavam na posição perfeita pra pularem todos de
uma vez sobre mim e arrancarem cada membro em pedaços.
_Doug! _ Aurora gritou e desceu do carro.
_Não! _ berrei pra que ficasse onde estava, seria burrice morrermos
os dois, se ela já estava a salvo. Mas, não me ouviu e me deu a mão pra que
levantasse.
Os cães correram em nossa direção em linha, eram oito grandes feras
negras e babando de fome por nossos corpos. Eu já havia acionado minha
irmã pelo chip, mas eles não chegariam a tempo. Encontrariam só nossos
ossos.
_Vão embora... _ Aurora gritara com uma voz rouca e forte. Eles
diminuíram o galope, mas não deixaram de estar perto demais. Foi quando
ela berrou muito alto. _ Vão! _ uma linha de fogo formou-se em sua frente e
todo o mato começou a queimar em labaredas.
Eu estava petrificado. Onde conseguira um isqueiro e coragem pra
incendiar tudo? Os cães latiram e sumiram para dentro da floresta novamente.
Aurora cambaleou e desfaleceu no chão. Não havia nenhum objeto em suas
mãos, mas essas estavam muito vermelhas e quentes.
_ Aurora?_segurei seu rosto e seus olhos se abriram
novamente._Eles já foram.
_E seu ombro? _sentou-se ainda tonta._Vamos sair daqui.
Ela abriu a porta do carro e sentou-se no volante. Pediu que eu
cobrisse o ferimento com o seu sobretudo e eu notei quando o tirou que
estava suando. Não ousei perguntar, ela estava dirigindo a 160 por hora na
estrada vazia e suas mãos começavam a dar bolhas.
_Eu sou uma grande idiota!_gritou, fora de si. _A lua? Droga! _virou
em uma curva cantando pneu e chegou no hospital quase quebrando a grade
da entrada.
Eu perdera muito sangue e uma sonolência me deixou com a última
lembrança da sua voz pedindo pra que eu agüentasse firme.
18
De volta a realidade
(Aurora)
Eu saí do sono profundo como se fosse o fim de um pesado cochilo
após os treinos exaustivos de temporada de campeonato. Mas, não era minha
cama, nem havia meus quadros na parede, tampouco o travesseiro era fofo
como o meu.
Meu nariz reconheceu o éter antes que meus olhos distinguissem as
formas e sombras do hospital que se desanuviava por trás da fumaça turva.
Estava tudo sob meia luz e o barulho do bip de um aparelho atrás da minha
cabeça foi a primeira coisa que pude ouvir.
O que acontecera...? Tentei rapidamente me lembrar de alguma
contusão em um jogo, acidente de carro, uma queda no banheiro de casa...?
Respirei profundamente pra oxigenar o cérebro e fui golpeada com mais uma
lufada de vida. Abri ainda mais os olhos e me dei conta das minhas mãos
sobre o peito, enfaixadas.
O fogo. A memória física ardeu as vistas e fez as pálpebras se
recolherem novamente em proteção. Sozinha, na escuridão do pensamento,
vi os cães. O maior de todos lambia o sangue de Doug e estava prestes a
devorá-lo. Eu não seria capaz de sobreviver após vê-lo ser extirpado por feras
assassinas. Enquanto meu cérebro antevia a cena de morte em uma projeção
horripilante, meu coração menos racional bombeava meu coração como um
aquecedor potente. O fogo começou dentro de mim, irradiando pelos
músculos, concentrando nas mãos que começavam a arder.
Eu sabia o que iria acontecer. Esperei muitos anos com o medo de
que isso viesse a se repetir. Mas, agora era a melhor hora e,
contraditoriamente, eu desejava que se sucedesse outra vez.
Quando eu era apenas uma garotinha levada brincando no quintal de
casa, passei pela cerca de arbustos para buscar uma pequena bolinha que
rolara para o jardim do vizinho. Seu cão de guarda não fez distinção entre
mim e um ladrão e veio em minha direção com os mesmos olhos das feras
salivando pelo corpo de Doug. O meu pavor foi sucedido pelo fogo que se
lastreou pela grama que minhas mãos tocavam e o animal se afastou.
Eu ficara de castigo por um mês e não havia como convencer minha
mãe de que eu não estava fazendo nada além de buscar minha bola. Ela
ainda tentou explicar para a vizinha que toda a criança tem uma fase de
fascinação com fogo e que iria pagar para recuperarem seu jardim.
Eles não acreditavam, mas eu tinha as marcas nas mãos enfaixadas
de que o fogo começara dentro de mim. O meu medo solitário de que viesse
Aurora
Li Mendi
80
ocorrer de novo e fazer algum mal a alguém me acompanhou por todos esses
anos até que vi Doug prestes a morrer na minha frente. Eu não sabia como
era o gatilho para começar, mas parece que meu instinto fez sozinho e logo
sentiu uma febre violenta.
Agora eu sentia cansaço e fraqueza, como se tivesse dormido em
uma sauna. Se eu tinha problemas para explicar a Doug que eu era só uma
humana, como seria se soubesse que eu posso me descontrolar e incendiar
tudo? Eu era uma anomalia como aqueles cães mutantes?
_Aurora?_ ouvi a voz grave do meu pai no meu lado direito. Abri os
olhos e enxerguei o teto, lentamente virei a cabeça em sua direção e o borrão
logo focou o seu rosto. Devia estar há muito tempo na poltrona vigiando meu
sono. _Filhinha? Acordou? _Levantou-se .
Engoli em seco. Era hora de falar sobre o superhumano, o beijo, o
fogo, a fera, o jantar, a parada no meio do caminho. O que escolher primeiro?
_Como está o Doug, o amigo que estava comigo?_ perguntei,
sentindo minha garganta muito seca e os lábios rachados.
_Oh, está bem. Alguns pontos no ombro. Superhumanos, superforça,
super recuperação... _ balançou a cabeça como se falasse pra eu não me
preocupar com uma dor de cabeça do garoto. Mas, não era esse super
homem que eu vira no chão sangrando e com medo das feras. Eu é que o
salvara de alguma forma sobrehumana... _Mas, você, querida, precisa se
recuperar...
_O que aconteceu? _ eu sabia de tudo, mas era melhor que
escutasse sua versão porque talvez fosse mais fácil que a minha. _Eu não me
lembro bem...
_A irmã do seu amigo me disse que precisaram parar para que visse
um problema no carro e apareceram umas feras loucas. Ainda bem que você
conseguiu afastá-los com fogo. Sorte a sua que conseguiu achar um isqueiro.
_Ãnh... _engoli em seco, olhando minhas mãos. Eu deveria contar
que, quando criança não tinha isqueiro nenhum no quintal, assim como hoje
eu também provocara o incêndio de mãos limpas?
_Amanhã já poderei levá-la pra casa e logo ficará boa... _beijou minha
testa e eu sabia que aquele beijo era um aviso de que me afastaria com
carinho pra me proteger.
Na troca de turno entre meu pai e minha mãe, falei-lhe que queria ver
Doug. Sabia que encontraria menos resistência se destinasse meu pedido a
ela. Ainda tentou o argumento de que teríamos todo tempo do mundo para
nos vermos, mas era só insistir mais uma vez. Riu nervosa e perguntou se eu
iria ver aquele garoto gato vestida com aquela roupa amassada que trouxera
sem nenhum escolher na pressa e que colocara em mim. Eu não respondi,
mantendo minha posição.
_Você quer encontrar com os pais dele agora? Estão lá, encontrei a
sua mãe no café...
Não me importava mais. Eu tinha decidido no banheiro do restaurante,
enquanto tinha uma breve crise de decisão que era hora de arriscar mais.
Quem poderia ter mais direito a curtir mais a vida do que aquele que tinha
uma vida mais curta, mais frágil, senão o que tinha menos anos pra
aproveitar. Era uma visão completamente egoísta, mas o que eu ganhava
sendo altruísta? Não ter nenhuma memória, nenhuma cicatriz, nenhuma
lembrança?
Minha mãe ajudou-me a ajeitar o cabelo e pôs um casaco em mim,
enquanto eu manejava no ar as mãos enfaixadas.
_Isso é totalmente contra as regras do hospital! _ela falava como se
pulasse o muro da escola. Aquilo era totalmente contra as regras da
sociedade. Eu estava querendo ver meu adorável superhumano me fazendo
me passar por mais forte do que era. O que importava andar no corredor fora
da hora? _ A qualquer hora que quiser voltar, é só me falar. _ sussurrou, me
sustentando com seu braço de apoio. Eu não podia retroceder no tempo,
mãe. Ele era a força motriz que me fazia sentir muito viva, apesar do corpo
débil.
A porta abriu e a mãe de Doug virou o rosto para nós. Minha mãe
desculpou-se pelo incomodo e olhou pra mim. “Você não queria vir, agora diz
alguma coisa!”. Estava um pouco fraca para pronunciamentos, eu tinha
salvado sua vida, precisava fazer sermão diplomático? Dei alguns passos
sozinha e vi Doug sonolento. Seus olhos azuis me encontraram e seu sorriso
surgiu como um pequeno risco no rosto.
_Que tal outro café?_ minha mãe propôs e as duas saíram depois de
checar que podíamos ficar sozinhos.
_Suas mãos..._balbuciou. _Como fez aquilo? _franziu a testa.
_A única coisa que tem que lembrar é “por que eu fiz aquilo”.
Ele não perguntou, esperando que eu lhe entregasse o motivo logo
em seguida.
_Doug... _ aproximei meu rosto do seu e com uma mão em forma de
luva de boxe acariciei seu rosto. Falei ao seu ouvido com voz de sussurro: _
Você pode imaginar um sentimento maior do que esse? _Olhei novamente
seu rosto lindo. _ Ninguém mexe com o meu Alfa. _sorri e encostei a mão no
seu peito liso com o ombro enfaixado. Puxei seu cordão de couro e o beijei
delicadamente.
Aurora
Li Mendi
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19
Garoto de ferro
(Doug)
Doug, Doug! Eram gritos no escuro e a voz não era minha. Eu queria
ver, mas não podia me debater no espaço infinito, adimensional, negro, fundo
e frio. Senti que forçava só porque doía, mas não havia corpo, matéria contra
matéria, muito menos gravidade. Como se a força contra o nada pudesse ter
sucesso, eu começava a distinguir uma voz.
Antes de chegar ao nome de Aurora, eu senti uma leve descarga de
prazer e ansiedade como se meu corpo primeiro a encontrasse. Em seguida,
veio a imagem do seu rosto, saindo da primeira fonte de luz vermelha e
amarela. Ela era envolta por uma áurea incandescente e tinha olhos de fera,
verdes, grandes e brilhantes. Como se o obturador da câmera da minha
mente se abrisse, permitindo mais luz, a cena se ampliou em um ângulo
maior, trazendo profundidade e dimensão.
O mato ardia em labaredas e os cães se foram. Eu só podia lembrar
deles, já não os via mais. Aurora havia me salvado com aquela idéia genial de
afugentá-los com uma rapidez precisa e oportuna.
Senão, o que seria de nós? Eu. Eu era o que agora? Tinha morrido e
estava no túnel escuro que leva para o outro lado? A idéia me trouxe pânico,
vontade de acordar do pesadelo. Apertei a garganta, puxei o ar e a luz
finalmente entrou pelos meus cílios e consegui forças pra empurrar as
pálpebras para cima. Ali estava o mundo outra vez, no mesmo lugar e era do
tamanho de um quarto de hospital. Senti uma fisgada no ombro e com o canto
de olho vi que estava enfaixado.
Aquilo me demandava muita força. Deixei os olhos caírem pesados
outra vez, mas chamei Gisele pela minha mente e ela não demorou para
responder.
_Oi! Você já acordou?! Estamos tomando café com a mãe de Aurora.
Vamos voltar...
_Aurora? Onde está?
_Ela estava muito mal, mas vai se recuperar. Doug, a Felícia veio te
visitar... Não se surpreenda se te procurar...
_Qual humor dela?
Tive a desagradável lembrança de quando nossa controladora me
trouxe da última vez a notícia de que iria me expulsar dos Alfas pelo meu
comportamento rebelde. Eu queria dizer que esse era meu desejo também,
mas não podia ter minha liberdade e ficar longe da minha família. Era preciso
ter uma coisa e pagar o preço alto da outra.
_Felícia cumprimentou meus pais porque, afinal, você está no top, do
top do interesse pelos Alfas e agora vale ouro pesado, maninho. Aquela sua
brincadeirinha com fogo foi sensacional. Nossa amiguinha não poderia ter
sido mais circense! Agora, todos querem acompanhar vocês. Nossos
jogadores ganham, nossa família Alfa ganha... e as empresas faturam muito
investindo em nossa vida glamorosa.
_Um momento, é a Felícia. _interrompi minha conversa quando recebi
uma ligação de Felícia. Permiti que ela aparecesse em holografia do meu lado
esquerdo, ao lado da maca. Seu corpo translúcido continuava bonito e esguio.
Era uma ambiciosa gerente de experiência de marca de cabelo azul curto e
olhos gelo.
_Como está, meu garoto? Fazendo arte? Tivemos que repor seu osso
do ombro por uma parte mecânica. Aquele animal nos assustou. Olha por
onde se mete.
_Eu tenho certeza de que os jogos da noite pagaram a internação.
_lembrei-a sem muito humor.
_Eu vim vê-lo e lembrar a você e sua irmã de que devem ter mais
cuidado quando inventarem uma mentira. Precisavam ter dito ao pai da garota
que houve um problema no carro?! Doug, o carro era zero, levamos dois
meses negociando a exclusividade do seu uso no lançamento. Sabe lá como
vou resolver essa questão diplomática agora! _dramatizou como se fosse
impedir um conflito entre países.
Gisele se saíra muito bem adiantando essa desculpa. Ela não era do
tipo que podia se esperar medir as conseqüências quando confiava na minha
popularidade pra trocar de marca de carro como troco de roupa. Gi não
deixaria que Aurora ficasse em encrenca com seus pais.
_Eu vou postar para os jogadores uma mensagem de que estou bem
e que Gi teve que mentir para o pai dela para que não achassem que
estávamos ali nos pegando sem motivo..._ falei com voz fria e arrastada, me
passando pela cabeça agora de que Gisele não fora tão genuína assim. Sabia
que depois teria que citar seu nome como salvadora e ganharia com isso
também.
_Não precisa mais. Já outra marca oferecendo o dobro. Você precisa
entender que nem sempre teremos uma sorte assim. Como administradores
da sua vida, nós precisamos ter um portfólio com muita credibilidade e
confiança! Você mais parece uma bomba relógio. Nunca tive alguém que me
desse tanto trabalho...
_E tanto dinheiro. _completei.
Ela olhou-me de braços cruzados com seu terninho apertado que
contraía os seios, que formavam uma leve curva na brecha da blusa social
branca.
_Como está a garota? _ perguntou em contra gosto.
Aurora
Li Mendi
84
_Por que me pergunta, se já sabe?
_Teremos que ajudá-la a se vestir melhor. Como posso montar o seu
perfil e vendê-lo, se tenho que explicar que junto vem uma garota estranha? _
franziu a testa.
_Consiga as marcas, eu te dou o destaque de que precisa, mas
Aurora fica fora disso. Não quero que ela seja agenciada, ela não é uma Alfa
e não saberia lidar com a situação.
Ouvimos o barulho da porta se abrindo e minha mãe apareceu.
_Não pense que acabamos esse assunto. _Felícia prometeu. _ A
chave do seu carro novo está na cabeceira da maca. _ desapareceu.
_O que ela queria? _ minha mãe me perguntou. _ Gi me contou que
acordou. _ fez um carinho no meu rosto. _Logo vou te levar pra casa. Não
sabe o como estou arrependida de ter te pedido pra seguir as ordens de
Felícia de levar a garota pra passear com o carro. Não estou nada satisfeita
com o dinheiro que ganhamos, se isso te custou quase a vida...
_Estou bem. Tenho uma saúde de ferro.
_Se continuar assim, você vai ser todo de ferro! _ sua voz perdeu um
pouco a ternura.
Dei-lhe um largo, branco e amigável sorriso de filho arrasador.
_Você é meu maior bem, Doug! _ acariciou meu braço. _Agora,
descansa mais um pouco... _ abaixou a luz do abajur e eu fechei os olhos.
Ainda ouvi o barulho da maçaneta e o ranger da porta outra vez.
_Oi, Desculpe chegar assim..._era a voz da mãe de Aurora. Minha
mãe virou-se e eu abri os olhos mais um pouco quando vi quem estava atrás
da mulher: Aurora.
Nossas mães saíram com a desculpa de outro café e nos deixaram a
sós. Sorri-lhe.
Aurora estava pálida, frágil e suas mãos, enfaixadas.
_Suas mãos... Como fez aquilo? _perguntei, ansioso pela
oportunidade de saber.
Ela pensou demais, o que denunciava que não falaria a verdade.
_A única coisa que tem que lembrar é “por que eu fiz aquilo”. _disse,
agora muito perto, com o rosto inclinado sobre o meu.
_Doug... _ passou a mão na maça do meu rosto e falou bem baixinho.
_ Você pode imaginar um sentimento maior do que esse? _lambeu os lábios e
depois mordeu o inferior, deixando-o mais vermelho. _Ninguém mexe com o
meu Alfa. _sorriu e pegou com a ponta dos dedos não enfaixados o meu
cordão. Seus olhos de novo subiram do meu peito para minha boca até parar
nos meus olhos.
Felícia ficaria feliz e mais calma agora com o resultado da
repercussão do que estava prestes a acontecer? A valorização do meu
personagem naquele jogo era totalmente devido a Aurora e é por isso que ela
viera ali atrás da garota. Me ver fora só uma desculpa.
Aurora beijou-me e eu esqueci Felícia com o contato quente de
nossas bocas. A adrenalina me dera impulso pra levantar o peito e agarra-lhe
os cabelos por baixo da nuca. Sua cabeça se inclinou para o lado e o beijo
tornou-se mais profundo, quente, prazeroso. Eu podia imaginar um
sentimento maior que o seu: o meu.
Aurora
Li Mendi
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20
Proposta tentadora
(Aurora)
Deitada de bruços sobre a minha enorme cama boxe de casal, eu
deixava o queixo afundado no travesseiro fofo e olhava através da janela as
folhas secas das árvores caindo. Essa era a hora em que eu devia estar
vasculhando meu guarda-roupa para ir a escola. Mas, eu não tinha como
aparecer por lá enquanto minhas mãos enfaixadas denunciassem minha
fraqueza humana. Minhas recuperações eram muito lentas e eu só podia me
contentar em escolher qual seriado de televisão iria me dedicar a assistir
embrulhada no edredom.
Fazia dois dias que Doug e eu saímos do hospital. Ele devia estar
preparado para outra, enquanto eu rezava para não precisar mais contar com
a sorte. Pra mim, a vida podia acabar tão repentinamente como as folhas
retorcidas que se despendiam dos galhos. Doug existiria por três gerações a
mais que a minha; tinha mais beleza, dinheiro, sucesso, fama e eu ainda me
sentia egoísta em não contar toda a verdade, mesmo sendo eu a maior
perdedora, no final das contas.
Se ao menos estivesse frio pra justificar o uso da luva. Nem assim,
um pedaço de couro não encobriria todas as perguntas que me fariam. Fui
ensinada a sempre recuar, fugir. (Quando beijei Doug no hospital, eu sentia
que quebrava essa regra natural.)
O meu celular vibrou ao meu lado e eu com a cara amassada apenas
fechei o olho e esperei a identificação da música. Eu tinha uma canção para
cada pessoa.
Fora muito difícil escolher a de Doug, mas a antecipação do prazer
pré-toque sonoro injetava adrenalina em doses cavalares assim que enchiam
meus ouvidos. E era ele! Respirei fundo em hesitação, não era bom atender.
O que eu podia perder, se viveria menos que ele? Apertei o botão.
Estava cada vez mais impulsiva, isso se tornaria insustentável a qualquer
momento e eu faria uma besteira:
_Oi. _ disse-lhe, me lembrando em seguida que o melhor era um alô
impessoal. Mas, hei, eu beijei sua boca e aquele gato-mais-desejado-dacidade me ligava!
_Oi, Aurora. Como está? Não apareceu na escola.
_Melhor, melhor...
_Te busco hoje? _aquilo parecia uma proposta de amigo de infância
corriqueira, quando eu estava sendo o pensamento matinal do cara mais lindo
e perfeito que já sonhei na vida.
Rolei na cama e sorri. Idiota eu, não podia sair.
_Ãnh. Ok. _respondi. Eu de fato estava aceitando dar as caras no
colégio só por causa de Doug? Como “só”? Ele era tudo! _Mas, vamos
precisar chegar um pouquinho atrasados, porque eu não estou pronta ainda...
_pulei da cama. Se isso pareceu papel de difícil não foi a intenção, eu
realmente não conseguiria me arrumar na velocidade da luz.
_Eu posso esperar. Já estou à caminho.
_Tudo bem. _desliguei sentindo um frio na barriga de me fazer perder
a fome. Enfiei-me em um jeans justo, e uma blusa de mangas comprida longa.
Precisava disfarçar as luvas que encobririam as faixas nas mãos.
Parei diante dos meus pais na mesa do café da manhã me olhando
como se a casa fosse uma bolha a prova de todos os vírus mais potentes do
mundo e eu estivesse prestes a sair da incubadora.
_Eu não posso perder mais aula. _disse-lhes com um tom de quem já
vai ficar reprovada, mas havia um sentido mais amplo e revolucionário. _Um
amigo vem me buscar.
_O mesmo do hospital? _meu pai quis saber.
_Sim._estiquei o braço para pegar um pouco de suco, mas minha
mãe adiantou-se e me ofertou. _ Obrigada. Esse é o último ano pai, logo não
vou mais precisar me esconder por causa da bolsa. Vou estudar em casa e
fazer faculdade à distância. Preciso me adaptar a minha realidade.
_Namorando um superhumano? Acha que ele vai querer apresentar
uma humana em casa? _meu pai sabia ser duro comigo quando queria me
dissuadir.
_Eu não lembro de ter dito que ele é meu namorado, mas, um amigo.
_Já viu superhumanos andarem com humanos como amigos?
_Vocês até adotaram uma! Por que não ter amigos tão bons quanto?
_dei de ombros, pisquei, joguei um beijo e abri a porta.
Meu coração estava pela boca quando cheguei no portão. Meu pai era
a pessoa mais inteligente e sensata que eu já vira e o meu coração na
proporção oposta burro.
Doug parou o carro e eu subi com um sorriso radiante e, não, o
diminuiu nem quando ele encarou minhas mãos, não queria levantar dúvidas
do quanto estava bem.
_Vamos precisar acelerar... _Doug aumentou a velocidade e eu
aproveitei a deixa para apreciá-lo esta manhã no jeans claro, blusa verde
musgo, blusa gola v verde musgo com a beira da manga descolorida
estilosamente e um perfume que fazia todo o resto perder a diferença com
aquele estado de dormência que me provocava.
_Então... _começou a puxar assunto. Será que eu o incomodava com
meu estado de mudez? _... Mexer com você é como mexer com fogo? _
Aurora
Li Mendi
88
brincou, se referindo a noite em que afastei os cães. Abaixei um pouco o
queixo e dei um risinho. Ele não podia realmente acreditar que seria possível
atear fogo daquela forma com um isqueiro ou fósforo. A ignorância era
reconfortante, nesse caso.
E se eu tivesse poderes? Isso me daria mais chances com o Super
Doug? Outra idéia tola. Era melhor abrir a minha boca pra não desesperá-lo
mais.
_Chegamos. _ o motor do carro desligou e eu percebi que estava
próxima do pátio apinhado de alunos. Era só a escola e eu estava prestes a
sair com Doug para a surpresa de todos?! Óh que idéia genial a minha, que
não batia em nada com o plano de não deixar que notassem minhas luvas.
Ok, já me achavam estranha, no mínima, me chamariam de careta.
Doug me olhou, já sem o cinto de segurança. Eu devo ter passado
tempo demais pensando. Abri a porta e pulei pra fora. E agora? Ele pega na
minha mão e andamos juntos? No meu braço? Ou ficamos totalmente
indiferentes? Eu estava tão insegura que podia sentir minhas mãos suarem
dentro das luvas.
