ID: 41707925
10-05-2012
Tiragem: 9000
Pág: 5
País: Portugal
Cores: Preto e Branco
Period.: Semanal
Área: 27,50 x 35,83 cm²
Âmbito: Regional
Corte: 1 de 2
Helena Gervásio
Sinto que as pessoas optam pela Medicina pelo dinheiro
tratei os adolescentes (agora
não trato tanto porque estou na
Nasci numa família que
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me adora. O meu pai (que
nos adolescentes são muito
como qualquer homem gosta
agressivos. Crescem e levam
de ter o primeiro descendente
à destruição da pessoa muito
igual à sua imagem) queria um
rapidamente se não forem
homem, mas saiu uma mulher.
convenientemente tratados.
Sabendo disso, decidi vir igual
"*+
ao meu pai. Sou parecidíssima
excelente, porque achava que as
com ele para lhe fazer a vontade
e para que ele gostasse de mim.
aquelas que mais necessitavam
Acho que consegui isso. O meu
da minha ajuda, pelo que tentei
pai adorou-me e a minha mãe
ao máximo especializar-me
idem idem. Gostaram tanto
e tirar o melhor partido de
de mim que me deixaram sotoda a medicação que exisHelena Gervásio é directora do Serviço de
zinha. Decidiram não ter mais
tia. Felizmente salvei muitos
Oncologia Médica do IPO de Coimbra
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miúdos. Uma delas foi uma
irmãos, o que para mim foi um mal os cálculos: engravidei no são amigos. Acho que há uma miúda de 14 anos lindíssima,
desgosto de todo o tamanho. último mês e depois foi uma relação médico-doente com- de cabelo comprido, louro, teve
As minhas tias, que me cria- desgraça, porque passei mal pletamente diferente da que um carcinoma embrionário
existe noutras especialidades, do ovário. A miúda, que já
ram como se fosse também nos exames, mas consegui.
Queria ir para Medicina, porque acompanhamos as tinha sido submetida a cirurgia,
portanto comecei a sentir-me mas o meu pai ainda não estava pessoas ao longo da vida.
perguntou-me aterrorizada «o
Confesso que a primeira que é que eu vou fazer?» E eu
muito só e a gostar de conver- convencido, porque achava que
sar com as pessoas (a solidão a Medicina era para homens. Aí doente que tratei com carci- tentei explicar-lhe o tratamento
para mim é um bocadinho tive uma conversa com o meu noma do ovário acabou, infe- e disse-lhe quais eram os efeitos
complicada de suportar).
pai e, muito a custo, ele aceitou. lizmente, por morrer. Chorei secundários, mas que tudo ia
Fui muito mimada pelos «Já que tanto insistes, vamos ver como se fosse uma pessoa da correr bem. A última questão
meus pais e tias e agora estou como é o exame», disse ele. Sor- minha família. Ai questionei- dela foi: «E o meu cabelo vai
a corresponder a esses mimos. te minha fui dispensada de fazer me se estaria no sítio certo. cair?». Sim, mas para o choque
Agora tenho um lar de terceira o exame de aptidão, porque tive Mas estava bem onde estava e não ser tão grande aconselhei-a
idade. Já tive cinco pessoas, excelentes notas nas cadeiras gostava de estar, pelo que passei a ir cortando aos poucos. Neste
infelizmente, agora só tenho nucleares. Ai já não houve mais a escudar-me de determina- momento, ela já é mãe e a dado
dos aspectos que realmente momento veio ter comigo para
três (a mais nova tem 86 anos hipótese de dizer que não.
e a mais velha 98).
