I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO1 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ A CULTURA DA PAZ NO SISTEMA DAS NAÇÕES UNIDA: DE 1989 A 2001 Roberta Cristina Izzo Mestranda em história pela Universidade Estadual Paulista – “Júlio de Mesquita Filho” Orientador: Prof. Dr. Samuel Alves Soares Introdução O objetivo desta pesquisa consiste na análise do surgimento da temática “Cultura da Paz” no âmbito da UNESCO e sua transposição ao sistema das Nações Unidas. Para tais fins, admitese a influência do término da Guerra Fria e dos fatores que dele derivaram para a configuração das dimensões da segurança internacional, abordagem na qual os estudos sobre a paz são inseridos e para a qual a UNESCO, enquanto agência das Nações Unidas, se volta. O período escolhido estende-se de 1989 – marco do término da Guerra Fria – a 2001, ataque às Torres Gêmeas em Nova Iorque, que acabou frustrando o otimismo dos ativistas pela paz. De modo mais geral, pretende-se aqui um estudo pautado nas concepções de diplomacia preventiva, mecanismos de “construção e manutenção da paz” e cooperação internacional. A paz, nesse sentido, será avaliada como elemento intrínseco à segurança internacional, historicamente balizada. Encerrada a Segunda Guerra Mundial, a sociedade internacional viu-se diante de um salto histórico singular. “O mundo que se descortinou em 1945 rompeu radicalmente com as heranças da balança de poder do século XIX e com os anos de transição e de instabilidade do período entre guerras”. 1 Surgiu uma Nova Ordem Internacional e, com ela, emergiram as duas grandes potências – Estados Unidos e União Soviética – que predominaram na “arena” mundial: iniciouse a Guerra Fria. 1 SARAIVA, J.F.S. (Org.). A agonia européia e a gestação da nova ordem internacional (1939-1947). In:______ Relações internacionais: dois séculos de história: entre a ordem bipolar e o policentrismo - de 1947 a nossos Dias. Brasília, D.F.: IBRI / FUNAG, 2002.p. 105. I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO2 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ Apesar do contexto internacional acima exposto, no qual os atores fundamentais consistiam em Estados, a instituição de Organizações Internacionais é um fator de destaque para a análise desse cenário no século XX. Na esteira da malograda Liga das Nações da década de 1920, criou-se, em 1945, a Organização das Nações Unidas (ONU); implementou-se também o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, o GATT2, entre outras instituições que, do mesmo modo, atrelaram os Estados a interesses pactuados sob a égide de pressupostos “universais”, válidos para a busca de um “consenso” entre os povos. Nesse sentido, a criação da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), no âmbito das Nações Unidas, como uma das instituições acima mencionadas, dimensiona a pesquisa. As origens da UNESCO remontam ao desenrolar da Segunda Guerra Mundial, em 1942, quando os Estados europeus que confrontavam a Alemanha e seus aliados reuniram-se no Reino Unido para a Conferência dos Ministros de Educação dos Países Aliados (CAME)3. Apesar das incertezas quanto ao término do conflito, os ânimos centravam-se na reconstrução dos sistemas educacionais dos países4 representados na referida Conferência, quando a paz fosse restaurada. Ensejou-se, nesse contexto, a criação de uma Organização voltada à educação e à cultura. Como o projeto fora bem recebido, ganhou alcance mundial e levou países não localizados em solo europeu, como os Estados Unidos, a participarem das negociações para o estabelecimento dessa Organização. Para tanto, foi agendada uma nova Conferência, agora sob os auspícios das Nações Unidas. Ocorrida em Londres, de 1º a 16 de novembro de 1945, tal Conferência reuniu representantes de quarenta e quatro países, sob uma iniciativa conjunta da França e do Reino Unido, nações marcadas pela guerra. Intentava-se uma organização que incorporasse uma genuína “cultura de paz” e estabelecesse a “[...] solidariedade intelectual e moral da humanidade [...]”, de modo a evitar a insurgência de um novo conflito 5. Em 16 de novembro de 1945, trinta e 2 O GATT, na verdade, não é considerado uma organização internacional, e sim um acordo comercial. No entanto, entra na definição dos esforços para uma maior integração mundial no referido período. De fato, o GATT é considerado predecessor da OMC, esta, sim, uma Organização Internacional, criada no âmbito do GATT, com término da Rodada Uruguai de negociações comerciais, em 1994, em Marrakesh. 3 CONFERENCE of Allied Ministers of Education. Disponível em: <http://portal.unesco.org/en/ev.phpURL_ID=6207&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html>. Acesso em: 10 out. 2005. 4 Países europeus aliados ao Reino Unido e à França. 5 Informações extraídas do sítio da UNESCO. Disponível em: < http://portal.unesco.org/en/ev.phpURL_ID=6207&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html.>. Acesso em: 7 abr. 2005. Tradução livre nossa. I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO3 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ sete países fundaram a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, com sua efetiva instituição em 4 de novembro do ano seguinte, quando vinte países 6 ratificaram sua Constituição. Durante sua primeira década, a UNESCO contava com cinqüenta e nove Estadosmembros; Atualmente, a UNESCO conta com 191 Estados-membros e seis membros associados. Mesmo atuando em diversas áreas7, a missão exclusiva da UNESCO refere-se à paz: O propósito da Organização é contribuir para a paz e a segurança, promovendo cooperação entre as nações por meio da educação, da ciência e da cultura, visando a favorecer o respeito universal à justiça, ao estado de direito e aos direitos humanos e liberdades fundamentais afirmados aos povos do mundo.8 Segundo Federico Mayor Zaragoza, diretor-geral da Organização de 1987 a 1999, “a UNESCO é a consciência das Nações Unidas”. 9 Conforme sua Constituição, ela deve alimentar a solidariedade intelectual e moral da humanidade. Desde sua criação, a UNESCO tem agido em consonância com os princípios delineados no preâmbulo de seu Ato Constitutivo: “Uma vez que as guerras começam na mente dos homens, é na mente dos homens que as defesas da paz devem ser construídas”. 