UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Pretos-velhos: Oráculos, crença e
magia entre os cariocas.
Mônica Dias de Souza
Rio de Janeiro
2006
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Pretos-velhos: Oráculos, crença e
magia entre os cariocas.
Mônica Dias de Souza
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia
do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Ciências Humanas
(Antropologia Cultural).
Orientadora: Yvonne Maggie
Rio de Janeiro
Dezembro de 2006
Pretos-velhos: Oráculos, crença e magia entre os cariocas.
Mônica Dias de Souza
Orientador: Profa. Dra Yvonne Maggie
Tese de Doutorado apresentada ao programa de Pós-graduação em Sociologia e
Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
Ciências Humanas (Antropologia Cultural).
Aprovada por:
Presidente, Profa. Dra.Yvonne Maggie
Profa. Dra. Diana Degroat Brown
Profa. Dra. Monique Rose Aimée Augras
Prof. Dr. Emerson Giumbelli
Prof. Dr. Marco Antônio Silva Mello
Professor Dr. Marco Antônio Gonçalves (Suplente)
Profa. Dra. Mônica Grin Monteiro de Barros (Suplente)
Rio de Janeiro
Dezembro de 2006
ii
ABSTRACT
Pretos-velhos: Oracles, belief and magic amongst cariocas.
Mônica Dias de Souza
Advisor: Professor Yvonne Maggie
This thesis starts from the following question: What does the divinization of slaves in the
contemporary rites in which the pretos-velhos are worshiped mean? To understand the reason
why the slaves are divinized currently, in public and private rites, a detailed ethnography of
rituals which practice the devotion to the pretos-velhos as well as an analysis of the
representations of the participants of such rituals have been made.
The cult to the pretos-velhos refers to contemporary narratives from captivity, being a
symbol which sustains several understandings about the Brazilian slavery and updates their
meanings through religious rituals. The pretos-velhos are recognized as “spirits of slaves” and
entities worshiped in umbanda. The cult is part of the Brazilian popular culture, present in
different religions of the spiritist field. Therefore, I have observed rituals in the barquinha, in
candomblé houses, in umbanda, in groups who follow Alan Kardec’s doctrine and in the arca.
The presence of the pretos-velhos is not limited to the public religious universe, they are
worshiped in private rites, which is an aspect which demonstrates the strength of the practice of
the umbanda and the religious modeling, which present new traits of this cult. Their presence in
this private sphere reinforces the sense of familiarity which such entities represent, since they are
named by the vocatives “father”, “uncle”, “aunt”, “grandmother”, expressing consanguinity
bonds which strengthen the ties between the entity and their devotee.
In this work we have verified that the devotion to the pretos-velhos reflect the social
construction of the national identity, implied in the pertinence of recovering the affinity with
captivity. Finally, one asks to what extent this identity, built up in this field and which affects
people from all ranks, is being substituted by another conception of slavery, of being black and of
nation. This last question will certainly demand further work in order to be better answered.
Keywords: religious rites, preto-velho, slavery, umbanda, barquinha, arca.
Rio de Janeiro
December, 2006
vii
RESUMO
Pretos-velhos: Oráculos, crença e magia entre os cariocas.
Mônica Dias de Souza
Orientadora: Profa. Yvonne Maggie
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
Ciências Humanas (Antropologia Cultural).
Esta tese parte da seguinte pergunta: O que significa a divinização de escravos nos ritos
contemporâneos em que se cultuam os pretos-velhos? Para compreender por que motivo os
escravos são divinizados na contemporaneidade, em ritos públicos e privados, além de detalhada
etnografia de rituais que praticam a devoção aos pretos-velhos, foi também feita uma análise das
representações dos participantes desses rituais.
O culto aos pretos-velhos remete a narrativas contemporâneas do cativeiro, sendo símbolo
que sustenta múltiplos entendimentos sobre a escravidão brasileira e atualiza seus significados
através de rituais religiosos. Os pretos-velhos são reconhecidos como “espíritos de escravos” e
entidades cultuadas na umbanda. O culto faz parte da cultura popular religiosa brasileira, estando
presente em diferentes religiões do campo espírita. Por este motivo, observei rituais na barquinha,
em casas de candomblé, na umbanda, em grupos que seguem a doutrina de Alan Kardec e na arca.
A presença dos pretos-velhos não está restrita ao universo religioso público, é cultuado em ritos
privados, sendo este um aspecto que demonstra o vigor da prática umbandista e das modelações
religiosas, que apresentam novas faces deste culto. Sua presença neste âmbito privado reforça o
sentido de familiaridade que tais entidades representam, pois são nominadas pelos evocativos de
“pai”, “tio”, “tia”, “avó”, expressando vínculos de consangüinidade que fortalecem os laços entre
o ente e seu devoto.
Neste trabalho constatamos que a devoção aos pretos-velhos reflete a construção social da
identidade nacional, implicada na pertinência de resgatar a afinidade com o cativeiro. Finalmente,
pergunta-se em que medida esta identidade – construída nesse campo e que afeta pessoas de todas
as classes , – está sendo substituída por outra concepção de escravidão, de negro e de nação. Esta
última questão certamente demandará trabalhos futuros para ser melhor respondida.
Palavras-chave: ritos religiosos, preto-velho, escravidão, umbanda, barquinha, arca.
Rio de Janeiro
Dezembro de 2006
vi
Dedicatória:
Para Marcos Vinicius, Ana Clara e André.
Da alma ao coração!
iii
Agradecimento
Se dívida tivesse não teria como pagá-la. Este espaço é quadro de recordação e
condecoração. Aviso antecipadamente: a memória é falha e sou piegas. Aprendi neste estudo a
amar mais, exercício pleno que distrofia qualquer coronária entupida com excessos de
racionalismos. Envolvi-me com receios com aqueles os quais denominamos “informantes”, mas
não segurei essa situação por muito tempo. Portanto, Marcílio e Cristina com seus filhotes foram
amigos para toda hora. Pai Antônio e Roberta, da Cabana de Pai Thomas de São Paulo,
mantiveram-se sempre próximos, ligando e escrevendo com freqüência. Agradeço a delicadeza
de Victor Sahate, que colaborou com falas e fotos. A todos os membros da barquinha,
principalmente Andréa, Cléa, Alessandra e Alex. Pela gentileza e amizade de Fortunato, Aninha e
Fernando, membros da estimada “sociedade”.
Agradeço às entidades que dispensaram seu tempo contando suas histórias e, ao seu
modo, cuidando para que “tudo desse certo”. Meus agradecimentos ao Pai Benedito (Tenda
Nossa Senhora da Piedade), à vovó Catarina (rito doméstico), ao Pai Jacinto da Figueira
(barquinha) ao Pai Tomás e ao Caboclo das Sete Matas (Cabana de Pai Tomás – São Paulo).
Tenho uma família m a r a v i l h o s a! Todos estavam atentos a qualquer situação que
pudesse ser interessante para o meu trabalho. Sou grata especialmente a Dida, pois trouxe
histórias de lugares em que certamente eu teria dificuldade de entrar e tomar ciência de tantos
detalhes; e a Eniete, que em muitas situações fez meu papel de mãe para que eu pudesse estudar.
Salvo a minha mãe e meu pai (in memorian), pois sempre foram incentivos permanentes. À
querida Izabel, cuidadora de minha casa e de mim mesma. Declaro e eternizo meu amor e
gratidão.
Agradeço a professora Yvonne Maggie, minha orientadora, pelo seu esforço em tornarme antropóloga. Ensinou-me a observar os “rituais” através dos ritos cotidianos. Seu empenho
em entender a sociedade brasileira e aplicar seus conhecimentos para a promoção de uma
sociedade mais democrática é incentivo inenarrável. Ao professor Peter Fry (UFRJ), que
acompanhou grande parte do processo de produção desta pesquisa, lendo o material e indicando
alguns caminhos a seguir. Ao professor Marco Antônio da Silva Mello (UFF): honestidade, rigor
e paciência ontológicos. Mello compartilhou de idéias e sentimentos, valorizando-os, tornandome uma neófita na antropologia. À professora Antonádia Borges (UNB), que estimulou novas
iv
modalidades de narrativa antropológica; e a Rosilene Alvim (UFRJ), que apresentou as múltiplas
facetas do ofício do antropólogo.
Neste percurso, entre cursos e correrias pelos corredores da universidade, algumas
pessoas se tornaram companheiras. Sou grata aos meus amigos do doutorado. A Alexandre
Fernandes (UFMA), recém pós-doutor que, como amigo, escutou e incentivou os devaneios.
Agradeço à minha querida amiga Andréa Lage, que aplacou minha solidão da escrita, chamo-a de
companheira de “barco”: Saravá sua banda! Ter conhecido Momo Nakagawa, antropóloga
japonesa, que pesquisa religiosidade no Brasil, fez toda a diferença: através de seu olhar vi o que
não via, senti e pensei coisas diferentes do que considerava bastante “natural”.
Minha cabeça foi feita em etapas: por leituras; pelo Borí de Marcos de Yemonjá; pelo
Daime da barquinha e da arca; e finalmente pela psicanálise de Daniel Chutorianscy. Daniel foise tornando amigo. A leitura de seus textos e sua leitura dos meus foram o tempero que faltava à
minha sopa de letrinhas.
Alguns diálogos com amigos foi luz na escuridão. Especialistas de outras áreas, como
minha amiga Rejane Moreira, da Teoria da Comunicação, Johnny Alvarez, da psicologia e
Marcus Vinicius Marques Ferraz, da Educação. Especialmente Vinicius, que escutava meus
devaneios com muita paciência. Simplesmente amo vocês.
Reconheço a importância de minhas amigas do Colégio Estadual Alcina Rodrigues:
Edwiges, Sussu, Mônica, Carolina e Esmeraldinha: que acolhida e carinho! São eternas musas
para minha vida. Sou grata aos meus alunos, que pacientemente me ouviram e me auxiliaram em
algumas etapas da pesquisa.
Agradeço imensamente a Luiz Fernando Gualda Pereira - sua contribuição está em cada
linha revista deste trabalho. Mãos hábeis e cabeça de poeta: Namastê!
Sou grata ao CNPQ, pelo investimento nesses anos de pesquisa.
Agradeço às “meninas” da secretaria da pós-graduação, Claudinha e Denise, pela
paciência e delicadeza no tratamento dispensado aos alunos.
Registro meu agradecimento aos meus filhotes. Nesse percurso tive um filho: André,
que hoje aos três anos entende perfeitamente quando estou estudando, faz concessões com a
ausência, mas não muita. Já a Ana Clara, com seus dez anos, me enche de alegria e orgulho:
comenta, quer conhecer, ajuda, acompanha, entende, dá colo nos momentos de inversão de
papéis, entristece junto e torce muito, muito mesmo.
v
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................p.1
CAPÍTULO 1: MAGIA URBANA......................................................................................p. 23
1.1 Ponto de referência.........................................................................................................p.23
1.2 Crença de muitos credos................................................................................................p.24
1.3 Oráculos cariocas............................................................................................................p.27
1.4 O caso de uma telefônica multinacional-carioca..........................................................p.37
1.4.1 A respeito do caso..............................................................................................p.41
1.5. Arranjos religiosos.........................................................................................................p.43
CAPÍTULO II: PRETOS-VELHOS: EM TRÂNSITO PELAS INSTITUIÇÕES.......p.51
2.1. Espaços sagrados, escravos sagrados...........................................................................p.51
2.2 Uma engrenagem: a umbanda da Tenda Nossa Senhora da Piedade........................p.53
2.2.1 A peça em Umbanda: Zélio de Morais..........................................................p.56
2.2.2 Montando tal engrenagem.............................................................................p.58
2.2.3 O ritual das fitas: configuração do além......................................................p.61
2.2.4 Festa de preto-velho na Tenda Nossa Senhora da Piedade.........................p.63
2.2.5 Sem saída – parte 1: A quem seguir?...........................................................p.68
2.2.6. Outras configurações....................................................................................p.70
2.3 Barquinha: Delírio lírico.................................................................................................p.72
2.3.1 Mestre-fundador: Daniel, o Venturoso.........................................................p.72
2.3.2 Centro Espírita e Obras de Caridade Príncipe Espadarte............................p.78
2.3.3 Festa de pretos-velhos na Barquinha............................................................p.84
2.4 Sobriamente de nação: uma casa Ketu..........................................................................p.88
2.4.1 A “África” em Niterói.....................................................................................p.89
2.5 Grupo Espírita Servidores de Jesus...............................................................................p.94
2.5.1 Sessão com Dr. Fritz.......................................................................................p.96
2.5.2 Preto-velho: aconselhamento e água fluidificada.........................................p.101
2. 6 Associação de Medicina e Espiritismo do Rio de Janeiro...........................................p.104
2.7 Pai Jair de Ogum e a festa de Preto-velho......................................................................p.108
2.8 Ritos de consulta.............................................................................................................. p.114
2.9 Tecendo os fios................................................................................................................. p.116
viii
CAPÍTULO III: A MAGIA DA “ESCRAVIDÃO”.............................................................p.119
3.1 Elaboração de uma performance.....................................................................................p.119
3.2 Pretos-velhos: divino, escravo e parente.........................................................................p.122
3.3 Configurações contemporâneas da escravidão brasileira.............................................p.127
3.4. Pretos-velhos: espírito de escravo, espírito da escravidão............................................p.131
3.5 Panfletários: os divulgadores da representação da escravidão.....................................p.135
3.6 Pretos – velhos: humildade e cordialidade......................................................................p.141
3.7 Finalizando a performance “escrava”.............................................................................p.152
CAPÍTULO IV: “ENTIDADES-SUJEITO” E SUAS TRAJETÓRIAS. ..........................p.156
4.1 Pré-texto: sobre nomes e narrativas................................................................................p.156
4.1.1 Pai Antônio – Tonico da Vila. ............................................................................p.158
4.1.2 Pai Antônio..........................................................................................................p.159
4.1.3 Pai Joaquim.........................................................................................................p.160
4.1.4 Pai Benedito.........................................................................................................p.160
4.1.5 Vovó Palmira e Pai Cristiano. ............................................................................p.161
4.1.6 Vovó Moema........................................................................................................p.163
4.1.7 Vovô Chico das Canárias....................................................................................p.164
4.2 Ser ou não ser: perfis coletivos e identidade pessoal......................................................p.165
4.3 Identificação pelo ponto riscado e a fama do nome.......................................................p.171
4.4 Cantando pra subir: paisagens sonoras..........................................................................p.175
4.4.1 Pontos cantados...................................................................................................p.175
4.4.2 Pontos e hinários na barquinha..........................................................................p.184
4.5 Vozes do além: documentos mediúnicos.........................................................................p.187
4.6 Você conhece esta imagem? .............................................................................................p.192
CAPÍTULO V: RITOS PARTICULARES E TRAJETÓRIAS INDIVIDUAIS...............p.199
5.1 Prévia das narrativas........................................................................................................p.199
5.2 Ritos íntimos......................................................................................................................p.201
5.2.1 Caso Marcos......................................................................................................p.202
5.2.2 Vovó “Tijucana”: ruptura de laços com uma casa de Umbanda.....................p.206
5.2.3 Preto-velho em Botafogo: entidade cuidando da casa....................................p.207
5.2.4 Outras relações: “jeitinho” e outros paradigmas...........................................p.208
5.3 O Rito da Arca da Montanha Azul..................................................................................p.214
5.4 Em busca de um lugar dentro de si..................................................................................p.220
5.5 Diálogos finais....................................................................................................................p.223
CONCLUSÃO.........................................................................................................................p.227
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................p.232
ANEXOS:
1. Glossário..................................................................................................................p.239
2. Hino da umbanda....................................................................................................p.248
3. Imagens ...................................................................................................................p.249
ix
INTRODUÇÃO
Esta tese propõe uma reflexão sobre o culto aos pretos-velhos, considerados entidades
espirituais em ritos religiosos e objeto de devoções particulares. Acredita-se que sejam espíritos
de escravos que dominam o conhecimento da magia, uma das habilidades que determinam sua
função ritual. A atuação dessas entidades nos cultos espíritas remonta à história da origem da
umbanda, religião que por princípio desvincula-se do kardecismo para inaugurar uma modalidade
religiosa, que incluía os espíritos dos pretos-velhos e dos caboclos, pensados como descendentes
dos indígenas brasileiros (Brown, 1986).
A figura dos pretos-velhos como curandeiro e contador de histórias sempre me foi
familiar. Esta compreensão vinha, sobretudo, do caráter folclórico do negro, divulgado, por
exemplo, nas histórias infantis contadas por Monteiro Lobato. Através de um de seus
personagens, Tio Barnabé, é sugerida a idéia de que os pretos-velhos eram exímios conhecedores
das ervas e dos mistérios da natureza 1 . Foi em decorrência da pesquisa de mestrado em História 2 ,
sobre a escrava Anastácia, que surgiram as primeiras indagações aqui presentes. Na ocasião,
intrigava-me o fato de haver um culto a uma escrava. A Igreja do Rosário e de São Benedito dos
Homens Pretos no Rio de Janeiro foi um dos núcleos de sua devoção, considerado como espaço
onde surgiu sua principal hagiografia, apresentando-a como uma figura aguerrida e milagreira.
Através do contato com membros da Irmandade do Rosário, conheci a confluência
religiosa. Havia irmãos que praticavam ou transitavam por outras religiões, dos quais alguns
disseram pertencer à “umbandomblé”, uma junção da umbanda com o candomblé. Anastácia que
até então tinha, aos meus olhos, uma conotação de mártir negra, quase Joana D’Arc dos trópicos,
foi ganhando contornos mítico-religiosos. Nesta nova vertente, encontrei pessoas que, em transe,
se comunicavam com ela, pois se tornara uma “preta-velha”. Numa incursão a um templo 3
dedicado ao seu culto, em Vaz Lobo, encontrei imagem da escrava junto a mais de trinta
estatuetas de pretos-velhos. Entre outros acontecimentos semelhantes, foi-se configurando um
culto sistemático a escravos, cujo significado, na ocasião, constatei de modo parcial.
No culto aos pretos-velhos, acredita-se que espíritos de escravos se apoderam dos corpos
de pessoas iniciadas neste universo religioso e por elas transmitem recados de entes queridos,
1
Este exemplo além de compor minha memória em particular, foi expresso por alguns de meus informantes.
Dissertação defendida no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, intitulada “Escrava
Anastácia: Memória e Identidade da Irmandade do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos”.
3
Os ofícios religiosos eram mantidos por um clérigo da Igreja Católica Brasileira.
2
1
fazem predições, curam doenças e utilizam a magia para diversas finalidades. De modo geral, é
constantemente relacionado a “espírito de escravo” e, nesta condição, histórias sobre sua vida
sempre envolvem o universo do cativeiro. Mesmo quando se comenta que o preto-velho não foi
escravo, diz-se que se apresenta como tal e esta representação cumpre também uma função.