Vi os rostos virarem pra mim, mas não era comigo que se
importavam. As pupilas estavam fixas naquele garoto lindo que acabava de
encostar a boca pra falar no meu ouvido com voz rouca:
_Acho que estamos atrasados, vamos?_ afagou o meu braço,
encostando sua barriga na minha. Não pude ver a reação das pessoas, pois
meus olhos se fecharam e me senti meio mole. Podia ter certeza que minhas
bochechas queimavam. Ótimo, eu devia estar muito pálida.
_Hum... que vontade de matar aula. _ gemi e dei um risinho.
_Não me faça esse tipo de proposta que eu aceito. _ sorriu e mexeu
no meu cabelo.
Podia ver sobre seus ombros, de costas para a platéia que tentava
disfarçar testas franzindo. Aposto que tentavam lembrar meu nome, falando
em leitura mental um para o outro como uma grande rede de dúvidas. Era
bom não saber o que pensavam.
_Estou brincando... _ pisquei e toquei no seu ombro e depois no
pescoço com carinho.
_Não se brinca com fogo, ãnh?
_Você agora vai me perseguir com essas piadinhas, não é?_ri alto e o
belisquei, o que o fez me envolver com um braço forte e pronto, estávamos
colados, com nossos rostos tão próximos que eu já me sentia na zona de
segurança de atacá-lo com um beijo. Calma, Aurora, se contenha.
_Doug, falo sério, vamos entrar? _ eu tentava manter a
responsabilidade, mesmo que a real intenção não fosse essa.
_Podemos passar o dia juntos hoje. Eu posso pegar as aulas
depois..._piscou.
Eu não disse não de imediato. Engoli em seco. Já não iria pra escola
mesmo e teria que pegar a matéria de qualquer forma! Mas, hei, não foi bem
isso que falei pros meus pais quando saí! Matar aula me pareceu tão tentador
quanto errado. Do que eu estava preocupada? Era uma aluna muito aplicada
e poderia culpar os dias anteriores que fiquei em casa pelo baixo
rendimento...
_As pessoas já nos viram aqui. Podem comentar...
_Com quem? Seu pai e minha mãe? _ pensou.
_Minha mãe não vai achar anormal não cruzar comigo, já que tem um
monte de coisas pra fazer. E você? Tem alguma aula com seu pai hoje que
note sua ausência? Voltam juntos pra casa? _arquitetou.
_Está falando sério mesmo? _ri, desconfiada que estivesse só me
testando. _E pra onde iríamos que as pessoas não vissem?
_Meus pais estão viajando. Podemos ficar na minha casa.
Beeennrrrr. Sinal vermelho com som de buzina de navio nos ouvidos!
Pra sua casa? Eu tinha um grau loucura, né?! Mas, que intenções eram
essas?
Era a última chance de entrar, o portão fecharia. Dei um passo a
frente, mas Doug me puxou de volta com sua força como se eu fosse uma
pena. Agora, eu estava séria.
Entrar poderia despertar atenção das pessoas para minhas mãos.
Isso era tudo que meu pai não queria. Eu tinha uma vida muito curta pra ficar
toda ela na margem de segurança. Ali na minha frente, estava o garoto mais
lindo que já conhecera acelerando meu coração em uma medida
preocupante. Mesmo com todas as desculpas, ainda tinha medo de estar me
precipitando.
_Hei, lá tem piscina, podemos almoçar com calma, ver um filme, o
que quiser. À tarde, fazemos o que você quiser. A aula hoje vai ser muito
chata.
Todos os dias tudo era muito chato. Olhei o portão ser fechado. Eu
mesma já tomara minha decisão quando hesitara.
_Isso não é certo... _deixei soltar.
_Se fizer tudo que é certo, que graça tem a vida? _abriu a porta, mas
eu continuei parada, recostada na sua caminhonete. Ele viu que era preciso o
último lance de inspiração de coragem e me beijou.
Seus lábios estavam quentes e macios e entendi que só aquilo era
importante pra mim agora. Afaguei seu cabelo de leve, sem poder mexer
muito com os dedos e o abracei mais, sem querer que o beijo acabasse.
_Podemos continuar desse ponto depois... _sorriu pra que eu
entrasse.
Respirei fundo, balancei a cabeça para os lados em silêncio e entrei.
_Doug dirigiu calmamente para sua casa e paramos no
estacionamento ao lado do jardim gramado.
Aurora
Li Mendi
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Eu estava com medo do que ele queria dizer com “continuar daquele
ponto”. Entramos na mansão e não estávamos sozinho como prometera.
Havia uma mulher de cabelo azul curto e olhos acizentados quase brancos
sentada no sofá com uma xícara de café que acabava de ser servido por sua
empregada.
_A Senhora Felícia o estava esperando, senhor. _falou a empregada.
Doug não respondeu nada, sua cara era tão dura que tive medo.
Como ela sabia que ele estava prestes a chegar? Lera seu pensamento?
Quem era aquela mulher?
_Felícia, o que quer? Podemos falar depois?
_Eu vim falar com ela. _ olhou para mim.
_Comigo?_ encarei Doug com a testa franzida, não lembrava de
conhecê-la.
_Felícia, já discutimos isso antes. Aurora, não, ok?
_Eu não o quê? _perguntei, muito confusa e agora com medo.
_Nada, meu anjo._ sorriu pra mim com dureza e me envolveu com um
braço. Ela representava tanto perigo que precisasse fazer aquele gesto de
segurança?
_Sim, já falamos, eu lhe expliquei o nosso ponto Doug.
_Tudo bem, podem me dar um tempo pra falar com Aurora e depois
eu e você nos falamos novamente?
_Vou aceitar sua oferta._levantou-se, olhou-me longamente e saiu.
_Doug o que está acontecendo? _questionei quando a porta bateu e
ele coçou com força o queixo.
Estávamos com planos para ficarmos tranqüilos e sozinhos em sua
casa e de repente, ele estava uma pilha por conta de uma mulher que nunca
vi querer tanto falar comigo. Qual era a surpresa que eu teria agora? Era bom
que começasse a falar!
21
O mundo complicado dos Alfas
(Doug)
Eu tinha tantos poderes além dos humanos e ainda queria mais um:
poder apagar do chip da cabeça de algumas pessoas algumas coisas que se
passaram, por exemplo, deletar da memória de Aurora a visita de Felícia.
Mas, além da garota não ter chip, o que só me atrapalhava em muitas outras
situações, ainda estava curiosa e já quase irritada por não entender o que
queria aquela estranha com ela. Explicar seria uma hora ou outra um evento
provável. Adiá-lo significava estragar toda a nossa tarde. Contar também não
era garantia de que ela gostasse. Eu estava cogitando de mais que perdi a
noção do tempo em que Aurora ficou me olhando de braços cruzados. Ela
olhou para os lados, soltou o ar e sentou.
_Doug, por que não começa me explicando sem rodeios? _ela tinha a
capacidade de prever meus pensamentos, isso sim era um super poder.
Sentei ao seu lado, mas continuei olhando pra frente, aquele assunto
me fazia mal:
_Você já sabe que eu sou um Alfa, certo?
_Sim. E isso significa que deve ter que seguir alguns protocolos..._ ela
me encarava com o rosto virado para o lado, mas eu só podia sentir isso por
sua respiração perto no meu pescoço, porque meus olhos estavam
concentrados em um ponto fixo.
_Felícia é a gerente de conta da minha família. Eu sei que pode soar
muito estranho...
_Não estou fazendo julgamentos. _tocou na minha perna e a
descarga de satisfação que me causou me fez olhá-la.
_Eles me observam o tempo inteiro e não daria pra te esconder...
_Esconder?
_Desculpe, não foi isso que quis dizer, não quero te esconder, mas...
_Ok, entendi. Continue. _ estava já irritada, droga.
_Eu simplesmente não posso evitar que saibam com quem estou
saindo.
_E isso esta representando um problema pra você?
_Não, pra mim não!
_Pra eles, então?
_Sim, também não. _eu estava me atrapalhando nas próprias
palavras, era melhor que pensasse melhor em quais usar. _Ouça. _virei todo
o corpo pra ela, apoiando a perna dobrada sobre o sofá._ Eles precisam
Aurora
Li Mendi
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vender roupas, carros, móveis, coisas... Enfim, eu sou o garoto propaganda
que tem uma imagem.
_Eu estou atrapalhando sua imagem?_ ela tentava ajudar a chegar no
ponto, mas parecia me dificultar mais tornando tudo tão duro e cruel.
Os meus jogadores que ouviam toda a conversa e me observaram
propuseram que eu revelasse os planos de Felícia. Só que não seria
precipitado? Nós nem tínhamos algo sério para pedir uma coisa como
aquelas... Enquanto eles me perturbavam com esse pedido, Aurora quis
saber:
_O que eu teria que ter ou fazer pra não ser um problema pra Felícia,
Doug.
_Eles querem que, se eu tiver que ficar com alguém, seja uma garota
mais... descolada, com estilo, roupas de grife...
Aurora levantou-se e se afastou. Eu já sabia que estragaria tudo. Que
raiva. Mas, não rebateu, parecia pensativa. Eu precisava lhe dar esse tempo.
_Eu não quero que você tenha que fazer nada, gosto de você como é.
Por isso, não queria que Felícia te fizesse essa proposta. Não estou dizendo
que é sem estilo, ok? Só to falando que eles querem um manequim ao meu
lado.
_E se eu topasse._considerou, virando-se pra mim.
Se Aurora topasse seria uma grande prova de que seus sentimentos
por mim não eram nada superficiais.
_Se topasse, tenho medo que ficasse escrava das ordens e
comandos de troca de produtos.
_Eu poderia ficar com você?
_Bom, não teria nenhum impeditivo.
_Eu não preciso virar uma Alfa, apenas não “atrapalhar sua imagem”,
certo?
_Hum... posso dizer que “certo”.
_E o que falta pra isso?
_Bom, não sei... Eles podem te fornecer tudo... Mas, como vai explicar
para os seus pais?
_Eu teria que pensar como. Mas, eu preciso de alguém que me ajude
a me arrumar... uma personal style. _riu e sentou ao meu lado._E sua irmã,
que tal?
Ela estava cogitando mesmo isso? Eu pressentia que não iria dar
certo!
_Eu não quero que um dia você vire uma Alfa..._suspirei com pesar.
_É só pra te ajudar, ou melhor, não te atrapalhar. _tentou pôr assim.
_Você me surpreende a cada vez. _peguei uma de suas ondas
vermelho fogo do cabelo e depois olhei seus lábios que se abriram em um
sorriso. Beijei-a.
22
Mudança de identidade
(Aurora)
A tarde caía com um sol fraco e um vento úmido entrando pelas
janelas altas da casa de Doug. Estávamos deitados abraçados no sofá com
minha cabeça em seu peito ouvindo as batidas do seu coração. Isso me fazia
lembrar que ele tinha um pouco de humano e não era de todo biônico. Mesmo
que seu coração fosse mais resistente ou substituível, diferente do meu.
Fechei os olhos, tentando impedir o pensamento de que eu viveria menos
tempo que ele. Ultimamente essa dor era o toque de recolher dos meus
escrúpulos e virara justificativa para todas as medidas inconseqüentes. Digo,
pra mim, porque não havia nada demais para as outras garotas da minha
idade ter um namorado. Mas, se não bastasse eu me dar a esse direito, ainda
escolhera o cara mais lindo, sexy e divertido da escola! Claro, ainda era um
superhumano e Alfa.
_Acho que já deve estar na hora de te levar em casa. _ sua voz soou
grave, um pouco rouca, vibrando por todo seu corpo. Aquela sensação me fez
ficar com os olhos um pouco mais abertos. Aquele cara que da primeira vez
me irritara muito quase me matando atropelada agora me fazia suspirar ao
sentir o contato da sua pele quente.
_É... sempre chega a hora da partida. _ coloquei o queixo em seu
peito e brinquei com seu lábio na ponta dos dedos, vi seus olhos cintilarem e,
então, eu o beijei. Sua mão fechou em meu cabelo e sua força me apertando
me tirou o fôlego. Tentei escapar e acabei escorregando no chão. Rimos, pois
sabíamos que agora era hora de partir ou não iríamos nos controlar mais.
Saímos da casa de mãos dadas, mas logo Doug me colou ao seu
corpo e me apertou contra a lateral da sua cintura. Parecia que me queria
como posse.
O dia tinha sido perfeito, com música, filme, almoço maravilhoso,
conversas nada importantes, beijos, carinhos. A visita da mulher de cabelo
azul azedara um pouco, mas eu já estava começando a me acostumar com a
idéia de que para ter Doug, teria que quitar seu preço.
Antes de entramos no seu carro, avistamos Gisele entrar.
_Eu já sei... _ ela falou pra Doug, como se eles estivessem
conversando e eu acabasse de interromper a conversa. Era estranha a
capacidade telepática deles.
_Estão se referindo a... como se chama? Felícia? _ perguntei,
querendo participar.
Aurora
Li Mendi
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Eu imaginei que Gisele ficaria muito feliz em me ajudar como personal
style, mas parecia com o rosto muito sério.
_Não, ela não vai virar uma Alfa!_Doug gritou e eu achei que os dois
fossem se engalfinhar bem ali na minha frente. Franzi a testa e pedi que
parassem.
Não ouvi o que Gi disse para ele em silencia, mas, não sei porque eu
podia jurar que aquela mexida de sobrancelha fora um “É mesmo? Quero ver
você impedir!”
_Enquanto estiverem comigo, eu quero saber o que falam! _pedi.
_Não me ignorem.
Os dois abaixaram os olhos, pareciam tensos e eu queria
compreender por quê.
_Gisele, se não puder me ajudar, não tem problema. Sempre há uma
segunda solução.
_De jeito nenhum. _cortou-me. _Vamos fazer isso dar certo.
_Ok, mas não quero os dois se matando por minha conta!
_Não tem nada a ver com você, Gi. Mas, com eles... _falou baixo.
_Eles quem?
_Vamos entrar, Aurora._Doug abriu a porta do carro e tive a
impressão de que estava me forçando pelo braço a entrar.
_Eles quem, Doug? Alguém pode me explicar! _falei alto.
_Eles, eles...As pessoas que gerenciam nossas vidas. Não somos
livres, ok? _disse-me com um tom “não faça mais nenhuma pergunta”. Deu a
volta e sentou-se ao volante.
Gisele me pareceu com um rosto arrependido quando colocou a
cabeça na janela e apoiou o braço.
_Sim, você é livre pra gostar de quem quiser. _seus olhos diretos para
o irmão eram como um raio. _ Só temos que facilitar para isso dar certo.
Conta comigo. _ela dizia isso pra ele, não para mim. _Eu te devo essa.
Não sei o que ela devia, mas fez muito sentido pra Doug, pois ele
virou e a encarou também.
_Aurora... _pela primeira vez ela me dava atenção. _Amanhã, depois
da escola nós viremos pra cá pra casa pra você fazer as provas. Não se
preocupe com o que está por fora, por dentro você sempre será você mesma
e os dois serão livres para se gostarem._ sorriu, um pouco triste, como se não
pudesse partilhar disso também, parecia guardar algum segredo de amor.
Será que eles aceitariam a minha natureza interior um dia? Eu estava
abdicando da minha exterior pra ficar com Doug e não me preocupava mais
com isso:
_Ok, depois da escola. Tudo bem pra você, Doug._virei-me pra ele.
Não respondeu, ligou o motor do carro, coçou a testa e fez a ré para
pegar o caminho da saída.
_Nós sempre podemos parar de algum ponto, Doug. Só é me dizer.
_abri-lhe a oportunidade, já que não estava muito exultante.
_Não entende, não dá mais para parar.
_Não dá mais para parar, porque eles agora vão querer me usar um
pouco para vender marcas ao seu lado ou porque você não consegue ficar
mais longe de mim?
Ele engoliu em seco e ligou o som do carro, entregando que estava
mais relaxado.
_Eu sou seu Alfa, lembra? _apertou minha perna, me fazendo lembrar
do que lhe dissera no hospital. _Não dá mais para entregar de volta.
_Eu não disse que queria devolver. _ ri baixinho e ele também.
_Eu vou gostar de te trazer comigo amanhã de novo. _revelou.
_Finalmente ouvi os fogos de artifício, estava esperando essa
explosão. _exagerei irônica e rimos mais alto.
Eu só tinha que passar uma noite em claro para explicar minha futura
mudança aos meus pais.
Aurora
Li Mendi
96
23
Contra parede
(Aurora)
Depois de almoçar na casa de Doug, ele se explicou que precisava
sair. Enquanto isso, eu resolvia o meu “problema de estilo” com sua irmã.
Perguntei o que era aquilo em sua mão, obviamente já sabendo que era uma
agenda.
_Meus compromissos. _respondeu.
_Posso ver?_cheguei mais perto.
Ele só levantou os olhos pra mim, mas não afastou a fina película
eletrônica em sua mão.
_Ainda usa uma dessas, pensei que podia guardar tudo em sua
cabeça._brinquei.
Ele sorriu como seu eu tivesse dito uma coisa muito infantil e me deu
um beijo complacente, afastando com desdém o aparelho, na tentativa de me
dissuadir da minha curiosidade. Se eu quisesse saber cada vez mais sobre
ele, deveria manter minhas portas abertas também pra quando viesse
vasculhas meus segredos.
_Eu vou agora a um jogo com os amigos, usando uma roupa que tá
escolhida pra mim lá em cima da cama, com o carro que está estacionado lá
fora, com o relógio que acabou de chegar e ainda está em cima daquela
mesinha na caixa. _falava com paciência, mas sem empolgação, como se
detalhasse a rotina burocrática de um escritório.
_E não precisa de uma garota ãnh..._beijei-lhe a boca e fiz carinho em
seu abdômen._... pra te entreter mais... e ir com você?_ disse as palavras
entrecortadas de beijos.
_Nesse caso... _afastou meu cabelo e me inclinou sobre o sofá
gostando muito da brincadeira. _... É melhor eu ficar e pegar essa garota
pimentinha vermelha.
_Ah! _dei um gritinho e ri com a cabeça pra trás enquanto beijava
meu pescoço.
_Eu tenho que ir, mas prometo levar você amanhã pra escola e a
partir daí você estará sempre ao meu lado. Você realmente ainda quer fazer
isso, certo? Eu não quero te pressionar a nada. _ disse com os olhos azuis
claros como um mar quente do Caribe.
_A única coisa que eu quero é não ficar longe de você. _ sorri agora
sentada e ele puxou meu pescoço com um gancho formado pelo seu braço
forte atrás da minha nuca pra beijá-lo novamente agora com muita vontade,
apertei meu punho na sua camisa.
_Você gosta de brincar com fogo, né? _ sussurrou no meu ouvido
baixinho, me arrepiando os pelos da nuca.
_Ah, você não tinha mandando essa ainda hoje. _desdenhei e ele me
abraçou mais carinhoso, me deixando tão aconchegada em seu corpo._Não
vai não, fica aqui..._ implorei melosamente aspirando o cheiro bom da pele do
seu pescoço, friccionando meus lábios por ali. Dedilhei seu cabelo em uma
massagem relaxante.
_Isso é alguma técnica de hipnose pra me prender ao sofá? _brincou.
_Hum...Já descobri seu ponto fraco?_ fiz cócegas em sua barriga e
usei o pior método, pois tentou evitar e ganhou o espaço necessário pra ficar
longe das minhas mãos e se levantar._Chamei a minha irmã e ela está vindo
aí. _anunciou de pé e olhei para trás dele, esperando que Gisele aparecesse
de alguma porta. Eu esquecia que ele podia conversar sobre qualquer coisa
enquanto estivesse comigo que eu não perceberia.
_Volto à noite e te levo em casa._ inclinou-se para o beijo de
despedida e subiu as escadarias que davam para o seu quarto.
Fiquei sozinha na sala por alguns instantes e Gisele apareceu, me
chamando pra ir até o seu quarto. Aceitei e paramos lá, onde havia muitas
sacolas de todas as cores e tamanhos que nem a maior árvore de natal
comportaria na copa do pinheiro. Eu pensei que estaria ali para uma aula de
estilo.
_Presentinhos pra você. _ela sentou na cama e ficou me avaliando.
Será que estaria tentando me imaginar com outras cores de cabelo?
Sentei-me em uma poltrona e puxei uma das sacolas, de onde tirei
uma jaqueta incrível. Minha boca levemente se abriu.
_Aurora, eu vou te fazer umas perguntas e você responde se sim ou
se não, ok?
Senti medo daquele tipo de proposta mais do que a tarefa de usar
todas aquelas roupas. Antes que ela começasse a falar, Doug entreabriu a
porta para um tchau.
_Uau, vai para um desfile, não? _assoviei e ele riu. Estava matador,
com o cabelo bagunçado uniformemente e uma calça que realçava suas
pernas fortes. O relógio prata brilhante no braço e um perfume sedutor.
_É isso o que fazemos... _sorriu e me deu um beijo de despedido.
_Volto daqui algumas horas.
_Tchau. _pisquei o olho e fechei a porta, ainda com um sorriso aberto
na boca.
_Você gosta muito do meu irmão?
_Claro.
_Você faria qualquer coisa por ele?
Que tipo de perguntas de cobrança era aquela? Já sei, Gisele tinha
muito ciúmes do irmão mais velho. Acho que eu podia lidar bem com isso.
Aurora
Li Mendi
98
_Bom, acho que sim, veja que estou aqui... participando do plano.
_Qualquer coisa é quaaaalqueeeerrr coisa?_ insistiu.
_Não estou entendendo. _pisquei o olho e balancei levemente a
cabeça para os lados.
_Você é humana?
24
Meio segredo
(Aurora)
Gisele estava de pernas cruzadas, perfeitamente brilhantes e firmes,
terminando em uma linda sandália vermelha coberta por um fino tecido, com
uma pedrinha brilhante na fivela. Sua boca perfeitamente desenhada com
lápis rosa me esperava com um sorriso, depois de uma pergunta que para
mim era o fim da linha.
Se eu era humana? Lógico que neguei, o que me restava senão
perguntar de onde tinha tirado aquilo? Gisele não rebateu com palavras,
aquela garotinha era muito mais astuta.
Levantou-se e veio requebrando, num passo de modelo meio afetada,
parou na minha frente, pegou com gentileza meus dois pulsos e me guiou pra
levantar. Inspecionou teatralmente uma mão, depois outra ainda com luvas:
_Eu poderia listar todos os seus deslizes. Mas, esse aqui é o que vai
me dar mais trabalho! Como pode demorar tanto tempo para ficar boa,
Aurora? _ sua voz era doce, melodiosa, quase enlouquecedora.
Em rápido estado de fuga, procurei a porta com os olhos e ouvi o
clique desta sendo trancada. Era pior que filme de terror saber que podiam
controlar tudo com os chips de suas cabeças.
_Não me respondeu ainda, Aurora.
Procurei a minha bolsa no meio de tantas sacolas.
_Aurora, você não pode voltar atrás. _ cruzou os braços. _ Não
entende? Agora todos já sabem que você está com meu irmão.
Ok, ele era lindo, incrível, mas não era o filho de Deus! Depois, eu
viria a descobrir que “todos” era muito mais gente do que eu imaginava na
minha vã ingenuidade.
_Gisele, o que você quer com essas perguntas sem sentido?_
perguntei com voz dura.
_Só sua confissão. _deu de ombros como se me pedisse a coisa mais
lógica do mundo.
_ Deixa eu imaginar, está gravando tudo aí na sua cabeça? E depois
vai mostrar pro Doug._ minha voz já estava descontrolada. Ela iria me matar.
_Não. _sentou-se. _ Ninguém pode nos ouvir. Só eu posso te ouvir.
Anda, diga.
_O que quer em troca? Vai me chantagear? Vai... fazer me
expulsarem da escola?
Aurora
Li Mendi
100
De repente, tudo viera à tona e as conseqüências se tornaram tão
claras que me dava pavor. Podia ver meu pai saindo algemado da escola
matricular uma humana em escola de superhumanos. Nunca me perdoaria
por não ter seguido seus conselhos.
_Não. Não vou fazer nada disso, nem contar para o meu irmão.
Pisquei o olho, meneei levemente a cabeça. O que aquela malvada
gostaria, então?
_Aurora, eu só quero jogar limpo. Você está entrando em um jogo de
muitas regras e não dá para fingir que não sei de nada.
Suspirei, deixei os braços morrerem ao longo do corpo e procurei a
luz da janela. Respondi ainda de costas pra ela:
_Sim, eu...sou humana. _ pensei que não fosse sair da minha
garganta. Virei o rosto para o lado. _ E o que vai fazer com isso agora?