10 Em 1989, através da Conferência de Yamoussoukro, na Costa do Marfim, intitulada “Conferência Internacional sobre a Paz Nas Mentes dos Homens”, essa máxima foi direcionada à construção de uma nova concepção de paz: pela primeira vez, a expressão “Cultura de Paz” foi proferida. Segundo a “Declaração de Yamoussoukro”, A paz é essencialmente o respeito à vida, o bem mais precioso da humanidade, é mais que o fim dos conflitos armados, é um 6 Austrália, Brasil, Canadá, China, Tchecoslováquia, Dinamarca, República Dominicana, Egito, França, Grécia, Índia, Líbano, México, Nova Zelândia, Noruega, Arábia Saudita, África do Sul, Turquia, Reino Unido, e Estados Unidos. 7 A UNESCO atua em setores relacionados à educação, às ciências e meio-ambiente, às ciências humanas e sociais, à cultura, à comunicação e informação, à pesquisa e informação e ao desenvolvimento social, concretizados nas diversas publicações que realiza. 8 UNESCO. Constitution of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. Artigo 1º. Disponível em: < http://www.un-documents.net/unesco-c.htm >. Acesso em: 7 abr. 2005. Tradução livre nossa. 9 FONT, Carmen. Interview: Federico Mayor Zaragoza. Worldpress.org, New York, 7 jan. 2004. Disponível em: <http://www.worldpress.org/Europe/1731.cfm> Acesso em: 16 set. 2005. Tradução livre nossa. 10 Preâmbulo da Constituição da UNESCO. Disponível em: < http://www.un-documents.net/unesco-c.htm >. Acesso em: 7 abr. 2005. Tradução livre nossa. I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO4 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ comportamento, uma adesão profunda do ser humano aos princípios de liberdade, justiça, igualdade e solidariedade entre todos os seres humanos. A paz é também uma associação harmoniosa entre a humanidade e o meio ambiente [...]11. O Objetivo dessa Conferência era: [...] convidar os Estados, organizações intergovernamentais e nãogovernamentais, comunidades científicas, educacionais e culturais do mundo, além de particulares, a contribuírem para a construção de uma nova visão da paz pelo desenvolvimento de uma cultura da paz, embasada em valores universais de respeito à vida, da liberdade, da justiça, da solidariedade, da tolerância, dos direitos do homem e da igualdade entre mulheres e homens [...]12. Construir uma “Cultura de Paz”, desse modo, significa atuar em observância a valores, atitudes, comportamentos e estilos de vida embasados nos valores supracitados. Além disso, a temática pauta-se pela observância de comportamentos pacíficos, especialmente em relação à maneira de solucionar conflitos, fator que não se traduz em inércia, ou “docilidade”, mas na nãoutilização da força física para a obtenção de tais fins. Consiste ainda em transformar tais situações de conflito em oportunidades criativas, de comunicação e intercâmbio, com o fim último no desenvolvimento endógeno das sociedades. A trajetória da UNESCO, contudo, desde sua criação em 1946, parece ter atingido um “turning point” com o surgimento da temática da “Cultura da Paz”, na década de 1990. Considerando que a idéia do estabelecimento de uma “cultura de paz” antecede a década de 1990, vislumbra-se a relevância do estudo desse período, visto que foi nesse contexto que o programa de ação intitulado “Cultura da Paz” e o referido conceito foram elaborados, transformando-se, inclusive, no mote temático para o ano 2000 e para a década 2001-2010, proclamados pelas Nações Unidas. A UNESCO, nessa ótica, foi responsável pelo movimento que atualmente encontra-se ampla e mundialmente difundido. A escolha do período 1989 a 2001 como recorte 11 Declaração de Yamoussoukro sobre a paz nas mentes dos homens. Yamoussoukro, Costa do Marfim, 1º jul 1989. Disponível em:< http://www.unesco.org/cpp/fr/declarations/declarations1.htm>. Acesso em: 25 jul. 2005. Tradução livre nossa. 12 Declaração de Yamoussoukro sobre a paz nas mentes dos homens. Yamoussoukro, Costa do Marfim, 1º jul 1989. Disponível em:< http://www.unesco.org/cpp/fr/declarations/declarations1.htm>. Acesso em: 25 jul. 2005. Tradução livre nossa. I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO5 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ temporal da pesquisa justifica-se por conformar um “bloco”, associado aos fatos característicos da “década de 1990”. Não obstante, os ataques às Torres Gêmeas em Nova York, em 2001, são considerados os acontecimentos que encerraram a parte restante do otimismo oriundo do término da Guerra Fria e dos esforços pela paz empreendidos na década de 1990. O ano de 2001 também encerra o processo de construção da cultura da paz enquanto programas e conceito, inaugurando a proclamada “década da cultura da paz”. Em suma, o ano de 2001 nitidamente encerra, dentro do sistema das Nações Unidas e no contexto histórico no qual os anseios da presente pesquisa se inserem, a temática em questão. As incidências do término da Guerra Fria frente à emergência da concepção de uma “Cultura da Paz” consistem nos fenômenos que vieram à tona no cenário internacional, relativos ao vislumbre do esgotamento da Guerra Fria em finais dos anos oitenta e a predição, ou mesmo a constatação, de fenômenos “inovadores” nesse contexto, que configuram novas dimensões nos domínios da segurança internacional. Pode-se dizer que a queda do Muro de Berlim proporcionou não somente uma guinada histórica, mas também novas vertentes teóricas a conduzirem as relações internacionais. Segundo Paulo Roberto de Almeida, A derrocada do socialismo[...]foi fundamental para a superação substantiva do período conhecido como Guerra Fria e para a transição da bipolaridade para uma nova situação de equilíbrio e convivência entre grandes potências[...]13 Diante desses fatos, podem-se observar novas facetas caracterizando o cenário internacional no limiar do século XXI, suplantando a dicotomia leste-oeste e as tensões relacionadas a uma possível guerra nuclear. Com o fim da Guerra Fria, a conjuntura internacional alterou-se, o “inimigo comum” ocidental – o comunismo – foi suplantado como estrutura econômica e sócio-política marcante no cenário internacional e, conseqüentemente, a ameaça de um ataque maciço de armas convencionais e nucleares deixou de prevalecer na agenda internacional. A violência adquiriu novas formas, tornando o aparato militar Estatal insuficiente 13 ALMEIDA, Paulo Roberto. As duas últimas décadas do século XX: fim do socialismo e retomada da globalização. In: ______ (Org.). Relações internacionais: dois séculos de história - entre a ordem bipolar e o policentrismo - de 1947 a nossos dias. Brasília, D.F.: IBRI/ FUNAG, 2002, p.105. I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO6 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ para saná-la; fatores como a ordem sistêmica internacional, seus atores e termos referentes à “segurança” e “paz”, agregaram significado. Enquanto, durante a Guerra Fria, a segurança internacional consistia em evitar a interiorização do conflito diretamente no âmbito estatal, inviabilizando a hipótese da “guerra total” oriunda dos aparatos nucleares, com o término do conflito emergiram as chamadas “novas ameaças” 14 , decorrentes de idéias de processos transnacionais que fizeram com que as concepções do Realismo15perdessem grande parte de seu potencial em explicar a realidade.Essas “novas ameaças” consistem em “[...] fenômenos mais ou menos recentes, que trariam desafios ou problemas novos para a segurança dos Estados, das sociedades que os constituem e/ou dos indivíduos que nelas habitam”,16 como por exemplo, terrorismo, degradação do meio-ambiente e migrações internacionais, e a manifestação dessas acepções, dentre as quais destacam-se as seguranças econômica17, ecológica18 e societal19, que só se impuseram com a liberação das tensões entre Leste-Oeste, e sua conversão numa dinâmica global. De acordo com Vicenç Fisas, a violência institucionalizada perpassa a história humana desde a Revolução Agrícola, há sete mil anos; contudo, cada época reconhece diferentes significados, métodos e portadores legítimos do uso da força. Desde a consolidação do Sistema Internacional nos padrões dos tratados de Westphalia, em 1648, e tal qual é concebido atualmente, “[...] é o Estado que se apropria do uso da força, glorifica-a e a converte em um direito, criando instituições especializadas para prepará-la e conduzi-la”.20 Historicamente, a 14 Segundo Ernesto López, o termo “novas ameaças” representa uma denominação específica para tratar das referidas questões no período pós-Guerra Fria. O adjetivo do termo é resultante da combinação de uma ótica diferenciada na abordagem de fatores referentes à segurança com a dinâmica da sociedade internacional no período mencionado. LÓPEZ, Ernesto Justo. La Seguridad internacional em los albores Del siglo XXI. Buenos Aires, Universidade Nacional de Quilmes, 2002. Documento de trabajo n. 9. 15 Considerada a corrente “tradicional” das Relações Internacionais. Tem na unidade Estatal o principal ator do cenário internacional e confere a este último um ambiente anárquico, nos padrões hobbesianos. Concebe a paz como frágil e temporária, resultante da guerra. 16 LÓPEZ, Ernesto. Nova problemática de segurança e novas ameaças. In: SOARES, Samuel Alves; MATHIAS, Suzeley Kalil. Novas ameaças: dimensões e perspectivas: desafios para a cooperação em defesa entre Brasil e Argentina. São Paulo: Sicurezza, 2003, p.59. 17 Define-se em termos de bem-estar material de uma determinada população civil. Sua ausência pode atravancar o desenvolvimento e engendrar violência urbana, fluxos migratórios e desequilíbrios geopolíticos interestatais. 18 Consiste na vinculação entre deterioração ambiental, pobreza e desigualdades sociais. Também enfatiza esses efeitos em níveis globais e nacionais, influindo nas relações entre Estados. 19 Refere-se às medidas adotadas pelos Estados frente aos impactos estruturais oriundos de fluxos migratórios, como níveis de empregabilidade, bem-estar social, padrões culturais, entre outros. 20 FISAS, V. Cultura de paz y gestión de conflictos. Barcelona: Icaria Editorial, 1998.p. 350. Tradução livre nossa. I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO7 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ guerra é tida como uma constante nas diferentes civilizações e épocas. Tal realidade inspirou numerosos pensadores a discutirem tanto sobre esse fenômeno, quanto seu usual21 antônimo: a paz. Ambos os termos sofreram, segundo circunstâncias temporais específicas, modificações semânticas, admitindo, atualmente, várias definições possíveis. Desde as mitologias Antigas, como bem salienta Bouthoul22, à guerra é reservado um amplo espaço, e seu caráter é glorificado. Nessa época, ou seja, na Antiguidade, em que o trabalho humano provia os vencedores de alimentos, os escravos oriundos de vitórias bélicas eram essenciais. Ainda segundo esse autor, as fronteiras foram sempre traçadas pelas batalhas, que instauraram as hierarquias que a paz legalizava em seguida. De fato, ambas as instituições parecem correspondentes e complementares: geralmente define-se uma em função da outra. A guerra, contudo, por parecer sempre proceder de grupos humanos organizados, levou o Estado a configurar-se como seu símbolo e sua personificação. Segundo Kant23, a guerra é uma imperfeição da natureza humana que pode ser corrigida pela razão e que, devido a esse atributo, possui função pedagógica. Ao propor, em 1795, a idéia do estabelecimento de uma paz perpétua entre os povos europeus, para, posteriormente, difundila pelo mundo todo, vislumbrou o entendimento permanente entre os homens, retomando uma idéia anterior de consegui-lo através da formação de uma sociedade das nações, idéia não idêntica, porém de mesma inclinação temática, defendida anteriormente pelo “Abbé” de SaintPierre24. Para assegurar essa paz, Kant previa a formação de uma Sociedade de Nações composta por uma federação25 de repúblicas livres e independentes, regidas por uma constituição 21 O termo “usual” resulta da análise das concepções de Galtung sobre a paz. Segundo este autor, a díade “violência e paz” corresponde a uma acepção mais consistente dos fenômenos em questão. 22 BOUTHOUL, Gaston. Viver em paz. São Paulo: Moraes, 1968, p. 27. 23 KANT, Emmanuel. A paz perpétua - um projeto filosófico (1795/96). In: ______ A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, s.d. p.144. 24 SAINT-PIERRE, Abbé de. Projeto para tornar perpétua a paz na Europa. Brasília, D.F.: Editora UNB, 2002. 