Assim, o cativeiro rege o culto aos pretos-velhos, sendo mote de suas cantigas, a
inspiração para suas vestes rituais, servindo também para a encenação corporal e marco para
homenageá-los. Lembro que se comemora o “Dia dos pretos-velhos” junto à celebração da
libertação do cativeiro: 13 de maio 4 . Geralmente, naquela data, os centros religiosos dedicam o
rito para as entidades, preparando-lhes uma feijoada. Participei de algumas festas em que a
comida era servida em folhas de bananeira, procurando assemelhar-se aos costumes do passado
daquele cativeiro idealizado. Também há casos de devotos que prestam sua devoção oferecendolhes a feijoada ritual em suas casas, acompanhada de amigos, ao som do batuque do samba,
construindo-se, assim, uma composição tomada de significações que expressam “coisa de preto”
ou “coisas do tempo da escravidão”, como ouvi dizer. A feijoada, originalmente tratada como
comida típica dos escravos, a partir de sobras das carnes preferencialmente utilizadas nas
comidas dos senhores e reaproveitadas na alimentação da escravaria, tornou-se ao longo do
século XX um símbolo da cultura brasileira, apresentada como prato “típico” de nossa culinária.
A mudança do status desta iguaria, numa conversão de símbolo da negritude para tornar-se
“nacional”, compreende um modo de ver e ser do povo brasileiro, como identificou Peter Fry
(2001). Por tal motivo, é bastante sugestivo que seja um símbolo recorrente no culto aos pretosvelhos.
A associação dos pretos-velhos com o cativeiro promoveu estudos anteriores que
procuraram analisar sua instituição, junto à umbanda, como fenômeno que inaugurava a
formação da identidade brasileira. Este contexto abarcava ainda a figura do indígena e do
colonizador português, gerando uma mistura de costumes, que promovera uma convivência
harmoniosa na sociedade brasileira. Contribuiu para essa concepção a idéia de que o preto-velho
representava o escravo dócil e aculturado, em oposição à existência de escravos que mantiveram
suas culturas de origem, conservando, por exemplo, a prática religiosa de seus antepassados,
cristalizada nos candomblés contemporâneos. Embora vigore também a representação do culto
4
Micênio dos Santos (1991) fez uma cuidadosa investigação sobre a comemoração dos dias 13 de maio e 20 de
novembro a partir da memória do cativeiro, que implica, na atualidade, na construção de símbolos raciais e
nacionais.
2
aos pretos-velhos como sobrevivência de antigas práticas africanas de culto aos ancestrais, o rito
de Umbanda em que figura como um dos elementos principais foi interpretado como degradação
das tradições africanas, como disse Ortiz (1999) em: “A morte branca do feiticeiro negro”.
Sem dúvida este é um culto aos escravos, interessando, portanto, compreender sua
significação dentro e fora do ritual. É um símbolo vivo que expressa os modos de ser e ver
contemporâneos. Sua figura aglutina idéias e sentimentos que procurei interpretar no decorrer das
unidades apresentadas neste trabalho, apoiada, sobretudo, na perspectiva teórica de Victor Turner
(2005) de símbolos e rituais, que consiste nas interpretações constituídas pelos grupos sociais na
resolução de variados problemas cotidianos através do rito, pensado como espaço que produz
experiência para a vida.
Para grupos religiosos e não religiosos, na interpretação sobre “pretos-velhos”
predominou o significado de escravos. Nesta significação estão alocadas referências ao passado
histórico que remete à idéia de sofrimento e exclusão social, itens ideológicos deste símbolo. A
conduta dos pretos-velhos no cativeiro é compreendida num leque de variáveis, entre elas o
entendimento de que conseguiram criar uma harmônica convivência com a classe senhorial, por
serem em parte responsáveis pela doutrinação dos escravos mais jovens, e produtores de
benefícios medicinais e mágicos que promoviam curas tanto na senzala quanto na casa-grande,
além de as mulheres (pretas-velhas) serem hábeis parteiras.
O fato de se terem tornado idosos, num ambiente hostil de exploração do trabalho, é
interpretado como fruto de sua sabedoria em administrar adversidades, o que, para alguns, advém
de sua fé na força de seus ancestrais e em suas divindades. Este é o panorama predominantemente
reforçado pelo símbolo. A partir de tal compreensão, guardadas inúmeras variantes dentro dessa
estrutura-base, surgem as motivações de ordem emocional. Nelas o cativeiro é significante para a
compreensão do sofrimento experimentado no cotidiano, interpretado como sensações de
aprisionamento, ausência da possibilidade de escolhas e, por vezes, semelhantes à sua vida de
trabalhador. Dentro deste contexto, os pretos-velhos representariam a possibilidade de os
escravos sobreviverem à sua luta, pedindo-se, portanto, aos pretos-velhos que lhes garantam
atributos como a paciência, a humildade, a sabedoria, a capacidade de conciliar-se e a resolução
dos conflitos de forma harmoniosa. Por acreditarem que suportaram o sofrimento do cativeiro
sem terem perdido a fé em Deus, recorrentemente o procuram a fim de manterem viva sua
3
própria fé, para que, diante de seus problemas, não se perca a dimensão do sagrado em suas
vidas.
Nesta particularização, alguns devotos faziam questão de afirmar que, embora cuidassem
da entidade, não tinham com ela nenhum vínculo religioso. Diante dessas variáveis, dos sentidos
que lhes são atribuídos e de seu uso, o significado que perpassa e predomina em todas as
modalidades e locais de culto é a sacralização da figura do “escravo”. Esta persistência configura
a principal questão que a pesquisa visa compreender.
Se a princípio o culto dos escravos enquanto “pretos-velhos” estava restrito à umbanda,
o panorama atualmente é outro, o que amplia consideravelmente sua eficácia simbólica. Aqui nos
interessa especificamente o fato de que, dentro e fora do ambiente religioso, agora mais
multiforme, manteve-se a configuração original de escravo, evidenciando-se um contexto
favorável para o uso simbólico do “escravo” e do “cativeiro”.
A pergunta que vou tentar responder nesta tese é: por que divinizar esses elementos num
culto contemporâneo?
Em minha dissertação, fui tomada de impacto por reconhecer um culto a uma escrava; os
pretos-velhos, em categoria coletiva ou individualizados com suas nomeações pessoais,
ampliaram consideravelmente a existência de uma forma sistemática e estrutural na crença nos
poderes dos “escravos” e na magia da “escravidão”.
Encontram-se comumente pretos-velhos femininos e masculinos que recebem nomes
populares, sendo os mais comuns “Maria”, “João”, “Francisco” ou “Francisca” em abreviações
como “Chico” ou “Chica”. Na maioria das vezes o nome é acompanhado de um prenome
evocativo como “pai”, “vô”, “vó”, “tia”. De certo, esta forma de nomeação os apresenta com
categoria como, por exemplo, “vovôs” e “vovós” da umbanda. Há casos de combinação do nome
com o lugar de origem, como por exemplo, “Pai Benedito de Aruanda”, “Tia Rosa da Bahia” ou
“vovó Cabinda”. Este lugar pode ser uma referência a sua “morada espiritual”, “Aruanda”, sua
procedência africana, “cabinda”, ou, onde habitava enquanto vivia, “Bahia”. Agrupadas, esta
estrutura nominativa constitui a formação simbólica dos pretos-velhos, como categoria de
espíritos que atuam irmanados como se pertencessem a uma mesma “nação”. As nomeações
parentais, além de sua localização de origem, contribuem para instituir a persona “preto-velho”,
4
sendo indexador de valores e significados. Na figuração central de “Pai”, combina o arquétipo5
do provedor, protetor e instrutor à representação social da “mãe” que também protege, alimenta e
ensina. Além disso, podem ser “avós” e “tios”, que representariam a brandura e a permissividade.
Junto aos nomes, a linguagem que utilizam para a comunicação é sua “marca identitária”, que
permite seu reconhecimento fora das esferas ritualísticas religiosas. Num dialeto próprio, os
pretos-velhos se comunicam num tom gutural com os que o procuram, com palavras que
lembram antigos moradores da zona rural, sendo por vezes necessário alguém para interpretar
suas palavras.
Nome e linguagem servem como mediadores do significado dominante: o
pertencimento à categoria “cativo”. Cumprem a mesma função as imagens vendidas em lojas de
artigos religiosos, a vestimenta e a performance dos médiuns no rito religioso. As imagens
pintadas em gesso apresentam-nos como idosos curvados pelo peso de sua idade. Estátuas e
gravuras estampam figuras de pele escura e cabelos brancos. Na cabeça das mulheres, um lenço.
Ao redor do pescoço, cordões de contas ou o terço, que também pode aparecer em suas mãos.
Alguns são representados com cachimbo nas mãos. Em boa parte dessas imagens, os pretosvelhos aparecem sentados num tronco de árvore, conhecido como “toco”. Estas representações
são seguidas em boa parte dos templos religiosos. Os médiuns, responsáveis pelo contato com as
entidades através do transe 6 , usam roupas brancas; geralmente as mulheres vestem saias ou
vestidos; e os homens, camisa e calça. No momento inicial após a “incorporação”, algumas
mulheres costumam amarrar o cabelo com um lenço branco ou xadrez em preto e branco
(descrito como símbolo dos pretos-velhos), enquanto os homens têm suas calças dobradas acima
da canela. Neste momento ritual, cada preto-velho é levado para sentar-se no seu banquinho ou
“toco”. Alguns, logo a seguir, recebem um cachimbo e cachaça, numa cuia feita de cabaça ou
coco.
Como disse, os nomes, as vestes, as cantigas, o cachimbo e o banco cujo nome relembra o
toco de árvore (acredita-se que seus ancestrais sentavam-se aí para contar as histórias dos
antepassados) são elementos que contribuem para reforçar o vínculo da entidade com o
significado de escravo. Mas é propriamente no rito que a “escravidão” surge como um modelo
referencial que abriga a entidade. Em diversos momentos, as canções, a dança e as falas dos
5
O sentido de arquétipo refere-se a noção que o senso comum imprime sobre esses termos. Não os relaciono aos
conceitos junguianos de estrutura psíquica.
6
Essa comunicação é denominada por “incorporação” pelos médiuns. Algumas vezes utilizo o termo nativo.
5
participantes, lideranças e médiuns relembram o tempo do cativeiro. Na cerimônia, o tempo
imemorial se materializa, numa combinação que produz e reforça os efeitos ideológicos e
emocionais do símbolo.
O campo religioso é multiforme e, a partir desta composição, compreendi sua
“porosidade” na acepção de Pierre Sanchis (2001: 25): “Uma pluralidade sistemática marca a
sociogênese do Brasil, logo traduzida em porosidade e contaminações mútuas. Nem
multiculturalismo, nem justaposição, nem confusão e supressão das diferenças”. Observando a
força simbólica dos pretos-velhos e sua circulação em muitos rituais do campo religioso, pude
comprovar tal porosidade. Evidentemente, os grupos religiosos mantêm suas fronteiras com
dogmas, doutrinas, valores e ritos distintos, entretanto, algumas modalidades de crença são
circulares, pois são de intensa circulação, produzindo um efeito de largo alcance. Assim, por
considerar a pertinência do sentido de “fronteiras porosas”, percebi que o culto aos pretos-velhos
tinha enorme circularidade.
Neste sentido, grupos com matriz religiosa kardecista, que evitam o trabalho espiritual
com os pretos-velhos, lançam mão de se manterem exclusivamente “kardecista” para
operacionalizarem ritos com tais entidades.O fato de alguns grupos espiritualistas, como os
seguidores da doutrina de Alan Kardec, evitarem o trabalho espiritual com os pretos-velhos devese ao fato de atribuírem a esta entidade pouca evolução espiritual. Aqui retornamos novamente à
sua representação como “escravo”. A pouca evolução creditada por tal doutrina está relacionada a
dois modelos de “evolução”; o primeiro diz respeito ao acúmulo de conhecimento “escolar” que a
pessoa acresce em vida; e o segundo diz respeito ao conhecimento dos valores e práticas morais
apreendidos. Se para muitas pessoas com as quais conversei os pretos-velhos não tiveram acesso
ao conhecimento escolar, sua vida de sofrimento lhes proporcionou a possibilidade de galgar
inúmeros degraus do crescimento espiritual. Portanto, há quem acredite que os espíritos
designados para encarnarem como escravos são seres inferiores, logo, na prática religiosa,
prioritariamente, deve-se manter contato com seres superiores. Este argumento foi exemplificado
a partir da figura do preto-velho, destacando especialmente a linguagem que lhes é peculiar no
momento do transe. Disseram que como “espírito” não havia necessidade de se comunicar
naquele linguajar rústico, fato que demonstrava seu apego à vida terrena e sua identidade como
“escravo”.
6
Nos centros kardecistas vigora também uma imagem do preto-velho escravo. Essa
representação reflete a idéia das desigualdades raciais que por séculos dominaram o cenário das
relações humanas. No Brasil, esta forma de pensamento foi responsável pela manutenção secular
da escravidão africana e aferiu ao povo mestiço um lugar de inferioridade, que se procurou
abrandar ao longo do século XX. Entretanto, manteve-se como dogma a inferioridade dos
escravos nas sessões espíritas kardecistas. Embora esta seja a regra, há grupos que se definem
como kardecistas que mantêm os pretos-velhos em sua sessão. Ouvi casos de que aceitam tais
espíritos desde que passem por processos de doutrinação e respeitem as regras da casa.
Geralmente, essas regras dizem respeito ao uso ritual da bebida e do fumo, além de orientação
sobre o modo de como falar. Assim, podepermanecer na casa desde que se torne um preto-velho
“colonizado”.
Afora o rigor do kardecismo em relação aos pretos-velhos, existe também no
candomblé, aqui tratado de modo generalizado, interdição ritual com tais entidades. Para boa
parte dos seguidores desta religião, os pretos-velhos são considerados eguns, ou seja, “almas”, em
oposição à energia da natureza expressa por suas divindades: orixás. Na maioria das casas de
candomblé, o ofício dos eguns é realizar algumas atividades sob o comando dos orixás. Isso
significa, por exemplo, que numa situação em que a pessoa está devendo algo para seu orixá, para
cobrar a dívida ele utiliza seus eguns, que, por sua vez, infligem aos devedores dificuldades que
só podem ser sanadas através de inúmeros ritos. Um desses ritos de purificação chama-se ebó,
que, grosso modo, cumpre a função de afastar os eguns para que a pessoa possa aproximar-se de
seu orixá e receber dele os benefícios desejados. Algumas pessoas denominam os eguns de
escravos dos orixás. Aqui uma vez mais retornamos aos “escravos” que, neste caso, permanecem
como seres subservientes, cumpridores de ordens superiores.
Embora as interdições existam, há casos de candomblés que produzem ritos cruzados
com os dogmas da umbanda, chegando inclusive a cantar seu hino de abertura 7 . Existem outras
situações semelhantes, como, por exemplo, o caso de casas de candomblé que dizem não misturar
ritos: tocam os tambores para os orixás; e, noutras datas festivas, tocam para caboclos e pretosvelhos.
7
Hino em anexo.
7
O trabalho em campo
O extenso trabalho de campo, que envolveu templos de diferentes doutrinas religiosas
dentro e fora do Rio de Janeiro, demonstrou elementos significativos para a composição dos
pretos-velhos como um símbolo ritual. Além dos espaços propriamente religiosos, investiguei os
cultos particulares, que aconteciam em casas e nos locais de trabalho, além de vivências pessoais
em igrejas e no contato com a natureza 8 .
Participei de vários ritos em que a figura do preto-velho era manipulada ou respeitada
como sacra. Recordo que minha leitura inicial foi influenciada por duas idéias básicas sobre o
culto aos pretos-velhos: a de que eram escravos e de que pertenciam ao panteão de entidades
umbandistas. Tendo esta construção contextual como referência, segui o caminho percorrido por
Diana Brown, escolhendo inicialmente a “Tenda de Umbanda Nossa Senhora da Piedade”, que
foi considerada por ela e por muitos praticantes umbandistas como primeira casa de umbanda no
Brasil, fundada por Zélio de Moraes.
Cheguei na tenda num momento em que o grupo tentava reconstruir sua história, pois
passara por cisões. Após a separação, na qual as filhas de Zélio de Moraes disputaram a herança
da tenda, em seus aspectos materiais e simbólicos, foi necessário o grupo recriar sua própria
história. Dona Zélia de Moraes havia falecido recentemente, em 26 de abril de 2000, e a disputa
judicial, envolvendo inclusive o uso do nome da Tenda Nossa Senhora da Piedade, continuou na
justiça através de sua representante Dona Círia. Havia, portanto, um imenso interesse em divulgar
a história da Tenda Nossa Senhora da Piedade, através do grupo liderado por Zilméa, pois a ela
coube o cuidado da parte material de seu pai: a cabana de Pai Antônio, em Cachoeiras de
Macacu.
O relato sobre a primeira manifestação do preto-velho de Zélio de Morais, Pai Antônio,
tornou-se antologia religiosa, considerado um épico por inúmeros religiosos que encontrei em
outras casas de umbanda. Permaneci na Tenda Nossa Senhora da Piedade por mais de dois anos
observando os rituais, mantendo o contato com alguns médiuns após minha rota de pesquisa se
8
De modo geral, as entidades da umbanda podem ser tratadas espiritualmente em qualquer lugar.Espíritos de
crianças (erês) aceitam oferendas em praias e matas (que pode ser substituída por um jardim). Os caboclos também
recebem oferendas em matas (com ou sem água) e praias. Poucas vezes soube de referência de oferendas aos pretosvelhos em tais locais. Normalmente o contato com a natureza serve para o contato, para a aproximação da entidade,
por vezes ouvi dizer que pediam que fossem acendidas velas em cachoeiras. Porém, o local mais indicado para
pedidos e agradecimentos é o “cruzeiro das almas”, que a maior parte das igrejas católicas mantém com o objetivo de
permitirem aos fiéis rezarem para seus entes queridos.
8
alterar. Este contato foi fundamental para outras incursões, pois foi através da aproximação com
os praticantes que pude compreender quão amplo era o repertório de crença a partir dos pretosvelhos.
Se, a princípio receava o kardecismo por considerar de antemão que ali, como muitos
diziam,“não tinha preto-velho”, logo esta idéia se desfez. O mesmo discurso se repetia em relação
ao candomblé; assim, compreendi que há o dito e o interdito, principalmente na esfera do privado
onde nem sempre co-habitam as tramas dogmáticas. As corriqueiras conversas cotidianas fora
dos rituais permitiram que a investigação se ramificasse. Procurei por “cabanas” ou “casas”
especializadas em leitura da sorte nas mãos ou cartas, que publicizavam seus serviços em
panfletos ou muros pintados, convidando a clientela a uma conversa com a “vovó”. Ouvi quase
aos sussurros histórias de centros kardecistas em que os pretos-velhos trabalhavam, ou seja,
manifestavam-se através do transe para atenderem aos pedidos dos visitantes e praticantes em
alguns casos, porém, apresentavam-se incógnitos, sem usar o nome “preto-velho”. Em duas casas
espíritas, com leituras mais próxima de Kardec, encontrei pretos-velhos. Uma delas oferecia
consultas às segundas-feiras e noutra, os pretos-velhos trabalhavam espiritualmente sem
incorporação, cumprindo com a tarefa de desobsessão, que significa promover a retirada de
espíritos que atrapalham, por diversos motivos, a vida das pessoas, tarefa semelhante ao ebó do
candomblé, em que os eguns* são retirados.