Ela sorriu em vitória, quanto tempo estava esperando por essa
oportunidade de me ter em suas mãos?
_Agora que eu tenho seu segredo e você terá um meu.
Esperei, nem ousei perguntar, pois tinha medo do que podia vir dela.
_Conhece o Bili?
Bili? Repeti o nome na minha cabeça, mas não precisei buscar muito.
Claro que o conhecia! Ele era um queridinho das meninas do ano anterior.
Gente boa, engraçado, nadador, por quê?
_Ele é como você, Aurora, humano. Veja como os muros daquela
escola guardam tantos segredos.
_Sim. E, como meu irmão, eu também vou fingir que não sei de nada.
Um meio segredo ainda deve ser um segredo, não?
_E você precisa de mim pra quê?_ perguntei duramente.
_Eu te ajudo e você me ajuda. _ pôs assim.
_O que quer fazer com Bili?
_Nada além de, como você e Doug, curtir o momento. Afinal, Aurora,
você sabe que não vai durar muito tempo. Meu irmão não vai poder ficar com
uma humana. Se ele não fosse um Alfa, talvez. _ deu de ombros.
Aquilo me machucava. Mas, que opção eu tinha? Estava
completamente em suas mãos, nem ao menos podia desfazer o nó que eu já
havia dado, ela usaria a corda pra me enforcar.
_Ok, eu trago o Bili pra você e você...?
_Eu te ensino tudo sobre os Alfas. _retrucou rapidamente. Naquele
momento, eu quase achei injusta a troca, mas eu viria a precisar muito
daquele intensivo sobre eles para um futuro bem próximo.
_O que posso dizer é que tudo pode ficar mais intenso, já pensou
sobre isso?
_Você relevou quando entrou nesse jogo de mentiras? _levantou as
sobrancelhas.
_E o que temos que fazer agora?_ eu queria acabar aquele assunto.
Gisele ficou atrás de mim olhando para o espelho na penteadeira à
nossa frente.
_Vamos fazer uma obra de arte perfeita. _disse. _E aparar essas
arestas..._afastou o meu cabelo ruivo do ombro. _Você vai ter dúvidas da sua
humanidade. _piscou o olho pintado de verde e preto e senti os pêlos da
minha nuca arrepiados.
_Esse é seu passe. _entregou-me um cartão.
Franzi a testa e peguei o pedaço de plástico preto.
_Você faz parte de uma agência de modelos. Não queira saber como
comprei isso com gotas de sangue com um amigo! Você deve a ele um book
urgente de fotos.
_Pra que eu preciso de...?
_Querida, como vai explicar as roupas e sapatos que vai levar pra
casa? Você agora é uma modelo fotográfica que ganha muitos presentes,
portanto, comece a perder seis quilos. Não sei como vocês humanos fazem,
mas pare de comer!
Eu estava meio zonza, mas pelo menos tinha uma boa desculpa.
Gisele pensava em tudo.
_E o que eu faço...? _perguntei meio perdida.
_Nada, eles vão fazer... _ sorriu. _Podem subir, rapazes. _ ela falou
sozinha e não entendi nada.
Enquanto eu aguardava pra ver quem passaria pela porta, começou a
tocar uma música.
My mama told me when I was young/ We are all born superstars /She
rolled my hair and put my lipstick on/ In the glass of her boudoir/'There's nothin
wrong with lovin who you are'/ She said, 'cause he made you perfect,
babe'/'So hold your head up girl and you'll go far/Listen to me when I say/'I'm
beautiful in my way/'cause god makes no mistakes/I'm on the right track baby/I
was born this way/Don't hide yourself in regret/Just love yourself and you're
set/I'm on the right track baby/I was born this way.
Aurora
Li Mendi
102
25
Era tudo para protegê-los
(Doug)
Estacionei o carro próximo ao gramado da entrada, não colocaria
ainda na garagem subterrânea, pois precisava levar Aurora de volta pra casa.
Sorri ao olhar o perfil de duas silhuetas atrás da cortina do quarto de Gisele.
As duas deviam estar se dando bem e eu estava ansioso pra vê-las e fugir
daquele jogo. Mas, o trabalho já estava acabado.
_Quem bom que chegou. _era a voz de Gi, me chamando pelo chip. _
Aurora ainda não está pronta, te encontro na biblioteca. Podemos falar?
Falar? Não poderia ser amanhã? Porque eu pretendia passar o resto
da noite com Aurora. Mas, Gisele só acrescentou “Sozinhos. Desligue seu
sincronismo.”
Sabíamos que não devíamos ficar off muito tempo, mas havia no
nosso contrato esse direito, então, não gastávamos as chance de fazê-lo se
não fosse muito importante. Isso explicava porque eu devia adiar um pouco
minha programação.
Encontrei minha irmã sentada no sofá verde musgo de veludo comum,
mexendo na pulseira de ouro com penduricalhos. Seus olhos pintados
levantaram-se para mim, tinha o rosto perfeitamente maquiado e a boca
brilhante de gloss. Aposto que tinha chamado o serviço express de
embelezamento. Não era raro ver bater na porta aqueles três homens
vestidos de branco com suas maletas prateadas atravessar o corredor e
encontrá-la em seu quarto. Provavelmente, estavam com Aurora agora.
_Tudo bem? _perguntei só pra introduzir, não estaria se não
estivéssemos ali em silêncio para nossos jogadores para um diálogo
particular.
_Nós somos irmãos e eu não esconderia nada de você. _ sua voz era
carinhosa e doce, mas não atenuava a gravidade do seu rosto e seus olhos
procurando outros lugares que não os meus para preparar o que fosse dizer.
_Nós sempre nos protegemos, lembra? Desde pequena, eu poucas vezes tive
medo, porque você sempre estava lá. Mesmo que não fosse por perto, eu
podia chamá-lo por minha voz e você estaria na minha mente me dando as
instruções.
Não era para eu dizer nada, porque agora ela realmente estava me
dando medo.
_Doug, eu quase enlouqueci quando você tentou sair dos Alfas por
causa daquela garota. Nós sempre seremos uma família, porque nós temos a
nossa própria verdade.
Ela estava com medo de que eu deixasse tudo por causa de Aurora?!
Ciúme?
_Não vai acontecer outra vez. _sorri e toquei a ponta do seu nariz fino
com o indicador e segurei sua mão pousada no vestido florido de babado._ Eu
amo vocês. E como disse, sempre estarei por perto pra protegê-la.
_Eu também. Sempre! _abraçou-me, envolvendo meu pescoço com
os dois braços finos e me beijou o rosto. Espero que não tivesse deixado
marca! _Sempre vou estar por perto pra quando precisar. _sorriu e olhou
diretamente nos meus olhos. _ Por isso, que eu quero te contar uma coisa.
Somos só nós dois, certo?
_Ninguém pode nos ouvir._sussurrei. Ainda havia mais?
_Doug, eu não vim aqui te pedir pra desistir de nada, ok? _suas
palavras estavam saindo com cuidado. _Eu só quero que se proteja.
_Do quê?
_... _ela contraiu os lábios uns sobre os outros e soltou o ar. _Eu
conversei com a Aurora. Ela realmente te ama muito.
_Amor? _franzi a testa.
_Sim, amor. Não é como nós superhumanos que ficamos com várias
pessoas e que não temos pressa de fazer as coisas acontecerem. Não é
assim, ela te ama. Amor. De verdade. Aquelas feridas que ainda estão em
sua mão é porque tentou te salvar arriscando tudo.
Eu sabia de tudo que estava explicando, mas era como se não fosse
da forma que estava tentando me dizer e eu não conseguia acompanhá-la.
_Eles vão ser muito cruéis com Aurora. Posso fazer tudo que puder
pra ajudá-los, mas se não contar o que sei, você não vai conseguir protegê-la
completamente.
_Gisele, por favor, você está me deixando preocupado.
_Doug... _ segurou meu rosto e alinhou nossos olhos. _... É como
imaginei, Aurora é... uma humana._a última palavra foi um sussurro pra me
agredir o menos possível.
Engoli em seco. Eu não queria saber, eu não queria que me contasse.
Tentei levantar, mas Gisele me segurou pelo braço e me fez ficar, pegou meu
rosto com força.
_Doug, é verdade, ok? Ela me contou. É mesmo uma humana
infiltrada na escola. Se eles descobrem podem linchá-la. Sabemos que serão
muito cruéis!
Fechei os olhos e apertei meu maxilar, travando os ossos da face com
força.
_Não sinta raiva dela, não quer mentir pra você, só não pode te
contar. _antecipou-se aos meus sentimentos. Ouça... _segurou minha mão e
me enviou um arquivo de voz e áudio da conversa que tivera com Aurora
Aurora
Li Mendi
104
enquanto eu estava fora. Eu agora podia ouvir a voz da garota: _ “É muito
duro não poder querer ninguém, não olhar pra não sentir, impedir que
qualquer sentimento cresça, procurar o chão, andar com o capuz sobre a
cabeça e fones no ouvido. Mas, o Doug chegou me atropelando e não há
como resistir aos seus olhos de oceano, a sua voz vibrando em todo o meu
corpo. Eu inteira sigo os seus comandos. Naquela noite, senti que podia me
atracar com aquelas feras para salvá-lo. Eu não quero fazer nenhum mal a
ele, Gisele. Jamais gostaria de prejudicar seu irmão. Eu sei que viverei muito
menos tempo. Por sorte do destino, talvez, nasci tão perfeita e bonita que por
muitos anos serei como vocês, aparentemente sem qualquer necessidade de
retoque. Só preciso tomar cuidado com a minha saúde. E agora, eu tenho que
aprender algumas coisas sobre o mundo dos Alfas. Eu aprendo tudo, eu me
transformo no que quiserem que eu seja. Só não conte ainda, pois Doug pode
não entender. Não me afaste dele, por favor. Me prometa que não vai destruir
a maior felicidade que já tive em toda a minha vida. Me ensine como proteger
o mundo dele. Eu escondo o meu como for possível.”
Gisele e eu nos olhamos ao final da lembrança que me entregara para
eu entender completamente do que estava falando.
_O que queria me contando e quebrando o segredo que Aurora lhe
pediu? _perguntei.
_Não é justo Aurora tomar todos os cuidados sozinha. Já viu um
doente cuidar-se sozinho em um hospital? Ela é humana e precisa de
cuidados. Se eu não lhe contasse, você não atenuaria seu inferno e isso será
a prova do que realmente sente. Você vai precisar silenciar suas perguntas
para poder aproveitar todos os momentos, sem se preocupar com os “se”. Ela
é humana e precisa querê-la assim. Mas, ao te dar a verdade, também te dou
a liberdade de decidir antes de tudo e não jogar na cara dela lá na frente que
foi a única responsável por fazer esse sentimento crescer dentro de você.
_Nós dois então mentiremos um para o outro?
_Os dois terão uma mentira bondosa para com o outro e isso será
uma verdade, porque o amor que sentem é uma verdade. Você pode negá-la?
_Gisele sorriu fraternalmente.
_Você disse que não queria me ver fora dos Alfas, nem longe de
vocês. Se algo der errado, isso será muito provável.
_Então, essa é a outra parte da explicação do por quê eu contar o
segredo, pois eu não quero que me culpe quando isso acontecer. Mas, eu já
sei que terei contribuído de todas as formas pra evitar isso. Eu não quero que
esse dia chegue, Doug. Mas, eu não posso pedir que vocês não vivam o que
querem viver, porque você e eu somos mais forte que a Aurora, mas há uma
coisa que une a todos: nós ainda não somos imortais.
Suspirei profundamente e fiquei com a cabeça vazia de pensamentos.
Flutuando, era como se um peso saísse de mim e eu pudesse dividir aquele
fardo que já carregava.
_Vou ajudá-lo. Serei a sombra de Aurora, como a mamãe fazia
comigo. Ela será linda, sedutora, perfeita. Só não faça muitas perguntas. E
aproveite o tempo pra se amarem. Faça isso.
_Eu te amo, sabia? _apertei sua mão. _Você é a irmã mais perfeita do
mundo.
_Eu vou te cobrar.
Rimos, sentindo uma descarga de alívio.
_Agora, se quiser ver as primeiras lições que ela aprendeu. Vá lá em
cima. Meu esquadrão da beleza já saiu. Lembre-se, sem perguntas.
_Não a transforme em outra coisa. _pedi.
_Eu vou contar com você pra isso também, pois há uma linha muito
tênue pra perder o controle. Você sabe o quanto nosso mundo é sedutor.
Mas, não se golpeie com o machado do futuro. _encolheu os ombros.
Levantei e fui até a porta.
_Doug. _chamou. Virei-me pra ela ainda sentada. _Se fosse comigo,
você faria o mesmo, não faria?
_Não, na verdade, eu daria umas porradas no cara que fosse mexer
com a minha irmãzinha. _apontei pra ela e sai.
Já na escada, subindo para o segundo andar, falei por pensamento.
“Claro que faria o mesmo por você. Mas, se eu pudesse escolher, não lhe
daria essa provação”. Ela respondeu: “A gente não pode escolher”.
Aurora
Li Mendi
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26
Amanhã, Amanhã e Amanhã
(Aurora)
Eu tinha desistido do meu corpo, mas o meu melhor estava todo ao
seu dispor: minha alma. E ela ia contigo e me deixando vazia quando partia.
Só voltava a ser inteira quando você reluzia, acendendo todas as luzes do
meu corpo foto sensível ao seu sorriso. Foi assim que meu pulmão voltou a se
encher de ar quando te vi chegar de carro no gramado da sua casa.
Gisele pedira que esperasse ali, que iria despachar os cabeleireiros e
maquiadores que passaram a tarde me retocando os defeitos que queriam
esconder, cada traço, cada marca que o tempo fincaria como pneus
escavando a lama na estrada e deixando seus vincos firmes. Mas, eu
devolveria meu corpo se fosse possível voltar à loja que me fizera com erro.
Por enquanto eu seria minha auto-propaganda falsa. Não me diga que isso
não era ético ou certo, eu já não estava a ponto de pensar, só queria sentir
ser visitada como flor que espera ser beijada pela abelha em busca de pólen
no florecer. Eu era uma flor esplendida, o prelúdio da morte em contagem
regressiva, que eles então levassem tudo, peguem de mim o perfume, porque
é no miolo, no centro, e, não, na superfície que ele vai encontrar o que precisa
para viver.
Segurei o pingente do colar novo que ganhara e continuei olhando
pela janela, contando o momento em que Doug apareceria. A porta, então, se
abriu e em silêncio, com poucos passos se aproximou e encostou-se à lateral
da janela. Podia congelar seu rosto para quando ele me devolvesse o meu
espírito porque não queria mais ficar com meu corpo velho e fraco? Eu
sentarei ao fogo e lembrarei daquela imagem perfeita da sua pele branca e
perfeita, seus olhos quentes de mar azul e salgado me convidando pra entrar.
E a ponta dourada dos seus cabelos eu poderei recordar como toque de seda.
Sua mão escorregou sobre o beiral da janela até ficar sobre a minha e
a aceitei querendo e rompendo, desaguando um rio de felicidade em seu
oceano. Puxei depois o braço, o corpo, o peito e terminei ali em sua boca
quente. Ele não falou nada do meu cabelo mais ruivo com mechas douradas e
as tranças, nenhum comentário sobre as roupas, ou os sapatos. Doug era só
um manequim cheio de viver a vida disfarçada de um catálogo.
_Eu preciso mesmo te levar pra casa?_ sussurrou, ainda roçando seu
nariz no meu.
_Sim, precisa. _sorri e afastei o rosto. _Está cansado, não?
_Não... _encolheu os ombros. _Só não queria ter que te levar embora,
se vou te buscar amanhã, não faz sentido. _brincou e eu balancei a cabeça
para os lados.
_Você sempre volta romântico dos jogos de futebol?_ ri e abracei a
sua cintura. _Está mais parecendo que voltou de um filme de drama! _ironizei.
_A vida é o próprio drama._agora sim sua voz era pesada e cansada.
_Não, baby... _cortei-o com delicadeza. _A vida é o que fazemos dela
enquanto tentamos pateticamente fazer dar certo. Ela é uma corda que
quando esticamos demais não dá música nenhuma e quando a deixamos
solta, também não tem vida..._acariciei seu rosto. _Mas, quando a deixamos
perfeitamente tensionada... _arrastei a ponta dos dedos por seu braço
arrepiando-o. _Você pode sentir...
Doug sentiu vibrar dentro de si, pois agarrou-me loucamente em um
beijo efusivo e a porta trancou-se. Três passos e nos derrubamos sobre a
cama, não sabia quem tombou o outro primeiro. Eu tinha que levantar e ficar,
eu tinha que parar e continuar. Os comandos estavam muito confusos na
minha cabeça desordenada enquanto me beijava desesperadamente como se
não restasse outra vez. Tomei fôlego pra oxigenar a cabeça.
_Precisamos ir... _escapei para o lado, rolei, cai no chão, levantei e
senti que minha boca estava dolorida, o queixo arranhado e vermelho. Ri,
andei de costas, ajeitei a blusa que subira e deixara a minha barriga de fora.
Ele contraiu seu maxilar como se controlasse sua fera e eu dei um
sorriso de lado, tirando o cabelo do ombro para trás da orelha. Coloquei a
mão na fechadura e fiz um sinal para abri-la para mim.
Balançou a cabeça para os lados e fez um sinal para dar um beijo na
sua bochecha como chantagem. Semi cerrei os olhos e soltei o ar, mordendo
a boca. Revirei os olhos e engatinhei sobre a cama, cuidando para não sujar o
edredom com meu novo salto. Ele não se mexeu como eu pensei e deixou
que eu o enquadrasse com minhas mãos apoiadas entre seus ombros. Beijei
sua testa e olhei seus olhos azuis querendo me jogar nua neles, mas arrastei
meus lábios sobre os seus, deixando o beijo em sua bochecha.
_Eu vou cobrar caro agora todos os seus pedidos._riu.
_Eu sou rica dessa moeda pra te pagar bem sempre... _apertei seu
queixo.
Levantamos e eu o trouxe pelas escadas, onde descemos abraçados
e encontramos Gisele sentada no sofá ao telefone. Piscou para nós. Eu
deveria agradecê-la por tudo que estava fazendo por mim. Era muito
importante que guardasse meu segredo.
_Ohh... Está frio! _esfreguei meus braços e corri para entrar em seu
carro. _Vesti o casaco que trouxe comigo assim que bati a porta.
Doug ligou o aquecedor e dirigiu em direção a minha casa.
_Quando vai me apresentar aos seus pais? _ perguntou.
_Hum...E eu deveria dizer o quê?
_Como... o quê?_ franziu a testa quando parou na minha porta.
Aurora
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Segurei o botão da fechadura e dei de ombros:
_Você não decidiu o que é.
_Eu sou o que você quiser... _beijou-me.
_Quem pode ser qualquer coisa, não chega a ser alguém importante.
_E o que eu devo ser?
_Meu?
_Então, já tem o que dizer. _sentenciou.
_Você quer mesmo isso?_perguntei.
_Eu quero tudo, até a parte que as pessoas não querem, eu quero
completamente.
Meus olhos se encheram e eu engoli em seco. Podia pedir pra que
repetisse?
_Te vejo amanhã, amanhã e amanhã._ disse-lhe.
Saí e abri o portão de casa sorrindo.
27
Até o néctar
(Aurora)
Saquei minha grande nécessaire na pia do banheiro do colégio e tirei
meu novo e caríssimo arsenal de maquiagem. Suspirei, só era para ter ali
nada além de escova de dentes e pasta e eu tinha mais maquiagem que uma
atriz de teatro! Podia lembrar de todas as aulas extensas de Gisele que não
cansava de me ensinar a forma de deixar o rosto perfeito.
Retoquei a sobrancelha com um lápis marrom pra deixar meus fios
perfeitamente alinhados. Enquanto fazia uma careta para executar bem meu
desenho, uma garota ao meu lado ficou me observando, enquanto escovava
seus dentes.
Pensei por um segundo que se fosse Gisele teria que convencê-la
sobre as maravilhas daqueles produtos. Eu já a vira atuando como garota
propaganda e senti uma instantânea vontade de testar meus dotes por
diversão:
_Legal isso aqui... _ falei pra mim mesma no espelho. _Olha a
diferença de um olho pro outro?! _ mostrei. _Comprei na minha última viagem.
Eu sou simplesmente louca por essa florzinha. _mostrei o ícone da marca e
suspirei procurando a máscara de cílios. _Sabia que você tem um olho ótimo
pra aproveitar essa parte da cavidade aqui? _pedi licença e mostrei-lhe onde.
_ Devia levantar esse olhar! _ apontei o dedo como o melhor conselho da sua
vida.
_Ãnh...acha? _ela se viu e senti ali o brilho do desejo pelo que lhe
falei.
_Dá uma olhada... _entreguei-lhe um estojo de sombras.
_Hum, vou procurar. _ saiu sorrindo e cruzou o caminho com Gisele,
que entrou feito uma perseguidora sanguinária e era a mim que queria. Como
bem me ensinou, fiz um ar de ignorância, continuando a me maquiar. Ainda
estava me sentindo magicamente muito poderosa por ter jeito para influenciar
as pessoas. Daria uma boa Alfa!
_Aurora, onde você está com a cabeça? Está bebendo água da
privada?
_Querida, você está com muito blush, não acha que exagerou? Ôh,
você está vermelha de raiva? _franzi a testa e senti que ela só não avançou
porque era mais baixa e ultimamente andava intimidada com a forma como eu
Aurora
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estava aprendendo rápido demais as lições sobre eleger meu pequeno mundo
da escola para meu reinado.
_O que foi, Gisele? _ ajeitei minha blusa nos ombros e mexi no
cabelo. Hum, eu precisava arrumar aqueles cachos ali com uma pomada.
Onde estava?! Aqui, neste potinho verde redondo.
_Aurora, o Bili não pode ir com a gente naquele passeio de barco.
Simplesmente não pode! De onde tirou isso? Perdeu a razão?!_cruzou os
braços e quase gritou, ecoando pelos ladrilhos do banheiro vazio.
_Está com medo? _ sorri de lado, desafiadoramente. _Medo de... _dei
a volta e falei no seu ouvido como um sussurro. _... De ficar muito perto
daquele gato...
_Não! Não! Não entende?! _perdeu o controle.
_Ok, se você não dá conta... _levantei as mãos para o ar, encolhi os
ombros e fechei a minha nécessaire, devolvendo-a a minha bolsa de couro,
pendurada no braço. _Querida, eu fiz minha parte, coloquei-o no seu
caminho, agora ninguém me avisou que você não sabe o que fazer com
aquele carinha gato e quente... _sai andando, largando-a pra trás.
_Aurora, volte aqui! _correu atrás de mim em pânico. _Sabe bem com
o que eu estou preocupada. _sussurrou, após agarrar meu braço e me puxar
para um canto do corredor dos armários.
_Gisele... _quebrei a cabeça para o lado e falei muito baixo. _Nós
somos seres humanos, mas sabemos nos cuidar. Só vamos morrer mais
cedo, mas sabemos como lidar com vocês. Por que não aproveita a chance
que criei?
_Não quero que nada dê errado..._bateu o pé, fazendo um pequeno
terremoto em todo seu corpo e ameaçou roer a unha impecavelmente feita.
_... Tinha que ser na frente de todo mundo?! _encolhi os ombros.
_Se preocupe só com você. Já viu nossos vestidos?_tentei animá-la.
_Sim. _sorriu finalmente. _São perfeitos! _deu três pulinhos.
_Ah! Bom. _segurei seu braço entre o meu e a puxei para
continuarmos caminhando pelo corredor, requebrando com nossos saltos e
esbanjando sorrisos e desenvoltura.
_Eu sei como vou me vingar de você! _riu alto.
_Por que eu deveria ter medo? _mexi no cabelo e abri a porta do
ginásio para ver o jogo de Doug.
_Só há 2 quartos reservados. Um para mim e outro pra você e meu
irmão.
_Eu disse que era pra fazer três reservas! _briguei.
_Desculpe, não tinha quartos reservados. _sentou-se na
arquibancada. _Mas, eu podia resolver isso bem. Você dormia comigo e Doug
ficaria com o outro quarto. Só que você mudou os planos sozinha.
_Mas, espera aí! O Bili pode dormir com Doug e está tudo resolvido!