25 Nesse aspecto, as obras do abade de Saint-Pierre e de Kant divergem; enquanto o primeiro propõe uma Confederação de Estados, mediante a qual as respectivas soberanias diluiriam-se numa única, que abrangeria o “conjunto” formado, Kant sugere uma Federação de Povos, que garantiria a cada Estado o seu direito, seus governantes e “súditos”. Ademais, Kant difere os conceitos “Federação de Povos”, conforme anteriormente explicada, de “Estado de Povos”. Neste último caso, os povos fundir-se-iam em um só Estado, implicando na vigência de um único governante e seus respectivos “governados”. KANT, Emmanuel., op. cit., p. 132. I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO8 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ republicana, por ser o único tipo de constituição derivada da idéia de contrato26. Desse modo, torna-se fundamento da paz perpétua, visto que exige o consentimento dos cidadãos para se fazer a guerra. Segundo Kant, no caso de uma constituição não-republicana, “[...]a guerra é a coisa mais simples do mundo, porque o chefe do Estado não é um membro do Estado, mas o seu proprietário, e a guerra não lhe faz perder o mínimo dos seus banquetes, caçadas, palácios de recreio, festas cortesãs, etc[...]”27. Em suma, para Kant, através das configurações citadas, e começando pela Europa, tal federação terminaria por congregar o mundo todo, através de garantias mútuas e respeito à autodeterminação dos povos, trazendo a paz perpétua. A questão da paz duradoura, no entanto, não encontra soluções nas assinaturas de tratados posteriores a determinados conflitos, visto que conformam o cessar de uma violência momentânea, porém não excludente de ameaças futuras. Nesse sentido, pela teleologia kantiana, a História dialética, determinada pela guerra, tornar-se-ia não-dialética quando fosse instaurada a “Paz Perpétua”, que, além de fundamentar novos parâmetros históricos, corresponderia ao “fim de todas as hostilidades”. 28 Como se vê, segundo Kant, através da teleologia histórica, várias gerações seriam necessárias para que a humanidade atingisse plenamente suas potencialidades, dentre as quais, a “paz perpétua”. Segundo o filósofo, a natureza utiliza-se dos antagonismos das disposições humanas para o desenvolvimento social: devido ao conflito das vontades, que caracteriza o desenvolvimento humano, as divergências tendem a “endireitarem-se” reciprocamente: “[...] tal como as árvores num bosque, justamente por cada qual procura tirar à outra o ar e o sol, se forçam a buscá-los por cima de si mesmas e assim conseguem um belo porte [...]”. 29 Não obstante, esses fatores, quando associados à diversidade cultural entre os povos, conduzem à guerra: Esta diferença traz, sem dúvida, consigo a inclinação para o ódio mútuo e o pretexto para a guerra, mas com o incremento da cultura e a gradual 26 O conceito de república, para Kant, consiste no princípio político da separação do poder executivo e do legislativo, o que equivaleria, em certa medida, aos sistemas democráticos contemporâneos. Ibid., p. 130. 27 KANT, Emmanuel. A paz perpétua - um projeto filosófico (1795/96). In: ______ A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, s.d. p. 129. 28 Ibid., p.120. 29 Kant, Emmanuel. Idéia de uma história universal com um propósito cosmopolita. In:______ A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, s.d., p. 28. I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO9 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ aproximação dos homens de uma maior consonância nos princípios leva à convivência na paz, a qual se gera e garante não através do enfraquecimento de todas as forças, como acontece no despotismo (cemitério da liberdade), mas mediante o seu equilíbrio, na mais viva emulação30. Tais pressupostos caracterizam os paradigmas pelos quais a UNESCO desenvolve suas atividades, em especial o programa “Cultura de Paz”. Por isso, a noção de conflito não é negligenciada, mas abordada como uma possibilidade de “amadurecimento”, desde que solucionado de forma pacífica, “criativa”. Do mesmo modo, em Kant, os “artigos” que contêm as condições para a “paz perpétua” incentivam o respeito aos direitos dos Estados, a diminuição das predisposições à guerra (supressão gradual dos exércitos permanentes), a “hospitalidade universal”, condizem com os pressupostos da UNESCO, indicando a influência kantiana na conformação da mesma. Usualmente, a palavra paz denota a ausência da guerra. Johan Galtung, ao tentar definir melhor o termo paz, aponta os conceitos de uma paz negativa e de uma paz positiva. A paz negativa consiste na simples ausência da guerra, o que não elimina a predisposição para ela ou a violência estrutural31 da sociedade. A paz positiva, por outro lado, implica em ajuda mútua, educação e interdependência dos povos, cristalizando mecanismos de cooperação internacional. Segundo Vicenç Fisas, a paz positiva não constitui somente uma forma de prevenção contra a guerra, mas a construção de uma sociedade melhor, condizente com a “[...] satisfação das necessidades básicas humanas –sobrevivência, bem-estar, identidade e liberdade, autonomia, diálogo, solidariedade, integração e eqüidade [...]” 32, que fazem da paz um construto humano. Galtung também propõe a necessidade de uma educação para a paz. Para ele, a violência não é inerente ao ser humano, mas produto de sua cultura, fator que engendra a possibilidade do aprendizado da convivência pacífica, por meio de uma educação para a paz. O pensamento de Galtung é pertinente ao momento histórico vislumbrado para a presente pesquisa, visto que o período delimitado (1989 a 1999) contempla a emergência de atores internacionais diversos, além 30 KANT, Paz... p.148. O termo “violência estrutural” foi definido por Johan Galtung em termos do número de mortes evitáveis causadas por estruturas sociais e econômicas. 32 FISAS, op. cit., p. 20. 31 I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO 10 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ dos Estados, atuando para um maior diálogo internacional, e ancora-se nos pressupostos da cooperação internacional, pré-requisitos ao estabelecimento de uma “Cultura de Paz”. Kenneth Boulding33, todavia, analisa a utilização corrente do termo paz como relacionada à morte: “descansar em paz”; isso permite a caracterização da guerra como intrínseca à natureza humana. Além desse aspecto, o que aproxima esse autor da postura assumida pela UNESCO é a percepção, segundo a qual semelhanças e diferenças, embora não irrelevantes, não constituem garantias de paz; a relação estável de paz, para Boulding, não é o mesmo que ter uma língua comum, uma religião comum, uma cultura comum, e até mesmo interesses comuns, e sim concepções endógenas compatíveis entre as nações, que permitam a tolerância e o respeito mútuo: reconhecidamente, são esses os fundamentos da “Cultura da Paz”, traduzidos nos pressupostos da UNESCO. Vicenç Fisas trabalha com um conceito de paz relacionado à prática de atividades voltadas ao bem-estar social, fonte da paz; assinala que o conceito de paz extrapola a simples denominação negativa, como ausência de guerra ou violência, e adota a noção de paz com a perspectiva de um avanço na melhora da condição humana. Por esse motivo abandona a noção “etérea”, muitas vezes associada à paz, exortando a transformação da ação humana no mundo em favor da liberdade, da justiça, da harmonia, da resolução de conflitos de maneira não-violenta e criativa. Fisas define os fundamentos da “cultura da violência”, caracterizada pela prevalência do aparato bélico-estatal para a resolução de conflitos internacionais. O autor também discorre sobre a gestão de crises humanitárias e sobre mecanismos de reconstrução de sociedades após conflitos. Não obstante, apresenta os fundamentos para a construção da paz, segundo as perspectivas da UNESCO, visões que compartilha. Em síntese, traz uma consistente avaliação do tema relacionado à “Cultura da Paz” e permite a visualização das concepções e propósitos da UNESCO frente ao tema. Já Rosenau, ao tratar da guerra, argumenta que, diferentemente de outros assuntos humanos, tais quais organizações políticas, instituições econômicas, estruturas familiares, entre outros, essa instituição apresenta uma continuidade (estágios evolutivos), ou seja, é inerente à condição humana. Segundo esse autor, há uma “fadiga” (weariness) em relação à violência, ou 33 BOULDING, Kenneth. A paz estável. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO 11 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ seja, aos custos sociais e econômicos da guerra. No entanto, trata-se de um fenômeno temporal: as novas gerações podem interessar-se pelo recurso à força armada, devido ao contato indireto com a guerra, que se transforma em História. De modo análogo, Bouthoul admite o início da paz com a cessão do conflito, segundo mecanismos jurídicos que proclamam a violência repreensível, legalizada anteriormente, durante o conflito. Esse autor parece não admitir uma paz, mas períodos de paz ao longo da história, conformes à civilização e à época em que emergem. Bouthoul analisa o entorno, as especificidades de lugar e tempo, ou seja, concepções, crenças, origens, métodos, paz interna, agressividade externa e circunstâncias que levaram ao fim de determinado período de paz, além de buscar nas mitologias os fatores psicológicos que comporiam o inconsciente coletivo. Desse modo, vislumbra arquétipos; no entanto, admite que cada época exige uma configuração diferente dos aspectos de paz. Bouthoul também questiona se a dominante histórica consiste na paz ou na guerra, argumentando não parecer necessário definir esta última, visto que já há um consenso geral sobre o significado do termo; não ocorre o mesmo no caso da paz. Segundo esse autor, “a guerra instaura hierarquias, que a paz legaliza e consolida em seguida34”. Considera, portanto, a guerra e a paz como fenômenos complementares. Por apresentar concepções endógenas, individuais, aproximando de uma análise psicológica humana remetente às situações de paz e conflito, a obra em questão enquadra-se na temática proposta, principalmente quando considerada a já mencionada máxima da UNESCO, que exorta a defesa da paz através de meios psicológicos. Metodologia A análise contará com material impresso e eletrônico, este último sendo constituído por Resoluções de Órgãos das Nações Unidas (UNESCO, ECOSOC e Conselho de Segurança) e de sua Assembléia Geral, por um “diário eletrônico” – as “Memórias do Prof. Dr. David Adams”, por “Declarações” resultantes de Congressos internacionais, artigos referendados e sítios de internet que ilustram a dimensão abarcada pelos estudos da paz e da segurança internacional nos mecanismos que se destinam a operar a tais fins. 34 BOUTHOUL, op. cit., p. 18. I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO 12 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ A dissertação final dividir-se-á em: introdução, três capítulos e conclusão. Na introdução, serão levantadas questões metodológicas e teóricas sobre histórica política, história do presente, história das relações internacionais e a justificativa para a escolha do tema da pesquisa. Ainda nessa parte, serão apresentadas a temática abordada frente ao conceito de “securitização”, a Organização das Nações Unidas e a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, de grande relevância à pesquisa. No primeiro capítulo, será trabalhado o contexto histórico do surgimento da Cultura da Paz. Nele, será analisado o cenário internacional no período que se estende de 1989 a 2001, mediante uma abordem comparativa entre a atuação das Nações Unidas durante e após a Guerra Fria, a fim que as particularidades da década de 1990 sejam identificadas. As principais características da década de 1990 são levantadas, no primeiro capítulo, de duas maneiras. Em primeiro lugar, empreende-se uma análise comparativa entre as atividades da Organização das Nações Unidas no período que se estendeu desde o término da Segunda Guerra Mundial à década de 1990, na qual a Organização é estabelecida como parâmetro às alterações sistêmicas constatadas, visto que se trata de uma instituição criada ainda no pós-Segunda Guerra Mundial, que perdurou durante a Guerra Fria, e que logrou destaque quando ela foi encerrada. Nesse sentido, devido ao enquadramento da dinâmica dessa Organização aos ditames políticos da Guerra Fria, seu término proporcionou alterações significativas na atuação das agências e órgãos que compõem todo o sistema das Nações Unidas, constituindo, portanto, um elemento de análise significativo para os objetivos da pesquisa. Identificados os mecanismos emergentes no sistema internacional com o término da Guerra Fria e as influências recíprocas entre eles e as Nações Unidas, inicia-se a abordagem dos elementos considerados característicos da década de 1990 – as conferências internacionais e relatórios do secretariado da ONU, cujas temáticas se complementam e fundamentam as atividades da Organização –, levantadas na primeira parte do capítulo e que conduziram a UNESCO ao processo de construção da Cultura da Paz. O último tópico do capítulo, referente ao encerramento da década, identifica nas metas do milênio o elemento de síntese das deliberações empreendidas durante a década, a fim de estabelecer as delimitações adequadas para o enquadramento das “novas ameaças à paz e à segurança”, dos métodos multilaterais para a “construção da paz” e das “metas do milênio” num I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO 13 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ todo maior, decorrente do final do século XX, e que a “Cultura da Paz” é capaz de absorver enquanto conceito e programa de ação. A escrita do primeiro capítulo é embasada, eminentemente, em obras de quatro autores – José Augusto Lindgren Alves, Norberto Bobbio, James Rosenau e Antônio de Aguiar Patriota – e em documentos produzidos pelo Secretariado das Nações Unidas – A Agenda da Paz, A Agenda do Desenvolvimento e o Suplemento da Agenda da Paz. O