Acompanhei alguns ritos em casas de candomblé e nelas presenciei cerimônias de
pretos-velhos, em ritos semelhantes aos de umbanda. Algumas dessas casas se auto-intitularam
“Omolocô” ou “candomblé traçado”, havendo em ambas a possibilidade de mesclar os ritos de
umbanda com sessões de consulta, por exemplo, e manter as cantigas e danças dos orixás. Além
desses lugares, estudei uma casa que dizia preservar os preceitos de “nação”, sendo esta uma
referência à manutenção de práticas consideradas pelo grupo como sobrevivência da influência
africana.
Procurando identificar as mais variadas formas de culto aos pretos-velhos, observei os rituais da
barquinha em Niterói, acompanhando as festas de terreiro, as “obras de caridade”, os ritos de
consulta e as romarias. No decorrer da pesquisa, uma festa na igreja de origem da barquinha em
Rio Branco, no Acre, em comemoração ao centenário do nascimento de seu fundador, Mestre
Daniel, proporcionou um aprofundamento no conhecimento sobre o grupo e na relação que tinha
com os membros da casa. A observação participante nos rituais da barquinha contribuiu para a
9
estruturação de algumas idéias centrais no trabalho, através de sua composição religiosa eclética
e do modelo participativo dos visitantes mediado pelo uso do Daime.Os pretos-velhos estavam
presentes nas festas de terreiro, nas “obras de caridade”, nos ritos de consulta e nas romarias, que
são cerimônias de louvor aos seus santos padroeiros. A peculiaridade dos ritos com os pretosvelhos utilizando o Daime possibilitou uma outra configuração sobre sua interpretação.
Procurando diferentes ritos, acompanhei uma festa de preto-velho num local conhecido
como quilombo: “Quilombo São José”, em Valença, estado do Rio de Janeiro. A homenagem aos
pretos-velhos durou um final de semana inteiro com apresentações de diversas danças
consideradas “típicas”, batuques e jongo. Neste local de “tradição africana”, a umbanda é a
religiosidade que expressa os valores ancestrais e, portanto, os pretos-velhos cumprem o papel de
destaque de sua cultura religiosa.
Freqüentei lojas de artigos religiosos em busca de informações sobre o culto doméstico
dos pretos-velhos. Esta observação foi importante, pois me introduziu numa outra modalidade de
prática religiosa, aquela que ocorre no próprio balcão da loja quando o cliente pede informações
sobre os procedimentos que deve seguir.
Observando os muros pintados que alardeiam a solução dos problemas em três dias,
percorri algumas casas deste tipo, as quais denominei “oráculos urbanos”. Consultei cartomantes
e videntes que usavam os pretos-velhos para atrair a clientela. Esta faceta da crença urbana que
pesquisei resultou num acúmulo de material suficiente para debruçar-me exclusivamente sobre
ele; entretanto, o restringi no primeiro capítulo, para uma análise da conjuntura da crença na
contemporaneidade nos dias atuais.
Finalmente, fechando o circuito religioso, que extrapolou o campo umbandista,
acompanhei rituais na Arca da Montanha Azul, um grupo religioso que procura aproximar
dogmas distintos através de uma cerimônia por vezes ecumênica, onde, dependendo da ocasião,
cantam-se mantras hindus ou budistas, hinos cristãos, da umbanda, do Santo Daime e da
barquinha. A pesquisa na arca foi fundamental para compreender alguns aspectos dos ritos
particulares. Sua configuração ritual e espacial foi pensada para atender uma demanda específica:
pessoas que estão em busca de autoconhecimento e espiritualidade. Neste local a devoção aos
pretos-velhos era peculiar e refletia o perfil que encontrei nos cultos domésticos.
A metodologia de pesquisa baseou-se na observação participante dos rituais e algumas
vezes fui além, tornando-me membro do culto e participante ativa dele. Esta experimentação da
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participação dos ritos produziu uma outra forma de compreensão fora dos aspectos cognoscíveis
tradicionais– assim como meus informantes, o aprendizado corporal conduziu parte de minhas
realizações. –
Um outro material utilizado foi resultado do levantamento feito por alunos do ensino
fundamental, que percorreram suas casas na comunidade da Maré, onde eu provavelmente não
poderia adentrar com tamanha desenvoltura, aplicando um questionário sobre as representações
sobre os pretos-velhos.
Utilizei a análise de fontes literárias, das publicações religiosas sobre a temática e a
literatura mediúnica, principalmente a que trata de temas relacionados às vidas passadas em
cativeiro. Também foi valioso o material iconográfico levantado nas pesquisas de terreiro e nas
visitas às lojas; e, igualmente as notícias propagadas na mídia, que constantemente
demonstravam a amplitude da crença no Brasil.
Os relatos distribuídos ao longo dos capítulos foram capturados nas conversas informais
e nas entrevistas previamente marcadas, conduzidas dentro dos princípios metodológicos prédeterminados. Alguns depoimentos foram retirados da web, através do contato com religiosos que
mantêm comunidades ou fóruns de debate. Além disso, fiz longas entrevistas e coletei histórias
de vida.
Tais condutas metodológicas se tornaram ao longo dos quatro anos de pesquisa um
referencial na construção do pensamento sobre a representação dos pretos-velhos, pois
ampliavam consideravelmente seus significados, contribuindo para que a exegese do símbolo não
ficasse restrita “ao que” dizem sobre, mas igualmente ao que “fazem com”, de modo que todos os
procedimentos em conjunto contribuíram para compreender aspectos implícitos do símbolo,
conforme indicam os procedimentos de investigação sugerido por Victor Turner (2005) .
Estou consciente de que há diferenças nos materiais coletados em relação à intensidade
da observação. Nesses quatro anos aprofundei mais alguns casos que outros. Os ritos observados
mais longamente foram os da Tenda Nossa Senhora da Piedade, do Centro Espírita e Obras de
Caridade Príncipe Espadarte (a barquinha), da casa ketu e da Arca da Montanha Azul. Além
disso, construí uma rede de freqüentadores e fiéis com a os quais estabeleci contatos formais e
informais, dentro e fora do Rio de Janeiro.
11
Pontos e Linhas
A partir da literatura sobre o tema, analisei a construção simbólica do preto-velho, e
confirmei que seu significado dominante é o de “escravo”, porém, a condução religiosa deste
termo se constrói em inter-relações. Isso significa que o símbolo não “é”, mas “está sendo”. Sua
polissemia se amplia consideravelmente na medida em que também se ampliou o circuito
religioso no qual predominavam os ritos umbandistas. Este fator conduz ao pensamento inicial
sobre sua divinização: Por que um escravo tornou-se figura sagrada? Qual é o contexto brasileiro
contemporâneo que, além de manter este símbolo, extrapola sua identificação para além do grupo
religioso ao qual esteve restrito por longo tempo? O que o atual culto os pretos-velhos revela
sobre a sociedade brasileira?
Alguns estudos foram a pedra angular ou a estrutura que sustenta a principal idéia de
que os pretos-velhos são símbolos que remetem à representação de “escravos” e “escravidão”
brasileira. Através da leitura de Victor Turner (2005) sobre a noção de símbolo e de sua
manipulação através dos rituais do povo Ndembu, pude implementar a análise dos pretos-velhos
a partir desta perspectiva, compreendendo tais entidades como símbolo cujo significado
dominante se estruturava nos ritos umbandistas e segmentos religiosos afins. A concepção de que
o símbolo é contraditório e ambíguo, e que seus significados são polarizados, num plano
ideológico e sensorial, foram idéias fundamentais para estruturar todo o material acumulado nas
pesquisas de campo, permitindo uma análise que sobressaísse ao signo primeiramente expresso
de “escravo”.
Para pensar o culto aos pretos-velhos, dentro e fora da estrutura religiosa tradicional, foi
fundamental a concepção de “rito de passagem” de Van Gennep (1978). Para o autor, todo rito
apresentaria três etapas: rito de separação, período de margem e rito de agregação.
Victor Turner (2005) foi também referência para este trabalho. Foi pensando o ritual em
que aparecem os pretos-velhos a partir das noções de estrutura e liminaridade que pude formular
as seguintes questões: por que os pretos-velhos, que são representados quase exclusivamente
como “escravos”, foram divinizados? Quais relações sociais possibilitam a instituição desse
perfil? O que o culto aos escravos têm a revelar sobre a sociedade brasileira?
Procurei demonstrar que a divinização do escravo na figura dos pretos-velhos se
mantém através de ritos coletivos e individuais. Aqui se compreende o rito numa perspectiva
12
conceitual elaborada por Victor Turner, em que são instituídos e mantidos socialmente como
possibilidade de inverter a ordem social, tornando-se um espaço de experimentação. Tal
compreensão foi abordada por Maggie (2001), sendo esta referência que utilizo nesta abordagem,
pois em seu trabalho sobre a umbanda demonstrou a inversão no processo ritual do terreiro
estudado. Na trama do livro “Guerra de Orixá”, o preto-velho travava inúmeras batalhas
espirituais nas quais demonstrava seu poder e, entre outras entidades da casa, era a mais
procurada. Dessa forma, simbolizava o processo de inversão de um padrão social, que excluía
socialmente o negro, que, naquele ritual, como “escravo”, era reconhecido como liderança do
grupo e um agente potencialmente poderoso para inúmeras pessoas que procuravam seu serviço
de magia.
O estudo de Maggie (2001) sobre umbanda apresenta uma análise sobre os pretosvelhos a partir do conceito de liminaridade. A autora descreve a atuação ritual dos pretos-velhos a
partir deste quadro de inversão social:
Esses modelos sociais expressos nos exus, pretos-velhos, pombas-giras, e
caboclos, figuras desprestigiadas pela sociedade mais ampla transformam-se,
no ritual, não só em figuras de prestígio, mas em deuses, e entre eles o que
mais atuam. Ou seja, o inverso do que seriam na vida cotidiana, não
sagrada.(:118)
A autora narra o processo de inversão em que os pretos-velhos concebidos socialmente
como escravos, e por vezes, associados a sujeitos desprestigiados socialmente, são revelados no
culto como seres divinos e com atuação ímpar. Esta perspectiva pôde ser comprovada através do
trabalho de campo, e a concentração neste enfoque possibilitou a ampliação de sua concepção
liminar.
Evans-Pritchard (2005) foi também guia no meu trabalho, pois, estudando o cotidiano
dos Azande o mestre demonstrou que a magia era um sistema de conhecimento e de explicação
do infortúnio. As observações que fiz em diferentes terreiros e casas que oferecem cuidados
espirituais e predições, aqui compreendidas como “oráculos urbanos”, fizeram com que
compreendesse que a magia ainda explica diversos infortúnios contemporâneos. Tal explicação
movimenta a vida de inúmeras pessoas que percorrem centros religiosos em busca de auxílio
espiritual, sendo a “segunda lança”, como explica Pritchard.
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Para compreender o campo espírita, aqui constituído pelo kardecismo, a barquinha, a
umbanda e o candomblé, com suas variantes - além das práticas mágicas que são reportadas a
esse campo - as pesquisas sobre as religiões afro-brasileiras foram fundamentais. Destacam-se os
autores que procuraram vestígios de África dentre as práticas religiosas brasileiras, como Ramos
(1943), Carneiro (1964) e Bastide (1973). Nestas pesquisas, o culto aos pretos-velhos é
representado ora como culto aos ancestrais, e deste modo como uma manifestação da cultura
africana que os cultos umbandistas e outros similares mantiveram, ora como uma forma de
degeneração destas práticas (Bastide,op.cit.:244-5).
Percorrer diferentes locais de culto e compreendê-los a partir de uma lógica comum foi
possível graças ao conceito de “campo religioso” de Pierre Bourdieu (2004), que o descreveu
como espaço no interior do qual há uma luta pela imposição das regras do “jogo” – por exemplo,
a definição do que é religioso ou sagrado - que se estabelece na medida em que os participantes
compreendem tais regras e procuram praticá-las e legitimá-las a partir de seus interesses.
O funcionamento deste campo espírita foi analisado por Cândido Procópio (1961)
dando ênfase às práticas da umbanda e do kardecismo, demonstrando que entre uma e outro havia
um “continuum” religioso que abarcava desde as “formas mais africanas da Umbanda até o
Kardecismo mais ortodoxo” (p. XII). Desse modo pude compreender atualmente o alcance destas
idéias, demonstradas através da pesquisa de campo pela prática religiosa de princípios kardecistas
e umbandistas noutras esferas religiosas e nos cultos particulares. A figura dos pretos-velhos é
aqui concebida como significativa na compreensão desta circulação.
Sobre a umbanda, foram preciosos os caminhos traçados pioneiramente por Diana
Brown (1985). A autora apresentou um histórico da umbanda no Rio de Janeiro, descrevendo um
movimento de unificação das práticas religiosas que, até 1920, se manifestavam de diferentes
modalidades. Curandeiros, catimbozeiros, benzedeiras, videntes e os demais manipuladores da
“força do susto”, como disse João do Rio (1951) 9 , subsumiram na instituição religiosa
umbandista, que acompanham o contexto político pelo qual passava o país, ou seja, o processo de
instituição da identidade nacional. A partir desta perspectiva, a autora analisa a figura dos pretosvelhos, considerando-os modelos exemplares da nacionalização de elementos africanos ou do
modelo político baseado na “padronagem”, relação política em voga no período. Pensados como
figuras centrais em oposição aos orixás no culto umbandista, os pretos-velhos representariam a
9
A primeira edição das crônicas de João do Rio é de 1906.
14
ênfase ideológica da umbanda em “purificar, civilizar e embranquecer e desafricanizar;
representando a eleição de uma identidade mais brasileira que estrangeira, do processo
civilizatório sobre as forças da selvageria e do barbarismo e do controlável sobre o
incontrolável” (Brown, op.cit.:64).
Diana apresenta a figura domesticada e subserviente dos pretos-velhos, opondo-os aos
exus, caboclos e orixás, creditando a tal figura a eleição da “servilitude” em detrimento da
“liberdade”, e da “humildade” no lugar do “orgulho”, sendo estes alguns dos predicados da
identidade afro-brasileira. Estes aspectos são predominantes na compreensão da representação
dos pretos-velhos, que ao longo das décadas vêm solidificando-se como representação dessa
identidade aculturada.
O presente estudo procurou, a partir das observações e outras incursões a campo e na
própria literatura aqui apresentada, analisar as representações dos pretos-velhos na
contemporaneidade, que revelam em parte o esquema já apresentado, ou seja, permanecem
figurando um certo modelo de “escravo” e “escravidão”.
Através das perspectivas teóricas, compreendi que o campo espírita se configura a partir
da diversidade de combinações, que podem aparentemente demonstrar contradições, mas
evidenciam crenças e práticas plásticas que sustentam sua mobilidade. O “continuum” descrito
por Cândido Procópio (1961) pode atualmente ser observado em outras modalidades rituais,
como na barquinha e na arca. Este fato confirma a análise do professor Peter Fry (1982), que diz
que a proliferação da umbanda deve-se ao fato de manter seu ecletismo cosmológico em
compasso com as variações de seus praticantes e, além disso, propaga a resolução dos problemas
de seus devotos num curto espaço de tempo (Fry, op.cit.:22). Como apresentou o referido autor, a
eficácia da umbanda pode ser compreendida através do crescimento do número de seus templos,
na diversidade de sua composição social e na possibilidade de estabelecer uma relação
particularista com as entidades.
O trabalho de Góis Dantas (1988), em que compara dois ritos do candomblé – um na
cidade de Laranjeiras, em Sergipe, e outro em Salvador, Bahia – revela que as noções de pureza e
mistura diferiam de um lugar para o outro. Sua argumentação demonstra que o campo religioso
“afro-brasileiro” se constrói como produção criativa em que as relações com diferentes tipos de
agentes determinaram o significado de “tradição”. A preservação de “africanismos” foi
fortalecida pelas relações estabelecidas entre religiosos e intelectuais em Salvador. Em
15
Laranjeiras, segundo Dantas, a marca identitária era fortalecida pela proximidade com elementos
católicos. Diante dessa África “inventada”, a figura do preto-velho aparece como elemento que
está relacionado ao processo de aculturação do africano.
O estudo de Liana Trindade (2000) também foi importante. A partir do uso teórico do
conceito de “memória coletiva” e “mito”, utilizou fontes documentais variadas, do século XVIII
até a década de trinta do século XX, para compreender o universo mítico do culto aos pretosvelhos. Em sua pesquisa compara as fontes aos depoimentos de religiosos, que, segundo ela,
constroem imagens da vida social do cativeiro e, por conseguinte, a “memória coletiva do negro”
(op.cit.:160). A autora acredita que o culto aos pretos-velhos revelaria as expectativas dos negros
na atualidade.
A representação dos pretos-velhos como escravos também foi abordada pelo trabalho de
Marcos Aurélio Luz e Lapassade (1972), em que analisaram a figura do preto-velho em oposição
a Exu. Para os autores, os pretos-velhos representariam a força do conservadorismo social em
oposição à libertação que os exus refletem. Neste sentido, a noção de “humildade” que os pretosvelhos expressam é compreendida como submissão e conciliação com o sistema.
Embora os pretos-velhos não tenham sido pensados em relação ao panteão umbandista,
refiro-me às entidades da umbanda, caboclos, exus e crianças –, a oposição marcada por Luz e
Lapassade interessa para compreender outra marca identitária dos pretos-velhos. Afora sua
condição de cativo, a “humildade” é referência constante a um atributo que lhe é particular. Esta
perspectiva, junto à idéia de “homem cordial” como explicou Holanda (1995: 147), “Seria
engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de
tudo expressões legitimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante”. Este fundo
emocional do brasileiro compreende tanto o predomínio das vontades pessoais em que deveriam
imperar as relações impessoais, quanto um mal disfarçado “bem servir”, pois em parte indica a
regência das relações sob o efeito do afeto. Esta característica é parte da construção simbólica dos
pretos-velhos, revelando valores que são caros à sociedade brasileira contemporânea.
Para Édison Carneiro (1964) os pretos-velhos representavam “os velhos sabidos nas
coisas da África”. Para o autor, a atuação dessas entidades na umbanda era a marca da
contribuição dos Cabinda. Ainda nesta perspectiva, as deidades são representadas por Ortiz
(1999) como alegoria da aculturação brasileira, que enfraquece a magia africana,
“embranquecendo-a”, figuração desempenhada pelos pretos-velhos que se apresentam como
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conciliadores e figurantes da humildade e bondade, sendo assim aceitos socialmente, numa
posição considerada inferior pelo autor.