_Aurora, eu lamento muito, querida. _olhou alguma coisa atrás de
mim e eu poderia jurar que era seu irmão vindo, depois do apito de final da
partida. _Eu vou ter que deixar a porta trancada, não me atrapalhe! Oh,
desculpe, se você não dá conta daquele carinha que está vindo ali...
_levantou-se e tentei acompanhá-la, mas ao me virar dei de frente com Doug
suado e sem camisa.
Eu realmente tinha dúvida se podia lidar sozinha com todo aquele
corpo perfeito. Ele tinha o corpo definido e o rosto angelical que me faria
derreter como gelatina descongelando.
_Malas prontas para o nosso fim de semana? _quis saber e me beijou
com a boca muito salgada.
_Prontíssima. Vai ser o melhor, prometo. _mordi o lábio.
_Eu vou tomar um banho e voltar para você me contar o que se passa
nessa cabecinha.
Ri e sentei novamente na arquibancada com o coração aos pulos
como a bola que quicava nos pés do garoto do outro lado da quadra fazendo
embaixadinha.
Doug precisava cumprir um compromisso Alfa com sua irmã. Havia
um casal de amigos ricos que estavam dando uma festa de aniversário na
praia da ilha particular de seus pais. Haveria muita gente importante e Doug
tinha que chegar com seu barco e aparecer usando alguns produtos. Esse era
o briefing do seu fim de semana, mas, para mim, a versão fora contada de
uma forma muito mais pessoal e divertida como um momento particular para
aproveitar juntinhos.
Olhei para o lado e o vi caminhando para mim com seus braços
expostos pela camiseta apertada e o cabelo molhado. O perfume era tão bom
quanto eu podia já prever quando me abraçou e me beijou com gosto de
pasta de dente e a pele quente pelo banho recém tomado. Acariciei os fios
úmidos da sua nuca por um longo tempo que não pude determinar.
_Eu vou ter que trabalhar um pouco, mas curtiremos muito juntos.
_avisou.
_Não se preocupe. _dei um soquinho em sua barriga. _Eu te entendo.
(...)
O tempo que não era meu fora muito maior do que ele havia me
prometido. Mas, eu ainda o tinha por perto, então, poderia dizer que não podia
contar aqueles momentos em que me mantinha pendurada em seu braço
sorrindo.
_...Pô, eu também adoro aquele motor. Já dirigi um desses... _ falou
entusiasticamente para um homem ao meu lado, mas eu não prestava a
atenção em suas palavras, olhei meu reflexo em um dos espelhos. O vestido
Aurora
Li Mendi
112
branco justo ficara completamente perfeito com a tiara de couro trançado e
pedrinhas na minha cabeça.
Eu tinha que agradecer a Deus por minhas mãos estarem boas,
nenhuma luva iria combinar com a minha roupa, pensei enquanto me
desgrudava de Doug e aproveitava um tempo sozinha em torno da fogueira,
sentada em um tronco de madeira.
Gisele passou rapidamente por mim pra avisar que estava pedindo
pra ser seqüestrada por Bili. Ela sorriu, mas não consegui devolver o mesmo.
Apenas continuei olhando o fogo, como se fizesse parte de mim aquela
chama fervendo as brasas.
_Eu vou levar a chave, hen. _ainda advertiu.
Eu dei de ombros, dormiria em qualquer lugar. A areia estava quente
próxima a chama. Lembrei dos meus pais longe e pensei se estava dando o
melhor de mim pra ser o que queriam. A resposta deveria agradar mais a mim
do que a eles a partir daqui, pois eu era agora a responsável pelos meus atos,
não era mais uma garotinha.
Suspirei, aquela noite não estava realmente saindo como eu previa.
Fechei os punhos e depois abri os dedos com a palma espalmada para o
fogo. As labaredas subiram alto e por um segundo achei que provocara a
chama com meu desejo. Olhei para os lados, mas ninguém reparou com um
evento que não fosse provocado pelo tempo.
Olhei disfarçadamente para as palmas das minhas mãos. Estavam
vermelhas, mas só poderia ser por conta de tê-la aquecido. Eu não seria
capaz de incitar o fogo...
_Aurora?
_Ãnh? _assustei-me com a mão de Doug no meu ombro.
_Desculpe. _sentou-se ao meu lado.
_E aí, eles vão comprar o barco? _minha voz saiu dura.
_Não, eu não tenho que fazê-los comprar...
_Desculpe...
_Eu entendo, acabei te deixando um pouco sozinha.
Toda noite era pouco no seu conceito?
_O que acha de irmos para o hotel? _ofereceu a mão e tive medo de
oferecer a minha, será que podia machucá-lo se de repente acontecesse
algum incidente... Balancei a cabeça para os lados. Que tolice, jamais
machucaria Doug. Entrelacei meus dedos nos seus. _ Gisele me contou do
arranjo nos quartos.
_Não acha que sua irmã é maluca? Ela é só uma garota pra dormir
sozinha...!
_Eu impediria, se não fosse conveniente. E ela não está
sozinha..._riu.
Paramos na porta do seu quarto que ficava em um chalé.
_Eu sei que te deixei algumas horas sozinha, mas posso te dar o
dobro de atenção agora... _abriu a porta.
Entramos e acendemos as luzes. Havia flores, champanhe, algumas
velas em um móvel. Será que pedira pra Felícia preparar tudo?
_Vai acontecer alguma festa aqui também? _perguntei meio mal
humorada ainda.
_Não... _segurou minha cintura. _Quando vai me perdoar?
_A melhor pergunta não é quando, é como.
_Hum. Como? _ sorriu e facilmente me suspendeu pela cintura para
cima de uma mesa de madeira rústica, como um passo de balé. _Eu posso
tentar todos os métodos? _afastou o meu cabelo para trás do ombro e cravou
os lábios ali, arrepiando meus braços. _Desculpe... _desceu as alças do
vestido com a ponta dos dedos. _Desculpe..._ puxou minha nuca com sua
mão forte e me beijou com muita vontade.
A cama nunca me pareceu tão macia e funda quando delicadamente
fui depositada sobre ela com os braços para trás. Fechei os olhos e lembrei
das labaredas da fogueira, eu era toda um tronco em chamas flamejando de
amor.
Acariciou o contorno do meu rosto e suas mãos entrelaçaram nas
minhas enquanto descia os lábios para o beijo da abelha que suga todo o
néctar.
Aurora
Li Mendi
114
28
Eu não me canso de você
(Doug)
Ela estava dormindo e seus cílios ruivos subiam e desciam com o
movimento da sua respiração. Podia perceber o tremor quase invisível do ar
que eu expirava próxima ao seu rosto. Aurora tinha sido tão doce e delicada
na noite anterior. Eu não poderia jamais compartilhar esse momento sublime
com ninguém, nem um dos meus jogadores poderiam se divertir com esse
momento tão único e particular. Desliguei-me no máximo de tempo off que era
permitido no mês praticamente. Eu podia já ouvir a ligação ruidosa de Felícia
pra discutir estes termos, mas, eu naquele momento só queria vê-la dormir o
sonho dos anjos de bruços na cama ao meu lado. O lençol de seda cobria-a
até sua cintura, deixando as costas com um contorno dourado da vela. Havia
algumas cicatrizes, pareciam pontos de cirurgia próximo a sua coluna. Seria
alguma intervenção em sua medula? Havia muitos mistérios na natureza
impenetrável do seu corpo que eu não podia questionar. Essa zona de tempo
de conforto era o que eu precisava para me preparar para o momento de tudo
vir a tona. Como iria protegê-la quando isso acontecesse?
Tirei um caracol longo e vermelho do seu ombro e senti vontade de
cheirar seu perfume, aproximei-me e outra vontade me acometeu, de abraçála, mas chegando tão perto, o que era pequena, tornou-se uma vontade
intensa de apertá-la e protegê-la ao meu corpo. Passei meu braço pesado ao
seu redor e a trouxe pra mim, egoistamente sem me preocupar que a
acordaria. Seus olhos levemente se entreabriram com um grande sorriso.
_Jura que esse é meu novo relógio?_ sua voz saiu profundamente
rouca com um risinho. _ E onde aperto pra desligar? _ repousou a mão no
meu rosto e fechou os olhos outra vez.
Estávamos colados e eu podia sentir seu coração pulsar na minha
pele. Seu sangue correndo bem ali na superfície de contato entre nossos
corpos. Me assombrou a idéia de de repente seu coração parar e eu não estar
por perto. Aqueles presságios me vinham quando eu precisava me afastar pra
trabalhar como agora. Eu tinha que almoçar e ainda havia páginas e páginas
de relatórios sobre alguns produtos para ler e oferecer aos meus amigos no
almoço de hoje. Não podia acordar Aurora para dizer que não lhe daria
atenção hoje, não podia deixá-la sozinha na cama, não podia não ir ao
encontro, já que isso pagava toda nossa estadia e o pagamento mensal da
minha família, não podia fechar os olhos e me concentrar em ler os arquivos,
se só havia Aurora na minha mente. Por fim, eu não queria nada além de ser
só eu mesmo, um cara jovem, dormindo na manhã de um sábado com sua
namorada linda e apaixonante. O que era fácil pra mim era também
impossível.
_Meu amor, vamos passar o dia todo abraçadinhos assim?_ Aurora
pediu sonolenta, certamente seu cérebro nem se dera conta de ter me
chamado a primeira vez de “meu amor.”
Eu não tinha como argumentar que já sacrificara um dia inteiro fora do
ar e que furar no trabalho em seguida seria uma superdose de
irresponsabilidade.
Beijei-lhe em uma recompensa silenciosa sua nuca, as costas,
abracei-a com força, carinho, posso e entendi que era sofrimento da saudade
que eu já sentia primeiro.
_Hum... esse será o ritmo da manhã toda. Adoro isso..._ riu e aninhou
a cabeça no vale do meu coração, entre meus dois braços. Podia ficar ali, era
um lugar unicamente seu. _Doug, você é tão super perfeito._ acariciou
minhas costas com sua mão sempre morna e macia. _Meu Alfa eu
te..._pausou. _...desejo tanto. Minha vida fez todo sentido depois que você se
jogou na minha frente.
Ri e deixei meus dedos perdidos nos caracóis de fogo do seu cabelo e
massageie sua nuca.
_A minha também faz muito mais sentido com você..._apertei suas
pernas entre as minhas e depois afrouxei pra não machucá-la, era tão frágil.
O que eu estava dizendo é que não tinha sentido: como uma humana
fraca, sem ligação com a nuvem, infiltrada entre os superhumanos podia me
fazer tão... feliz? É que eu não amava sua natureza, mas o que ela provocava
em mim. Era dentro de mim que ela mexia, como se fosse parte viva minha
extra-corpo que se eu perdesse podia parar de funcionar.
_Já te falei que você é o cara mais lindo... hum do mundo?_elogiou e
beijou meu peito, trazendo-me arrepios. _Eu adoro olhar você, estar com
você...
_Eu também. _puxei o lençol pra nos cobrirmos mais e fechei os
olhos. Engoli em seco, busquei ar e minha melhor voz. _Eu sei que não vai
gostar disso, mas...
Ela levantou sua cabeça e encostou o queixo no meu peito, fazendo
círculos com o dedo indicador na minha pele. Seus grandes olhos verdes
olhavam diretamente pra mim.
_Eu preciso ir. Felícia está me chamando.
Aurora não reclamou, apenas fechou por uns segundos os olhos e,
depois, virou para o lado. Sentou-se na beira da cama de costas. Seu cabelo
caia tão lindo por cima da sua nudez alva e lisa. Eu queria esticar a mão e
tocá-la, mas isso não me ajudaria ir.
Ela levantou-se e foi até o banheiro sem nada dizer. Aproveitei pra me
levantar também. Ouvi o barulho da água do chuveiro caindo e entendi que
Aurora
Li Mendi
116
precisava esperar que saísse de lá pra me despedir. Mas, ela demorava um
pouco. Fiquei um pouco impaciente, abri a porta e coloquei a cabeça para
dentro. Mesmo assim, não ouviu, ou não quis.
Abri a porta do box embaçado pela fumaça.
_Aurora, eu já... _olhei-a entre a fumaça e senti meus pensamentos
sublimarem e virar uma nuvem branca.
Ela estendeu a mão e me puxou. Quando vi, estava com a roupa
completamente molhada e os sapatos na água.
_Olha o que fez? Oh, não... Eu tinha que vestir essa roupa agora de
manhã, sabia?
_Sabia, e isso não me importa. _ arrancou a camisa e deixei um
pouco irritado. Ela arremessou para fora e me puxou pelo cós do jeans. _Você
não vai trabalhar? Então, eu mereço mais... _sorriu e me puxou para baixo da
ducha forte com um beijo longo.
Eu queria lhe dizer que precisava ficar online, mas nem eu queria
raciocinar. Agarrei-a. Felícia gritou em meus pensamentos e eu prometi que
só precisava de vinte minutos.
_Doug? _ouvi uma voz masculina ao meu lado e acordei da
lembrança do fim de semana. Mexi-me na cadeira da sala de aula e notei que
ficara muito tempo ali. Todos já haviam saído depois do debate? Fiz uma
careta de dor nas costas e senti as vistas desfocadas pelo tempo em que
fiquei olhando a claridade através da janela.
Era o pai de Aurora ao meu lado, o professor de ciências mais
importante dos últimos tempos. Ele dava aula no hospital universitário,
liderava pesquisas genéticas de ponta e era autor de dezenas de vide-books.
Sempre me questionei por que se limitava a dar palestras para nós, mero
estudantes iniciantes? Agora, a resposta era aquela ruiva dominando toda a
memória de terabytes do meu chip, sua filha. Somente estando por perto ele
justificaria, protegeria e permitiria que sua garota de criação pudesse estar
entre nós. Teriam sido obras suas aquelas tentativas de intervenções nas
costas de Aurora?
_Oi, me chamou, professor Aquiles?
_Tem outro aqui?_ele continuava com as mãos na cintura. Vestia seu
jaleco branco com a inscrição PHD e os símbolos de premiações bordados
em cinza claro, como era a cor do seu cabelo.
_Desculpe, é sobre o e-mail que lhe pedi pra reconsiderar a data de
entrega do meu artigo? Eu sei que é difícil pedir isso, mas eu preciso de mais
prazo, prof...
_Você sabe sobre o que é. _cortou-me e senti que o fato de ter
sentado na cadeira a minha frente, alinhando seus olhos na altura dos meus
era um sinal de que ele não estava com humor amistoso e pediria meu fígado
para mostrar na aula de anatomia sob a bancada.
Eu poderia lhe responder: “sim, eu sei, é sobre sua filha humana,
vamos falar!”?
_Eu vi você com Aurora.
Eu olhei para um lado e depois outro, mas não ousei aceitar a
intimidação reticente. Que falasse tudo de uma vez e puxasse logo o código
legal dos superhumanos e mostrasse algum artigo que eu devesse lembrar
que infringi.
_Eu quero que saiba que se você fizer algum mal a ela...
Ele poderia me esfaquear com um bisturi e entregar o balde de
sangue com meu corpo em pedaço aos porcos?
_Se ousar fazê-la sofrer... _parou e se deu conta de que estava com
um aluno a sua frente e quase perdera o senso do ridículo. Por que um
superhumano não poderia namorar uma superhumana? Porque não era, e
isso o afligia.
_É melhor que ela esteja comigo, pois nunca lhe farei nenhum mal. _
escolhi essas palavras e não sei se sua super inteligência captou, mas foi
suficiente para afastá-lo.
_Você vai se arrepender. Não ouse fazer nenhuma besteira. _apontou
e saiu.
Respirei fundo. Ele sempre passava esses recados intimidadores para
sua filha?
Encontrei Aurora que correu para mim e se jogou em meus braços
dando uma risada alta e me beijando. Como podia estar tão linda uma manhã
após a outra daquela forma? Minha irmã que viera a passos lentos atrás dela
sorriu, mantendo-se mais de vagar.
_Doug, você venceu. Eu quero levá-lo lá hoje em casa para conhecer
meus pais.
_Hum, ficou sério agora. _era a voz da minha irmã, nos escutando à
distância.
_Conhecer seu pai?
_Bom, é ridículo, porque você já o conhece, mas conhecer de outra
forma... _ encolheu os ombros.
Era conivente contar que seu pai acabara de me ameaçar e não iria
querer jantar comigo e passar a travessa de batatas?
_Que dia?
_Já falei, hoje. Quero dizer, tem algum trabalho?
Não tinha. Droga, eu não tinha!
_Tudo bem._ abracei-a.
Olhei minha irmã diretamente, ela entendeu meu medo e falou em
pensamento:
_É só um jantar pra você usar tudo que sabe, todo seu charme e
inteligência ao seu favor.
_Ele é mais inteligente que eu pra não cair nessa._respondi-lhe.
Aurora
Li Mendi
118
_Mas, você não vai conquistá-lo primeiro, e sim, a mãe da Aurora. Já
descobri sua flor preferida e a marca do chocolate que mais gosta na página
dela na rede. _piscou o olho.
29
Eu estou aqui
(Doug)
Enquanto dirigia pra casa de Aurora, minha irmã conversava comigo
por conexão mental:
_Doug, cuidado pra não ameaçar o pai dela, pois todos os jogadores
estão de olho em você hoje. Se sua sogra gostar dos presentes que eles
escolheram, ganharão pontuação máxima.
Ok, eu estava nervoso, sem saber o que falar e havia pessoas
sedentas por suas fichas. Olhei a pequena caixa de veludo e a delicada flor
branca rara que Gisele depositara no banco ao lado do carro antes de eu sair.
Estacionei e caminhei até a entrada. Respirei fundo e bati na porta.
Precisava lembrar de tudo que lera sobre eles para ter assunto suficiente.
Agradecia pela minha aptidão trabalhada desde pequeno para envolver as
pessoas. Aurora abriu a porta com um grande sorriso brilhante. Estava vestida
de jeans claro, camiseta branca e jaleco de couro velho, com um grande
cordão pendendo entre os seios. Parecia tentadora quando a abracei e lhe
beijei os lábios.
_Esse é o Douglas, mas eu chamo de Doug. Doug, essa é a minha
mãe Sara. _apresentou-me para uma senhora alta, loira e magra,
elegantemente vestida em um vestido azul marinho.
_Oi, Doug, seja bem vindo. Fico muito feliz de conhecê-lo.
_Espero que goste. _entreguei-lhe a caixa de chocolates e a flor.
Seus olhos se abriram de espanto e depois piscou para a filha.
_Passou a dica correta, querida. _ riu e Aurora a acompanhou com os
polegares no bolso de trás do jeans, me lançando um olhar “boa tentativa,
seja lá de onde tirou isso.”
_O cheiro da comida parece muito bom._ comentei, enquanto
sentávamos no sofá.
_Óh, você vai conhecer as delícias de Alice. _Aurora apertou minha
mão entrelaçada entre a sua. _ É de comer de olhos fechados. Já estou com
água na boca. _ repousou sua cabeça em meu ombro. Envolvi-a com meu
braço e senti-me tremendamente bem acolhido naquela casa.
_Estamos só esperando o seu pai... _a senhora Sara olhou o relógio,
arregalou um pouco os olhos e soltou o ar pesadamente. _Aurora me disse
que você é filho da diretora da escola. _ deu continuidade a conversa e
respondi que sim, que recém chegamos à cidade.
Aurora
Li Mendi
120
_E já chegou roubando o coração de ouro da minha filha linda. _
acariciou rapidamente a mão de Aurora. As duas não se pareciam, mas não
podia ver mais amor que aquele.
O trinco da porta da sala deu um estalido e o Sr Aquiles virou-se pra
fechá-la depois de passar. Parecia relaxado, como se chegasse em seu
paraíso depois de um dia de trabalho, pronto para descansar e, não, pra
receber visitas. Tive certeza da minha suspeita quando se deparou com nós
três no sofá e olhou brevemente para cada um.
_Estou perdendo alguma festa de aniversário surpresa?_seu humor
de gelo só foi escutado por mim e a Sara através de nossos chips.
_Oi, pai, que bom que chegou. _Aurora levantou-se, tirou seu jaleco
branco e o beijou carinhosamente, mas toda a atenção dele estava em mim.
_Quero te apresentar o Doug.
_Eu sei quem ele é, é meu aluno nas palestras de genética._
comentou gélido.
Aurora implorou ajuda da mãe atrás de Aquiles e eu tentei não rir.
Levantei e o cumprimentei. Era uma honra pra mim ser bem vindo naquela
casa, pois Aquiles representava um supra sumo das pesquisas de biorobótica.
_Vou pedir pra Alice nos servir. _sua mãe saiu pra apressar as coisas,
mas não parecia boa idéia nos abandonar ali, pois surgiu um campo de
batalha em dois diferentes planos. Em uma dimensão presencial, ele tentava
ser amável com sua filha e por nossa conexão mental, falávamos menos
afetuosamente.
_Desde quando estão juntos?_ questionou-me com o olhar, sentado à
cabeceira. Deveria responder também em silêncio?
_Querido, por favor, não precisamos saber detalhes, apenas que
Aurora está feliz.
Sorri pra Aurora e peguei um pouco da sopa de entrada. Sara disse
docemente que esperava que eu apreciasse o jantar com eles.
Bebi um pouco de vinho para me esquentar, como um motor que
precisa se aquecer.
_Eu li que o senhor está liderando uma pesquisa para transplante de
corpo. _comentei.
_Quem me dera, eu não sou Deus.
_Desculpe a minha ignorância, mas já estão conseguindo fazer
transplante de rosto, de pele, de quase tudo, um corpo completo.
_Estamos avançando muito.
_Estão usando humanos pra isso?_achei pertinente que Aurora não
ouvisse aquela pergunta que subitamente tive curiosidade de fazer, mesmo
sabendo que era tolice sair do campo das amenidades, mas não me tirava da
cabeça as cicatrizes das costas de Aurora. O que ele já tentara fazer com ela
que não conseguira transformá-la pelo menos em uma humana mais forte?
_Você fala como se eu usasse seres humanos como ratos._ retrucou.
_Os seres humanos não deixam de ser o hardware que nossos
poderosos softwares aprimoraram.
_Tenho certeza que vai gostar desse molho de maracujá, Doug.
_Sara cortou a ave dourada sobre a mesa. Aceitei um pedaço.
_Eu estou ajudando a aperfeiçoar os super humanos, isso é nobre.
_defendeu-se.
_Li que estão fazendo mais do que isso. É verdade que estão dando
poderes mais que mecânicos, mas biológicos? Estamos perto da era dos
mutantes?
_Não dê atenção a mídia. Estou longe disso. Mas, acho que veio aqui
mostrar que é namorado da minha filha. Eu já lhe expliquei quais são as
condições.
_Sim, que vou me arrepender se lhe causar algum mal.
Sara olhou o marido com horror e não deu pra fingir mais, pois Aurora
largou seu prato de comida inacabado e levantou-se bruscamente.
_É assim que vai fazer? _ ele bebeu sua taça de vinho.
_Você é culpado disso também! Sabe que não gosto que
conversemos assim perto de Aurora! _brigou e atirou o guardanapo na mesa.
_Desculpe, senhora. _levantei-me também e fui até a sala e a
encontrei de pé, observando a filha sentar-se ao piano. Havia um piano ali?!
Hei, Aurora sabia tocar?
_Acho que não estragou tudo ainda. _sussurrou. _Você a anda
inspirando muito.
O som das notas sobre o comando dos dedos de Aurora enchia a
casa de paz. É como se ela soubesse a forma certa de atacar nossos
corações e silenciar nossas mentes.
_Doug? _era a voz de Aquiles. _Não tire minha filha de mim. _poderia
ser a frase de qualquer pai, mas ele devia imaginar que eu desconfiava. _Se
eu perder Aurora, eu juro que vou ao inferno matar você!
Sara engoliu em seco e continuamos os dois a ouvi-la.
Aurora
Li Mendi
122
30
A verdade que tentamos evitar
(Doug)
O jantar na casa de Aurora tivera a segunda versão. Meus pais
preparam um almoço de domingo maravilhoso e a receberam com efusão e
toda atenção. Rimos muito e Aurora encantou a minha mãe com sua beleza e
inteligência. Levava consigo um pouco da admiração que as pessoas rendiam
ao seu pai cientista. Depois da maravilhosa comida e longa conversa, meus
pais se retiraram para um descanso vespertino e Gisele também se refugiara
em seu quarto. Restamos nós dois na sala, sozinhos para nos curtir.