Ao longo do curso, que era existem. Dei a volta a este lado me agradecer. Trazia um quaDesde pequena sempre $%&- difícil da oncologia e comecei dro lindíssimo de poesia com
disse que gostava de ser médica. bo o meu curso com a minha a adquirir alguma carapaça de praticamente todas as frases
Não tive ninguém na família família formada. Ai começam defesa perante a morte. Mas que eu dizia durante o trataque fosse médico, mas tive os problemas, porque eu não cada vez mais nós sabemos mento e a mim pessoalmente
algumas doenças, próprias da queria afastar-me demasiado ajudar o doente. Este é o valor ofereceu uma salva que dizia
infância, e se calhar contactei da minha família e, como tí- que se deve transmitir à nova «E tudo está bem». Isto dá-nos
muito de perto com excelentes nhamos o serviço médico à geração, porque aquilo que muita força para continuarmos.
médicos. Poder ajudar alguém periferia, fui parar a Góis. Gos- sinto, neste momento, na Medi- Sou uma pessoa muito feliz na
que estava doente era tão bom taram do meu trabalho, mas eu cina (e espero que esteja errada) *%
que acho que isso me levou queria estar mais perto, pelo é que as pessoas optaram pela
Contactei também, o que
a começar a entusiasmar pela que candidatei-me a um con- foi um privilégio, com o dr.º
Medicina. O meu pai achava curso do Instituto Português em si, mas pelo dinheiro que Miguel Torga, que foi meu
que era uma loucura, um dis- de Oncologia em Coimbra. eventualmente podiam ganhar. doente durante cinco anos.
parate pegado.
Entrei na oncologia e depois Isso é muito mau, porque não Era uma pessoa de trato difícil,
Eu continuei a minha vida decidi fazer a especialização. Ela sabem ser humanos. Quando mas com uma riqueza de vida
de estudante, até que aos 17 existia em França e, por isso, fui estão perante uma pessoa, não espantosa. Eu tirava-o da cama
anos (já tinha encontrado o tal para lá, com o apoio da família e querem saber dela, mas do e enquanto passeávamos no
dinheiro que ela lá vai deixar. corredor ele recitava-me os
grande amigo da minha vida) concordância do marido.
Quando os alunos internos versos d’ “O outro livro de
casei-me. Ainda estava no meu
As pessoas não são
entram no meu serviço a pri- Job”. Eu achava-o lindíssimo e
sétimo ano e andava no Liceu
da Infanta D. Maria, pelo que doentes, mas amigos meira condição é saber por que queria comprá-lo, mas ele deué que eles lá estão. É certo que mo com uma dedicatória, que é
tive de pedir autorização à
A oncologia é, então, en- a própria especialidade acaba uma coisa que ele não fazia! Ele
senhora reitora. Ela autorizou
na condição de não engravidar. por eliminar as pessoas, mas ensinou-me muito; as palavras
Agora digo «Que loucura», mas a minha profissão e adoro. noutras especialidades não é dele estão cá dentro e ajudameu tinha um objectivo: tirar Na oncologia, as pessoas com tanto assim.
me a ultrapassar determinadas
Durante muito tempo fases. Só há uma coisa que eu
%&Z quem lidamos não são doentes,
BENEDITA OLIVEIRA
BI
Oncologista socialmente empenhada
Maria Helena Gervásio licenciou-se em Medicina pela UC
em 1975, tendo ingressado no Instituto Português de Oncologia em Coimbra, em 1979. Fez estágios nos Institute Gustave
Roussy, Hospital Paul Brousse e MD Anderson Cancer Center
e tem a especialidade de Oncologia Médica da Ordem dos
Médicos, desde 1989, com diploma da European Society of
Oncology. Tem actividade docente nos cursos de Mestrado em
Ginecologia Oncológica da UC e outros cursos de pós graduação para Clínicos Gerais. Maria Helena Gervásio é investigadora
principal de vários protocolos de ensaio terapêutico e membro
activo da ESMO (European Society for Medical Oncology) e
ASCO (American Society of Clinical Oncology). Desde Julho
de 2001 é directora de Serviço de Oncologia Médica do IPO
FG Coimbra.
A especialista é ainda presidente da Assembleia Geral da
Sociedade Portuguesa de Oncologia, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Senologia e vogal da Liga Portuguesa
Contra o Cancro – Núcleo Regional Centro.
lamento que foi o meu marido
vir a falecer com uma doença
oncológica, o que mostrou a
minha pequenez”.