O campo espírita se constrói a partir das relações entre as entidades de seu panteão de
devoção, mantidas de modo complementar. Assim, pretos-velhos caboclos e crianças formam a
principal tríade religiosa na umbanda. Entretanto, embora os exus nem sempre figurem este
quadro de referência espiritual, são lembrados como entidade que devem ser evitadas ou
invocadas, em certos momentos específicos. Estas relações estão presentes na análise que
proponho fazer dos pretos-velhos, pois suas qualidades e atribuições são mencionadas tendo
como referência as demais entidades.
A representação dos pretos-velhos como figuras da escravidão brasileira está presente
na leitura de duas obras voltadas para um público mais amplo: “O que é Umbanda”, por Patrícia
Birman (1985), e “Umbanda”, por Magnani (1991). Birman inscreve os pretos-velhos no cenário
clássico da escravidão, em que figura a relação de submissão do escravo pelo seu senhor: “foram
vencidos pelo afeto e sentimentos paternais, estabelecendo com seus senhores uma relação de
lealdade, como humildes servidores da casa-grande” (op.cit.p.41). Magnani utiliza o mesmo
referencial escravista; entretanto, apresenta os pretos-velhos como feiticeiros capazes de
utilizarem seus poderes contra os senhores brancos:
(...) o aspecto humilde do preto-velho, sábio e compreensivo com as misérias e o
sofrimento, visão certamente idealizada – correspondente à tradição norteamericana do Uncle Remus – sobre velhos escravos e escravas de histórias,
conhecedores de mandingas, segredos, e também poderosas magias empregadas
contra os senhores brancos”. (op.cit.p.31)
Através dessas leituras se explicita a importância de compreender o estudo das
representações dos pretos-velhos a partir deste quadro de referência de “africanidade”, pois se
estabelece a ponte necessária para entender a devoção aos pretos-velhos, bem como o maior
significado a eles atribuídos, o de signo da escravidão brasileira. A despeito da forma apresentada
sobre a escravidão, segue basicamente a idéia de um sistema bipolar, num universo representado
exclusivamente por senhores e escravos, inscrevendo posteriormente uma rivalidade de cores,
branco X negro, e de status, opressor X oprimido.
Portanto, além de “escravo”, as entidades foram tratadas como referência à submissão
escrava, símbolo de sua aculturação. Sem dúvida, a figura do preto-velho pouco foi deslocada do
17
cenário escravista, porém, novas concepções sobre sua significação e do ambiente escravista se
evidenciaram. Em algumas situações, tomou por imagem de sábio ou mestre ancestral, perdendo
sua identidade “africana” ou de “cativo”. Noutras situações, sua cor também desaparecia. Junto a
essas profusões de representações, o elemento “africano” não se perde; em algumas narrativas a
entidade nunca foi cativo nem mesmo veio para o Brasil.
Patrícia Birman (1985: 67-8) recorda sua participação num debate entre religiosos sobre
a importância das entidades espirituais, especificamente dos caboclos e pretos-velhos. Disse a
autora que, na ocasião, os caboclos foram destacados como “mais importantes” porque eles foram
os habitantes originais do Brasil. Os defensores da importância dos pretos-velhos alegaram que
foram os africanos que construíram o país através do trabalho escravo. Deste modo, o culto aos
pretos-velhos exalta a figura do escravo, sua participação na sociedade brasileira como partícipe
de sua construção material e espiritual.
O debate ilustrado por Birman é aqui evocado para junto das relações pessoalizadas
presentes no culto aos pretos-velhos, pois os invocam como “vovós” e “pai, como um indicativo
de que a herança do “trabalho” escravo pode estar sendo superada pela consangüinidade,
superando a primitiva herança indígena entre os brasileiros.
Esta pesquisa pretende, sobretudo, focar tais construções simbólicas, que já foram
abordadas anteriormente pelos autores referidos. Embora os pretos-velhos “representem a
escravidão brasileira” ou a “aculturação africana”, pretende-se investigar a instituição de um
escravo como ser divino. Além disso, este ser divino é igualmente considerado um ancestral com
o qual se mantêm laços de consangüinidade.
Os significados expressos nos ritos e nos cultos particulares dos pretos-velhos
apresentam sentidos vinculados pelos grupos religiosos, mas não dizem respeito exclusivamente
a eles. A própria inversão ritual e a liminaridade dos casos estudados invadem a estrutura; e é
sobre esta relação entre liminaridade e estrutura que vou me debruçar.
Capítulos à parte
Reuni no primeiro capítulo, histórias que apresentam vínculos pessoais com entidades
sobrenaturais. Pretendo apresentar um quadro de publicização da intimidade religiosa. Esta
intimidade pessoal não está restrita “às quatro paredes”, ao contrário, como diz DaMatta (1997),
18
importa no Brasil tornar públicas as alianças que nos favorecem. Embora o foco deste trabalho
seja a análise simbólica dos pretos-velhos, nesta unidade, apresentei o caso de uma pomba gira.
Marco Aurélio Luz e Lapassade (op.cit.) já haviam anunciado a relação de oposição entre os exus
e os pretos-velhos. Aqui o caso da pomba-gira atua de modo preliminar nas ações dos pretosvelhos, que estarão narradas adiante. De modo geral, a procura por proteção espiritual, descrita
nestas primeiras páginas, visa apresentar um percurso de crença na magia, aqui tomadas em seu
caráter público, sustentada pela máxima popular: “Diga-me com quem andas e direi quem és”.
Neste primeiro capítulo, procurei demonstrar a diversidade da crença. O acesso à magia
é fácil, seu uso está impresso em panfletos colocados em nossas mãos quando caminhamos, e
geralmente mal olhamos o texto que anuncia “Trago o amor em...”. Senhoras, dentro do conforto
de seus lares, fazem consulta espiritual em meio a um programa de receitas, bastando pra tal usar
o telefone. Compram-se facilmente em bancas e livrarias manuais de feitiço, nos quais se ensina
o contato com o mundo espiritual. Para pôr em prática tais conhecimentos, não faltam vizinhos e
colegas de trabalhos que podem por qualquer motivo tornar-se “invejosos”.
Através de casos selecionados, aqui apresentados, estão impressas algumas formas de
uso e crença na magia contemporânea. Há casos em que a magia está relacionada a cultos
religiosos, noutros, expressam a apropriação desses conhecimentos numa manipulação individual
do conhecimento mágico. Tal conhecimento é considerado um bem simbólico, cujos valores são
utilizados no cotidiano, modificando significados e ampliando seu uso, possibilitando que a
estrutura ritual adentre o cotidiano.
No segundo capítulo descrevo ritos e festas em templos umbandistas como a “Tenda
Nossa Senhora da Piedade”, em Cachoeiras de Macacu. Aqui estão presentes as observações de
cerimônias de culto aos pretos-velhos em Niterói, São Gonçalo e Rio de Janeiro, em bairros de
seu subúrbio e adjacências. Comento também as visitas às casas de candomblé de diversos
municípios do Rio de Janeiro e a “participação observante” nos ritos da barquinha, em Niterói, e
na arca em Santa Tereza, Rio de Janeiro.
No centro da cidade acompanhei cerimônias na “Sociedade de Medicina e Espiritismo
do Rio de Janeiro”. Novamente em Niterói, observei rituais de consulta com os pretos-velhos
num centro espírita da linha de Kardec. Além da descrição desses ritos, o segundo capítulo trata
do contato e culto com os pretos-velhos através de pessoas sem vínculos religiosos ou outros que
os mantêm de forma particular, atendendo em suas casas ou utilizando conhecimento que dizem
19
receber deles para resolver seus problemas no cotidiano. Inúmeras entrevistas e conversas
aleatórias delinearam a instituição dos pretos-velhos dentro dessa circularidade de crença
religiosa, porém, nem sempre vinculada a grupos religiosos.
Para abordar as instituições dentro de um campo diverso, de fronteiras fluidas, mas que
guardam suas peculiaridades dogmáticas e rituais, optei por descrever alguns de seus ritos e/ou
narrar o trajeto de sua origem a partir da história pessoal de algumas lideranças. As narrativas
descritas neste capítulo expressam essa conduta na vivência pessoal; além disso, procurei
descrever as comemorações coletivas, que apresentam as relações que, em parte, reforçam e
instituem novos códigos para a compreensão simbólica dos pretos-velhos, sendo o ritual das
consultas o ápice na maior parte dos ritos observados.
No terceiro capítulo, procurei traçar um panorama da crença nos pretos-velhos,
analisando sua constituição simbólica de “escravo” e seu pertencimento à “escravidão”.
Igualmente, interessam as interpretações acerca da escravidão como sua ancoragem. Aqui, a
escravidão é campo semântico reapropriado sob aspectos simbólicos religiosos, sendo pensada
como possibilidade de estabelecer a compreensão de situações atuais, ao mesmo tempo em que
foram agregados valores e comportamentos compreendidos sob o foco do “escravismo”. Por tal
motivo, inúmeras pessoas procuram objetos relacionados à escravidão, como correntes e ossos de
antigos escravos 10 , para fazerem seus pedidos, fato que pude observar no culto à Anastácia.
No quarto capítulo, foram apresentadas histórias sobre os pretos-velhos, em narrativas
registradas a partir do contato com médiuns em estado de transe durante as cerimônias ou em
entrevistas fora do rito. Os pretos-velhos foram alocados em identidades individuais. Nestas
representações, surgiram as histórias pessoais ambientadas no cativeiro. Predominantemente, a
idéia de cativeiro mantém uma estrutura que, como padrão, pouco se altera. Na maioria dos
casos, o cenário descrito é o meio rural, mantido por relações bipolares entre senhores e escravos.
O pano de fundo detalhado é o trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar e café. Em quase todas as
narrativas estão presentes histórias de castigo corporal, como os suplícios sofridos pelo
aprisionamento em ferros e a surra por chicote. Constantemente destacavam a “maldade do
senhor” em oposição à “bondade dos negros”. Um ou outro depoimento fugia deste contexto.
10
A Igreja de Santa Efigênia e São Elesbão no centro da cidade do Rio de Janeiro, mantém no cruzeiro, ossos de
antigos participantes de sua irmandade fundada por escravos. O mesmo ocorre na Igreja de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, que mantém um museu com peças da escravidão nas quais os visitantes
colocam suas mãos em preces.
20
Embora a historiografia recente e alguns movimentos sociais declarem um panorama
diferenciado dos séculos de escravismo, os elementos encontrados de maneira sistemática são
emblemáticos, pois revelam, em parte, em que tipo de nação se pensa viver.
Através de uma sondagem junto a estudantes do ensino fundamental da rede pública e
universitários de uma instituição particular de ensino, tive acesso às representações que um
público potencialmente distante do universo religioso construía sobre as duas imagens que lhes
apresentava 11 . Neste tópico circulam questões que procuram compreender por que a maior
representação dos pretos-velhos é de escravo.
Narrei alguns casos sobre a relação pessoal com os pretos-velhos e outras entidades no
quinto capítulo. Procurei apresentar uma abordagem peculiar sobre espaço religioso,
enquadrando o sujeito como templo de suas divindades e que, portanto, pode levá-las para todos
os lugares. A questão que se destaca neste capítulo é o debate sobre o indivíduo e suas crenças.
Se o rito coletivo cumpre a função de expressar certos valores do grupo religioso e, no contexto
mais amplo da sociedade, no plano individual, o símbolo se estabelece dentro de uma perspectiva
menos ideológica e mais próxima do campo dos sentimentos. Portanto, serve como socorro aos
problemas mais urgentes do cotidiano, gerando relações profundamente afetivas, intensificando o
sentido de “pai” ou “mãe”, próprias a este símbolo.
O quinto capítulo tem como objetivo analisar o contato com o “universo espiritual”
através das experiências individuais Embora tenha apresentado os locais de culto no segundo
capítulo, as observações do rito da arca foram descritas neste quinto capítulo, por considerar que
se apresentam de modo diferenciado das demais instituições religiosas. Neste local, os pretosvelhos são compreendidos como “energia” que produzem certos benefícios, como a promoção
dos valores morais (a “bondade”, por exemplo); e, através da magia, de curas. Considero ser esta
a representação do uso da magia contemporânea, self service. Os vínculos religiosos se tornam
desnecessários ou são recriados em outros padrões.
Finalmente, este conjunto de abordagens tem por finalidade compreender o campo
religioso espírita como espaço de criação e manutenção de significados sobre os “pretos-velhos,
como “escravos” oriundos da “escravidão brasileira”. Embora os pretos-velhos representem um
dado momento histórico, aglutinam inúmeras compreensões sobre a contemporaneidade.
11
Ilustrava as questões a imagem de um casal de pretos-velhos, fotografia de estatuetas vendidas em loja de artigo
religioso. Tal questionário segue em anexo.
21
Entretanto, os capítulos são orientados pelas seguintes questões: Afinal, por qual motivo os
pretos-velhos se tornaram figuras sacras nos tempos atuais? O que levaria uma figura
componente de uma religião específica, a umbanda, a tornar-se emblema de outros dogmas?
Além disso, passados mais de cem anos e reformulados os conhecimentos sobre o escravismo
brasileiro, por que atualmente o modelo bipolar (senhor X escravo) figura como campo de
compreensão para a atual estrutura social? Enfim, por que a escravidão está sendo ritualizada e
encenada dentro e fora do circuito religioso?
Segue o primeiro capítulo, com narrativas sobre a crença na magia e na atuação dos
espíritos na vida cotidiana. Nesta unidade, os pretos-velhos surgem como referência da magia
urbana benéfica, que aproxima casais, promove curas e protege. Sua figura se populariza em
letras garrafais que proclamam: “Vovó Catarina traz amor em...”.
22
CAPÍTULO I: MAGIA URBANA
“Para nós, devem ser ditas mágicas apenas as coisas que
foram realmente tais para toda uma sociedade, e não as
que foram assim qualificadas apenas por uma fração da
sociedade.”
Marcel Mauss
1.1 Ponto de referência
O povo carioca está impregnado da crença nos espíritos. Muitos acreditam compartilhar
o cotidiano com espíritos dos mortos e com seres da natureza, como os que habitam os mares,
louvando sua interferência no rumo de suas vidas. Embora essa crença esteja institucionalizada
em algumas religiões, é maior que todas elas porque se tornou de domínio público, sendo ampla e
criativa, como uma linguagem que todos entendem e alguns utilizam com fluência. Por notar sua
plasticidade, enraizamento e dispersão, foi escolhido um elemento principal para focalizar e
entender essa crença: os pretos-velhos.
Esta unidade de crença em “espíritos”, ou na influência que têm sobre o cotidiano,
sendo responsável pela aflição e cura, é elemento base no culto aos pretos-velhos. Crê-se que os
contatos com os seres espirituais podem ser imediatos e independem de lugar. Em alguns casos,
para provocar o contato com a entidade, bastaria chamar pelo nome e mentalizar sua forma. No
caso dos pretos-velhos, essa evocação pode ser feita através de seu prenome, “vovó” ou “pai”,
facilitando as relações daqueles que pouco conhecem o “espírito” em questão.
A imagem popularmente reconhecida 12 dos pretos-velhos é vendida em casas de artigos
religiosos e representam idosos negros, com cabelos embranquecidos, sentados num tronco de
árvore ou banco. Conforme observei, embora não haja nenhuma menção direta nestas imagens
sobre a escravidão, através delas somos remetidos a idéias sobre o cativeiro.
Nesta primeira parte do trabalho, observei as ruas com seus oráculos 13 propagados em
muros ou em panfletos distribuídos por jovens nas movimentadas avenidas da cidade. Alguns
deles propagavam: “Consulta com a vovó Cabinda. Resolva seus problemas de amor, negócio,
olho gordo...”. A crença na magia se dissemina e é neste contexto que os pretos-velhos são
incluídos. Tais entidades espirituais, conforme mencionei anteriormente, são vistas como
12
Este assunto será abordado no quarto capítulo.
Oráculos podem ser interpretados como a pessoa que faz predições, o espaço em que ocorrem estas manifestações;
e, ainda, a própria vidência.
13
23
espíritos de escravos que, através do conhecimento da magia e de seus valores morais, são
capazes de influenciar a vida das pessoas.
Nesta primeira etapa, os pretos-velhos são reconhecidos como detentores de um poder.
O cenário urbano com cenáculos, oratórios, videntes e crentes são a estrutura basilar na
formulação de um rito em que figuram os escravos divinizados os pretos-velhos.
1.2 Crença de muitos credos
Espíritos, almas, feiticeiros, feitiçaria, pessoas enfeitiçadas ou endemoniadas,
perseguições espirituais, expulsão de espíritos, benefícios alcançados por intermédios dos
espíritos, espíritos guias e mentores de ações benévolas ou malévolas, fazem parte do conjunto de
crenças de boa parte da população brasileira. Tais entidades têm nomes diferentes: almas*,
encostos*, entidades*, orixás*, guias*, encantados*, voduncis*, eguns, mentores*. As relações
estabelecidas com os espíritos não dependem necessariamente de cultos organizados
coletivamente.
Nossa população é “crédula de muitos credos”, não é segredo para ninguém. Fazemos
piadas com esse modo de vida que, junto a outros do cotidiano, compõe o “jeitinho brasileiro” tão
bem descrito por Roberto DaMatta (1997). Em dia de loteria acumulada, é comum escutarmos
comentários e vermos em noticiário de televisão fórmulas criadas pela população para atrair
sorte. Vale apelar pra todos os santos e, até mesmo, amarrar Santo Antônio para ganhar o prêmio,
prática realizada também pelas moçoilas casadoiras em busca de futuros maridos no dia destinado
à comemoração do santo. As artimanhas praticadas por devotos do santo são matéria secular.
Santo Antônio possui uma vasta arqueologia de práticas nesse sentido. Comumente ouvem-se
histórias e contos que remetem a um passado distante, como no caso do costume de esculpir a
estatueta de Santo Antônio no nó da madeira, uma parte firme e muito dura – diz-se que o grau
de dificuldade torna a imagem mais poderosa. A conquista final do desejo é conhecida por fiéis
de diferentes denominações religiosas como “graça”. Ganhar o prêmio seria o mesmo que
alcançar a “graça”.
Com um esforço bem menor, o pacto com os santos está expresso numa simples
fórmula de mantê-los por perto. Assim, as imagens ficam guardadas dentro de bolsas e carteiras.
Estas imagens são estampadas aos milhares como pagamento por alguma graça alcançada, e
24
distribuídas gratuitamente em balcões de igrejas, lojas religiosas ou noutros comércios sem
nenhum sentido religioso. Encontrei algumas imagens desse tipo em loja de roupa infantil em
shopping center e em muitos outros espaços inusitados.