Aurora acariciou meu rosto com carinho e delicadeza, arrastando o
dedo pelo contorno. Sorri e fiz o mesmo em seus lábios. Seus grandes olhos
verdes olhavam para minha boca, mas resistiu ao nosso eminente beijo e os
levantou para mim, engolindo em seco. Umedeceu os lábios e piscou algumas
vezes em desconforto, sentia seu sangue correr mais rápido pelo toque da
pele de seu pescoço.
_Doug, eu preciso te dizer uma coisa..._sua voz era aparentemente
calma, mas a pulsação indicava ao contrário.
Meu coração disparou. Não! Ela estava pensando em contar toda a
verdade logo agora, estava? Eu não queria saber, eu já estava lindando bem
com isso. Eu precisava que continuasse a tentar me enganar. Não ia tentar
bancar a certinha tão cedo, por favor!
_Por que não paramos de falar? Hum? _ beijei-a com vontade e
segurei seu cabelo da nuca com a mão, acariciando-a com vigor, apertei sua
cintura contra mim. Mas, não importava o quanto fosse longo o beijo, não
poderia durar toda uma vida.
_Amor? _ Aurora abaixou a cabeça, colando sua testa na minha pra
que nossos lábios desgrudassem. Ela nunca tinha me chamado daquela
forma, mas saíra suavemente e me apertou o coração._Só precisamos
conversar sobre uma coisa.
_Esse encontro com nossos pais já gastou bastante energia,
podemos só ficar assim, não falar...? _beijei-a várias vezes.
_Doug, você tem que me ouvir..._ Aurora tentou se afastar, mas não
deixei, tendo que usar um pouco de força e pressenti que a partir dali eu não
teria como contê-la da vontade de se abrir para mim.
_Aurora, por que as mulheres têm que ter sempre esse momento de
discussão de relação? _agora sim eu demonstrava irritação.
_Você nem ao menos sabe do que quero falar!_havia mágoa em sua
voz.
_Ok, ok mas não agora! _ordenei.
_Por que não?_ irritou-se. _Não há ninguém aqui.
_Tem sim..._como era tão difícil escutar.
_Bom, seus pais estão no segundo andar no quarto e sua empregada,
na cozinha. Ninguém pode nos escutar.
_Sim, podem. Eles... ãnh, tem ótima audição, somos super humanos,
lembra?
Ela abaixou o rosto, olhou um pouco para o lado e depois para mim.
Droga, por que diabos eu arremessara no ar a palavra chave.
_Esse é o problema, eu... não posso ouvir como vocês.
_Ok, tudo bem, não me importo._ri, desesperado. _Linda, por favor,
pode parar de falar? _eu estava parecendo um louco.
_Doug, você... já sabe?_ desconfiou e franziu o cenho.
Olhei meu relógio. Eu só tinha dois minutos sobrando para ficar
offline. Gastara todo o meu tempo no mês só com Aurora. Isso não seria
suficiente para sua conversa particular.
_Aurora, não diga mais nenhuma palavra, ok? Nada. _mandei. _Eu
não quero ter que tomar nenhuma atitude drástica.
_Você sabe ou não? _empurrou-me. _Sim ou não, Doug?
Se eu respondesse que sim, a calaria? Provavelmente não, tinha que
agir rápido.
_Gisele, cadê você?!_chamei-a pelo chip, mas estava tão
desesperado, que acabei falando em voz alta. _Gisele?!
_Eu te fiz uma pergunta! _Aurora segurou meu queixo para que a
fitasse em lugar de procurar Gisele com os olhos pela sala.
_Sim. _soltei o ar.
_Então, você sabe que eu..._ela não terminou, pois tampei sua boca
com a mão, cuidando pra que pudesse respirasse.
_Gisele, vem aqui agora, por favor, venha correndo! _implorei.
_Hum..._Aurora gemeu, mas a prendi contra a parede com a boca
tampada entre as minhas mãos. Eu já havia me desconectado no instante em
que a silenciara. O relógio agora retrocedia em contagem regressiva pra voltar
a ficar online.
_Por favor, fica quietinha para eu não te machucar. Deus, eu não
quero te machucar, Aurora! Psiuu...Quietinha, ok?
Seus olhos se encheram de lágrimas e correram pelos meus dedos e
eu sentia como se fosse o sangue de um inocente em minhas mãos. O que eu
estava fazendo?
_Gisele, vem aqui, por favor, se desconecte. Vem aqui. _pedi pela
última vez. Minha irmã apareceu correndo pelas escadas e nos encontrou na
sala.
_Meus pais estão lá em cima, certo?_perguntei assim que a vi.
Aurora
Li Mendi
124
_Sim, estão... _viu-me amordaçando Aurora com a mão.
_Você está off, certo? _quis me certificar.
_Doug, o que está acontecendo? Eu só tenho 20 minutos disponíveis.
_Eu só tenho 1 minuto e meio. O que fez com os seus?!_irritei-me por
ter menos tempo de que previa.
_Não interessa! Não é da sua conta, eu tenho vida própria!
_Gisele, eu pago os seus 20 minutos por qualquer coisa que queira,
mas tire Aurora daqui. Leve-a embora.
_Eu não posso, Doug. Eu preciso desses 20 minutos.
_Por favor, eu te imploro. Salve-a! Meu tempo está acabando...
Gisele engoliu em seco e senti que estava lhe pedindo algo muito
precioso, mas ela era minha irmã e tinha me prometido me ajudar:
_Ok, pra onde a levo?_aceitou, por fim.
_Leve-a pra longe e explique tudo._autorizei e agora falei pelo
chip._Gisele, convença-a de todo jeito a ficar longe de mim!
_Ok, ok. Vou com seu carro.
Meu tempo só me dava 20 segundos. Acionei o som da casa bem
alto, que explodiram nas caixas de som por toda parte e a soltei. Aurora
estava tonta, mas nada que dissesse poderia ser ouvido. Esperei que
entendesse o movimento dos meus lábios:
_Desculpe, desculpe, mas vá embora, agora! _apontei pra porta.
_Você é uma idiota!_Gisele agarrou seu braço e a puxou pela
roupa._Vamos correr, meus pais estão vindo.
As duas saíram pela porta e eu desliguei o som. Neste instante, meus
pais já estavam nas escadas, assustados.
_Desculpe pelo susto. Essa empregada idiota deve ter ficado
escutando enquanto arrumava a casa e deixou no alto.
Os dois se entreolharam aliviados.
_Humanos idiotas. _meu pai resmungou._Onde estão as meninas?
_Ah, saíram pra fazer compras e eu tenho um evento pra ir. Licença.
_caminhei para o escritório e os dois voltaram para o quarto.
Bati a porta atrás de mim e senti que meu coração ia sair pela boca.
Sentei no sofá e conectei-me a Gisele. Queria saber como estavam. Pedi pra
escutá-las, sem que Aurora soubesse.
_Você disse que não ia contar nada! _Gi brigava com ela no momento
em que interceptei a escuta.
_Eu não disse até quando!_defendeu-se.
_Sua burra, acha que teria uma hora certa pra revelar que está com
um super humano?
Eu não teria sido tão duro quanto Gisele. Peguei um copo de bebida
na bancada com a mão trêmula.
_Por que ele me machucou?_Aurora estava em choque.
Oh, droga, eu não queria tê-la machucado.
_Ele devia ter te estapeado, sua idiota! Por que foi abrir a boca!? Eu
vou te bater quando sair desse carro! _Gisele parecia descontrolada também.
_Quer botar tudo a perder? Tudo?
_Eu não entendo, se ele já sabia que eu era uma humana, por que
aconteceu tudo aquilo...? Você não devia ter contado, eu queria ter dito...
_Isso não muda nada! Você continua sendo uma humana! E eu não
tenho mais tempo, só me resta 15 minutos.
_Que tempo é esse de que estão falando? Parece uma bomba
relógio.
_E é! Vou parar aqui no acostamento e lhe contar tudo o que puder.
Mas, prometa, jure que não vai falar mais nenhuma palavra quando eu disser
que o tempo acabou?
_Não me resta mais nada.
_Aurora, o Doug é um Alfa, ok?
_Eu já sabia disso.
_Mas, os Alfas não apenas fazem uma propaganda de experiência
das marcas. Eles não são só influenciadores. Há um jogo, um grande jogo
que envolve muito dinheiro. Nossas vidas são um tabuleiro online e você não
podia estar nessa partida.
_Como assim? De que jogo está falando? Parece quem são avatares!
_Nossas vidas são influenciadas por jogadores online que compram o
direito de opinar e interferir em nossas ações. Eles vêem tudo o que fazemos,
dizemos e se metem o tempo inteiro. Depois nos acostumamos...
_Então, todo mundo viu Doug e eu juntos...? Não, isso não pode ser
verdade!
_Não todo tempo. Não todo mundo, apenas os jogadores que pagam
caro para terem seus avatares. Temos uma cota de horas mensais pra
gastarmos desconectados. Seria nossa folga. Por isso que Doug estava com
pouco tempo, gastou tudo com você.
_Os jogadores não sabem sobre mim?
_Sim, sabem. O tempo offline é muito curto. Doug só usou pra quando
vocês estavam em momentos mais íntimos, certamente. Todo o resto eles
influenciaram. A roupa que você vestiu naquele dia em que jantaram juntos foi
escolhida por eles. Tudo, presentes, lugares que foram, tudo foi inventado por
outros.
_Então, Doug só estava jogando comigo?
_Não! O que importa a roupa que escolham pra você? Era o Doug
que estava lá e ele realmente gosta de você, independente de outras pessoas
estarem se divertindo e ganhando dinheiro com bônus a cada vez que ele te
fazia feliz.
_Eu entrei para aumentar a audiência de vocês?
_Não “para”, mas conseguiu de uma forma monstruosa. Todos
querem saber de você.
Aurora
Li Mendi
126
_Vocês impediram que eu dissesse que eu era humana porque todos
teriam ouvido?
_Isso. Aurora, prometa que não vai repetir isso nunca mais, para o
nosso bem. Não estrague a minha vida, nem a de Doug. Neste exato
momento, ele deve estar recebendo uma bronca da nossa gerente. Torça pra
que não o expulsem dos Alfas. Aurora, eu sei que não quer isso, mas irá
destruir nossa família.
_Nada teria acontecido se eu não tivesse tentado contar a verdade...
_concluiu. _...Estaríamos juntos..._imaginou. _...Mas, eu não conseguiria mais
viver sem a verdade. Verdade? Quase tudo era mentira. Não era?
_Quando estava nos braços dele, quando se amaram, era uma
mentira?
_Não.
_A verdade é só o que sentimos, não é um ponto de vista. Aurora, o
tempo está acabando e eu tenho que te deixar em algum lugar, enquanto
estou no meu blackout.
_Você gastou todo o seu tempo...
_Eu faria qualquer coisa por meu irmão e minha família. Você também
faria?
_Acho que sim.
_Aurora, por favor, se afaste, fique longe de nós. Não é porque não
gostamos de você, é que simplesmente não podemos mais ficar perto de
você.
_Eu queria ouvir isso do seu irmão.
_Ele só terá esse tempo pra falar disso mês que vem. Enquanto isso,
simplesmente não diga nada, nenhuma palavra, nem olhe pra ele.
_E os jogadores?
_Que tem? Doug inventará uma estória.
_Dirá que eu era só uma diversão?
_Seria uma ótima desculpa.
_Eu sinto vontade de vomitar.
_Vou te deixar em casa, por favor, não vamos falar mais nada, ok?
Acabou o tempo, estarei conectada em segundos.
Senti minha garganta apertar como se fechasse com um nó cego.
Puxei o ar, mas era dor, uma dor física da extração crua e a sangue frio do
meu coração sendo arrancado. As lágrimas pingaram. E eu não podia
pronunciar nenhuma palavra.
Eu queria estar com Aurora para ampará-la, levá-la no colo e dizer-lhe
que nada fora mentira, que nunca havia me divertido tanto e que me sentia
muito vivo como nunca.
Gisele abriu a porta algum tempo depois e eu já estava no terceiro
copo.
_Eu sei que está triste porque Aurora te deixou, Doug, mas sabe
como é... Essas garotas não querem nada sério... _sentou-se ao meu lado,
interpretando uma versão falsa da história para nossos jogadores. Essa era a
pior infração que poderíamos cometer, mas não havia saída, era preciso
justificar a ausência de Aurora a partir de em diante.
Gisele segurou minha mão e não dissemos palavra nenhuma, não
podíamos. Isso era real? Eu tinha perdido a garota que mais gostei até hoje e,
droga, não me importava que fosse humana!
Subi para o meu quarto e encontrei com a minha mãe no corredor.
_Você está com os olhos vermelhos, Doug. O que houve?
_Nada, estava com um cisco..._bati a porta do quarto.
Caí na cama sentindo uma culpa que me mortificava. Eu só queria
largar tudo, correr até Aurora e dizer que tudo bem por ser mais frágil, a
protegeria e cuidaria por todos os anos que vivesse e ninguém lhe agrediria.
Por ironia eu justamente a deixava ainda mais desamparada que antes.
Aurora
Li Mendi
128
31
O mundo precisa ser injusto só pra alguns?
(Aurora)
Quando desci do carro e Gisele deu partida, eu senti-me um trapo
devolvido. Era o custo da verdade. Eu não queria viver algo real, sincero e
transparente? Eu não conseguiria a felicidade, se não fosse ela uma mentira
bondosa.
Sem voz, meu estado de choque me conduziu até o interior de casa.
Meu pai que lia o jornal disse algo que não ouvi, era só um ruído que zumbia
na minha cabeça dolorida. Caminhei como zumbi até o quarto e deitei na
cama, acho que aquilo era bem perto de morrer.
Ele entrou preocupado, examinou-me com suas mãos de médio que
procuram o ponto certo. Mas, nem conseguia perceber sua expressão, pois
ele mais parecia um borrão.
_Pai... _consegui dizer. _Por favor, me dê algo pra dormir, algo bem
forte.
_Aurora, me diz o que sente?
_Eu acho que meu coração vai parar..._apertei o peito._Pai, me faz
dormir.
_Aurora! O que está sentindo exatamente?
Exatamente? Mas, não era reproduzível em palavras. Era bem perto
do fim. Como descrever isso?
_Eu vou matar aquele super humanozinho idiota.
_Por favor...faz doer menos, você é um gênio, deve saber como me
ajudar.
Ele balançou a cabeça para os lados e saiu por alguns instantes. A
tempestade que pesava sobre a minha cabeça caiu e eu solucei, curvada.
_Aurora... _ele afastou meus cabelos vermelhos do rosto. _Ele sabe
que você é humana?
_Acha melhor que a gente não fique junto pra não nos prejudicar...
_dizendo isso, parecia uma conclusão idiota a algo que já havia me alertado,
anteriormente. _Eu me sinto tão mal..._perdi a voz. _Isso dói.
_Me dê seu braço. _ele pediu e o puxou para si._Não vai mudar nada,
querida. Mas, vai adiar. Enquanto sua cabeça começa a lidar com isso, você
dorme..._enfiou a agulha na minha pele. _Durma bem...
Eu senti todo o corpo anestesiar. A sensação era tão boa, nenhum
nervo recebia meu comando, apenas minha mente ainda flutuava no espaço
oco dentro do meu ser, até que essa fumaça interior se esvaiu e eu dormi
profundamente.
Doze horas depois, abri os olhos pesados, sentindo a cabeça
dolorida, um peso no corpo. A noite já havia caído e a luz da varanda
iluminava parcialmente a parede do quarto. Os grandes olhos azuis vieram
para dentro da minha mente, me pertencendo com tanta força, como se seus
músculos ganhassem força dentro de mim, se apropriando da memória com
uma realidade incontrolável. Como seria amanhã? Como era o depois sem
Doug?
Ele sabia de tudo... e mesmo assim me quis. Eu só precisava
continuar sem dizer nada.
Chegar na escola na segunda-feira foi como todas as manhãs chatas
antes de sua vinda para a cidade. Encontrei-o inevitavelmente, escorado em
seu carro, rodeado de amigos. Passei com os polegares presos na alça da
mochila, fones no ouvido e cabeça erguida.
Gisele estava sentada na escadaria, junto com sua turba de súditas.
Seus olhos se cruzaram com os meus, mas ela os abaixou, engolindo em
seco.
Segurei-me pra não chorar, não ia desmoronar, não podia. Eu iria me
formar daqui alguns meses e só precisava seguir em frente, como a humana
forte que eu era!
_Oi, Aurora._Bili passou por mim e fez um sinal de cabeça.
Dei dois passos adiante, mas parei e me virei:
_Bili?
_Me chamou?_ virou-se também.
A vida devia ser injusta só para alguns?, perguntou meu lado menos
honroso.
_Posso falar com você?
_Claro. _deu de ombros.
_Ótimo... _indiquei um banco.
Aurora
Li Mendi
130
32
Quer ser uma de nós?
(Aurora)
Só faltava alguns meses certo? Eu já havia perdido o cara que eu
amava. Então, meu lado responsável parecia menos preocupado. Olhei pra
Bili, procurei as palavras, não achei nenhuma especial, então, falei como veio
a cabeça:
_Somos iguais sabia? _ falei baixo, aspirando o ar junto com a voz,
como um som rouco e sussurrante.
Ele engoliu em seco, ainda fez uma careta de interrogação, mas
sustentei os olhos e alguns segundos depois, abaixou a cabeça e soltou o ar
com força, coçando a nuca.
_Eu sei, nós somos perceptíveis entre nós, por mais que sejamos
muito bons atores para eles.
_Como Doug está encarando isso? _quis saber.
_Espero que não da mesma maneira que a sua namorada.
_Gisele e eu ainda não...
_Ok, sua namorada, ou seja lá como a está designando..._ consertei.
_Você contou tudo?
_Contei pra Gisele, que contou pra ele, que surtou.
_Que droga.
_Na verdade, ele agüentou bem a verdade, tudo ia muito bem, mas...
Eu resolvi ser honesta e estraguei tudo. Quero dizer, eu tentei fazer da forma
correta, mas ele me enxotou da sua vida como qualquer um faria com um
humano...
_Como Gisele reagiu?
_Disse que o entendia, que não podia ficar com um super humano...
Ele encostou a nuca na parede atrás de si, refletindo sobre suas
palavras.
_Eu penso nisso todos os dias...
_Eu também pensava, mas ele já sabia. E, foi por isso que te chamei.
Ele virou o rosto pra mim.
_Precisa de ajuda?
_Não, você vai precisar. Gisele também sabe sobre você.
Franziu a testa.
_Ela sabe que eu sou hum...
_Hum-hum._ mordi o lábio.
_Mas... não comentou nada!
_Ah, o Doug também não. Só que depois de ter me chutado de sua
casa, eu não duvido que ela faça o mesmo com você. Tome cuidado...
_Obrigado. _agradeceu, mesmo não ficando feliz com o que eu
acabara de revelar.
Levantei-me e parti para o primeiro tempo de aula. No caminho, cruzei
com Felícia. O que ela fazia no colégio? Viera encontrar a mão de Doug?
Seus olhos, porém, me procuravam e sorriu quando me encontrou. Será que
soubera sobre a minha humanidade. Disfarcei e dei meia volta, tentando fingir
que não a vira, rumo a outra direção.
_Aurora!_chamou.
_Droga._gemi baixinho e estanquei no lugar.
_Lembra-se de mim?
Oh, sim, claro. Se você não gerenciasse a vida Alfa do meu exnamorado- super-humano talvez eu estivesse com ele agora. Pensei.
_Felícia, não?
_Exatamente. _sorriu mais. _Podemos conversar?
Eu aceitei, afinal, ir para a minha aula agora era total perda de tempo,
não conseguiria prestar atenção em nada. Depois, faria download da
exposição em casa.
_Ok. A cantina já está aberta. _indiquei mais a frente e sentamos em
um dos bancos e ela pediu um café.
_Deve estar curiosa sobre por que estou aqui.
Na verdade, eu estava com mais medo do que curiosa. Mas, se a
curiosidade fosse bom, ok, preferia ficar com ela. Doug a pedira pra vir até
mim?
_Devo confessar que sim. _respondi._Aliás, estou assim desde a
primeira vez que nos vimos.
_Eu observei seu trabalho de fotografia. Você é muito bonita. E
também estive lendo os relatórios que me enviaram. Você fez um papel
estupendo ao lado de Doug.
Papel? Hei, aquela era minha vida, não, uma peça de teatro!
_Eu tenho certeza que faria um excelente trabalho se juntando a nós.
_continuou.
Fato, ela não sabia, então, sobre a minha humanidade.
_Felícia, Doug e eu terminamos ontem.
_Ele me falou que sim. Mas, eu vim tratar de negócios com você.
Eu também não poderia exigir que ela se compadecesse comigo...
_Em que consistem os negócios?_questionei, intrigada.
_Aurora, quer ser nossa Alfa?
Aurora
Li Mendi
132
33
Autocontrole
(Aurora)
Aquela palavra ainda ressoava em minha cabeça ao som de todas as
vozes familiares, na de Doug, na de Gisele e agora na de Felícia: “Alfa”. Ela
realmente estava me sugerindo que eu me tornasse uma divulgadora secreta
de marcas? Isso me dava a absoluta certeza de que não conhecia a natureza
de com quem estava lidando.
Demorei tanto tempo pensando na ironia da situação, que a deixei
incomodada. Tomou o último gole de café e me encarou com os olhos firmes,
pedindo resposta:
_Eu queria saber... por quê?_permiti-me a oportunidade da
curiosidade.
_Você é boa. Muito boa em influenciar pessoas. O seu job será esse:
influenciar. Não importando qualquer preço, qualquer máscara para sustentar
todas as mentiras bondosas. As marcas fazem as pessoas felizes.
Soltei um pouco o ar e olhei o sol. Ela sem saber entendia bem da
minha habilidade de fingir. Ser humana entre humanos me tornava
especialista nisso. Mas, era um jogo muito arriscado, no primeiro dia de
trabalho perceberia a escolha errada que fizera. Parece que toda minha
demora e silêncio a fez entender que não teria hoje minha resposta. Ela,
então, encostou seu celular no meu, em cima da mesa e transmitiu seu cartão
para a tela do meu aparelho.
_Sabe como me encontrar agora.
_Ok, obrigada. _agradeci com um sorriso. Nunca poderia ligar...
Ela afastou-se e entrou em seu carro preto estacionado não muito
longe.
_Você está aí. _ouvi a conhecida voz de Gisele atrás de mim. Pensei
em me virar, mas senti um puxão no meu cabelo.
_Ai..._gemi.
Ela estava realmente puxando o meu cabelo? Demorei alguns
segundos pra acreditar que iríamos começar uma briga. A regra inviolável que
jamais pensei em burlar: nunca chame a atenção das pessoas em público,
evite brigas, evite grandes discussões. Mas, ela estava querendo arrancar
meus cabelos. Virei a cabeça na sua direção e levantei-me contorcendo todo
meu corpo.
_O que você quer de mim ainda?_perguntei, sentindo muita dor.
_Não podia ter me deixado em paz? _ seus olhos mudavam de cor com o
tamanho da sua raiva. Já devia ter tomado conhecimento da minha conversa
com Bili.
_Você não contou sobre mim e quebrou minha confiança? O que
achou?_disse-lhe.
_Ah, eu vou matar você, sua..._as palavras morreram em sua boca
quando agarrei seu braço com força. Todo o meu corpo parecia em chamas.
Acho que ela sentiu também, pois como que tomando um choque elétrico, me
soltou olhando a grande marca vermelha em seu antebraço. _O que você fez?
_deu um passo atrás.
Respirei fundo. Eu também não sabia como podia ter tido tanta força.
Mas, o estranho é que não havia apertado tanto, eu não tinha tal musculatura
pra isso, quebraria seus ossos. Ela cuspiu no braço pra aliviar a queimação e
eu senti minha pele suar, emergindo o pânico. Mais uma vez eu estava
envolvida com algum efeito inexplicável ligado a fogo e calor por reação de
autodefesa.
_Agora eu acabo com você! _pulou em cima de mim e caímos na
grama. Eu precisava me conter ou acabaria tocando fogo em tudo e a
matando. Mas, Gisele agarrava meus cabelos e queria rasgar minha roupa.
Parecia um animal enlouquecido.