primeiro autor mencionado é responsável pela categorização das conferências convocadas pela ONU durante a década enquanto um “ciclo” e por destacar os direitos humanos enquanto elemento norteador desses debates. Norberto Bobbio, ao destacar a historicidade dos direitos humanos, contribui para o delineamento do cenário no qual os respectivos direitos são proclamados. James Rosenau fundamenta outras características identificadas ao término da Guerra Fria, como o “otimismo” e a tendência às normatizações, percepções estas que decorrem de uma abordagem histórica de pósguerras e de uma análise perspectiva do período em questão. Patriota discorre sobre a criação e a constituição do Conselho de Segurança das Nações Unidas, analisando como a Guerra Fria influenciou na composição e nos desdobramentos das ações do Conselho de Segurança. Já os documentos analisados permitem a avaliação tanto das intenções normativas da época, como das influências recíprocas entre a “Cultura da Paz” e as diretrizes das Nações Unidas após a Guerra Fria, ensejando os dados desejáveis à configuração do cenário internacional que propiciou a concepção da “Cultura da Paz” na década de 1990. No segundo capítulo, a ênfase recairá na construção do Programa de Ação da UNESCO e da ONU, e na explanação dos elementos que integram o conceito de Cultura de Paz, com a perspectiva analítica vinculada às condições históricas apontadas no capítulo anterior. A proposta desse capítulo, nesse sentido, é apresentar os processos de construção do programa de ação sobre a Cultura da Paz na UNESCO, de formulação do respectivo conceito e do transbordamento de ambos ao sistema das Nações Unidas, em programa(s) de âmbito global. Trata-se de uma dinâmica inversa à anteriormente empreendida: enquanto, no primeiro capítulo, as recorrências aos fluxos globais foram convergindo para uma instância central – a UNESCO, responsável pela idealização da Cultura da Paz –, no segundo capítulo eles partem dessa Organização, devolvendo um “feedback” ao sistema. I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO 14 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ A relação texto-contexto é o elemento norteador do segundo capítulo. Considerando que a idealização da cultura da paz resultou da convergência de concepções, estruturas e dinâmicas particulares da década de 1990, porém iniciadas a partir da criação das Nações Unidas, em 1945, o segundo capítulo vincula-se estreitamente ao primeiro. A ênfase, no entanto, recai na UNESCO e nas conferências internacionais que foram promovidas por essa Organização, a fim de que o processo de construção do programa da UNESCO, o conceito, a declaração sobre o tema pela Assembléia Geral das Nações Unidas e a proclamação do ano e da Década Internacional para a Cultura da Paz sejam relatados, analisados e contextualizados no todo que os envolve e com eles interage. A análise dos documentos será realizada com maior destaque neste capítulo, visto que os procedimentos burocráticos das respectivas Organizações proporcionam o adensamento analítico da pesquisa, mediante a percepção do funcionamento das estruturas em questão e as relações entre os Estados, refletidas em seus posicionamentos nessas instâncias multilaterais. Os documentos analisados consistem em resoluções e relatórios produzidos pela UNESCO, pela Assembléia Geral da ONU, pelo ECOSOC – Economic and social council – e pelo Conselho de Segurança, e nas memórias pessoais do Dr. David Adams, ex-funcionário da UNESCO que esteve envolvido no processo de criação e implementação do Programa Cultura da Paz. As “memórias” contribuem para o delineamento do processo em questão por consistirem em relatos de intenções e ações dos atores envolvidos na concepção da “Cultura da Paz”. As resoluções são fundamentais para que os dados extraídos das “memórias” sejam confrontados com os resultados “finais”, consideradas “oficiais”. Desse modo, faz-se possível uma análise mais consistente dos temas levantados. Não obstante, serão analisadas as plataformas de ação adotadas nas conferências realizadas pela UNESCO e pela ONU, de modo que os elementos relacionados à cultura da paz sejam identificados e devidamente explanados quanto à sua pertinência ao conceito em questão. O segundo capítulo apresenta uma estrutura paradoxal, visto que empreende, concomitantemente, a construção e a desconstrução do conceito de “Cultura da Paz”. A idealização e a consolidação da “Cultura da Paz” perfazem uma dinâmica demasiadamente burocrática e desprovida de sentido quando não associada ao contexto em que se insere; é justamente nesse procedimento que se estabelece a desconstrução do referido conceito, que visa, I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO 15 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ sobretudo, a uma abordagem holística das temáticas em pauta, capaz de enquadrar o acontecimento a seu momento histórico e de prover a “Cultura da Paz” de significado históriconormativo, no contexto em que se insere. O terceiro capítulo será dedicado à abordagem da díade paz e guerra e à comparação dos demais significados da paz com aquele resultante da formulação do conceito de “Cultura da Paz”. Além disso, serão analisadas as possíveis inovações trazidas pela “Cultura da Paz”, em termos de segurança internacional e métodos de resolução de conflitos, frente à dinâmica das relações entre os Estados e os entraves que possam ser identificados para a implementação da “Cultura da Paz”. O capítulo será dividido em três partes. Na primeira, será feita uma comparação entre os significados da “paz” mais “tradicionais” e aquele resultante da formulação do conceito de “Cultura da Paz”. Serão discutidos os conceitos de paz enquanto ausência de guerras e enquanto ausência da chamada “violência estrutural”, que ocorre sem que o estado de guerra seja proclamado; enquanto concepção jurídica, geralmente pós-bélica, e enquanto período de hegemonia de uma potência ou império – “pax”. Não obstante, serão examinadas as simbologias referentes à paz, de modo que as comparações entre os conceitos de paz sejam aprofundadas e que estes últimos sejam relacionados aos respectivos contextos nas quais estejam inseridos. Em segundo lugar, será empreendido um estudo comparativo entre os modos segundo os quais “paz” e “guerra” diferiram e se complementaram em diversos momentos históricos, para que seja possível verificar as particularidades da década de 1990 enquanto um período “pósguerra”. Não obstante, este capítulo tem por objetivo analisar a “Cultura da Paz” enquanto um método