E AINDA
“Considero que há que fazer-se forçosamente uma adaptação em relação a alguns custos que se estão a praticar no Serviço
Nacional de Saúde (SNS). O SNS não consegue subsidiar todas
as despesas que a saúde implica. Já fazê-lo de uma maneira indiscriminada é que me parece injusto. Julgo que deve ser feita uma
avaliação sobre as taxas moderadoras que cada utente deve pagar.”
“Com a uniformização é muito difícil que continue a existir uma cobertura adequada da boa prática médica a todos os
utentes”.
“No caso dos transportes comparticipados partiu-se logo para
o ponto extremo. Sem o pagamento do transporte, as pessoas de
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menor qualidade de vida”.
“Julgo que é necessário fazer uma ponderação entre custo
versus comparticipação. Agora não se pode, de maneira nenhuma, abdicar-se da comparticipação. Devemos defender o SNS”.
“A falta de acesso aos medicamentos mais dispendiosos por
parte dos hospitais prende-se também com os custos. Os medicamentos são demasiado elevados em determinadas patologias,
nomeadamente na minha especialidade. Julgo que o valor destes
novos medicamentos deve estar exagerada”.
“É necessário que [os novos medicamentos] sejam ministrados, mas também aqui deve haver uma avaliação da sua administração, de forma a comprovar-se o benefício da sua utilização”.
“Acho que o governo devia negociar junto dos laboratórios numa
perspectiva de avaliar o valor mínimo dos medicamentos e assim
garantir a sua utilização nos diversos hospitais. Há medicamentos
com valores realmente exorbitantes e hospitais não têm capacidade
para suportar essa despesa.”
“Não tenho dados estatísticos sobre as urgências do Hospital
dos Covões. Agora penso que a concentração das urgências já
vinha a ser estudada e pensada há muito tempo”.
“Julgo que há algum benefício, porque, em princípio, deste
modo o outro local que irá concentrar as urgências irá ter uma
equipa mais numerosa, reforçada”.
“Sabemos que durante a noite nem todas as urgências são
verdadeiras urgências. Há pessoas que desta forma procuram
aliviar a lista de espera dos centros de saúde ou que por falta de
disponibilidade horária procuram as urgências para terem acesso
a determinada terapêutica médica”.
w}y+Z
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“As opiniões divergem [sobre a fusão dos Hospitais da
Universidade de Coimbra com o Centro Hospital de Coimbra]
e é muito difícil fazer uma avaliação exterior sem ter dados muito
concretos sobre a realidade de cada hospital. Mas não sou de todo
afastada da opinião de que a fusão seja correcta. Mas acho que
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os seus intervenientes e parece-me que ninguém foi envolvido.
Houve um dado concreto e depois é que se foi estudar a fusão
de serviços”.
“Parece-me que pode haver benefícios em se fazer a concentração – porque há realmente duplicações de pessoal médico
–, mas previamente devia-se ter pensado muito bem os serviços
que se deviam manter e juntar”.
“[Sobre o drº Martins Nunes] Fomos colegas de curso e como
Z#
não teço qualquer comentário”.
ID: 41707925
10-05-2012
Tiragem: 9000
Pág: 1
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Semanal
Área: 6,84 x 8,03 cm²
Âmbito: Regional
Corte: 2 de 2
Vidas (d)escritas
Helena Gervásio
Sinto que as pessoas
optam pela Medicina
por dinheiro
Especialista na área da oncologia, Helena
Gervásio diz encarar os doentes como amigos, que
acompanha ao longo da vida. Há, defende a directora do Serviço de Oncologia Médica do Instituto
Português de Oncologia de Coimbra, uma “relação
médico-doente completamente diferente da que
existe noutras especialidades”.
A humanização é, considera, um valor que se
deve transmitir às novas gerações de médicos, embora, reconheça, cada vez mais as pessoas optem “pela
que eventualmente podem ganhar”.
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Sinto que as pessoas optam pela Medicina pelo dinheiro