_Parem vocês duas. _a voz masculina chegou primeiro em meus
ouvidos, depois Gisele foi arrancada de cima de mim e pude ver o rosto de
Bili.
Ainda em extinto de proteção avancei em cima de Gisele para
empurrá-la, mas foi a vez de dois braços me darem um tranco para trás e cai
sentada.
_Está bem?_a voz soou no meu ouvido como um despertar de uma
parte triste dentro de mim, amortecendo minhas reações. _Leve-a daqui pra
longe!_era Doug ordenando pra Bili sumir com sua irmã e dissipar a multidão.
_Aurora? _seu rosto estava tão próximo que eu podia virar e nossos lábios se
chocariam. Suas mãos ainda me agarravam firmes pelos braços, me
sustentando, apesar de eu estar sentada.
_O que aconteceu? Fala comigo._pediu.
_Nada... _respondi quase sem voz, ainda estava com medo de
provocar um incêndio a minha volta. Procurava não me mexer e respirava
para me acalmar.
_Quer que eu te leve para tomar uma água ou quer ir pra casa?
Sem olhá-lo, inerte, segurando-me para equilibrar todo o calor,
apenas pedi pra que fosse embora.
_Não posso te deixar aqui. Está machucada?
_Não. Estou bem. Quero ficar aqui. Pode ir. _engoli o choro de medo.
Eu não podia aceitar sua mão pra me ajudar a levantar, não queria queimá-lo.
_Vai. _agora sooei mais firme.
Aurora
Li Mendi
134
Doug ainda andou de costas pra constatar se era seguro me deixar
sozinha, mas obedeceu e se virou pra dentro do prédio. As pessoas que ainda
olhavam nossa briga repentina também entraram.
Gastei alguns minutos respirando e respirando pra ventilar meu corpo
por dentro. Pronto, eu voltara ao normal. Olhei a palma das minhas mãos que
estavam vermelhas, mas não havia bolhas ou machucados. Era como se eu
tivesse conseguido controlar aquilo.
O que eu era? Não era possível que os humanos tivessem poderes
assim.
34
Eu preciso de você agora
(Doug)
_Desculpem!_Felícia estendeu da mão assustada. _Eu acho que não
entendi. _Olhou pra Gisele sentada à minha direita do lado oposto a ela.
Estávamos em nossa sala de jantar no que parecia ser uma reunião de
feedback pelo nosso último excesso de tempo em off._Podem repetir? _agora
fazia uma careta de horror.
Na verdade, não tínhamos dito nada, se dependesse de nós. Estava
tudo escrito em seu relatório que acaba de ler em voz alta, mas queria que
saísse de nossa boca a confirmação das evidências. Felícia clicou no vidro da
mesa e expandiu a imagem do seu celular com vídeos e textos. Queria rever
todas as cenas, mesmo que já estivéssemos cansados daquele jogo da
inquisição.
_É neste momento aqui..._bateu duas vezes no vidro com a unha.
_...que tudo ficou em off. O que aconteceu? Podem me explicar por que
estouraram a cota mensal de privacidade tão cedo? O que isso tem a ver com
aquela mágica garota ruiva que deixou nossos jogadores maravilhados. O que
fizeram pra sumir com ela?
_Na verdade, não sumimos. Ela ainda está estudando na escola
normalmente. Foi só um caso e... Doug acabou. _Gisele resumiu por mim,
conseguia transmitir com mais frieza.
_Olha, não há segredos entre nós... para o nosso bem. _introduziu
como se fosse continuar dizendo que nos mataria se não falássemos o que
houvera.
_Eu hoje ofereci a Aurora que fosse uma Alfa._disse-nos, para nosso
espanto.
Gisele e eu nos olhamos e engolimos em seco. Aquilo sim nos
preocupava e era isso que queria nos provocar.
_Não pode chamar Aurora para ser uma de nós. _Gisele caíra na
armadilha de confirmar a suspeita de Felícia, não sei se por não querer
nenhuma rival ou por ser realmente fraca e ingênua, mas isso me irritou. _ Ela
é... _olhou-me ainda pra saber que eu iria impedi-la, não o fiz. _... uma
humana.
_Hum...mana?_franziu a testa, como se já não soubesse. Então, por
que a ofereceu o posto de Alfa. Será mesmo que não suspeitava disso?
_Mas... não vamos fazer nenhuma denúncia, nem contar a minha
mãe, que é diretora da escola... _falei-lhe com voz suave e firme, olhando
bem nos seus olhos. _Não queremos atrair a atenção para nós, certo?
Aurora
Li Mendi
136
Só estávamos podendo falar sobre isso porque perto de Felícia, ela
nos concedia o silêncio e a privacidade, longe dos jogadores.
_Humana... Ela parece tão perfeita... _deixou-se recostar na cadeira,
traída.
_Acho que a vida pode seguir daqui e os jogadores logo vão se
divertir com outra coisa que arrumar pra mim. _tentei dar um ponto final pra
ela, pra mim sabia que não seria fácil esquecer a minha ruiva “perfeita”, como
Felícia mesmo concluía.
_Ok, tudo bem, vou arrumar uma namorada pra você.
_Não precisa ser tão rápida, não ficaria bem.
_Que não ficaria bem o quê? Eu sou sua gerente, garoto! Desde
quando vocês têm problemas de trocar de garotas, até parece que estava
apaixo...
Sustentei os olhos, mas minha boca secou e minha respiração
ofegou.
_Não, não estava. _menti antes que pudesse me perguntar, como
resposta eu talvez não conseguisse pronunciar. Precisava cuspir como um
impulso aquela mentira. Eu ainda tinha pesadelos por ter tampado a boca de
Aurora e a expulsado daqui.
_Que bom, sinal de que não terá problema com sua nova namorada.
Vou buscar no book. Você quer escolher no catálogo ou eu escolho?
_Fica por sua conta. _levantei da mesa.
_Nós ainda não falamos da festa de hoje do perfume...
_Deixe o relatório que eu leio o briefing. _ respondi já na escada.
Joguei-me na cama de costas e suspirei. Como gostaria de ligar para
Aurora. Os próximos dias que finalizavam o mês foram de muito trabalho. Meu
outro “eu” parecia exercer minha vida completa. Aquele Doug que só Aurora
conhecia estava adormecido.
Nossa completa distância durou até o sábado do começo do mês, quando a
campanhia tocou.
Meus
pais haviam saído em viagem e minha irmã estava fora. Busquei pelo meu
chip imagens da câmera de segurança para saber quem apareceria ali pra me
encher o saco na minha hora de folga. Só faltava ser Felícia com a minha
nova namor... Esse pensamento foi interrompido quando a imagem que
identifiquei me deu um susto: Aurora?
Pulei da cama e desci as escadas correndo sem me preocupar qual a
roupa estava vestido, ou que discurso deveria usar.
Parei por um instante perto da porta. O que eu estava fazendo? Não,
não poderia atender de jeito nenhum!
Mais dois toques e a empregada apareceu. Fiz um sinal pra que
deixasse comigo. Franziu a testa e deu meia volta para a cozinha, afinal, se
eu estava disposto a atender, por que continuava parado na frente da porta?
O som parou. Parece que havia desistido, agora era só eu voltar para
o meu quarto e deixá-la partira. Hei, não! Pra que eu precisaria de tempo em
off sem Aurora mais na minha vida? Felícia ficaria muito brava, mas não havia
uma regra explícita sobre usar todo o tempo em um único dia, apenas que
não era permitido ultrapassá-lo.
Respirei fundo e desliguei-me do mundo virtual, colocando uma meta
de que deixaria algumas horas de sobra para emergências futuras. Coloquei a
mão na maçaneta com o coração pulando no peito e abri a porta. Vi-a de
costas, descendo as escadas.
_Aurora? _perguntei e ela virou-se lentamente. Seus grandes olhos
verdes me encararam com doçura, quase fundindo meu coração de aço.
Aurora caminhou de volta até a soleira da porta e deixou vir um
princípio de sorriso.
_Hoje já é o começo do mês certo? _lembrou-se das regras. Por certo
havia planejado muito aquela visita.
_Ninguém está conosco. _ disse-lhe, sabendo que entenderia. _Quer
entrar?
Aurora respondeu passando por mim, ficando em pé no centro da
sala. Indiquei pra que sentássemos no sofá e me senti muito nervoso por não
saber que palavras de desculpas usar. Minhas mãos suavam. Mas, quando
seus olhos calmos me olharam, todo o medo de um briga eminente passou.
_Eu fiquei pensando muito... _disse depois de limpar a garganta. _ Eu
sempre achei que a minha vida pudesse ser triste e... _parou e alongou o
“eeee” pra pensar melhor. _...E concluí que a sua deve ser pior, Doug. Porque
se eu posso viver menos que você, pelo menos eu viverei uma verdade.
Hei, viera até ali me dar uma lição de moral? Ter pena de mim? Isso a
ajudava a enfrentar a minha rejeição? Não esperava que eu concordasse,
certo?
_Verdade é o que andou vivendo? _ devolvi-lhe com ironia.
_Quando eu te amei e me entreguei era tudo uma verdade. Não a
verdade para os outros, era a verdade para mim. _explicou como se fosse
uma justificativa plausível por ter mentido sobre sua humanidade.
_Está tentando insinuar que quando eu te beijava o fazia por pura
aparência ou coisas do jogo? _perguntei. _Não, não era o Alfa que estava
com você! Era eu, Doug! E essa também era a minha verdade.
_O seu eu pode durar apenas algumas horas no mês? Sua existência,
então, pode ser mais curta que a minha e era isso que estava falando sobre
ser triste.
_Você não sabe de nada... _irritei-me severamente com ela pela
primeira vez, na verdade, comigo. Aquela era uma realidade muito dura de se
comprar.
_Doug. _puxou meu queixo pra ela com suas mãos delicadas e
quentes. _ É você que está aí, você mesmo, não o Alfa?
_Sim. _respondi soltando o ar forte.
Aurora
Li Mendi
138
_E você pode ser o que quiser? Só por algumas horas?
_Sim...
_Ok. _olhou-me por alguns segundos, me estudando.
Aurora mexeu no meu cabelo com seus dedos, massagendo da
maneira mais gostosa e relaxante possível até chegar a nuca. Sabia me ter
em suas mãos.
_Por favor, não podemos... Eu não quero que depois..._neguei-lhe em
fraqueza.
_Depois, não será você e não é esse que eu amo. _foi racional.
_Mas, você...
_Eu não quero saber de depois. _Aurora beijou-me, me puxando pelo
braço e não foi possível recusar com seus lábios quentes, sua língua na
minha. Agarrei-lhe os cabelos ruivos e perfumados também, trouxe-a toda
para mim.
_Aurora, me desculpe por tudo que te fiz... _ disse-lhe, precisando
desabafar aquele pedido de perdão.
_Não precisa se preocupar pela minha natureza. Um dia você vai
perceber que só a sua era uma escolha._acariciou meu rosto, encarando meu
lado fraco.
_Só que toda a minha família está dentro dessa rede que nos prende.
_justifiquei.
_Tem momentos que a gente tem que pensar só na gente.
_Não posso... Saiba disso. _ avisei.
_Mas, quem está me respondendo isso não está aqui agora. Por que
está falando por outro?
_Você é louca... _beijei-lhe com muita vontade. Sua pele macia e
branca despertava em mim toda a saudade que eu estava tentando sufocar.
_Eu só preciso de você agora... _puxou minha camisa para cima e a
jogou de lado, apertando-me.
_Eu te amo..._abaixei-lhe as alças da blusa e beijei-lhe o pescoço.
_Desculpe..._abracei-a mais._Eu te amo.
_Eu também..._beijou-me com mais vontade, acariciando minhas
costas.
Todos os intensos minutos de cada hora amando Aurora tiveram o
cheiro e o gosto da sua pele e da sua boca. Rolamos pelos lençóis da minha
cama, rimos, nos beijamos, nos amamos uma vez após outra e quando
silenciei, ela sabia que estava na hora do fim.
_Por favor, não me peça nada..._disse-lhe, tocando seus lábios para
beijá-la depois.
Aurora sentou-se de costas na beirada da cama.
_Ok, eu não vim pedir nada. Doug..._ virou o rosto um pouco de lado.
_ Eu amo você, mas se quer ser outro, eu vou precisar entender... Você tem
muitas vidas além da minha pra viver, tem esse direito de escolher quando
quer ser o que quiser...
Engoli em seco. Fechou a blusa e ajeitou o cabelo. Ajoelhou-se sobre
a cama, engatinhou até mim e inclinou seu rosto, olhando-me profundamente.
Ergui a cabeça pra beijá-la em despedida, mas recuou e saiu sem olhar pra
trás, batendo a porta com força.
Levei as duas mãos ao rosto e olhei o teto. Meu peito se apertou de
uma forma dolorosa.
Aurora
Li Mendi
140
35
Eu não consigo mais viver com isso
(Aurora)
Corri por toda trilha em um ritmo mais puxado do que o de costume,
como se a superventilação do meu sangue pudesse oxigenar meu cérebro e
fazê-lo funcionar melhor. Não é possível que ele aprendera a pensar só em
Doug. Sentindo uma ligeira dor no peito, reduzi e sentei em um tronco caído,
arquejando com as mãos apoiadas nos joelhos. Fechei os olhos e engoli em
seco pra umedecer a boca. O corpo foi se acalmando e joguei a cabeça para
trás.
O que eu podia querer mudar indo na casa dele essa manhã? Tinha
deixado claro que não poderia (entenda-se não queria) mudar sua situação
pra ficar comigo e eu tinha que lidar com essa rejeição amarga e
afetuosamente embalada com beijos.
Mas, não tê-lo não era o antídoto para começar a estrangular aquele
amor dentro de mim. Era preciso uma ferida maior para despertar os
anticorpos. E ela se abriu no meu peito na manhã seguinte, quando eu e
minha amiga Sandrinha comíamos um sorvete duplo na nossa lanchonete
preferida. Segundo sua teoria, uma dose cavalar de chocolate podia melhorar
meu humor. Mas eu senti o sorvete travar na minha garganta como uma bola
de gelo quando vi que Doug entrara com dois amigos de mãos dadas com
outra ruiva.
Comecei a tossir involuntariamente, porém não pareceu que fora tão
espontâneo, pois chamei a atenção de Doug, que me olhou longamente.
Meus olhos lacrimejavam e era por conta daquela quase convulsão.
Sandrinha virou-se, entendeu o que estava acontecendo, depois não
conseguiu me encarar, devia estar com pena. Enterrou sua colher de cabo
longo na calda quente do sorvete:
_Quer bater em retirada? Eu posso viver sem o resto do brownie.
_perguntou.
_Não está propondo que eu me mostre atingida pela namorada
instantânea de Doug, está? _revirei os olhos e lambia a colher.
_Não foi essa mensagem que passou agora pouco. _ disse baixinho.
_Ok, eu estou me sentindo...
_Uma droga? _ajudou.
_Tem alguma palavra pior que essa? Ontem, estávamos juntos,
fizemos amor e agora ele me aparece com uma nova garota e ruiva?! Idiota.
_Não, você não o acha idiota e está completamente apaixonada. Não
posso acreditar que ele a deixou e ainda fica tendo recaídas. Se valorize!
_aconselhou. A história que contei pra Sandrinha deixava Doug como um
vilão, mas eu também não podia dizer que era legal da sua parte me substituir
tão rapidamente.
Doug passou a mão sobre os ombros da garota e a beijou.
_Vou ao banheiro... _levantei-me, empurrando a cadeira para trás.
Abri a porta do box e vomitei até os olhos lacrimejarem.
Lavei a boca na pia e sequei o rosto com o papel toalha, ajeitei o
cabelo.
_Ótimo, eu precisava mesmo vomitar toda aquela gordura saturada.
Como pretende ficar magra, sua humanazinha fraca? _ murmurei, jogando a
bola de papel no lixo e abrindo a porta rapidamente pra aceitar o convite de
Sandrinha de cair fora, mas estanquei quando vi Doug encostado na parede
oposta do corredor do banheiro masculino.
Estava esperando para entrar? Estava aguardando sua nova ruiva
que entrara no banheiro sem eu ver? Não, ele me esperava e estava
desalentadoramente lindo com um jeans justo nas suas pernas fortes, uma
jaqueta preta de couro e o cabelo molhado. Seu perfume seco era tão bom
que eu podia dobrar meus joelhos fracos se não me encostasse já na parede.
_Tudo bem? _perguntou.
_Comigo? _apontei para o meu peito. _Óh, ótimo. _garanti.
_Desculpe, deu pra ouvir que...
_Está tudo bem! _falei alto. _Por que está interessado em mim,
Doug? _irritei-me e tentei ficar na linha rude pra que ele não me atingisse
novamente.
_Espere... Não gosto que fale assim comigo... _segurou meu braço,
me trazendo mais para perto, tocou meu rosto e mergulhou sua mão por baixo
do meu cabelo. _Me jure que está bem?
Abaixei os olhos. Eu podia falar toda a verdade? Não! Ele podia dizer
também o que sentia? Não. Então, qual seria a forma de expressão aquela
confusão de sentimentos?
_Eu estou cheio de trabalhos, entende? _fez um movimento de
cabeça para trás.
_Eu não preciso mais entender, Doug. Eu não sou nada sua, lembra?
_fiz menção a sair, mas ainda sustentou seus dedos fortes no meu braço e
seus olhos azuis lindos sobre mim. _Doug, não se pode ter tudo na vida. É
preciso escolher.
Saí e encontrei Sandrinha à minha espera.
_Seu sorvete derreteu. _avisou.
_Tudo bem, eu vomitei a outra parte. _peguei minha bolsa. _Podemos
ir?
_Claro! _apressou-se a levantar.
Aurora
Li Mendi
142
Coloquei meus óculos escuros e percebi que os olhos de Doug me
seguiram quando passei por eles, mas por sorte minhas lentes pretas não
deixavam que soubesse que os meus ficaram fixos nos seus também.
Bati a porta de casa atrás de mim e joguei a chave no aparador de
vidro da entrada.
_Querida, está melhor? _minha mãe largou sua revista e levantou-se
do sofá pra vir ao meu encontro, prestes a me abraçar.
_Não se preocupe, está tudo ótimo. _fiz um gesto com a mão. Se ela
me embalasse, eu não conseguiria manter aquela aceitação mentirosa.
_Querida, eu sei que você e Doug terminaram. Não precisa tentar se
fazer de forte.
_Mãe, eu não tenho como resolver isso, ok? Então, me ajude a não
pensar nisso não falando sobre o assunto.
_Ele descobriu? _perguntou quando passei por ela.
Parei.
_Sim, eu tive que contar. Desculpe poder ter arriscado tudo, mas não
dava pra viver assim.
_Você arriscou tudo, querida. _lembrou-me. _Não o tem.
_Obrigada, está me fazendo eu me sentir ótima agora. Vamos
brindar? _fui irônica.
_Não precisa falar comigo assim!
_Desculpe. _voltei até ela e segurei seu rosto. _Eu não tenho mesmo
o direito de falar assim. Vocês me amam tanto. Eu não mereço seu amor,
mãe. _senti um aperto no peito. _Eu sou uma humana e vou ficar sozinha.
Não tenho o direito de cobrar de Doug que queira ficar com alguém fraca
como eu.
_Querida, você não é fraca. Você é muito forte.
_Não! Pare de se enganar, mãe! Eu sei que vou morrer antes de
vocês. Eu vou ter que continuar a esconder meus machucados, eu vou ter
que fingir ser forte e quando tiverem dinheiro pra comprar um chip, eu terei
que arrumar uma explicação para não ter o meu. Essa é a minha vida, a
minha... droga de vida! _engoli em seco.
_Não precisa ser assim..._ ela estava chorando, enquanto segurava
meu rosto com suas duas mãos._Você parte o meu coração querida como se
o apunhalasse.
_E como está o meu, mãe? Eu acabei de ver Doug com outra garota
super humana, superlinda, super forte! Eu me sinto tão inferior... Não é estar
longe dele que me mata, me mata saber que o meu coração é tão burro e
fraco que não consegue odiá-lo pelo fato de ter, primeiro... _enumerei no
dedo._... escolhido não ficar comigo com sã consciência e, dois, estar
beijando outra agora.
_Então, ele não te merece, querida.
_Não, mãe, eu sou uma humana, só isso.
Virei-me pra subir para o meu quarto, onde me enterraria no
travesseiro.
_Não, Aurora. Não! _ela gritou.
Voltei-me pra minha mãe, que parecia estar tendo um ataque de
nervosismo, suas mãos tremiam segurando o próprio rosto, como se sua
cabeça estivesse prestes a explodir.
_Eu não agüento, eu não posso mais viver com isso..._soluçou e
buscou voz.
_Mãe? _franzi a testa, agora muito assustada. Ela não podia estar
falando de mim e Doug, aquela cena de histeria não era típica sua.
_Eu estou cheia! _passou o braço por todas as louças no aparador e
as arremessou no chão. _Eu não posso suportar mais um dia disso! _jogou
um dos porta-retratos que restou contra o espelho de vidro da entrada que se
partiu em micro pedaços.
Eu estava em estado de choque, não conseguia dar um passo em sua
direção.
_Desculpe, não quis fazê-la se sentir assim. Eu sei que deve ser um
peso ter uma filha humana, desculpe, mãe, eu sei que tem que agüentar
muitas coisas por mim...
_Aurora, se cale. _mandou com os olhos brilhando de descontrole.
Eu obedeci agora assustada realmente com o que estava por vir.
Podia jurar que me bateria.
_Você nunca foi um peso nessa casa, eu é que não mereço seu amor.
Não merecemos.
_Mãe, do que está falando?_balancei a cabeça para os lados.
_Não, querida, não é justo. Você não precisa levar esse peso, nem eu
preciso.
_Mãe, está falando coisa com coisa... _pisei sobre os vidros e tentei
ampará-la. _Só se... _tentei rir. _ Eu me matasse pra resolver isso! Deixa de
ser boba. Vamos... tomar sorvete, comer chocolate na minha cama e ver um
filme de comédia juntas...ãnh?
_Aurora... _ela não me ouvia. _... Você pode nunca me perdoar por
isso, mas eu tenho uma coisa pra te dizer, nem que seja a última coisa que eu
faça. _ segurou minha mão.
Aurora
Li Mendi
144
36
Minha natureza era outra
(Aurora)
Minha mãe ainda segurava minha mão e me olhava buscando um
pouco de coragem pra revelar o que estava prestes a dizer. Inclinei a cabeça
pra frente, franzi a testa em espera.
_Fala._pedi, sentindo um pouco de medo.
Ela engoliu em seco e caminhou até o sofá, onde se sentou, ajeitou o
cabelo atrás da orelha e se inclinou para frente para se abraçar. Acho que se
arrependeu da caixa de segredos que acabara de abrir, mas agora não
adiantava recolher-se em seus pensamentos mais.
Parei em sua frente, do outro lado da mesinha de centro que nos
separava.
_Aurora... _ela levantou o rosto pra mim, queixo trêmulo._ você não é
humana.
Seus lábios pareciam se mexer ainda, mas não distingui o som, meu
cérebro deu sina de que iria se desligar e as mãos gelaram. Ela disse que eu
não era humana? O corpo perdeu o senso da gravidade e eu tateei o ar,
buscando um apoio fixo pra me segurar. Mas, toquei o nada e deixei o peso
cair para trás, segura de que o sofá me ampararia.
_Querida? _via-a vindo em minha direção como um borrão. _ Quer
água?
Eu ainda estava de olhos abertos, mas não podia emitir nenhum som.
_Aurora, nós te amamos muito. Seu pai te trouxe do instituto de
fertilização dos superhumanos para os meus braços e eu fui a mãe mais feliz
do mundo...
Os móveis da sala estavam girando e se esfumaçando, a ponta dos
meus dedos adormeciam, meus lábios estavam secos e assim o silêncio veio.
Quando acordei no meu quarto, sobre a minha cama, respirei fundo e
desejei que tudo tivesse sido um pesadelo, mas eu tinha meu pai sentado
ainda de jaleco branco ao meu lado, mãos entrelaçadas sobre o queixo. Isso
não era bom.
_Está de volta, meu anjo._ tirou o cabelo do meu rosto e acariciou
minha testa.
_Eu tive um sonho horrível... Parecia tão real. Mas, não pode ser
real... Por que você está aqui em casa a essa hora? Onde está minha mãe?