Demonstrações da fé da população na crença em espíritos, santos e em sua magia
freqüentemente aparecem como tema central de programas de televisão como novelas, como “A
Viagem” e “Alma Gêmea”, comentadas como “grande sucesso”. Ambas tratavam basicamente do
tema “reencarnação”. Na narrativa dessas novelas e ao longo dos capítulos, circulavam os
espíritos de mortos que interagiam com os vivos, ajudando-os ou atrapalhando suas vidas. Alma
Gêmea teve seu número de capítulos expandidos devido à grande audiência.
Assim, é perfeitamente compreensível e vista como normal a veiculação em horário
comercial de TV a cabo uma homenagem ao Dia dos Namorados, em que a mulher praticava a
seguinte fórmula mágica: “escreva apaixonadamente o nome do amado num papel e sobre ele
despeje bastante mel”. Encontrei também uma versão semelhante em revistas voltadas para o
público “feminino”, que publicavam outras receitas com a intenção de tornar o companheiro mais
tranqüilo e amável. Há muitos anos atrás, depois que uma de minhas empregadas foi embora,
descobri um frasco de vidro com mel e o nome de meu ex-companheiro dentro. Seria uma forma
de amansar o patrão? A mesma fórmula me foi ensinada por um preto-velho. Outras pessoas me
disseram ter recebido este aconselhamento para acabar com os desentendimentos conjugais.
Parte da nossa população reconhece suas crendices, ri e faz piada, dizendo que
misturamos as “coisas”, e aproximam os dogmas às vezes contraditórios, como encarnação e
ressurreição, mistura esta que rende dividendos positivos como a identidade brasilis da boa
relação entre as diferenças. Sobre a divergência entre ressurreição e reencarnação, ouvi muitos
relatos que juntavam as duas versões. Cristo realmente ressuscitou, mas, enquanto não vinha o
dia do juízo final quando todos seriam julgados por seus pecados, seguiríamos reencarnando.
Ouvi ainda uma descrição da cosmogonia que aproximava a evolução dos hominídeos a Adão e
Eva. Numa versão “popular”, os macacos teriam evoluído até chegar ao nobre casal cristão,
progenitor de toda a humanidade. Esta explicação é fruto de uma longa experiência pessoal como
catequista e liderança de movimentos de jovens na igreja católica. Ouvi as mesmas
representações em sala de aula, quando lecionava História. Normalmente o tema “criação X
evolução” gerava polêmica, mas para muitos a alternativa era a busca por conciliações entre sua
formação religiosa e o aprendizado escolar que era apresentado. Destaco que essa conciliação era
25
bastante comum na faixa etária mais infantil; os jovens secundaristas, entre os 15-18 anos,
apresentavam visões mais solidificadas, tanto em termos religiosos quanto no sentido mais
escolar.
Essas aproximações e justaposições não conflituosas na prática social do pensar e viver
o mundo religioso e dizem respeito aos usos que são feitos de idéias rigidamente estabelecidas
por instituições religiosas. Situando tal pensamento, pois ele tem uma história, relembro que este
“modus operandis” espantou e encantou estrangeiros durante muitos séculos. Alguns não
acreditavam como podiam ser realizadas festas religiosas com tanta mescla pagã, onde música
“profana” e “sacra” disputavam o mesmo ambiente, além de danças e comidas. Transformada em
herança e tradição, essa mescla faz com que os turistas hoje procurem em festas e cerimônias
religiosas encontrar um pouco de referência da nossa brasilidade ou do que acreditam ser
heranças de nossos antepassados. Ida a barracões de candomblé pode ser um complemento à
aventura nesta terra estrangeira, conhecendo o que consideram práticas nativas seculares.
Embora a expressão religiosa que mais cresça, segundo dados de pesquisas recentes,
seja a pentecostal, encontrei numa livraria da cidade um volante auto-adesivo com fotos de
despachos* em praias intitulado “O candomblé é Rio”, demonstrando uma valorização de
práticas culturais afro-brasileiras como elemento identitário do ser brasileiro/ser carioca.
Na observação do culto aos pretos-velhos, entendidos de um modo particular como
espírito de escravos e identificados como “sofredores” e “humildes”, o mapa religioso foi
extenso. A cidade se apresentou com uma configuração bem peculiar que aproximo da “cidadeesconderijo” (Chalhoub,1990). Nela se abrigam inúmeros espaços religiosos recônditos. Conhecios em salas comerciais no centro da cidade, em apartamentos transformados em terreiros, em
oráculos ambulantes que em curtas viagens de ônibus, como anônimo companheiro de banco,
usam seus poderes sobrenaturais para analisar a vida do viajante. Há ainda predições via telefone
e em consultas na varanda de casa. Percorrendo alguns poucos quilômetros da cidade, encontrei
aprazíveis barracões* e terreiros* em seus subúrbios e municípios adjacentes.
A cara do Rio de Janeiro é o trânsito de pessoas e idéias. Em pesquisa produzida por
meus alunos 14 junto aos imigrantes nordestinos que trabalham na Feira de São Cristóvão, reduto
14
Pesquisa feita por alunos da rede pública estadual, Colégio Professora Alcina Rodrigues Lima – Itaipu, Niterói na disciplina de sociologia no terceiro ano do ensino médio no ano de 2005.
26
nordestino e nortista preparado para recepção de turistas, a idéia de um “Rio maravilha”
propagado nas emissoras de TV rendia maiores dividendos do a idéia de um Rio de violências.
Neste capítulo esses tipos humanos serão apresentados, assim como as relações que
estabelecem uns com os outros e com a crença. Tomo a liberdade de dizer, seguindo essa poética
popular, que essa plasticidade no uso das crenças é a “cara do Rio”.
1.3 Oráculos cariocas
“Trago a pessoa amada em 10 dias”. Esta frase pintada em muros residenciais,
comerciais ou debaixo de muitos viadutos na cidade é recente, pois há algum tempo atrás o prazo
determinado era de 15 dias. Em alguns pontos da cidade, com as emergências próprias do
cotidiano urbano, já podemos ler noutro muro carioca: “Trago o amor em três dias”. É a magia
express. Não serei surpreendida se o prazo diminuir e prometerem o mesmo tempo do “sedex
10”, um serviço de entrega de mercadorias oferecido pelos correios que em apenas 24 horas o
produto é entregue no endereço indicado. Esta já é uma realidade virtual, pois na internet alguns
sites espíritas já fazem consultas* por e-mail, com ou sem pagamento de taxas adicionais.
Se por consecutivas vezes a pessoa não conseguir memorizar ou copiar o número de
telefone estampado no muro, outras situações trarão tal possibilidade. Pelas ruas da cidade
sempre haverá a oportunidade de encontrar algum prospecto indicando local semelhante àquele.
Podem estar grudados em telefones urbanos, nos pilares ou pode-se recebê-los a caminho do
almoço ou lanche, das mãos de pessoas pagas para tal função. Às vezes, no mesmo dia em que foi
lido aquele anúncio no muro, chega às mãos um panfleto detalhando endereço, telefone e
especialidades do serviço oferecido. Essa coincidência pode ser vista como um aviso, ou seja,
algo sobrenatural está indicando uma necessidade de procurar ajuda para os problemas através
desse tipo de consulta. Na verdade é comum dizerem que “coincidência não existe” e “você não
veio aqui por acaso”, quando alguém relata a maneira fortuita em que encontrou o endereço ou
convite para chegar até o local da consulta.
No orelhão próximo à rua da Assembléia, centro do Rio de Janeiro, o papelzinho
clamava:
Casa da magia negra. Mestre Shirú. Bruxarias e feitiços para qualquer
finalidade. Trago a pessoa amada, por mais difícil que seja. Fecho teu corpo.
Acabo com os inimigos e simpatia para impotência sexual”.
27
Noutro papel que pode ser recebido quando se anda apressado nas ruas do centro da
cidade lê-se:
“A Mãe Carmem – feiticeira do Amor. Búzios e Cartas. Traz pessoa amada em
3 dias. Trabalhos fortes e garantidos. Você nunca viu nada igual. Não cobro
trabalho e destruo quem perturba.
Ainda flanando pelo centro do Rio de Janeiro, nos arredores da rua Uruguaiana, bem
próximo à rua do Rosário encontra-se a “Igreja dos pretos”, como é comum se referirem à Igreja
de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. Nela, às segundas-feiras, são
celebradas missas em intenção às Almas. Estas missas têm uma freqüência considerável para o
horário, às 16 horas. Bastante freqüentado nesta igreja é o cruzeiro das Almas, um local destinado
à queimação das velas em intenção das “Almas do Purgatório”* e as ditas almas Santas e
Benditas. Dentro desse local há uma espécie de altar envidraçado com a imagem de São Miguel
Arcanjo e sobre seus pés ossos de antigos escravos que foram enterrados nesta igreja. Algumas
pessoas rezam diante desse altar colocando suas mãos sobre o vidro, outras agradecem pedidos
atendidos e colocam, entre estreitas frestas, dinheiro como forma de pagamento pela graça
recebida.
Segunda-feira é conhecido como o dia das “Santas Almas” e também o dia dos pretosvelhos. Ali, unem-se duas crenças, a fé nas almas e nos escravos, representados por correntes e
ossos de antigos escravos. Não são poucas as pessoas que dizem que acendem uma vela em
intenção aos pretos-velhos nas igrejas católicas, para pedir algo para essas entidades. O
interessado pode levar um pedaço de pão e acender uma vela na igreja, dentro ou fora da capela,
em intenção aos pretos-velhos.
Do lado de fora da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens
Pretos, senhoras vestidas à moda baiana, com rodados vestidos brancos e cabeças cobertas por
um lenço dobrado de forma bastante primorosa, dão consulta fazendo previsões através do jogo
de búzios ou cartas, de acordo com o gosto do freguês. Essa faixa de tecido que lhes cobre a
cabeça está associada à sua pertença religiosa. O turbante chama-se “Ojá”. Geralmente, é usada
pelas mulheres iniciadas no candomblé, assim, fora do culto, este turbante serve como referência
religiosa que estas senhoras apresentam aos consulentes e àqueles que passam pela rua.
Se formos para zonas mais afastadas do centro, a estratégia do papel anunciando o
adivinho e a declaração do oráculo no muro se repete. Debaixo do viaduto que margeia a Av.
28
Brasil, em direção à Ilha do Governador, vi um dia a frase: “Vovó Cabinda. Trago a pessoa
amada”. Ligando para o número pintado no muro, anotei o endereço e as explicações de como
chegar ao local. Repetindo a fórmula de oferecer os serviços mágicos, noutros muros podem-se
ver propagandas anunciando a possibilidade de recuperar um amor perdido:
Mãe Tainá. Vidente consagrada. Não existe problema sem solução. Consultas
com: Búzios: R$ 3,00 (três reais) Cartas: R$ 5,00 (cinco reais) 15 . Você não
precisa falar nada, ela fala tudo. Amarrações e trabalhos para o amor e
perfume de atração com Maria Padilha. Passe e defumações para abertura de
caminho e prosperidade com vôo Maria Conga. Mude hoje mesmo sua sorte e
seu destino para melhor. Basta apenas uma consulta. Atendo diariamente de
segunda à sábado. 9:00 hs. às 19:00 hs.
No corre-corre da Avenida Amaral Peixoto, no centro de Niterói, uma jovem senhora
me entregou o prospecto que anunciava o mesmo negócio:
Casa da fé espiritual. Vença seus inimigos, faz descarregos e limpeza de corpo
pelas correntes brancas e sagradas, corta o mal, demandas, inveja e olho
grande. Amor. Negócios. Emprego. Saúde. Traz a pessoa amada, corta vícios,
nervosismo, filhos com problema, reza simpatia, faz união do amor, afasta quem
te perturba, insônia e stress. Dou garantia dos meus trabalhos. Búzios e cartas.
Consultas com entidade: R$ 10,00 e R$ 20,00.
De modo geral, esses pronto-atendimentos espirituais funcionam nas residências desses
profissionais da magia. A propaganda está situada num local de fácil acesso para os clientes, mas
as casas de consulta ficam noutros bairros. No Rio de Janeiro estão em São Cristóvão,
Bonsucesso e Botafogo; em Niterói, nos bairros de Icaraí, Santa Rosa e São Francisco.
Especificamente em São Francisco, um bairro “nobre” de Niterói, foi aberta a “Casa dos Orixás”,
com atendimento durante todo o dia, que oferece várias modalidades de atendimento espiritual.
Os preços também variam. A uma amiga, depois do jogo de carta, foi oferecido um trabalho de
“energização” espiritual, em que ela ficaria debaixo de uma pirâmide ao custo de R$ 300,00.
A distribuição desses panfletos focaliza exclusivamente os centros urbanos, porém,
somente um desses centros estava no próprio centro da cidade. No prédio anunciado no panfleto
pude atestar a presença do universo sagrado no cotidiano. Mesmo nesses bairros não tão centrais,
15
Prospecto recebido em outubro de 2003. Esse valor pode estar defasado. A nova tabela do início de 2004, da
senhora de Bonsucesso, variava entre R$ 10,00 a R$ 30,00, se búzios ou baralho, sendo o baralho cigano o mais
caro. Porém em 2005 visitei uma “cigana” que cobrou R$ 10,00 a consulta simples, no jogo de búzios em Niterói.
29
o acesso a estas casas era bastante fácil. Ligando para o número de telefone indicado, as
orientações são claras e, com o transporte abundante para tais regiões, fica fácil uma escapulida
no meio do expediente pode não ser notada. A distância geográfica nem sempre é um obstáculo
para quem realmente deseja procurar esses serviços mágicos. Existem critérios que são exigidos
para garantir a escolha correta de tais préstimos. Certamente o mais comum é conhecer alguém
que já tenha testado sua eficácia, mas no momento de “desespero” vale a “intuição”: “Pensava
nas minhas dores quando vi o muro pintado e entendi que esse era o sinal de que devia procurar
tal ajuda” como me disseram inúmeras vezes.
A utilização desse serviço não é de modo algum uma novidade, ao contrário, as
benzedeiras são quase patrimônio imaterial da sociedade brasileira. Levar menino para benzer
quebranto, mal olhado e espinhela caída eu escuto de minha mãe desde quando era menina e
minha avó era mestre nessas artes e também na de realizar partos na roça. Através da pesquisa
descobri que minha falecida avó, que tanto benzeu minhas dores de cabeça e “espinhela caída” 16 ,
trabalhou* durante muitos anos com uma preta-velha chamada “Tia Chica”. Mas além dessa
experiência familiar, os registros históricos apresentam esse costume arcaico de benzeduras, fruto
do catolicismo popular. Uma senhora muito católica contou que antigamente havia muita doença
de “olho gordo” (malefícios causados pela inveja alheia) e “espinhela caída” e que ninguém
ouvia falar de “nervoso”, “estresse” ou “depressão”. Dizia que alguém estava “nervoso” quando
ela abusava de bebida alcoólica. A crença nos poderes das(os) benzedeiras(os) é também pensada
como uma mescla que aproxima antigas(os) feiticeiras(os) das aldeias européias a rituais de
origem africana e ameríndia, predominando, ao final, uma versão cristianizada, sendo
percebidas(os) como devotas(os) de muita fé.
Além dos locais próprios para as consultas, alguns com muros pintados, placas
nominativas e registros de filiações às federações espíritas penduradas na parede, encontramos
pessoas que se disseram videntes*. Relatam que contavam passagens da vida do consulente
olhando nos olhos de seus clientes, em cartas ou copos d’água. Das videntes com que tive
contato, algumas se tornaram posteriormente evangélicas, abandonando o “espiritismo”,
referindo-se às práticas de Umbanda, Quimbanda* ou Candomblé. Contudo, isso não significa
16
Segundo a Fulosina Rodrigues, a espinhela é um ossinho mole que vem do coração. A espinhela caída é
proveniente de peso que a pessoa pega. Sintomas: dor nas costas, no estômago e nas pernas e cansaço. Cura tomando
a medida da pessoa e depois reza a oração. Explicação de uma rezadeira de Araçuaí (Minas Gerais). Fonte:
http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/espinhela.htm.
30
perder os seus “dons”. Dona Carmem, uma dessas videntes, disse que era inevitável ver o que
via, não conseguia controlar-se. Desde menina via fatos que ainda estavam por acontecer. Suas
visões ocorriam enquanto brincava, como um sonho acordado, ou através de um baralho que
encontrou perdido na casa de sua tia. Todas as vezes que anunciava um fato e ele se consumava,
ela tomava uma surra. Seus familiares tinham medo e diziam que ela os praguejava e atría mau
agouro para todos.
Mesmo para pessoas que deixam para trás sua vida dedicada aos “espíritos” e passam a
“viver para Jesus”, como costumam dizer os evangélicos de denominações religiosas diferentes, a
lógica do feitiço como explicação para seus malefícios ainda é levada a sério. O caso de Dona
Inácia é exemplar. Freqüentadora da Igreja Assembléia de Deus, quando se sentiu “carregada”*,
procurou a umbanda. Recorreu aos amigos “espíritas” e pediu encarecidamente para que não se
comentasse o fato. Outros devotos de religiões cristãs, como os católicos, também fazem esse
percurso. Marlene é católica praticante e participa das missas dominicais e de seus movimentos
religiosos, sendo liderança comunitária; entretanto, sempre que se sente cansada, num
esgotamento emocional, procura receber uns “passes” no centro espírita kardecista.
Assim como Dona Inácia que pediu segredo em relação à sua freqüência à casa de culto
umbandista, fui também inquerida por médiuns de um terreiro; preocupados com o que eu iria
fazer com as fotos tiradas numa sessão* de umbanda, alguns médiuns* me procuraram para uma
conversa. Eram freqüentadores assíduos da igreja católica local, mas também participavam da
umbanda. Não eram somente clientes, mas médiuns com certo comprometimento com a casa.
Argumentaram que ali faziam o “trabalho de caridade”* e procuravam formas de se proteger
limpando “impurezas” espirituais, complementando com a magia o que faltava em sua religiões
de origem. Disse-lhes que publicaria as fotos num out-door na praça (bem próxima à igreja
freqüentada por eles), o que provocou uma risadaria geral e comentários do tipo: “Imagine a cara
do padre...”,
“E da fulana...”. Participavam de um ritual de umbanda que era público e
relativamente próximo à igreja católica, mas pediam segredo.
Uma umbandista comentou que “os crentes”17 apareciam “carregados” porque não
tinham instrumentos necessários para realizar a tal limpeza espiritual*. Ao que parece, há uma
busca constante por manter-se limpo, pois a impureza trazida por maus espíritos ou maus
17
Denominação geral popularmente usada para presbiterianos, pentencostais ou protestante.
31
pensamentos pode ser altamente prejudicial, provocando doenças de inúmeras qualidades.
Portanto, se a dita “impureza” foi fruto da magia, deve assim ser combatida através da magia.