de prevenção e resolução de conflitos, à diferença de outros métodos em vigor. Trata-se de uma avaliação sobre as inovações da “Cultura da Paz” no tocante à resolução de conflitos e à sua relevância para a manutenção da segurança internacional. O terceiro e último objetivo deste capítulo é avaliar a distinção entre “Cultura da Paz” e “Cultura da Violência”. Embora consideravelmente comentada nas fontes analisadas e até mesmo nos meios de comunicação, a expressão “cultura da violência”, considerada vigente e, portanto, antinômica à da paz, que deve ainda ser instaurada, não consta na declaração das Nações Unidas sobre a “Cultura da Paz”. Sabe-se que isso se deveu a processos políticos entre o Terceiro e o Primeiro Mundo, evidenciados pelas análises das fontes. Nesse sentido, faz-se relevante avaliar o porquê dos referidos dissensos, frente a uma temática que é usualmente instrumentalizada para I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO 16 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ gerar consensos. Mediante as indagações: “qual é a paz que a ‘Cultura da Paz’ propõe” e “a quem ela é interessante”, faz-se possível discorrer, numa dinâmica tendente à conclusão, sobre o que, efetivamente, a Cultura da Paz apresenta como “inovação” e viabilidade, e sobre os possíveis entraves à sua execução em âmbito global. Os autores mais relevantes para a escrita do terceiro capítulo são Hans Morgenthau, Raymond Aron, Gastón Bouthoul, Nenneth Boulding, Norberto Bobbio Emmanuel Kant, Johan Galtung e Viçenz Fisas. Os seis primeiros autores mencionados proporcionam a concepção da paz enquanto ausência de guerra e manutenção de stauts quo. Johan Galtung, embora possua uma compreensão também “negativa” do conceito de paz, enquanto ausência de “violência estrutural” aproxima-se da “Cultura da Paz”, e da postura das agências das Nações Unidas em relação à paz, por associá-la ao bem estar no cotidiano das pessoas, não somente em períodos pós-guerras. Viçenz Fisas escreve sobre a cultura da paz, discutindo seus aspectos mais relevantes no que concerne à resolução de conflitos. Ao fundamentar a escrita da referida obra na “gestão” de conflitos mediante os pressupostos da “Cultura da Paz”, Fisas contribui sobremaneira para a reflexão concernente à aplicabilidade da “Cultura da Paz” em sociedades devastadas por conflitos, mediante as operações de “peace-building”. Trata-se, portanto, da dimensão “prática” que o conceito de “Cultura da Paz” abrange e que constitui, mais que seu próprio conceito, sua “raison d´être”. Na conclusão, os principais tópicos de cada capítulo serão sintetizados, de modo a contrastarem com a apresentação dos resultados verificados na análise das fontes quanto às iniciativas empreendidas na década de 1990. Trata-se de apontar intenções pretendidas, identificadas nas “draft resolutions” – resoluções que são encaminhadas para as sessões das instâncias multilaterais, para serem aprovadas –, deliberações efetuadas, mediante as resoluções, e os resultados obtidos, que constam nos relatórios periódicos das instituições estudadas. Resultados obtidos/esperados Ao longo do primeiro ano de pesquisa, o projeto inicial foi revisado. Tanto o objeto específico de estudo, quanto os objetivos e as fontes documentais, foram reajustados. O projeto inicial denominava-se “A Emergência da Concepção da Temática da Cultura da Paz da UNESCO I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO 17 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ no Cenário Internacional de 1989 a 1999”. De início, a abrangência da pesquisa contemplava a UNESCO, enquanto local de origem da concepção de “Cultura da Paz”, e não o sistema das Nações Unidas. Não obstante, objetivava-se analisar a “Cultura da Paz” enquanto um novo paradigma nos estudos da paz, o que, atualmente, não consideramos viável. Em terceiro lugar, pretendia-se analisar a primeira década a partir da queda do Muro de Berlim, marco do término da Guerra Fria e da realização do Congresso de Yamoussoukro, no qual a expressão “Cultura da Paz” fora, pela primeira vez, proferida no âmbito da UNESCO. No decorrer da pesquisa, constatou-se que a “Cultura da Paz”, de fato, emergira na UNESCO; no entanto, trata-se de um “feedback” ao sistema das Nações Unidas, e não uma concepção endógena isolada, que teria sido difundida ao sistema das Nações Unidas só depois de conceitualmente definida. Mais do que se supunha, o cenário internacional e o secretariado das Nações Unidas tiveram grande influência no delineamento da “Cultura da Paz” enquanto um processo que levou ao menos dez anos para se constituir conceitualmente e enquanto programas de ação. Ademais, trata-se de um possível método de resolução de conflitos, designado para ser implementado como parte integrante das operações de “construção da paz”, empreendidas sob o mandato do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Nesse sentido, o canário internacional, inicialmente evocado como subsidiário da concepção da temática, passou a ser considerado, juntamente com o secretariado das Nações Unidas, elemento fundamental à pesquisa, que induziu diretamente a criação da “Cultura da Paz”. A ênfase analítica, portanto, foi redirecionada da UNESCO para o cenário internacional e para o sistema das Nações Unidas. Assim como maior relevância foi atribuída ao contexto de criação da “Cultura da Paz”, o recorte temporal teve que ser estendido. À medida que o sistema internacional passou a revelar características particulares, passamos a buscar os momentos de origem e término desse período singular. Os resultados obtidos apontam para o ano de 1989, como início, e para o ano de 2001, como término da “década”. O recorte temporal, portanto, que, de início, fora escolhido enquanto análise da primeira década após a Guerra Fria, passou para o estudo do período entre os anos de 1989 a 2001, que denominamos “Década de 1990”. A inclusão dos anos 2000 e 2001 é fundamental para que o esmorecimento do otimismo que norteou a busca pela paz e pela multilateralidade durante a década de 1990 seja devidamente explanado. No interior do sistema das Nações Unidas, esses anos são importantes para a pesquisa I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO 18 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ pelas seguintes razões: o ano 2000 foi proclamado, pela Assembléia Geral, como “Ano da Cultura da Paz” e a década de 2001 a 2010, como a “Década da Cultura da Paz e Não Violência para as Crianças do Mundo”. Não obstante, as Metas do Milênio, proclamadas no ano 2000, constituem uma