_Ela tomou um remédio e dormiu. Desculpe pela forma que tudo
aconteceu. Eu sempre temi e me preparei pra chegada desse dia e não fui eu
a conversar com você.
_Do que está falando...? Por que minha mãe tomou remédio?
_Aurora, ela me contou o que aconteceu entre vocês duas e que você
desmaiou. Eu corri pra casa como um louco...
_Então, não foi um pesadelo..._sentei-me na cama._ Acho que a
mamãe está sofrendo tanto por me ver triste por causa do fim do rompimento
com o Doug que acabou querendo acreditar que eu não sou humana...
_Aurora, você não é humana. _ele repetiu a mesma frase.
Dessa vez eu estava sóbria, mas continuava sem fazer sentido
_Está dizendo que eu sou uma... super humana?
_Não. Nem eu, nem sua mãe afirmamos isso.
_Mas, se eu não sou uma humana e sou uma super humana, por que
fui tratada como uma humana fraca a minha vida toda? Por que eu tive que
sofrer usando sempre métodos naturais para me curar? Por que...
_Aurora, você também não é uma super humana...
_O que eu sou, afinal? Que parte do segredo nunca me contaram?!
_Ai... É tão difícil explicar...
_Então, explique._falei alto e ele voltou a me olhar, soltando o ar
pesadamente.
_Aurora, eu venho estudando há muitos anos como tornar os
humanos não apenas super humanos, mas mais que humanos, super super
fortes... _engoliu em seco._... como mutantes. Quando você nasceu eu estava
fazendo testes em alguns óvulos._parou um pouco para certificar-se que eu
era capaz de absorver aquela história._... você foi uma das tentativas que deu
certo. Sua mãe aceitou me entregar você depois de ser sua barriga de
aluguel.
_Eu sou uma... mutante? _repeti.
_Você tem poderes, Aurora. Mas, eu só podia descobrir cuidando
muito bem de você e esperando seu tempo. Eram muitas variáveis, eu não
sabia como todas as interferências bioquímicas que nós super humanos
usamos podiam reagir em você. Eu só conseguiria preservá-la se lhe fizesse
acreditar que era uma humana.
_Vocês mentiram pra mim todo esse tempo e me trataram como um
rato?
_Não diga isso, você é a coisa mais importante que eu tenho.
_Sou a pesquisa que vai te dar um prêmio da academia de ciências?
_Não! Eu não quero te usar pra isso, você é minha filha que eu amo
tanto.
_Amor? Eu sofri todo esse tempo acreditando que sou uma fraca!
_Aurora, ouça. Seu corpo não reage de forma previsível. Pra se curar
você é como os humanos, não testei ainda quais tipos de intervenções
biológicas você reage... Mas, podemos tentar...
_Que poderes eu tenho?
_Acho que já descobriu...
Aurora
Li Mendi
146
_Fui eu mesma que consegui incendiar aquele campo pra salvar
Doug?
_Foi. Você consegue super aquecer seu corpo e queimar o que está
ao seu redor. Entende por que eu precisei te fazer acreditar que era uma
humana? Você poderia se matar e matar outras pessoas se algo saísse do
controle.
_Eu não sou uma super humana, eu reajo como humana as vezes,
mas sou uma mutante? _tentei buscar lógica.
_Eu não tenho respostas seguras pra dar, cada dia seu corpo foi me
provando algumas coisas que eu tinha estudado... Sua evolução aconteceu
com tanta saúde...
_Quando iriam me contar?
_Quando seu dom aparecesse...
_Dom? Poder matar uma pessoa e a mim mesma? Você me deixaria
ficar triste pelo Doug, sem dizer nada?
_Querida, não sei se é bom você ficar com Doug, já lhe disse, sua
natureza é uma grande incógnita e não poderá nunca contar isso a ele.
_Vocês já tomaram decisões demais por mim. Agora, quero ficar
sozinha...
_O que eu posso fazer pra você me perdoar?
_Me deixe sozinha...
_Querida, não pode contar as outras pessoas. Se descobrirem minhas
pesquisas, eu serei preso e ganharei pena de morte imediatamente. Por favor,
guarde esse segredo.
_Não me peça mais nada, nenhum pedido de abdicação, nada... Eu
não lhe devo mais isso.
_Aurora, esse garoto não é pra você. Ele não te ama.
_O que sabe sobre isso pai? Você vive o dia todo no laboratório com
seus ratos humanos. Pensa que não leio sobre suas pesquisas de
transferências de corpos?
_Ela é paga pelo governo, não tem nada de proibido e não são
transferências de corpos. Eu estou estudando como transplantar boa parte do
corpo para pessoas que sofreram acidentes de multilação... isso é muito
nobre para a sociedade...Eu não transporto a alma das pessoas, elas
continuam sendo verdadeiramente quem são.
_Nobre? Pode chamar o que fez comigo de nobre? Quantos de mim
há por aí? Eu não posso acreditar que você só criou a mim.
_..._ele não respondeu.
_Oh, meu deus... Depois, você quer guardar segredo...
_Sim, há alguns outros.
_Você sabe onde estão?
_Sim, sei, procuro estar por perto e protegê-los. Como quero protegêla. Mas, querida... _voltou ao assunto. _Fique longe de Doug para o seu bem.
_Eu já falei, não vou fazer mais nada que mandarem.
_Ele não te ama!
_O que sabe sobre o nosso amor? O que sabe sobre Doug?
_Tudo! _perdeu o controle.
_Não! Não sabe o quanto nos amamos!
_Não! _ele levantou-se gritando. _Não te ama. Ele é um egoísta que
só pensa em como preservar sua família. _falou com ironia. _Nada iria
acontecer com eles, se vocês ficassem juntos, mas teria, claro, que abdicar o
luxo e a fortuna que tem. Você não vale pra ele nem o carro conversível que
anda. Mas, querida, você foi criada com os melhores valores. A gente sempre
pode escolher. _repetiu a frase que me falava desde a infância. _ sempre! E
ele não escolheu você! Se ele está sofrendo? Não! O Doug está curtindo sua
substituta.
Meu estomago verdadeiramente começava a doer.
_Quem te contou essas coisas? A mãe dele na escola? Ela não nos
quer juntos.
_Eu não quero aquele sangue-suga com você. E não foi ela... Eu sei
de tudo porque...
Levantei os olhos em espera.
_Eu sou um alfa também._soltou. _Sou um importante influenciador
da área científica. Eu monitoro tudo sobre vocês.
_Você é manipulado por outros jogadores?
_Não, não. Seria anti-ético brincar com a ciência. No meu caso, eu
sou só um alfa influenciador. Não tem pessoas brincando com a minha vida
como Doug deixa acontecer.
_Como sabe tudo sobre Doug?
_Porque eu sou um dos jogadores que gasta mais dinheiro com a vida
dele.
_Como...?
_Eu preciso monitorá-lo.
_Você ficou me vigiando o tempo todo?!
_Também... _voltou a se sentar e abaixou a cabeça, apoiando a testa
com um punho fechado._ Eu me arrependo tanto de todo meu ímpeto de
cientista na juventude...
_Se arrepende de ter me criado?
_Não! Eu já disse que você é a coisa mais importante que tenho.
_Por que precisava monitorar tanto Doug, se não era só por mim?
_Porque ele é uma das outras crianças como você, mas não sabe
disso.
_Doug é... é um mutante? Como eu?
_Sim. Sua mãe era uma grande amiga cientista...
_Pensei que não se conheciam...
_Foi melhor parecer assim... Nós acabamos nos envolvendo...
_Mamãe sabe disso?
Aurora
Li Mendi
148
_Eu ainda não havia conhecido-a._ disse, mas poderia estar
mentindo. _E a mãe de Doug implantou nela mesma a primeira tentativa bem
sucedida, depois a segunda...
_Gisele também?
_Sim.
_Mas, eles se dizem superhumanos
_Sim. Ela é um irresponsável. Preferiu acreditar que nada aconteceria
aos seus filhos e eles foram criados normalmente. Nunca teve medo que
pudesse matá-los se usassem alguma intervenção que desse uma reação
errada. O pior! Expôs eles como alfas...
_Ela veio pra essa cidade para ficar perto de você? Estão tendo um
caso? Ele é meu irmão? _disparei a fazer todo tipo de suposição ruim.
_Se fosse pensar como criador disso, poderia chamá-lo de filho. Mas,
geneticamente não sou o pai dele. Não se preocupe. Não são irmãos.
Eu poderia chamar aquilo de alívio.
_Mas, ela está preocupada sim, pois os filhos não manifestaram o
dom ainda e queria que eu a ajudasse lidar com isso quando vier a tona. A
única forma de monitorá-los sempre é a família dele sendo alfa. Isso os
amarra a ela. Doug não largaria a família por nada. Nem por você. Enquanto
for alfa, tem que ficar junto deles.
_Ela, então, tem medo da influencia que eu posso ter sobre Doug?
_Querida, ela faria qualquer coisa se você tirasse Doug de perto dela.
Queriam muito que mantivesse nossas famílias afastadas. Guarde esse
segredo.
_O quanto minha mãe sabe?
_Nada sobre as outras crianças, nem sobre Doug e sua mãe...
_E quer que eu silencie mais esse segredo.
_Você quer vê-la sofrer mais?
_Por que não me criou de forma normal como Doug?_continuei
aquele assunto.
_Porque o seu dom é mais perigoso e não podia arriscá-la.
_Qual é o “dom” _aquela palavra era ridícula. _ de Gisele e Doug?
_Querida, é melhor descansar. Não quero falar sobre isso. Só guarde
meu conselho, fique longe deles.
Quando a porta fechou-se eu fiquei olhando o teto do quarto, quieta.
Engoli em seco. Saber mais sobre a minha natureza não melhorara muito as
coisas. Eu era um corpo imprevisível. Mas, Doug era a prova de que nada
ruim poderia acontecer...
No café da manhã do dia seguinte, estávamos os três em silêncio
mastigando.
_Pai, ontem você me perguntou o que eu queria para perdoá-lo. _falei
enquanto colocava manteiga no pão. Minha mãe olhou para ele,
provavelmente se questionando como teria sido nossa conversa. _Eu já sei o
que quero, não que isso ajude muito eu perdoar vocês por terem mentido e
me feito sofrer tanto..._minha voz era fria.
_O que quer? _perguntou.
_Nada que não possa me dar, ou negar... A escolha é minha.
_O que é
Olhei-o pra ver se estava preparado para o que eu iria lhe pedir.
Aurora
Li Mendi
150
37
Você tem esse direito
(Aurora)
Eu não consegui colocar a torrada na boca, nem acho que meu pai
me daria esse tempo, estava ansioso pra saber qual era meu pedido. Aquele
assunto era novo para todos nós.
_Quero ter um chip também. _revelei meu pedido.
Não foi um alívio nem uma exigência inalcançável. Ele poderia
gerenciar isso bem.
_Ok, você tem o direito de tentar a ter uma vida de super humana.
_Quê? _minha mãe jogou o guardanapo na mesa. _Não pode arriscar
a vida dela. E você! _apontou pra mim. _Você não vai sair agora fazendo um
monte de maluquices.
Eu continuava serena, olhando para o meu pai.
_O corpo de Aurora já provou que reage bem a muitas coisas, se ela
quer muito ter um chip... é um direito seu. Posso pagar e lhe oferecer isso...
_Eu quero virar uma super humana, com uma super beleza, super
força...Você pode administrar algumas coisas no meu corpo, uns remédios,
suplementos..._mostrei minha vontade de me livrar do estigma de humana.
_Vá com calma, querida._pediu minha mãe.
_Como disse sua mãe, vamos por partes e com calma. Primeiro,
faremos sua cirurgia pra implante do chip. Isso dará a sensação de
superioridade que deseja. Devemos essa segurança a você, lhe ajudará a
assumir a sua identidade real. Mas, há ainda muitas coisas a aprender sobre
seu dom pra não usá-lo de forma errada... _aconselhou ele.
Minha mãe levantou-se muito decepcionada com o rumo das coisas e
saiu da mesa.
_Mas, eu também mantenho meu pedido. Fique longe de Doug, ele
não merece você.
_Eu tenho que ir para a escola.
_Aurora, vá com calma. Você tem muitas coisas de humana ainda,
sua recuperação nunca é rápida quando se machuca, por isso, não jogue o
jogo contra você.
Jogo... Ele era um dos jogadores da vida de Doug! E ainda por cima
era um Alfa! Eu tinha um Alfa dentro de casa?
Peguei minha mochila pra sair, realmente estava precisando tomar um
ar. Assim, absorta, andei pelos corredores da escola com a vista um pouco
embaçada, mergulhada em meus pensamentos. O mundo estava desfocado à
minha frente. Eu olhava pra dentro tentando ver beleza no paraíso que
imaginava morar os super humanos, mas só sentia que tudo continuava como
antes, não havia essa esperada super força. Eu era uma mutante, não uma
super humana completa. Seria essa a explicação?
Ouvi uma risada alta e um gritinho feminino:- “Doug”. Virei o rosto em
reflexo pra trás e vi a ruiva pendurada no pescoço de Doug no meio da roda
de amigos ricos e super humanos, super bem vestidos, super in. Sustentei o
olhar por alguns segundos suficientes para seus grandes e vivos olhos azuis
encontrarem os meus. Seu sorriso morreu aos poucos.
Continuei meu caminho. A voz do meu pai me veio a cabeça: “Você
não vale pra ele nem o carro conversível que anda. Mas, querida, você foi
criada com os melhores valores. A gente sempre pode escolher. E ele não
escolheu você! Se ele está sofrendo? Não! O Doug está curtindo sua
substituta.”
Engoli em seco e ergui a cabeça até a sala de aula, onde joguei a
mochila em uma mesa encostada à janela. Encostei o queixo sobre o braço e
fiquei observando o jardim lá fora. Eu gostaria de sentir o que meu pai queria
que eu sentisse, mas meu coração simplesmente desejava estar com Doug.
Não conseguia ser racional para entender que ele não arriscaria tudo por
mim. Suspirei pesadamente.
A mesa estremeceu com o estrondo que se seguiu de uma mochila
caindo sobre o tampo de madeira. Assustei-me e olhei para o lado com a
testa franzida de susto. Meu coração estancou. Era Doug. Vestia uma blusa
pólo branca que deixava seus braços fortes com um contorno desafiador para
minha resistência. Sentou-se e chegou mais perto:
_Vai me ignorar completamente e não nos falaremos mais? _sua voz
enrouquecida pela manhã e o perfume delicioso que me envolviam me deixou
um pouco tonta.
Dei de ombros. Esse não era o plano que tinha pra nós? Eu bem
longe, ele fingindo que tinha uma nova namorada perfeita? Mas, ignorá-lo era
uma ofensa para um alfa acostumado a ser o centro do mundo.
_Já gastou sua cota esse mês comigo... _lembrei-o sem entusiasmo e
senti doer quando as palavras entraram em meus ouvidos e recordei da última
vez que estivemos verdadeiramente juntos, sem farsas.
_Aurora? _chamou e eu fechei os olhos por alguns segundos pra meu
coração não derreter e ter que recolhê-lo do chão. _Você está linda como
sempre... _tirou alguns cachos caídos no meu rosto e senti como um choque
o escorregar da ponta dos seus dedos sobre a pele da maçã do rosto.
_Eu vou sentar em outro lugar. _ameacei levantar.
_Não tem outro. _sorriu e seus dentes brancos transparentes na
ponta e sua boca vermelha e úmida me arrepiaram inteira. Que efeito
devastador ele tinha?! _Sente-se antes que comecem a falar de nós.
Engoli em seco e sentei inconformada, respiração agitada, pés
andando milhas debaixo da mesa, espírito inquieto. Eu não ia chorar, ia?
Aurora
Li Mendi
152
O professor apagou a luz e começou a mostrar em uma projeção em
3D algumas reações químicas nas células.
Notei o quanto ficara perto de Doug quando sentara novamente,
quando seu braço encostou no meu por baixo da cadeira e o pêlo fino do seu
braço roçou na minha pele quente. Tive aquele costumeiro e recente pânico
de provocar algum desastre. Respire. Respire. Ventile. Acalme-se.
Seus dedos roçaram meu punho fechado e mergulharam entre o
polegar e o indicador, quebrando minhas forças e se entrelaçaram
perfeitamente com a minha mão. Senti a força daquele toque ativando todos
os meus nervos. Engoli em seco e o olhei pelo canto dos olhos concentrado
na aula. Seu dedão acariciou o contorno da minha mão repetidamente em um
movimento delicado e amoroso.
Soltei-o, peguei minha mochila e atravessei a luz e as células
projetadas no ar, sem me preocupar com a turma inteira estar nos olhando
curiosa por quase ter derrubado a cadeira.
Não me importei nem em fechar a porta. Eu não tinha que me
preocupar com o que pensavam. Agora, eu podia pensar só em mim e não
era justo comigo aproveitar o prazer do contato e depois ser deixada por Doug
outra vez. Não queria migalhas.
_Aurora? _era a voz de Doug.
_Não... Não venha atrás._ senti que ia chorar de cansaço. Eu não
tinha toda essa energia pra resistir.
Continuei andando apressadamente. Tolice, seria capaz de me
alcançar facilmente. Como presa fácil, segurou meu braço e me fez parar.
Não o impedi. Vencera como sempre vencia meu coração de segunda
divisão. Com a outra mão ele abriu a porta de uma sala, que averiguo antes
estar vazia. Fechou-a atrás de nós.
_Qual é o seu problema?! _irritei-me._Quer ter tudo? Você não poder
ter tudo, Doug!
_Mas eu não tenho nada, porque eu não posso ter você! _sua voz era
calma e doce. Se aproximou mais e mais.
Só restou-me retroceder até o limite da parede. Olhei pra trás, não era
possível recuar mais nenhum passo.
_ Vê o que faz comigo! Eu não podia estar aqui seguindo-a, mas...
_Doug, não..._segurei seus dois antebraços quando tentou tocar meu
rosto. Apertei-o quando inclinou-se mais e senti minhas mãos esquentarem.
Doug gemeu e eu fiquei preocupada._Oh meu deus, eu te machuquei?
Seu braço estava com duas marcas vermelhas. Eu o havia
queimado?!
Doug parecia não ligar se eu podia machucá-lo e aquele principio de
acidente me fez esquecer por alguns segundos que estávamos sozinhos e
que Doug quase se colava a mim.
_Aurora, ninguém mexe comigo como você...
_Por favor, não faça isso..._ deneguei.
Ele me escutava? Puxou-me pela cintura, inclinou o rosto para a
esquerda e roçou seus lábios nos meus já entre abertos. Aquilo provocou um
arrepio, tentei fechar os pulsos na sua camisa, fazer débil força contrária, mas
ele era obstinado e egoísta, teria sim tudo que quisesse. Esperou alguns
segundos pela minha resistência e colou seus lábios nos meus.
Com sua força me suspendeu mais contra a parede, meus seios
esmagados contra seu peito forte. Beijou meu pescoço sem fôlego, respirando
forte meu perfume, meu cabelo, lambendo minha pele. Eu procurei de volta
seus lábios, sorvi seu queixo, senti sua língua. Havia um vulcão cheio de
lavas saindo de dentro de mim. Ele apertou suas coxas fortes contra minhas
pernas trêmulas e me inclinou um pouco pra trás para beijar o meu colo sob o
decote. Puxei seu cabelo, querendo sua boca de volta para continuar aquele
beijo delicioso.
Só o sinal soando alto nos fez parar muitos minutos depois. Eu estava
com a boca seca, tonta, voltando à terra outra vez.
_É isso que você faz comigo._deu-me um último e breve beijo. _Você
sai primeiro?
_Hum?...ãnh? Si...sim. _segurei a porta e a abri. Andei pelo corredor,
sentindo que estava andando em oito, como uma bêbada, mas não olhei para
trás. Eu tremia.
Aurora
Li Mendi
154
38
Um dia só pra mim
(Aurora)
Era o primeiro dia do mês e eu já havia enviado um relatório pra
Felícia de que tiraria folga completamente, incluindo não estar online pra
ninguém. Ela reclamou pelo tempo de três palavrões até que desliguei e a
deixei em off.
_Vai sair, querido? _minha mãe perguntou, me vendo caminhar até a
porta.
_Vou pra nossa casa na montanha ficar sozinho. _disse-lhe.
_Quer que eu acredite? _ ela riu e continuou a ler sua revista no vidro
da mesa, tocando em alguns pontos para ampliar as imagens, enquanto
tomava seu café da manhã. _Não tem aula hoje?
_Tenho, mas baixo depois a matéria, não quero participar da aula,
estou precisando descansar, estou trabalhando muito...
_Vai convidar Aurora pra matar a aula com você?_quis saber, não
tinha paciência pra rodeios.
_Não. Vou ficar sozinho. _ respondi-lhe.
Quando aproximei-me do carro, este reconheceu meu comando de
voz e destravou a porta. Entrei e meu playlist continuou a tocar de onde eu
havia parado. Toquei na tela do GPS pra se auto programar para o caminho
da colina. Tínhamos uma casa próximo, há 30 minutos dali, em uma área de
mata verde e densa onde nos refugiávamos quando queríamos. Nossa vida
era muito exposta.
Ao chegar, o jardineiro acenou com sua tesoura de podar plantas na
mão e eu fiz um gesto de cabeça, sem sorrisos. Sentia que toda a minha
alegria estava vendida, minhas prateleiras da alegria haviam sido saqueadas
e completamente.
Sentei no sofá branco, estiquei as pernas, ajeitei as costas nas
almofadas e fechei os olhos. Eu simplesmente não queria ouvir a voz de
ninguém, já não suportava ter que conviver com minha nova namorada
arranjada e nunca tive tantas festas e produtos pra promover. Mas, eu não
podia chamar aquilo de uma avalanche, pois era eu mesmo que procurava
subir até a montanha do trabalho e provocava aquele verdadeiro deslizamento
de tarefas sobre mim. Até Felícia me aconselhava a parecer mais saudável.
Sua ganância, porém, se contentava o suficiente com o sucesso dos seus
negócios e parcerias que era fácil fingir que nada estava acontecendo com
seu Alfa.
Fechei os olhos e senti as pálpebras um pouco trêmulas,
manifestação do estresse do dia a dia. Só existia entre a minha solidão
interior e o silêncio incômodo de fora, a barreira do meu corpo físico vigoroso
e bonito. Uma parede de células oca.
Já fazia um mês que Aurora saíra da minha casa e eu ficara mal por
saber que não podia ter algo mais longo com ela. Felícia acabara contando a
minha mãe sobre Aurora, na esperança de que esta fosse mais uma vigia pra
me conter.
Minha mãe bateu na porta do meu quarto e entrou. Eu estava sentado
na sacada, com os pés em cima de um velho baú. Sentou-se ao meu lado em
uma poltrona.
_Eu não quero te ver assim... Por isso, chegou a hora de eu lhe contar
uma coisa...
_É sobre Aurora?
_Eu já sei que você ficou sabendo que ela é humana...
_Já sabe?
_Sempre soube, antes de você.
_Mas...? _franzi a testa.
Eu havia expulsado Aurora de casa para que meus pais não
descobrissem que era humana. Agora, eu acabara de descobrir que não era
necessário tê-la feito passar por aquela exclusão tão indelicada.
_Eu conheço o pai de Aurora há muito tempo. Ele me indicou pra ser
diretora dessa escola quando decidi me dedicar um pouco mais a nossa
família, vindo morar aqui. Somos amigos desde a faculdade...
_Nunca me falou!
_Sim, tem muitas coisas que você ainda não estava preparado para
saber.
_Então, ele lhe contou que Aurora era humana pra poder deixá-la
estudar na escola?
_Hum... não._ fez uma cara de que eu estava bem longe da verdade.
_Aliás, eu nunca imaginei que você dois pudessem se gostar... _fez uma
careta. _Esse mundo é mesmo surpreendente! Vocês... _parou.
_Vocês...?
_Vocês são diferentes, mas são iguais também. _disse. _Eu fiquei
ansiosa desde que você nasceu pra te contar isso e nunca decidi se contaria.
Mas, ver você assim sofrendo não me permite viver com a consciência
tranqüila...
_Eu não estou conseguindo entender metade do que está querendo
dizer.
_Eu sei._respirou fundo. _Doug, eu vou lhe contar uma coisa que
chegará a hora da sua irmã saber também. Mas, cada coisa ao seu tempo.
Você é capaz de guardar esse segredo?
_ Bom... fale.