Procurando verificar in loco este contato oracular com os espíritos, procurei a
“feiticeira” de Bonsucesso 18 a qual me referi mais acima. Dirigindo meu carro e olhando
atentamente para não me equivocar, procurei copiar o número do telefone pintado debaixo do
viaduto. Marquei a data da visita e fui com um antigo aluno que fazia uma pesquisa de fim de
graduação sobre exus. No anúncio do muro e na placa luminosa diante da casa estava escrito:
“Cantinho da vovó Catarina”: vidência em copo d’água, baralho, tarot cigano e russo; cura de
males físicos e espirituais. Entrando pelo portão da garagem, logo adiante, uma espécie de
prateleira com diversas imagens de pretos-velhos recebiam os consulentes. Entramos diretamente
na sala de estar da vidente que se apresentou como “Catarina”, mesmo nome de sua entidade.
Perguntei ainda “É seu nome mesmo?”, e ela, meio sem paciência, respondeu que sim, cortando
qualquer possibilidade de conversa que não fosse a consulta. Afinal, nos pareceu que tínhamos
interrompido sua programação da tarde, que era assistir à habitual reprise de telenovelas. Ela
pediu que eu entrasse no quarto junto com ela e não deixou que meu acompanhante fosse junto.
Ali, eu esperava que ela fosse receber sua entidade, a preta-velha vovó Catarina, mas ela me foi
apresentando uma tabela de preços e serviços dos quais escolhi o mais barato, o tarot cigano. O
preço mais baixo em relação ao russo era porque este não revelava tudo, o mais completo seria,
segundo a vidente, o mais caro. Diante de sucessivas negativas às suas perguntas: “Problemas
com o emprego!? Na justiça!? Amor do passado!? Familiar doente!?”, a vidente sentenciou: Seu
caso é no candomblé, está tudo fechado, não querem que eu veja.
Considerando “tudo fechado”, ou seja, sem possibilidades de solução, ela apresentou
saída: candomblé. Ou seja, os oráculos urbanos estão aí para apresentarem soluções para “os seus
problemas”, como dizem os folhetos e outros anúncios pintados nos muros da cidade. Se o
advinho ou médium não os consegue resolver de imediato, encaminha para locais que considera
“mais fortes”, como o candomblé.
No documentário de Eduardo Coutinho, “Santo Forte”, há alguns relatos sobre essa
hierarquia de poder, numa gradação em que o candomblé aparece como referência do mais forte,
a umbanda menos e o kardecismo* menos ainda. Patrícia Birman (1995) relata alguns casos de
integração à “vida do santo”, nos quais se testemunha o trânsito umbanda-candomblé, por ser
18
Junho de 2004.
32
considerado “mais forte” ou porque havia uma cobrança de uma entidade do candomblé para
alguém que pertencia à Umbanda. Ouvi um relato de um senhor, liderança de uma casa
kardecista*, mas próximo da umbanda, em que um de seus médiuns havia pedido permissão para
fazer um “trabalho” com sua antiga mãe de santo. Ele o aconselhou, dizendo que tudo que
precisava podia ser feito sem gastar dinheiro com oferendas, bastava concentração e talvez uma
vela; mas, diante da insistência, liberou consulente.
Numa área denominada “Quilombo São José” em Valença, zona rural do Rio de
Janeiro, conhecida por seu histórico passado de escravidão, que abrigou grandes planteis
escravistas, pude verificar mais uma dimensão dessa crença no espírito dos escravos. Tal
denominação, “quilombo”, está em acordo com a Constituição de 1988, que prevê que antigas
terras ocupadas por ex-escravos podem ser assim consideradas, não mais pelo exclusivo sentido
de área de fuga de escravos. Em tal local funciona uma comunidade que pratica a umbanda como
religião, além do catolicismo. Soube que constantemente chegam visitantes do “Rio de Janeiro”
em busca de benzeduras. Quando tais visitantes chegam, as senhoras param seus afazeres para
incorporar* 19 seus pretos-velhos e realizar o trabalho espiritual, que tanto pode ser uma conversa
sobre os conflitos cotidianos ou uma limpeza espiritual, como benção para a obtenção de algum
bem material, geralmente, um carro novo. A viagem de quatro horas de carro por trechos bastante
dificultosos em íngreme estrada de chão parecia valer a pena, pois consideravam o lugar e a
magia ali praticada bem mais fortes. Algumas histórias parecem reforçar este caráter de “força”,
como a do feiticeiro Luiz Cambinda ou Sr. Luiz Cambinda, liderança espiritual na redondeza, que
tinha a fama de ficar invisível.
Leituras das linhas da mão, ver futuro em copos d’água, observar a cor da Aura*, dar
passes energéticos, jogar os búzios, cartas e tarôs. Procura por feiticeiros para garantir o amor,
amarrar o amor ou deixar seu amor impotente, banho de descarrego, banho de rosas brancas ou
vermelhas, banhos para atrair dinheiro e emprego, figas, bentinhos e patuás, guias presenteadas
por espíritos incorporados para serem levadas dentro da bolsa, e amuletos presos aos espelhos do
carro, santinhos com preces, correntes de orações e pãozinho de santo Antônio para multiplicar
os alimentos, Nossa Senhora Desatadora dos Nós e São Expedito são expedientes e santos do
socorro urgente, urgentíssimo. Visita a terreiros para consultas de modo esporádico, ebós*
19
Êxtase ou transe são designações sobre o estado alterado da consciência em momentos específicos de contato com
o plano espiritual. Nos meios religiosos, costuma-se usar o termo “incorporação”.
33
providenciais e sacudimentos* inconfessáveis são outros meios de se obter o que se deseja.
Pozinhos milagrosos na comida do marido para parar de beber ou de trair, bifes preparados com
fluídos do corpo feminino e outros sortilégios também são comuns. As receitas podem ser
fornecidas por um especialista religioso ou copiadas de sites ou de publicações voltadas para essa
temática específica.
Em busca de soluções que caibam diretamente nos anseios e no exíguo tempo que sobra
do tumultuado cotidiano citadino, a internet oferece sigilo e rapidez semser preciso sair de casa.
Através de uma sub-rede de relacionamentos virtuais, o orkut, onde são construídas páginas
temáticas conhecidas como “comunidades”, encontram-se vários expedientes de socorro
espiritual. Numa comunidade criada para debates sobre pretos-velhos alguém postou:
Através de fotos analiso e respondo perguntas sobre a pessoa. Se vc quiser
alguma orientação sobre que decisões tomar, ou até mesmo saber como está um
ente querido que já se foi, entre em contato através do e-mail
[email protected]
Forma simples e resolução mais simples ainda, bastando enviar uma foto através do email! Magia on line. Em busca de uma literatura específica, encontrei facilmente uma ampla
fonte para instrução e prática da magia.
Os catálogos das editoras são outra fonte de informações. A editora Pallas, especializada
em assuntos religiosos, possui uma infinidade de publicações, entre elas: Como agarrar seu amor
pela Magia; Como desmanchar feitiços; O livro da Feiticeira; Receita de Feitiços; O livro de
São Cipriano 20 e Encantos Afro-brasileiros. Há uma quantidade razoável de publicações
acadêmicas sobre essa temática, abordando rituais, biografias de lideranças religiosas e diversos
20
No Brasil, o Livro de São Cipriano é usado largamente nas religiões afro-brasileiras, e se tornou um "almanaque
ocultista" de fácil acesso presente nas diferentes modalidades de culto popular. Algumas edições: "O Verdadeiro
Grande Livro de S.Cipriano"(ou: Thesouro do Feiticeiro). Rio de Janeiro, Livraria Quaresma.Ed., 1926. - Tavares,
Possidônio: "O Verdadeiro Livro de São Cipriano". Rio de Janeiro/Paris, Livraria Garnier, Sem Data. - "O Antigo e
Verdadeiro Livro Gigante de São Cipriano". Rio de Janeiro, Ed.Eco, Sem Data. - O "Genuino Livro de São
Cipriano". São Paulo, Ed.e Publ.Brasil Ed., Sem Data. - Mammoloh, N'Guma. Prof.: "São Cipriano, o Grande e
Legítimo Livro Vermelho e Negro de S.Cipriano". São Paulo, Gepê Ed., Sem Data. - "Livro Encarnado de São
Cipriano"(Rio de Janeiro, Ed.Pallas S.A., s.d.). - Muito diferentes são: "O Livro de São Cipriano". Editora Três,
1986. - Motososchry(Compilador): "O Verdadeiro Livro de São Cypriano". São Paulo, Ed.Popular, Sem
Data.(Contêm: necromancia, magnetismo, cartomancia, quiromancia, revelação dos sonhos). A mais antiga edição
do livro é de 1849.
34
temas que apresentam esse universo religioso com suas comidas e ervas sagradas. Pode-se ver
tais temas em livros escritos por religiosos. A responsável por uma editora contou que o carrochefe da empresa são aqueles livros que ensinam a prática da magia. Alguns autores com este
perfil lucram mais de cem mil reais ao ano.
Até aqui vimos a crença na magia e as muitas formas de anunciá-la; mas quem seriam
os feiticeiros nessa história toda?
João do Rio (1951) nos apresentou os feiticeiros, apontou os babalaôs e babalorixás,
feiticeiros africanos que exploravam a crendice dos outros. Nos inquéritos que puniam os
suspeitos de tal prática estavam arrolados nomes, sobrenomes e endereços (Maggie, 2001). Entre
os casos pesquisados por Maggie (op.cit.) há o Ferraz do Andaraí que se dizia espírita e realizava
em sua casa rezas pela frente e pelas costas. Outro caso relatado por Maggie (idem.) foi o do
velho Juvêncio do Morro de Santo Antônio, denunciado por exercer em sua residência o ofício de
curandeiro em fins do século XIX.
Hoje, depois de 100 anos de disciplinalização através de uma legislação que pune os
que usam seus poderes para o mal, é possível consultar o próprio balconista e sair dali com o
material necessário para o encantamento. Na loja Combate, próximo à igreja São João, em
Niterói, o balconista, que afirmou não pertencer a nenhuma religião, cantarolava inúmeros
pontos* ritmando com as mãos sobre o balcão. O balconista sem religião indicava soluções para
o malefício e tecia comentários sobre a lista de itens para oferenda de alguns compradores,
recomendando outro produto no lugar daquele que estava em falta.
Na atualidade, para além dos espaços tradicionais de manipulação do sagrado, os
encontros entre espíritos e médiuns podem ocorrer em espaços inusitados. Embora os elementos
considerados sagrados estejam presentes nas relações consultas-fiéis nas sessões dos terreiros de
umbanda, tal ritual pode ocorrer num balcão de loja, como descrevi acima, ou numa rua
movimentada da cidade como descreveu Gilberto Velho (2003). Ouvi histórias sobre pessoas que
estavam em bares, por exemplo, e foram abordadas por entidades.
Evidentemente há lugares específicos para a produção do feitiço. Contudo, uma nova
dinâmica urbana de ocupação dos espaços e transformação do próprio indivíduo, que busca
orientações cada vez mais particulares para sua vida, potencializa o uso mais diversificado da
magia no cotidiano. Assim, soube que o atrativo mais prestigiado de um casamento foi o
expediente de oferecer uma cartomante para a consulta dos convidados após o ritual cristão. Da
35
mesma forma que foram distribuídas amêndoas açucaradas e sandálias de dedo, o “serviço” de
magia foi oferecido como souvenir para os convidados. Segundo consta, a cartomante foi uma
lembrancinha bem disputada, como apresenta o enunciado da nota jornalística: “O frisson foi uma
cartomante escalada para ler a sorte da tchurma” 21 .
A crença nesse universo espiritual amplia consideravelmente a ação dos feiticeiros na
medida em que qualquer pessoa está exposta a energias* maléficas. Portanto, parece haver a
necessidade de manter-se sempre alerta, numa eterna vigília, pois o inimigo pode atacar a
qualquer momento. O próprio pensamento atrai tais energias, então cada um deve ficar
vasculhando seu próprio pensar. Sendo assim, o manter-se forte através de banhos e mezinhas é
uma estratégia de sobrevivência diária. Estar em contato com uma espiritualidade protetora não
tem a função de preparar a pessoa para uma vida após a morte, mas de prepará-la para a
sobrevivência diária.
“Eu não acredito, mas respeito”, é uma frase constantemente ouvida por praticantes de
outras religiões fora do campo espírita. Assim, um despacho* numa encruzilhada pode ser temido
ou respeitado. Muitas pessoas evitam passar próximo a eles, temendo que lhes ocorra algum
malefício, outros chegam a desviar o olhar. Muitas histórias são contadas a respeito de alguém
que desrespeitou, roubou ou comeu alguma oferenda. Escolhi a que me foi contada por Isabel,
evangélica da Igreja Batista:
Um menino passava por uma encruzilhada. Nela tinha um despacho, que era
tipo uma mesa bem servida, com flores e muitas frutas, assim numa travessa
como um prato. Tinha bebida, champagne. Junto disso, tinha também dinheiro.
O menino abaixou, pegou o dinheiro e foi comprar banana. Durante dois dias
ele ficou muito doente. A mãe não sabia mais o que fazer. Aí, o demônio se
manifestou. Disse que o menino pegou o que lhe pertencia, e que só ficaria bom
depois que vomitasse todas as bananas. Por incrível que pareça, o menino
colocou as bananas pra fora, todas inteiras.
Independente da denominação religiosa à qual pertença o indivíduo, muros com
propagandas de médiuns que dão “consultas” e despachos nas escruzilhadas são familiares a
todos os que vivem nos grandes centros urbanos e no Rio de Janeiro. Ver o telefone de vovó
Maria Conga pintado em um muro da cidade, anunciando que pode solucionar qualquer espécie
21
Informação divulgada da coluna social da Narcisa Tamborideguy, no jornal “O Dia” em 12 de abril de 2006, cujo
enunciado era: “Cartomante e helicópteros”.
36
de problemas, não é algo estranho à paisagem carioca. Entretanto, um estrangeiro, colocado
diante do mesmo muro, pode não entender o que significa tal “avó” que propagandeia um número
de telefone para resolver problemas alheios. Que olhares lançamos sobre alguém arriando* um
despacho na praia de Botafogo? O que dizemos ou pensamos quando ficamos sabendo que um
amigo colocou oferendas numa encruzilhada* no centro da cidade? Mais ainda, como ficamos
quando tomamos ciência de, que ele de fato conseguiu o que queria?
Como magia e religião ocupam fóruns separados, os usuários da magia pululam pela
cidade independente dos credos assumidos publicamente. Consomem a magia de São Cipriano e
de tantas outras self service, além de feiticeiros urbanóides com consultas via e-mail. Nessa senda
de sonhos de consumo, perfazem os desejos de amor, estética, saúde e bens materiais.
Essa minha descrição do Rio já aparecia nas páginas das crônicas de João do Rio sobre as
religiões. Suas passagens descrevem um Rio de Janeiro mágico, povoado por inúmeras produções
religiosas, crenças e práticas, como dizia: todas as forças do susto.
1.4 O caso de uma telefônica multinacional-carioca 22
Certas empresas procuram apresentar seu ambiente de trabalho como local limpo e
organizado, clean no linguajar estético. Normalmente a característica mais marcante é a presença
de materiais funcionais e peças de arte que traduzam a imagem que ela pretende ter. Nesses
tempos em que vivemos, ambientes agregam valor e identidade como cenários transculturais.
Numa “particular generalização” desterritorizam criando identidades mais amplas que as
regionais, fazendo coincidir gostos (Ortiz, 1994; Canclini, 1996), o que torna uma loja no Leblon
com cara de Maison.
A empresa que observamos não era diferente: recepção clean e recepcionistas em
sóbrios terninhos, controlando seu próprio “jeito de ser” para apresentarem rostos simpáticos sem
serem demasiadamente risonhos. A fala das recepcionistas, controlada num padrão “alfa”,
vagarosa, sem serem modorrentas, e os cabelos controlados em alisamentos artificiais ou
22
Essa história foi relatada por uma informante como problemas que estava vivendo no trabalho que acreditava ser
fruto de “macumba”. Ao longo de alguns meses do ano de 2004/5 acompanhei o caso que apresentava novas
interfaces. O destaque em itálico e entre “aspas” são palavras da informante.
Nesta sessão, utilizei, sobretudo, a interpretação de Cliffod Geertz (1989) e as reflexões de Rosental (1998) sobre
micro-análise
37
aprisionados em penteados são a marca destas instituições. Não posso esquecer a maquiagem que
sustentará o perfil “recepcionista” que também deve ser clean.
Empresas desse tipo possuem um controle de seus funcionários que vai além dos
horários de trabalho. Investigam o rendimento dos setores e controlam a limpeza do espaço e de
seus próprios funcionários, exigindo uma apresentação impecável. Cada setor recebe ainda uma
nota que avalia o trabalho e o trabalhador.
Duzentos e poucos funcionários circulam diariamente no andar inteiro de um prédio no
centro do Rio de Janeiro. Trabalhar numa empresa desse calibre, numa multinacional, sempre
adiciona alguns sinais de prestígio a seus funcionários. Embora o salário seja vinculado a uma
tabela sindical, fazer parte daquela equipe é sentir orgulho por estar empregado num bom lugar e
ter um bom emprego, ainda que a empresa possa envolver-se num escândalo de proporções
nacionais 23 .
Na copa-cozinha, local onde os funcionários se encontraram, chegaram ecos das
histórias e comentários saídos da diretoria que, às vezes, passam de boca em boca de modo
distorcido. Todos se sentiam co-participantes do que estavam vendo pela TV quando chegavam
em casa. O acordo entre grandes empresas em fusão se tornava o “prato do dia” entre os
funcionários no momento de limpeza dos salões, local em que todas aquelas decisões importantes
pareciam ter sido tomadas. Mas, além do habitual comentário a respeito do que de fato aconteceu
naquele maremoto de denúncias, restava a dúvida sobre o destino dos trabalhadores.
Uma das funcionárias em especial parecia não se preocupar com nada disso. Risonha e
confiante, mantinha sob controle seu dia a dia e, não entrava em rodas de especulação. Sua
verdadeira preocupação eram as disputas pessoais, mas isso também não era denunciado em seu
comportamento aos colegas. Nutria intimamente suas crenças, que lhe forneciam pequenas
porções cotidianas de confiança.
Morando noutro município, era com muito bom humor que atravessava inúmeros
bairros divertindo-se no trem. Gostava de viajar no último vagão, um risco que poucos corriam
porque era conhecido como lugar do “fumacê” 24 . Era onde conseguia lugar para sesentar. Rindo,
disse-me que saía tontinha, mas vinha sentada! Como estratégia para não transparecer a lonjura
23
A empresa em pauta passava, na ocasião da pesquisa, por um enorme desgaste pois enfrentava um caso rumoroso
de tráfico de influência.
24
Fumacê é referência à fumaça do cigarro de maconha.
38
de sua casa, trazia na bolsa um saquinho com pano úmido para limpar seus sapatos. Caminhando
para o serviço, a paraibana atraía uma legião de fãs, especialmente meninos novos.