síntese dos acontecimentos da década estudada, não devendo, portanto, ser omitidas. Apesar de não ser nossa intenção analisar a “Década da Cultura da Paz”, faz-se imprescindível à presente pesquisa o estudo do processo que levou à sua proclamação. Fora do âmbito da ONU, a inclusão do ano de 2001 justifica-se com os ataques às Torres Gêmeas em Nova Iorque e com a Conferência de Durban sobre o racismo. Os ataques encerram o período de otimismo exacerbado e do multilateralismo, que caracterizaram a década de 1990. A Conferência de Durban consiste na última das conferências que discutiram a “normatização” das temáticas sociais pelas Nações Unidas, a fim de que as metas desejáveis para o século XXI fossem delineadas. Quanto às fontes documentais utilizadas, o projeto inicial previa uma densa análise das memórias pessoais do Dr. David Adams, ex-funcionário da UNESCO que atuou no processo de construção da “Cultura da Paz”, para a consecução dos objetivos da pesquisa. Percebeu-se, contudo, que o caráter subjetivo das memórias, apesar de constituir um importante elemento analítico, deveria ser confrontado com fontes de caráter oficial das Organizações estudadas. Foram incluídos, nesse sentido, entre as fontes documentais, relatórios e resoluções provenientes do secretariado das Nações Unidas, da UNESCO, do “Economic and Social Council” (ECOSOC) e do Conselho de Segurança. Nesse sentido, as intenções dos atores, que podem ser vislumbradas nas “memórias”, contrastam-se ou se confirmam nos resultados finais do processo em análise, consubstanciando-se, ou não, nas declarações publicadas pela ONU e pela UNESCO. A pesquisa, portanto, ao mesmo tempo em que teve seu escopo ampliado, teve seus objetivos melhor delineados, com informações documentais mais complexas e fundamentadas nos posicionamentos oficiais das Organizações acerca dos fatos em questão. Em relação às fontes bibliográficas da pesquisa, a pesquisa foi aprofundada no que concerne à paz, de modo a tornar possível, nas convergências dos sub-temas, o esclarecimento da singularidade do assunto principal – a Cultura da Paz –, assim como das atribuições da UNESCO, assunto principal de alguns documentos oficiais selecionados como fontes à pesquisa. Nesse sentido, foi implementada uma busca dos significados histórica e culturalmente já I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO 19 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ atribuídos à paz, de modo a precisar o termo em questão e melhor delinear seu escopo nas relações internacionais do período estudado (1989 a 2001). Em outras palavras, foram analisados os possíveis significados da paz em seus respectivos contextos históricos para que, em seguida, as características e singularidades da paz que a unesco se propôs a “cultivar” na década em questão fossem avaliados. Desde a paz Kantiana às “tréguas” do Realismo, passando pela paz do cristianismo, do islamismo, à “Pax” Romana, à antítese da guerra, e à antítese da violência “estrutural”, como Johan Galtung define o termo, o enfoque delineado à “cultura de paz” realmente é o que apresenta alguns nuances diferenciados, pois refere-se a um construto, e não a uma díade com fatores opostos, um período momentâneo, ou até mesmo um objetivo inatingível. Contudo, uma das perspectivas estudadas que mais apresenta relevância ao tema é o da “paz democrática”, visto que, nessa concepção, a paz deriva-se da cultura e das normas intrínsecas à democracia. Essa abordagem é fundamental para a pesquisa, pois se relaciona diretamente com a segurança internacional do período pós-Guerra Fria, constituindo, em última instância, o carro-chefe da política externa dos Estados Unidos desde então. Além disso, os proclamados valores liberais que se instauram no cerne da teoria da paz democrática coincidem com a proposta da cultura da paz: a resolução não violenta de conflitos, ou seja, o diálogo, a tolerância e o bem-estar, fatores que, na doutrina liberal, constituiriam as aspirações universais, tornando os Estados que dela se valessem “confiáveis”, céticos a qualquer predisposição ao conflito bélico. Tendo essas características preliminares em mente, prevê-se, em relação às fontes biliográficas, uma análise elaborada sobre a relação desse modo de considerar a paz (democraticamente) com os pressupostos elaborados pela UNESCO que dizem respeitos à Cultura da Paz. Conclusão A “emergência” e a “evolução” do conceito de cultura da paz, nos locais e momentos em questão, foi possível mediante uma confluência de fatores. Em primeiro lugar, verifica-se a unanimidade dos documentos quanto aos fatores conducentes à cultura da paz: o fim da Guerra I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO 20 EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007 ______________________________ Fria – ou seja, o contexto histórico –, e o documento An Agenda for Peace, que conclamou as Nações Unidas às atividades de “peacebuilding”. Em segundo lugar, a análise das fontes permite-nos concluir que, além desses elementos principais, outros fatores podem ser considerados ao referido fim: as Agendas da UNESCO e da ONU e, numa perspectiva construtivista, o posicionamento dos Estados nos fóruns multilaterais do período, a exemplo das Conferências Internacionais da década de 1990, e os esforços de indivíduos que souberam aliar novas maneiras de pensar e agir às demandas que o momento apresentava. O ex-diretor geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali, que redigiu a “Agenda da Paz”, o ex-diretor da UNESCO, Federico Mayor, que se engajou plenamente na causa da cultura da paz, e os ganhadores do Prêmio Nobel da Paz, que se mobilizaram em prol de iniciativas para a paz, são exemplos desse elemento de análise. A UNESCO e a ONU, diante das transformações em curso na década de 1990, traduziram a necessidade de abordagens diferenciadas às questões de paz e segurança internacional a essas “demandas” que o fim da Guerra Fria engendrou. Tanto as questões de segurança, quanto as comunicações, a tecnologia, e as relações internacionais, de modo geral, em outras palavras, as maiores possibilidades de cooperação os diferentes arranjos geopolíticos e as mudanças das características dos conflitos serviram como instrumento para a formulação, disseminação e objetivos da cultura da paz. O êxito da formulação desse conceito, portanto, recai sobre as necessidades e os objetivos vislumbrados para o século XXI, ancorados nas demandas que o cenário internacional apresentou às iniciativas humanas e à atuação das instituições nacionais e internacionais.