Aurora
Li Mendi
156
_Querido, eu e o pai de Aurora trabalhávamos antes de vocês
nascerem em uma pesquisa secreta sobre o limite da capacidade de fazer
mutações genéticas. Nós contratamos uma mãe de aluguel pra gerar uma
criança que... Doug, me prometa...
_Prometo! _jurei logo pra que continuasse.
_...Ninguém pode saber disso.
_Ok! O que tem a criança?
_Nós queríamos saber se podíamos gerar uma criança com poderes.
_Poderes?_repeti, franzindo a testa.
_Como me arrependo disso, pois brincamos de ser Deus. Éramos tão
frios na época. Eu agradeço por tudo ter dado certo, mas se não desse?
_Deu certo? Vocês geraram uma criança com poderes? Que
poderes?
_A criança teria habilidades. _trocou a palavra poderes por habilidade,
mas isso não me deixava menos curioso pra saber o final da história._o
projeto do pai de Aurora era criar uma menina que pudesse canalizar sua
energia, transformá-la em calor e...
_Em fogo? _terminei sua conclusão, lembrando-me do incêndio
quando Aurora me salvou dos cães mutantes.
A imagem de Aurora em minha mente se fixou. Sua pele alva, seus
cabelos vermelhos, seu nome, tudo remetia ao projeto perfeito de transformála na criança de fogo.
_Então, perai. Ela não é uma humana. Ela é super humana?
_Não.
_Não para qual pergunta?
_Aurora é algo que não sabemos definir. Ela acreditou que era uma
humana por muito tempo, era a forma de protegê-la de alguma reação
indevida com algum medicamento ou intervenção.
_Mas, isso não é justo...
_Sabemos disso e...não é só a saúde que importa, mas o fato dela se
sentir inferior a você, por ter sido expulsa e deixada por você, Doug. Você fez
isso por nós, pra nos preservar. Pra preservar Aurora também. Mas, não
quero vê-lo sentir-se um monstro, como agora, porque eu também me senti
assim por muitos anos por conta daquela pesquisa e daquelas crianças...
_Você disse crianças?
Lembrei-me do começo da conversa em que ela dissera que Gisele
também precisaria um dia saber da verdade.
_Doug, Aurora não foi a única criança, mas uma das... Você e Gisele
foram concebidos por mim...
_Mas, somos super humanos normais! Não somos?
_Eu os criei assim. Não tinha a sensatez e responsabilidade do pai de
Aurora, eu queria acreditar que eram super humanos normais e os tratei
assim.
_O que somos?
_Mutações genéticas.
_Mutantes?
_Não importa o nome, você é saudável, lindo, bem sucedido, feliz,
perfeito.
_Eu tenho habilidades?
_Não se manifestaram, querido. Isso só aconteceu com Aurora. Ela
agora precisará lidar com todas essas revelações. Estar com Aurora
significará que você não poderá ser um Alfa. Imagina se todos descobrem
essa história. Eu seria presa junto com o pai dela. E ela seria engolida pela
imprensa como uma aberração...
_Então, veio me contar toda essa história pra limpar sua consciência e
pra dizer que não muda em nada nossa distância?
_Não. Pra dizer que você pode escolher entre ela e nós. Desculpe,
mas a vida é tão dura quanto isso.
_E o que acha que eu devo fazer?
_Deve ficar longe dela. Como disse, nunca imaginei que aquelas
células cresceriam e se transformariam em duas pessoas que se amariam...
Que o destino seria tão irônico. Deixe Aurora em paz. Se aceitar isso,
podemos nos mudar daqui pra não ter que vê-la mais.
Minha cabeça estava girando com tantas informações.
_Você vai superar isso. _ela saiu.
Superar?
Eu estava agora deitado na nossa casa da montanha. “Isso” era um
sentimento muito forte que eu tinha dentro de mim e que não conseguia
sufocar.
Dias depois minha mãe me contara que o pai de Aurora revelara a ela
a verdade e que estavam passando por um terrível período de conflito.
Reforçou pra que eu a deixasse em paz e não trouxesse os holofotes pra
cima da garota.
Mas, justo agora eu tinha uma sombra de esperança de que Aurora
podia viver mais tempo e ser tão forte quanto eu! Queria tanto vê-la.
Disquei o seu número e chamou duas vezes. Atendeu.
_Aurora? _tomei coragem e falei.
_Quem é?
Ri. Era louvável sua encenação de que tinha apagado meu contato da
sua lista.
_Doug.
_Ãnh. _ficou em silêncio. _Dia primeiro? Quantas horas vai ser?
_falou carregada de ironia.
_Todo o dia. Estou na casa da montanha. Vem pra cá.
_Você acha que eu sou o quê? Eu não quero te ver pintado, seu
pateta vaidoso, alfa idiota, inconseqüente, ridículo! _gritou, xingou, cuspiu,
desligou.
Aurora
Li Mendi
158
Mas, meu coração se acelerou. Quando Aurora não tinha tristeza,
mas raiva, isso me dava esperança. A raiva é um sentimento vizinho do amor.
Eu estava terminando de fazer um lanche na cozinha, vendo a chuva
caindo forte lá fora, quando o caseiro anunciou que tinha uma desconhecida
toda molhada na sala. Perguntou o que devia fazer.
_Não se preocupe, eu a estava esperando.
Caminhei pelo corredor de assoalho de madeira e como estava
descalço, não fiz barulho algum. Queria observá-la de longe e não me
adiantei pra chamar sua atenção.
Ela estava de costas com o cabelo molhado de um ruivo escuro como
sangue caindo por suas costas, pingando sobre o sobretudo vermelho de
couro. Meu coração disparava descompassado em pensar que Aurora estava
na minha sala, como eu tinha pedido.
Caminhou até a lareira e ficou parada, olhando a madeira, mas
estranhamente não havia nenhum fogo para admirar, só pedaços de troncos
com fuligem. Agachou-se e estendeu a mão.
De repente, prendi a respiração e lembrei-me de que tinha uma
habilidade. Não faria isso na minha frente, faria? Queria me aproximar
curioso, mas não pestanejei.
Parecia uma garotinha aprontando, em uma posição como se fizesse
prece sobre a madeira. Seu riso soou por toda a sala e vi uma fagulha de fogo
iluminar as toras. Não seria possível! Ela riu mais e esfregou as mãos, como
se não tivesse conseguido controlar muito bem aquela mágica.
Como eu podia ser completamente apaixonado por aquela mutante
travessa? Sorri, cheio de uma felicidade única que apenas ela provocava em
mim.
Ela levantou-se e se virou, tomando um baita susto quando me viu.
Recuou e apertou uma mão contra a outra.
Eu é que estaquei, estonteado com sua beleza. Seus grandes olhos
verdes e brilhantes estavam mais destacados com a sombra escura em torno
dos olhos. A boca estava com um brilho úmido. Uma fita preta amarrada ao
seu pescoço segurava um broche antigo. O sobretudo estava aberto,
mostrando seu vestido de couro preto costurado ao corpo, com os seios
suspensos e redondos.
Fiz um meio círculo ao seu redor e parei por trás. Delicadamente
puxei seu casaco, aproveitando pra escorregar os dedos pela pele sedosa
dos ombros e braços. Joguei-o sobre a poltrona ao lado da lareira e puxei-a
pela cintura até que se colou a mim. Afastei seu cabelo e beijei sua nuca,
roçando ali os lábios sobre os pêlos eriçados.
_Não vai me oferecer nada pra beber? _virou-se de frente e deu dois
passos atrás.
_Claro. _procurei uma garrafa no bar e uma taça.
_Vinho. _pediu.
_Que bom que veio._entreguei-lhe a taça com vinho tinto.
_Será a última vez. _disse com uma voz amarga, balançando a taça
pra girar o vinho. _ Nunca mais vai me ter, Doug. Nunca mais.
Aquela promessa era quase uma condenação de morte. Só podia
estar denegando.
_Já disse o mesmo pra si mesma? _perguntei.
Ela fez uma cara de pouco caso e bebeu o vinho.
_Você não conseguiu resistir também, não foi?
Engasgou-se com o vinho e algumas gotas escorreram por seu
pescoço.
_Oh...
_Não! _ tomei-lhe a taça e segurei seus dedos pra que não se
limpasse.
_Doug...
_Você é única... _ segurei sua nuca e olhei pra sua boca vermelha
com aroma de vinho e álcool respirando muito perto. A gota ainda estava em
seu queixo, um vermelho agora translúcido._Você é tudo. _beijei seus dedos
com carinho, sem pressa. _Você é perfeita.
_Será sua última vez. _repetiu aquela promessa com uma voz rouca.
_Doug..._acariciou meu rosto com a barba rala.
O beijo começou suave, superficial, no contorno, nos cantos, no
queixo, na beira, aproximando da pontinha do precipício. Íamos nos jogar
juntos e a queda seria longa e alucinante. Envolvi-a em proteção e fomos
juntos nos libertando de tudo, até sermos só duas peles, dois corações, duas
bocas e finalmente um só, caindo e caindo, a velocidade da queda maior e
maior, mais rápido, mais rápido. E o fim é como a morte, o silêncio, o nada, o
vazio, um sono profundo e longo.
Eu ressuscitei primeiro, reabrindo os olhos. Ainda era o paraíso, pois
ela adormecia em meu braço, perfeitamente agarrada a mim. Sorri, admirando
o rosto mais perfeito que poderiam ter concebido. Quanto tempo ela sofrera
achando que era uma humana comum? Meu coração sempre a considera
sem qualquer defeito.
_Que horas são...?_ela resmungou e se mexeu com uma careta. O
sofá era muito largo, mas não o mais confortável do mundo.
_Aqui não tem hora. Fique. _mantive-a apertadamente grudada a
mim.
_Um dia a noite acaba e vem o dia 2.
_Não penso nisso..._ beijei seu pescoço, querendo guardar aquele
aroma.
_É fácil pra você...
Fácil? Eu nunca achara fácil ficar longe da garota que mais amei pra
protegê-la daqueles que devastariam sua vida com perguntas e investigações.
E tinha mais certeza que nunca que a amava desde a desconfiança de sua
humanidade.
Aurora
Li Mendi
160
_Nunca será fácil ficar sem você.
_Doug, eu não quero mais sentir o avesso disso. O depois é o oposto.
Eu não consigo virar a chave... Doug, nunca mais acontecerá.
_Pra isso sim precisará ser forte. _falei amargo.
_Eu preciso superar você, porque não posso aceitar vir só quando
você chamar.
Eu queria ligar e pedir pra que ficasse a vida inteira. Mas, não podia.
Ela precisava ficar longe e eu era luz, câmera, fotos, um alvo ambulante.
_Doug, você deixaria de ser um Alfa por mim?
_..._acariciei seu rosto e seu cabelo.
_Então, já tomou a decisão por nós._levantou-se e se vestiu. _Doug,
olha pra mim.
Olhei-a, sentindo que a minha garganta estava sendo esmagada, era
a mão invisível da saudade me tirando o ar.
_Nunca mais, ouviu? _saiu.
39
Guardei meu amor pra você
(Aurora)
Eu nunca pensei que teria a chance de um dia fazer aquela cirurgia e
agora um tubo se ligava ao meu braço preparando o intervalo entre o antes e
o depois. Meu pai segurou minha mão em um aperto e não sorriu, ele tinha
apreensão e eu só podia sentir ansiedade pra acabar com o silêncio em
minha cabeça: queria logo aquele chip.
Era a morte da minha humanidade e o ressuscitar pra a superioridade. Fechei
os olhos esperando logo que o efeito da anestesia começasse e ele veio,
desligando todos os meus nervos. Não havia nada neste hiato de dias que
durou. Pra mim eram só dois segundos e novamente eu estava em um quarto
de hospital.
_Querida..._ meu pai
sorriu agora sim aliviado pelo êxito. Eu tinha certeza que ele era o melhor pra
fazer aquilo. _... Finalmente pudemos tirá-la do coma induzido.
_Pai..._ não conseguia me mexer, só mover os lábios._...Como
funciona?_ perguntei.
Ele acariciou meu cabelo da testa e riu. Tinha os olhos brilhantes
admirando-me.
_Pode ouvir do lado de fora da janela o beija-flor? _perguntou.
Eu acalmei o espírito e procurei aguçar o ouvido. Sim, eu ouvia o
bater das asas. Virei o rosto para o lado e notei as micro partículas de poeira
em suspensão no facho de luz amarela do som.
_O que mais eu posso fazer?
_Conversar sem mexer os lábios. _ disse e só então notei que não
movíamos nossas bocas. Entre abri a minha, maravilhada. _Pode me ouvir,
não?
_Óh... _ri.
_Você merecia o chip mais avançado de todos que já se viu. E terei
que trabalhar muito pra pagá-lo. _gabou-se como se me desse a chave de um
carro.
_Sua visão e audição estão dez vezes mais apurada e pode
conversar com várias pessoas ao mesmo tempo em redes privadas ou
compartilhadas. Mas, primeiro precisa se compartilhar pra eu te ensinar toda a
potencialidade disso.
Eu aprendia rápido. Lidei com a dor de cabeça inicial, coloquei aplique
aumentando meus cabelos ruivos pra disfarçar a pequena área raspada na
minha nuca. Eu estava pronta pra voltar pro mundo com tudo.
Achei o cartão de Felícia jogado em alguma bolsa e liguei,
maravilhada por não precisar de nenhum aparelho.
Aurora
Li Mendi
162
_Oi. É Aurora, tudo bem? Você deixou seu contato comigo. Podemos
marcar um encontro?
_Aurora, sei que te fiz uma proposta, mas soube de certos detalhes
que invalidam a minha oferta. Conversei com Doug e Gisele.
_Pois não deveria acreditar em tudo que eles falam. Por que não nos
encontramos no shopping pra almoçar?
_Ãnhhh... Ok, ok._ ela aceitou.
Quando me viu, Felícia fechou um pouco os olhos. Seu perfume foi
fácil de reconhecer e achar o nome na internet. Minha mente agora era tão
veloz que eu me sentia uma máquina. Podia enxergar a marca da sua roupa
entre seus cabelos pelo espelho atrás das suas costas no restaurante.
Eu estava mais alta pelos saltos, tinha a boca pintada de vermelho
conforme meus cabelos recém tingidos pra se igualar ao aplique de um ruivo
intenso. Eu era um superlativo de mulher agora e isso era uma pista de que
eu não estava brincando no telefone.
_Já pediu? _ perguntei displicente, usando muito bem a habilidade de
falar por transmissão de voz por ip, usando a rede ativada pelo meu chip.
Continuei olhando o menu displicentemente.
_Anh, não... Estava esperando você.
Fiz meu pedido ao garçom e depois inclinei-me sobre a mesa de vido
e base metálica.
_Eu vou ser objetiva, eu quero aceitar a sua oferta.
Felícia estava muito, muito desconcertada.
_Por quê?
_Por que preciso.
_Precisa de quê?
_Óhhh, acha que é pelo Doug? Não! É por mim mesma.
_O que te leva a achar que pode ser uma alfa?
_Por todos os motivos que você mesma me falou na última vez que
nos vimos.
_Hum.
_Eu sou linda, inteligente, uma superhumana perfeita pra atrair seus
clientes pelo marketing de relacionamento. Estou disponível.
_Não é um acordo passageiro, querida. Não poderá enjoar de uma
hora pra outra.
_Eu tenho consciência disso. Já convivi bastante com os alfas, não
acha? _ desafiei. Ela sabia que me referia a família de Doug e a meu pai.
_Seu pai aprova?
_Já sou maior de idade, tenho meu próprio chip, meu próprio corpo,
minhas próprias conclusões.
_Ok.
_Isso é um sim?
_Não. Isso é um teste. Você será uma estagiária por um ano. Andará
com nossos alfas e depois de sair do seu período de calouro, eu decidirei qual
é o perfil de empresas que irá atender.
_Como quiser.
_Você terá aulas com nossos professores.
_Aulas? Ãnh, ok, feito... _ segurei meu tédio por ouvir a palavra
“aulas”.
_Não acha que basta um corpinho bonito, não?
_Tenho certeza que é preciso muita inteligência.
_Também. Você precisa aprender a arte de influenciar. Isso vai além
dos seus instintos, que já são bons.
_Já disse, tudo como quiser.
Quando o carro me deixou na porta da festa, eu senti-me apreensiva,
mas confiante. Eu era uma superhumana. Havia lido todas as páginas do
briefing que Felícia me passara. Não precisava fazer nada além de estar
presente.
_Alfa júnior chegando. _ouvi uma voz na minha cabeça e identifiquei
um rapaz sorrindo pra mim com cabelos dourados encaracolados na entrada.
Como eu saberia se era ele o dono daquela voz ou só um flertador?
_Alfa júnior, encontre seu grupo na mesa do segundo andar, próximo
a janela onde uma mulher está de vestido amarelo.
_Entendido. _respondi e peguei uma bebida. Tinha que relaxar.
_Alfa júnior subindo as escadas.
Droga? Aquela voz masculina ficaria nos meus ouvidos a noite toda
dizendo o que eu fazia, pior, me chamando de júnior?! Saco. Um ano?!!! Era
esse o prazo?
Caminhei pelo mezanino e vi um grupo de rapazes com o perfil de
capa de revista abraçados com suas garotas. Minha audição perfeita
conseguia separar a voz deles da música eletrônica alta.
_“Doug, mais uma caloura pra a gente se divertir!” _ todos riram, mas
não me afetei tanto com o preconceito quanto ouvir o nome “Doug”.
Soltei o ar pela boca, engoli em seco e puxei a imagem que tinha
tirado de mim no espelho antes de sair de casa. Estava com um vestido azul
marinho de acetinado preto tomara que caia de uma grife famosa e cabelos
semi presos.
_Não pensem que não posso ouvi-los, rapazes... _disse-lhes e
cheguei sorrindo, confiante, pé na frente do pé, como uma modelo.
Os rostos viraram-se pra mim, mas meu foco era naquela nuca loira.
Doug fixou seus olhos azuis em mim e os desceu até meu pé,
escaneando o que via.
_Aurora?
_Ultimamente estão me chamando de Alfa júnior, mas pode me
chamar de Aurora. _ ri, deliciada pelo meu novo poder de falar pela mente.
Aurora
Li Mendi
164
_Você o quê? _agora sua boca se mexeu, testas franzidas,
horrorizado.
Ignorei-o.
_Deni, quem é Deni? _perguntei.
Um rapaz apareceu e quase duvidei que fosse segurança. Tinha o
cabelo comprido e preto. Era tão liso que precisava conter atrás da orelha.
Seu rosto era indígena e duro, sério. Tinha um corpo forte por trás do terno
preto.
_Soube que preciso ser sua sombra por um ano. _ sorri-lhe. _Puxa,
pensei que me apareceria um velho de cabelos brancos com um livro de boas
maneiras.
_Quer que lhe passe meu currículo?_levantou uma sobrancelha.
_Eu vou me aposentar fazendo o que esse cara faz. _brincou um dos
rapazes, tomando um beliscão de sua falsa namorada loira.
_Vamos dar uma volta, então. _ ele polidamente pegou minha mão.
_Aurora? _era a voz de Doug.
_Você não pode ter virado uma Alfa! _ sua voz tinha desespero.
Aceitei sua conversa em uma linha particular, mas mantive-me
descendo as escadas, dando-lhe as costas.
_Eu guardei meu amor pra você, Doug. Mas, você não quis. Agora,
vou trabalhar.
Quer continuar lendo a saga, confira o livro Aurora 2.
Li Mendi é carioca, mora no Rio de Janeiro e é casada com um
tenente do Exército Brasileiro. O casal namorou à distância por 2 anos e
hoje celebram uma união muito feliz. Quando ele viaja em suas
arriscadas missões, ela se dedica aos livros para esquecer o medo e a
angústia de uma possível perda. Suas estórias de amor já ganharam as
graças dos internautas que acompanham o enredo diário publicado em
seu blog. Seu primeiro romance publicado pela Editora Outras Letras em
2011 teve milhares de downloads e acessos. Hoje, a turma dos fãs a
acompanham e trocam idéias com a autora no Facebook.
Todos os livros da Autora, você encontra em limendi.com.br
Livro O amor está no quarto ao lado
Jeniffer é uma jovem estudante que perde o pai em um
acidente de serviço militar. Antes de morrer, este lhe
confia aos cuidados do capitão Ruan. O amor que nasce
entre os dois é arrebatador e mexe com os corações. Os
dois mal percebem que não precisam ir tão longe para
serem felizes. Porque o amor pode estar bem ali, no
quarto ao lado.
Livro Fonte do Amor
Cris é jornalista e cobre a vida das celebridades. Seu
lema é correr atrás dos fatos, por isso, não desperdiça a
chance de entrevistar o famoso ator de cinema Igor
Frinzy quando o encontra em uma lanchonete na beira
da estrada. Para não espantar o ator, Cris decide não lhe
contar sua profissão. Ela só não imaginava que acabaria
misturando amor e trabalho. Agora, seu editor está
cobrando a tão prometida matéria sobre o galã e Cris
não sabe mais como enrolar os dois. Seu chefe quer a
redação e Igor, seu coração. Os fãs de Ruan e Jeni de O amor está no quarto
ao lado, podem acompanhar o filho do casal Igor, neste livro cheio de
romance.
Livro Atrás da linha do Amor
Eduarda morou desde que nascera com seu pai, um
militar alegre, sábio e aventureiro. Viveu por todos os
pontos do país atrás da trilha das missões do homem
que admirava como um herói. Mas, agora, seu pai
deseja que Duda faça faculdade como todas as garotas
de sua idade e tenha um endereço fixo. A mãe da
menina, então, reaparece à cena e propõe ajudá-la.
Eduarda não gostou nada da idéia, mas foi praticamente
Aurora
Li Mendi
166
levada a força para seu novo destino, que se cruzará com o de Maurício, o
único rapaz por quem jamais poderia se apaixonar.
Livro Aurora 2
No segundo livro da série, Doug volta com tudo, mas
precisa manter seu disfarce, se quiser proteger Aurora
e ensiná-la toda a arte de ser uma Alfa. Seu filho ganha
as graças de Aurora e começa a demonstrar os dons
desde pequeno, provando que as intervenções dos
mutantes pode ser passada geneticamente. Será que
Aurora vai se apaixonar finalmente por Deni, o novo
personagem da saga? Ou Doug vai ser seu eterno
amor?
Livro Beijo de Chocolate
Depois de um acidente de carro, Felipe acaba em uma
cadeira de rodas e passa a acreditar que sua vida tinha
terminado por causa da limitação de suas pernas. É,
nesse momento, que sua história se choca com a de
Andressa, uma fisioterapeuta linda, engraçada e
inteligente
que
Felipe
tenta
reencontrar
incessantemente. Na procura por Andressa, ele
também quer redescobrir aquele jovem alegre e feliz
que era e voltar a andar. O enredo é uma trama composta por muitos
personagens que influem diretamente no curso da vida dos demais,
formando uma teia de emoções, mistério, fantasia e amor. Beijo de chocolate
é um livro para tocar na epiderme da alma.
Livro Cada Casa um Caso
Ricardo tem sua mulher em coma por causa de um
acidente. Enquanto ela dormia, Daniela, sua cunhada,
decide ajudá-lo a enfrentar esta difícil fase de sua vida e
acaba se apaixonando pelo marido de sua irmã Alice.
Mas, o despertar de sua esposa, promove uma
reviravolta na vida desses três.
Livro Um coração em guerra
Caio e Bela formam um casal que enfrenta o amor à
distância. Os dois amigos de longa data descobrem que
é possível viver um romance de verdade mesmo que
longe um do outro e lidando com problemas tão
diferentes. Cada um cresce e ganha suas próprias
conquistas. Mas, será que esse amor vai encontrar um
ponto em comum no caminho outra vez?
Livro Amor de Alto Risco
Jéssi, uma rica fazendeira, coloca a mochila nas costas e
chega ao Rio de Janeiro para dividir um apartamento e
começar a faculdade. É aí que a sua estória se cruza com
a de Paulo, um estudante de direito que não terá
paciência com a caipirinha que acaba de chegar ao seu
apartamento com todas aquelas malas rosas. A garota
vira alvo de ex-clientes insatisfeitos de seu pai e coloca
Paulo em várias enrascadas perigosas. A solução
encontrada pelo seu pai é colocar um batalhão de seguranças ao seu redor.
Aurora
Li Mendi
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Aurora - Li Mendi