Lá no trabalho, todos gostavam dela, de sua alegria e seriedade com o serviço. Muitos
recorriam a ela para que apresentasse soluções de problemas ou ensinasse algum modo de
resolvê-los. Era a mestre em “simpatias”*, uma para cada situação. Virava referência para as
necessidades amorosas. Sua simpatia atraía muitos diretores. Mas alegre mesmo ela ficou no dia
2 de fevereiro quando uma de suas colegas foi transferida para outro departamento da empresa.
Aos pulos, dizia que tinha que ir até a praia levar flores e velas em agradecimento.
Outra companheira de trabalho estranhou tamanha euforia. Para ela, com essas coisas
não se brinca. Comemorar saída de colega e dizer que ia agradecer com velas e flores? Agradecese o que se pede e o que se deseja. Nesse caso, isso seria muito ruim, pois aparentemente a
funcionária havia desejado a saída de sua colega. Tendo ela esse “poder”, demonstraria a
maldade nos seus atos. Com a possibilidade de interferir na demissão dos funcionários, gerou
medo, afinal qualquer um poderia ser sua próxima vítima.
A efusiva paraibana não ligava para o tal controle da aparência. Suas unhas tinham o
comprimento que ela queria e eram pintadas na cor predileta, muito viva e chamativa. Os cabelos
pintados de vermelho acompanhavam o tom de alguns acessórios. Também não fazia a menor
questão de cumprir os horários. Mas por que ninguém percebia? Ou, se notavam, por que
ninguém criticava seu comportamento? Essas eram questões que passavam pela cabeça de alguns
colegas, especialmente uma que já estava acreditando que ela certamente possuía algum tipo de
proteção maior que a proteção de alguém muito poderoso que não era da firma.
Desconfiando da paraibana, passou a olhar a amiga de forma diferente, e antigas
atitudes foram repensadas e reinterpretadas sob outro ponto de vista. A assustada colega não
podia deixar de lado o fato de ela manter em seu armário o Livro de São Cipriano, fonte daquelas
orientações mágicas no trabalho.
Testes e mais testes foram sendo feitos com intuito de verificar o poder da paraibana.
Não comia nada que alguém lhe trouxesse de casa. Às sextas-feiras, ela ia trabalhar empolgada e
os tons de vermelhos eram mais presentes na sua indumentária. Eram sinais freqüentes que se
somaram à desconfiança de suas colegas de trabalho. Comentários do tipo “não gosto de fulana”
eram tomados como mau presságio, mais ainda quando vinham acompanhados de uma frase: “Tá
me incomodando vai sair do meu caminho”. A evangélica, tomada de preocupação, fazia questão
39
de sempre se desculpar muito quando uma situação de conflito maior despontava, “desculpas,
não foi bem isso que eu quis dizer ...”. Logo as pessoas também passaram a ter cautela com o que
diziam. Ela ria disso tudo.
Fazer fama e deitar na cama era o que fazia. Feiticeira ou bruxa era a nomeação que
deram à copeira, ora dito de modo carinhoso, ora raivoso Percebi nos relatos que ouvi ao longo
da pesquisa de campo que o temor por ela caminhava junto com o respeito. Reconheciam a
existência de alguma forma de poder, meio às escondidas. Mas, sempre que podiam, mesmo
aqueles que a temiam, procuravam sua orientação. Até a mais desconfiada das desconfiadas
esqueceu-se das acusações de que ela tinha enlouquecido uma outra colega de trabalho, que saiu
da empresa pedindo demissão porque acreditava ter uma bomba escondida lá dentro. Outros
diziam que ela tinha “amarrado” um colega, que agora realizava todas as suas vontades lá dentro.
Diante de um problema amoroso, a medrosa, católica de carteirinha e ex-membro de
pastorais, recorreu aos poderes da colega. O namorado da católica a havia trocado por outra,
mesmo lhe tendo jurado amor eterno. Segundo ela, isso era obra da ex-mulher do namorado, que
jurara: “não vai ser meu, mas também não será seu”.
Aquele problema de amor não tinha solução com as mezinhas que a paraibana podia
ensinar. Eram fracos demais, sentenciou a paraibana. Era “como ave-maria, como água com
açúcar”, não daria resultado; visto isto, indicou algo forte: “você tem que consultar o dono da
rua”. Ah! Finalmente parecia que o que era tão misterioso estava sendo revelado. As práticas,
que há tanto tempo os colegas percebiam, tinham um fundamento ritual, estavam vinculadas a
uma religião. Era o que algumas pessoas queriam saber. No terreiro que visitava, a paraibana
realizava pedidos, tanto os de amor quanto os de sua vida profissional. Ali também pagava suas
obrigações rituais, às vezes tinha mesmo que arriar o trabalho em encruzilhadas nas madrugadas.
Seus colegas diziam que era necessário conhecer por onde ela andava, porque era uma forma de
“saber com quem se lida no dia a dia”. De certa forma, quando tornava explícita sua relação
religiosa, suas falas, que até então vinham como “conselhos”, deixavam de ter esse sentido para
se tornarem uma possível interferência do Além na vida da terra.
Colegas que se cercavam de cuidados continuaram a fazê-lo. O medo continuava, mas
parecia que o respeito e a admiração também. Grupos evangélicos tiveram que redobrar as
orações, para o ambiente não ficar pesado. Poucas pessoas sabiam que ela rezava o credo de
frente para trás, pelas costas de quem ela não gostava, um feitiço para afastar pessoas indesejadas
40
usada há séculos pelos cristãos medievais (Thomas, 1991). Tudo isso ocorria numa espécie de
vigília. Entre cochichos e buchichos. Mas, para garantir, a amiga disse que pretendia visitar o
“dono da rua” no morro da Providência, também no centro. Ela podia escolher a gira de pretovelho na segunda-feira, as consultas com as cartas na quarta-feira, mas, convicta de que era
necessário “algo forte” para suas necessidades amorosas, queria ir ao “dono”: Exu.
1.4.1 A respeito do caso
A história apresentada é uma vivência do cotidiano carioca. No relato detalhado que
procura registrar os sentimentos em relação às crises vividas num ambiente de trabalho, estão
impressos pontos que são caros à compreensão da crença “afro-carioca”, que, conforme escreveu
Karasch (2000) sobre o cotidiano do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX, baseou-se
na comutabilidade de crenças, agregando valores e somando “forças”, vivência religiosa que
podemos constatar na atualidade. O caso da Pomba Gira narrado acima revela a crença no feitiço
como lógica de explicação do infortúnio. No Brasil, o Livro de São Cipriano é usado largamente
nas religiões afro-brasileiras, e se tornou um "almanaque ocultista" de fácil acesso que se dilui na
crendice popular do “trabalho espiritual” para a conquista de amores e de status. Foi a crença e a
prática da magia que propiciaram as vitórias e explicaram as derrotas da paraibana.
O estranhamento da mulher que se vestia de vermelho às sextas-feiras pode tanto passar
despercebido por um grupo quanto ser altamente significativo para um outro que compartilha da
mesma lógica de compreensão daqueles códigos expressos na roupa. Mas, além da vestimenta, o
comportamento também sinalizava seu modo de ser efusiva, destemida, destemperada e
ameaçadora; estes eram pontos que não passavam despercebidos para complementar a leitura que
estava sendo feito. As lógicas estabelecidas tinham como fio condutor a feitiçaria e tudo mais que
se pode arrolar como sendo seus princípios básicos.
Van Gennep, citado por Lévi-Strauss (2002:184) informa que:
“Cada sociedade ordenada classifica necessariamente não apenas seus
membros humanos mas também os objetos e os seres da natureza, seja por suas
formas exteriores, seja por seus dominantes físicos, por sua utilidade alimentar,
agrária, industrial, produtiva ou consumidora ...”
41
Além da simpática paraibana ser tomada por feiticeira por seu comportamento e valores
ético-religiosos, vimos que fatos ocorridos no cotidiano foram pensados exclusivamente pelo viés
“feitiço”.
Observando a vida difícil que a paraibana levava, morando noutro município, viajando
em trem lotado, limpando os sapatos para esconder que o bairro onde morava não tinha sequer
calçamento, podíamos avaliar que a magia pode ser pensada como instrumento de inversão na
hierarquia social (ver: Maggie, 2001; Fry, 1982). Ela era pobre, mas se tornava poderosa, e essa
inversão não se dava apenas no terreiro, mas também na vida profissional. A crença nas proteções
mágicas fornecia uma espécie de garantia para que a mulher que gostava de vermelho não
chegasse na hora que deveria e não fosse repreendida. Do mesmo modo, não havia companheira
de serviço que ameaçasse seu posto, pois sua conduta segura impedia comentários. Sua aliança
com diretores servia para suscitar mais dúvidas. Será que lhe deviam favores? Porém, para suas
colegas, era melhor pedir desculpas, mesmo achando que era ela quem estava errada.
A magia, como descreveu Frazer (in: Malinowski, 1978: p.8), não é algo maléfico ou
benéfico, mas simplesmente “um poder imaginário de controle da natureza, que pode ser
exercido pelo feiticeiro para o bem ou para o mal, para beneficiar o indivíduo ou a comunidade,
ou para prejudicá-los”. Acredito que a circulação da crença mágica, presente no ambiente de
trabalho apresentado, exerce grande influência sobre a vida daqueles “nativos”. Para os que
compartilham da mesma lógica de compreensão, ela pode ser útil, ameaçadora ou destruidora.
Com vínculos ou não a religiões e com ritos mais organizados que praticam a magia,
aquela musa de vermelho era um ponto fixo de reconhecimento da crença e prática no trabalho.
Além dela circulavam no ambiente os temerosos, os crédulos e os curiosos, muitos, usuários
religiosos 25 . Talvez a cidade seja um agente propiciador deste perfil. Citando Maffesoli
(op.cit,2002:62), relembro que o crescimento urbano e a descristianização promovem o
crescimento do sincretismo. O trânsito, o acúmulo, a soma e as livres interpretações “religiosas”
podem reinventar novas formas de viver o religioso com nomenclaturas mais diversas:
pentencostais, cristãos, espíritas, afro-brasileiros, católicos, protestantes, crentes, Jeová, “De
Cristo”, “Do Santo”, Carismáticos, espíritas, de umbanda, de umbanda branca, “umbandomblé”,
25
Este é um termo que utilizo como referência àqueles que circulam por diferentes religiões ou seitas independente
do vínculo religioso que possuam.
42
“Acredito em tudo”, enfim, denominações que poderiam cobrir até os “sem religião”, mas que
eventualmente crêem.
1.5. Arranjos religiosos
Até aqui tentei demonstrar que esta crença não tem cercas institucionais e isso promove
a aproximação de diferentes vértices religiosos. Na prática, constatei que esse modo de
operacionalizar a realidade religiosa movimentava a vida de muitos sujeitos, quer religiosos
praticantes, quer usuários de um ou outro sistema religioso.
Descrevi assim um Rio de Janeiro em que o ambiente social e cultural é expresso pelo
pluralismo e sincretismo religioso bastante enraizado. Em diferentes locais da cidade e eventos
que, por vezes, não têm um sentido estritamente religioso, pode-se encontrar algum caso deste
tipo. A porosidade religiosa (Sanchis, 2001) está expressa numa vivência agregadora, em que as
fronteiras religiosas são difíceis de serem determinadas. Ao que parece, essa religiosidade tornase igualmente “porosa”, e o mesmo ocorre com a percepção da realidade cotidiana.
Freqüentemente, novos encontros agregam, recuperam, reformulam e inventam
mecanismos de crenças e práticas religiosas. A partir dos casos descritos, pode-se ver a
coexistência de inúmeros cenários para uma mesma paisagem.
Primeiramente, destaco a unidade na diversidade da crença em espíritos e na influência
deles sobre o cotidiano. Depois, ressalto que, mesmo entre praticantes de credos diferentes, há
um convívio harmônico dessas diferenças. Sendo assim, casos de intolerância constantemente são
criticados. Embora não faça referência propriamente à crença em espíritos, destaco um fato que
ilustra tal configuração social respeitosa.
Em 1995, um programa televisivo numa emissora pertencente à Igreja Universal do
Reino de Deus, apresentou o discurso de um pastor, Von Helde, sobre o culto às imagens na
Igreja Católica. Durante sua fala, chutou repetidas vezes a imagem de Nossa Senhora da
Aparecida, secularmente conhecida como padroeira do Brasil. O episódio provocou uma
comoção geral, deixando indignados praticantes de outras religiões, que protestaram ao lado dos
católicos.
43
No Rio de Janeiro, embora o pluralismo seja praticado livremente, a religião tornou-se
assunto de Estado. O governo instituiu o ensino religioso como parte da formação dos estudantes
do ensino público, constando como disciplina na grade curricular 26 . Este foi um ponto de debate
nos últimos quatro anos, principalmente porque se instaurou o modo de ensino confessional, ou
seja, os professores convocados a ministrar a disciplina devem ser praticantes da religião. Os
professores, a princípio contratados, deviam comparecer às escolas com cartas de recomendação
das lideranças religiosas de suas comunidades de origem. Este modelo recebeu inúmeras críticas;
argumentava-se, por exemplo, que haveria a promoção da educação religiosa estrito senso, em
oposição a um entendimento filosófico ou histórico das religiões, o que dificultaria a promoção
da tolerância religiosa. Ao que parece, por detrás desse discurso do laicismo ou de uma visão
mais histórico-humanista, reside a idealização da apregoada tolerância brasileira; tolerância que
se acredita estar baseada numa identidade que se constrói na diversidade.
Neste
embate,
encontramos
vestígios
da
aclamada
“identidade
nacional”,
respeitosamente misturada. Além disso, tamanha circulação religiosa, que agrega valores e
imputa comportamentos, pode ser compreendida pelo prisma do “jeitinho brasileiro”, que busca
solucionar seus anseios usando de artifícios que nem sempre seguem o rigor da norma
estabelecida. Além do mais, esta atitude está vinculada à idéia de que as relações estabelecidas
podem ser manipuladas como fonte de poder, prestígio e favores. Nesse sentido, o vínculo
religioso pode ser utilizado como agenciador do trânsito social, no plano individual e no coletivo.
No caso específico do ensino religioso, algumas religiões foram favorecidas. Vale destacar que os
três últimos governantes do Estado (Antony Garotinho, Benedita da Silva e Rosinha Garotinho)
são evangélicos, tendo sido a base de seus eleitores conquistada também por um discurso
religioso.
Na cidade, a observação fora dos ritos permite reconhecer as crenças impressas nas
relações cotidianas. Boa parte dos “evangélicos” é orientada a usar certo tipo de vestimenta, a
manter certos padrões, como saias para as mulheres e calças com camisas de mangas compridas
26
Pela lei 3.459/00 instituiu-se a disciplina na forma confessional. O artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação diz que o ensino religioso nas escolas públicas é facultativo e deve ser "assegurado o respeito à diversidade
cultural e religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo". Portanto, não há menção sobre a forma
confessional, como está descrito no artigo 1.º da Lei n.º 3.459, que passou a valer em 2002. Desse modo, as escolas
públicas passaram oferecer o ensino religioso, sendo predominante a atuação das denominações cristãs.
44
para os homens. Para tal grupo, as mulheres devem também evitar cortar os cabelos, usar
maquiagem e pintar as unhas. Assim, visualmente, torna-se fácil a distinção. Nas religiões afrobrasileiras (como em algumas nações do Candomblé), encontramos sinais diacríticos como
entalhes na pele, geralmente no braço, o uso de fios de conta em volta do pescoço, trançados de
palha da costa nos braços (conhecido por “contra-egun”), roupas brancas às sextas-feiras e da cor
de seu orixá no dia referido a ele, e o cobrimento da cabeça em datas e rituais religiosos
específicos. De modo geral, tais sinais, que apresentam um vínculo próximo às casas de culto, são
apresentados criteriosamente e de modo bastante sutil, como, por exemplo, no caso dos fios de
conta ou de palha da costa que podem ficar por baixo da roupa ou até mesmo dentro da bolsa.
No caso dos evangélicos, parece-me que há uma busca por evidenciar sua condição.
Além do próprio corpo, os praticantes nomeiam biblicamente filhos. Em inúmeras fachadas de
lojas reluzem placas que indicam o nome religioso do estabelecimento: Gráfica Jeová, Livraria
Manancial, Livraria Rei de Judá, Motel Shalon. Algumas pessoas comentaram que preferem
comprar em loja de seus “irmãos” de fé. Dos pertences que mais chamam a atenção está um
número considerável de carros que expõem a condição de “propriedade de Jesus”, escrito dessa
forma, ou, “este carro foi Deus quem me deu”.
Apesar desse encontro entre credos pode-se viver conflitos políticos-religiosos. Passo a
narrar um caso no município de São Gonçalo A chegada àquele município pela rodovia Amaral
Peixoto é anunciada numa placa pintada: “São Gonçalo é de Jesus”. Na última eleição para a
prefeitura (2004), a divindade foi alvo de disputa pelas duas principais concorrentes ao pleito:
Aparecida Panisset (PFL) e Graça (PMDB). Ao que parece, seguindo a lógica “trabalhador vota
em trabalhador” (jargão comum dos anos 80, quando o candidato da esquerda representava a
central dos trabalhadores unificados), propagou-se que “evangélicos votam em evangélicos”.
Nessa disputa pelo mercado eleitoral, o município foi invadido pelos expoentes da música
religiosa evangélica, um estilo conhecido como “gospel”. Alguns bairros, praças e ruas
receberam palco para shows. A candidata Graça estava em vias de vencer no primeiro turno. Às
vésperas das eleições, contava com mais de 50% das intenções de voto. Porém, um fato
inesperado mudou por completo este cenário. Na semana das eleições, foi divulgada uma imagem
da candidata vestida como uma médium de umbanda: saia rodada e camisa larga de algodão, e o
pescoço cheio de fios de conta, fumando um charuto, numa posição que lembra o estado de
45
incorporação 27 . Em pouco tempo, o debate sobre a religiosidade da candidata tomou as ruas. Não
se falava em outra coisa pela cidade. Até mesmo as crianças diziam “a Graça é macumbeira”.
Uns perguntavam aos outros: “você tem coragem de votar na Graça agora?”. A notícia ia
ganhando muitos outros elementos para além daqueles notificados nos jornais, como por
exemplo, o fato de a referida candidata ter feito um grande despacho para ganhar aquela peleja.
Questionavam-se sua religiosidade e suas reais intenções com o público evangélico. Mesmo
sendo rebatida a falsidade da informação, com a apresentação da revista de umbanda que deu
origem à montagem, em pouco tempo Graça ficou conhecida como a macumbeira que queria
aproveitar-se dos evangélicos. Panisset ganhou as eleições e mantém a fidelidade aos seus
eleitores, promovendo eventualmente show gospel nas pracinhas de São Gonçalo.
Além dos dizeres que apresentam automóveis como propriedades de Jesus, lê-se, com
bastante freqüência, um outro que propaga: “Deus é fiel”. No entanto, como constatamos, parece
que seu rebanho não é tão fiel quanto “Ele”. Comentei o caso de católicos que eram médiuns em
um terreiro, e de evangélicos que procuravam tais locais como uma forma de purificação e
proteção. Mas, além desse recurso “emergencial”, soube que algumas pessoas evangélicas
freqüentam casas espíritas.
A história de uma dona de academia de ginástica ilustra o fato. Uma professora evitava
fazer qualquer tipo de comentário que trouxesse polêmica às suas aulas. Por ser dona de uma
pequena academia, temia que sua religião, umbandista, afastasse clientes. Fugia de quaisquer
debates que pudessem expor suas opiniões para gerar desavenças. Uma de suas alunas era
praticante fervorosa da Igreja Universal do Reino de Deus e sempre dizia maravilhas sobre a
transformação que tivera em sua vida após a conversão. Ela era tão ardorosa em sua fé, que Carla
espantou-se quando se encontrou com ela num terreiro de umbanda. A evangélica não parecia
constrangida diante da professora, apenas riu um pouco, sem graça. As duas não comentaram o
episódio, mas, ao que parece, o tom das conversas a respeito de crenças tornou-se mais amistoso.
Em geral, a circulação de pessoas e idéias torna-se mais visível, como no caso relatado
acima. Dizer que as fronteiras entre as religiões “espíritas” são elásticas ou porosas constitui uma
ambientação religiosa movida a fluxos, a constantes encontros e relações. Aparentemente o que
se percebe é uma plasticidade ainda maior quando pensamos no sentido das crenças na atuação
mágica dos espíritos sobre a vida cotidiana. Nesses termos, acaba ocorrendo múltipla
27
Jornal “O São Gonçalo”, 31 de setembro de 2004 e “O Dia”, 01 de outubro de 2004.
46
ramificação, que parte dos indivíduos para composições religiosas específicas, voltadas para seus
interesses. Os grupos religiosos atendem a esta demanda e alguns locais são conhecidos como
“hospitais espirituais”, por atenderem casos específicos de cura espiritual, sem necessariamente
manter vínculos mais duradouros com seus consulentes. Desse modo, a doutrina espírita, nas
mais variadas vertentes existentes, atende este anseio particular, contribuindo para uma
composição de crença mais holística.
A idéia de fronteira como impedimento é inexistente ou pouco eficaz em alguns casos
da prática da religiosidade “espírita”. Os usuários religiosos buscam os bens de seu interesse
numa articulação que pode apresentar uma seqüência assim disposta:
Praticantes de religiões cristãs → kardecismo (considerado “brando”)
Praticantes de religiões cristãs → religiões afro-brasileiras (consideradas “fortes)
Praticantes de religiões Kardecistas → religiões daimistas (consideradas como
curadoras e de doutrina similar à sua)
Praticantes da Umbanda → religiões kardecistas (consideradas mais “tranqüilas”)
“Sem religião” → práticas aleatórias
A seqüência apresentada dispõe algumas modalidades de trânsito, mas não exclui tantas
outras possíveis que decorrem da utilização individual. Vale recordar a busca por oráculos, que
parece tornar mais consistente a noção de uma sociedade crente de muitas crenças. Descrevendo
um pouco essa coleção de indivíduos, procuro articular num grupo de “usuários religiosos”,
devotos de guias, orixás e santos*; freqüentadores fiéis e assistentes esporádicos; curiosos;
clientes e religiosos com cargos sacerdotais. O pertencimento a um grupo não invalida a
circulação por este circuito religioso. Assim, alguém pode ser cliente de uma certa entidade do
candomblé ou fazer uso de seu ritual de limpeza, mas manter-se fiel à sua freqüência a uma casa
de umbanda.
Ao que parece, importa mesmo é o consumo de “bens”, entendidos aqui como os “bens
imateriais”, considerados por determinado grupo religioso como “graças espirituais” = saúde, paz
de espírito; e “bens materiais”, que são as “graças materiais” = empregos, equipamentos
eletrônicos, eletrodomésticos, casa própria, etc. Penso que essa busca pelos “bens” pode ser
entendida aqui como um veículo que produz uma certa homogeneidade em que, a princípio, só
47
percebia indivíduos com seus interesses particulares. Entendo essa circulação entre as casas como
um repertório que se repete freqüentemente. É comum história de usuários que freqüentam um
lugar como visitantes e depois assumem uma função no ritual. Algumas vezes, essa mudança não
significa o abandono de práticas anteriores, mas, ao contrário, há uma condensação de crenças e
práticas. Assim, o consumo religioso influencia diretamente o uso religioso. Ou seja, a circulação
de pessoas e ritos não demonstra somente o funcionamento do campo religioso, mas as operações
que são realizadas a partir de sucessivas apropriações.
Como vimos, nas zonas urbanas os oráculos cumprem com sua função social, de
predizer circunstâncias, permitindo arranjos dentro da estrutura social. As predições colaboram
na manutenção de grupos familiares, e na resolução de problemas relacionados ao emprego e à
saúde. Essas intervenções oraculares não são métodos exclusivos das religiões espíritas,
atualmente, inúmeras igrejas cristãs “renovadas pelo espírito santo”, como se costuma dizer,
revelam aos seus fiéis situações dramáticas e possibilidades para solucioná-las. Segundo me
informou uma vidente, nos oráculos de rua, as conquistas amorosas continuam sendo seu carroschefe.
Em algumas casas religiosas, a busca por bens materiais movimentam suas sessões. A
possibilidade de ascender socialmente no trabalho através da magia faz com que as giras de exu
(divindade responsável pelas conquistas materiais) se tornem as mais concorridas em alguns
terreiros de umbanda. Alguns evangélicos mudam a postura corporal e o andar quando passam
pela rua no domingo: filhos arrumados e perfumados, as mulheres com suas impecáveis saias e os
homens com o terno que faz lembrar a imagem de um homem “de negócios”, sentem-se bem
sucedidos diante aos olhos de Deus. Vale destacar que no interior de cada religião há uma
ascensão dentro da hierarquia. Freqüentadores tornam-se lideranças de grupos, obreiro pode
tornar-se pastor, e de iaô* a pai-de-santo. São diferentes modalidades de consumo e produção
estratégica de valores para o uso social.
Numa revista feminina, uma propaganda reluzia a idéia: “A vida não tem regras. Siga
as suas”. Era evocativo. Assim também é a movimentação no campo religioso. Sem dúvidas há
regras, mas cada um é livre para criar as suas. Vale destacar que um dos motivos pelos quais a
umbanda funciona de uma forma dispersa, sem regras determinadas para todos os terreiros e sem
dogmas centrais (Fry, 1982), deve-se ao fato de atribuírem às entidades a comunicação de suas
regras. Muitas vezes, este quesito é parte do drama que estrutura o rito: a entidade do médium
48
“A” diz algo que contraria o que a entidade-chefe* da casa destinou a ser feito. Então, inicia-se o
processo conhecido por demanda*, em que o médium “A” funda sua própria casa. Essa dinâmica
é intrínseca ao funcionamento de muitas casas do campo espírita, como apresentou Maggie
(2001).
Finalmente, em relação aos pretos-velhos, a ação individual institui outros usos para as
entidades. Permanece a idéia coletivizada de “espírito de escravo”, entretanto, este movimento do
campo espírita reforça o caráter ambíguo do símbolo. Quanto mais personalizado o uso do pretovelho como um guia pessoal, menos sentido de “escravo” ele passava a ter. Por vezes, algumas
pessoas relataram que o “seu preto-velho” tinha sido escravo, mas isso não importava, pois “ele
era tão bom”. Ouvi também que o preto-velho tinha sido escravo noutra vida, mas nem parecia,
pois “era tão sábio”. Assim, foram surgindo representações sobre esta entidade. Embora
predomine um entendimento bipolar da escravidão, no qual a narrativa é marcada pelas relações
senhorXescravo, principalmente no ambiente rural, surgiram outros aspectos, como por exemplo
o de pretos-velhos quilombolas. Neste circuito de crenças, a idéia predominante de que os pretosvelhos representavam a escravidão foi fortalecida no âmbito religioso institucional, deixando,
porém, de indicar exclusivamente o lugar de “escravo”, propriedade do pólo ideológico do
símbolo, para sobressair os aspectos vinculados ao pólo sensível, das emoções que dele são
extraídas, como por exemplo, a busca pelo apaziguamento das relações. Aqui, neste circuito
religioso, a partir do universo de representações, foi observada a ação dos sujeitos sobre o uso
que fazem de suas crenças.
Os pretos-velhos aparecem então tanto em cerimônias organizadas, em “igrejas”, como
em ritos particulares – na rua, em casa, no shopping, no ônibus, etc. Quanto mais particularizado
for o rito, mais afastados estarão os pretos-velhos das representações de escravo. Quanto mais
particularizada, menos poderosa será a entidade se comparada à sua atuação no ritual coletivo.
Essas são duas hipóteses que serão abordadas nos capítulos 2 e 5.
No próximo capítulo, descreverei ritos institucionalizados. Alguns desses ritos são
apresentados a partir da história de vida de lideranças religiosas que instituíram tais ritos. Esta
escolha reflete, sobretudo, o ponto inicial de muitas instituições que, a partir de conflitos internos
em seus grupos de origem, inauguram um novo lugar em que se procuram novas realizações. Tais
narrativas são como os fios mitológicos de Ariadne, que servem para conduzir à saída, ou aqui,
ao encontro com o culto aos pretos-velhos, através da circulação por terreiros, templos, casas de
49
santo, barracão, etc. Predominam casos de pretos-velhos, pois são o foco central dessa análise.
Contudo, incluí situações de contato com outras entidades, no intuito de demonstrar relações de
intimidade com as entidades, que levam a ritos particulares, delineando afinidades fora das
cerimônias religiosas, gerando novas perspectivas. Neste próximo capítulo, a pergunta que nos
orienta é aquela formulada na introdução: Por que os pretos-velhos são espíritos tão centrais na
vida brasileira e em tantos sistemas de religiosos?
50
CAPÍTULO II: PRETOS-VELHOS: EM TRÂNSITO PELAS INSTITUIÇÕES
“Pode-se dizer que uma Igreja ou um Estado
existem no mesmo sentido que uma pedra,
um animal ou uma idéia?”
Pierre Bourdieu
2.1. Espaços sagrados, escravos sagrados.
Os pretos-velhos estão associados à figura dos escravos e do cativeiro brasileiro,
sendo-lhes, entretanto, atribuídos outros significados no campo religioso, instituído aqui como
um circuito de práticas coletivas e individuais, por meio das quais se solidificam novas e antigas
crenças. Por vezes, os grupos religiosos se organizam a partir do desejo de realizarem um
trabalho espiritual diferenciado. Em alguns casos, o parâmetro para a fundação de uma nova casa
religiosa é movido por desacordos com seu grupo de origem. Noutros, as entidades espirituais de
um médium podem orientá-lo para a inauguração de outro modelo de trabalho com o mundo
espiritual. Assim, sucessivas rupturas levam à inauguração de novas instituições. Além disso,
parte dos freqüentadores das casas religiosa cuida sozinho de sua espiritualidade, cumprindo, por
exemplo, com um calendário de preces e oferendas, o que significa que podem ou não receber
orientações de um centro religioso, fazendo deste circuito um espaço criativo.
Neste espaço de religiosidade criativa, são instituídos e reforçados os significados das
entidades. Aqui, os pretos-velhos consolidam sua imagem de “escravo” e apontam entendimentos
sobre a vida cotidiana de seus devotos. Através dessa diversidade, o símbolo representa inúmeras
significações. Os pretos-velhos aglutinam entendimentos sobre o passado e o presente. Nos ritos
religiosos, este passado é representado através das narrativas sobre suas vidas e da performance
ritual, como por exemplo, nas sessões de consulta.
No presente trabalho, a umbanda, a casa de candomblé, a barquinha, o grupo mais
próximo ao kardecismo e o grupo de estudos espiritualista possuem sua própria teleologia, ou
seja, têm suas próprias concepções de sociedade, humanidade, natureza e, por tal motivo,
instituíram ritos diferentes. Entretanto, nos respectivos locais de culto, mantêm espaço para a
ação dos pretos-velhos.
De modo geral, os pretos-velhos foram compreendidos como escravos martirizados
pelo escravismo e, tal qual Jesus Cristo, que é símbolo de dor e salvação para os cristãos, foi
51
igualmente glorificado através do sofrimento. De outro modo, representa ancestrais africanos que
dominavam o conhecimento da magia. Dentre estes e outros modelos de compreensão, os pretosvelhos estão presentes em diferentes práticas religiosas, narradas a seguir. Em alguns casos,
atuam através do transe, falando a partir dos corpos dos médiuns. Noutros lugares, comunicam-se
por um fenômeno denominado “irradiação*”, pois se acredita serem um espírito de luz que pode
auxiliar na cura através do contato.
Além dos templos religiosos, algumas narrativas revelam outra forma de relação com
as entidades. Procura-se demonstrar que o campo espírita se constitui das já formalizadas
“instituições”, mas, engloba também as produções autônomas. Em alguns casos, o indivíduo,
compenetrado e fiel aos dogmas de sua tradicional doutrina religiosa, repensa e escolhe novas
possibilidades para a resolução dos seus problemas. Nestas situações, os pretos-velhos são figuras
que auxiliam na familiarização de um novo olhar sobre o desconhecido ou temido. Ou seja, um
dos critérios para a escolha de certo espaço religioso pode ser “trabalho com os pretos-velhos”,
por considerá-los figura “do bem”. A procura por um preto-velho pode, ainda, ser feita em
substituição às antigas práticas, como, por exemplo, a de levar criança para ser benta contra
“maus olhares”ou “quebrantos”, feito comum em décadas anteriores, imortalizado por antigas
“benzedeiras” e, atualmente, difícil de se encontrar nas zonas urbanas da cidade.
As motivações que levam à circulação da figura dos pretos-velhos são diversas, as
quais, em parte, são descritas a seguir. Como citei, todas as instituições iniciaram-se a partir de
experiências individuais; assim, procurei reproduzir ad hoc tal feito. Os espaços sagrados
descritos formam uma composição dos lugares nos quais foram concentradas as observações. As
situações descritas e as festas formam o contexto da prática do culto e da crença nos poderes de
intervenção dos pretos-velhos, além de contribuírem para a diversidade das relações entre
devotos e entidades e, sobretudo, da contínua consagração dos escravos como divindades.
Durante a pesquisa de campo, participei de rituais e conversei com freqüentadores e
médiuns, além de realizar entrevistas na Tenda Nossa Senhora da Piedade, fundada por Zélio de
Moraes, que alguns religiosos e acadêmicos consideram ser o precursor da umbanda. Este mesmo
local foi anteriormente pesquisado por Diana Brown (1986). Segundo a autora, a criação da
umbanda foi feita quando Zélio de Moraes introduziu a figura do preto-velho e dos caboclos nos
rituais espíritas, nacionalizando assim o espiritismo e disciplinando os rituais de candomblé. Para
Brown, este momento é fruto do contexto do país.
52
2.2 Uma engrenagem: a Umbanda da Tenda Nossa Senhora da Piedade
“Quem organizou esta umbanda deixou livre. Como você vai ter uma coisa certa? (...)
É difícil você amarrar a umbanda. Ela é solta.” 1
Poderia relatar inúmeros casos que refletem a flexibilidade do campo umbandista, pois
encontrei rituais sem unidade entre si, e mesmo alguns praticados há décadas não estão livres
para novas influências, de modo que acompanhar os ritos de uma casa de umbanda pode
significar estar constantemente em contato com novidades. “A umbanda é solta!”, como afirma a
liderança religiosa de um templo em São Gonçalo. Inúmeros pesquisadores focalizaram suas
pesquisas na análise da umbanda, sua gênese e prática. Em traços gerais, a umbanda pode ser
definida como rito de inversão social, tal qual comprovara Yvonne Maggie (2001); como
dramatização ritual dos princípios que estão presentes na sociedade como um todo, na
interpretação de Peter Fry (1982); como importante representação da nacionalidade brasileira,
expressa, sobretudo, por sua composição religiosa, como demonstrou Diana Brown (1986); como
degeneração das práticas africanas, como descreveu Bastide (1973); como embranquecimento de
práticas africanas, tornando-as satisfatória aos olhos e gosto das classes médias urbanas, como diz
Ortiz (1999); e ainda, entre outros, como espaço de sociabilidade dos negros como faz Cardoso
(2004).
Entre tais referências, através de minhas observações, aproximei-me de Yvonne
Maggie e Peter Fry. Sendo os ritos “soltos”, percebi que alguns grupos reforçam a idéia de
inversão e outros podem ser interpretados diante desta perspectiva de reforço da estrutura social.
Além disso, a figura dos pretos-velhos contribuiu para compreender a umbanda sob o aspecto da
produção de uma identidade nacional, tal qual registrou Brown.
Embora não pretenda entrar no debate sobre a fundação da umbanda, interessa-nos o
fato de haver uma formulação em que esta modalidade religiosa expressa a crença no poder
curativo dos escravos, através da figura do preto-velho. Alguns estudiosos como Arthur Ramos
(1943), por exemplo, disseram que a umbanda sistematizou o que já existia: diferentes cultos de
origem banta (Ramos: 472). Pelo fato de possuir maior legitimidade social, por ser formada
1
Entrevista: Natércia, São Gonçalo, 05 de julho de 2002
53
majoritariamente por membros da classe média urbana (Ortiz,1999), acabou solapando inúmeras
práticas diversificadas que existiam.
Um informante, praticante do “Catimbó”*, demonstrou insatisfação com a hegemonia
da umbanda nos estudos acadêmicos, e disse que, embora muitas práticas fossem apropriadas
pela umbanda, havia outras que permaneceram isoladas. Explicou que:
A Umbanda é uma prática espiritual. Não tem doutrina. Ela se utiliza de várias
coisas, tantas que isso caracteriza o aspecto de não ter uma fundamento próprio.
Basicamente a prática espiritual se adapta a qualquer doutrina que exista. É como
se os espíritos para poderem fazer o seu trabalho se disponham a apoiar qualquer
coisa que nós nos sintamos confortáveis. Minhas observações me levaram a
concluir que eles tem um objetivo muito específico aqui e que nós somos um detalhe
nisso. Eles falam o que a gente quer ouvir, dizem sim para o que queremos (desde
que seja razoável) para que a gente se sinta confortável e eles possam fazer o
trabalho deles. Eles ajudam a quem querem, não seguem ordem de ninguém.
Provavelmente tem alguém a quem prestam conta e é esse objetivo que os guia. Não
se iluda com aparências. A histórias mudam com o lugar. Assim tem a Umbanda
africanizada, tem a mais católica, tem a esotérica, tem a Kardecista, tem a cigana,
tem a corrente oriental-induísta e por ai vai. Não existe rito pré-determinado. não
tem formula. O que fizer dar certo, desde que eles, os espíritos queiram. Entidades
iguais em casas diferente fazem coisas totalmente diferentes.
Mas, voltando, a Umbanda não tem estrutura religiosa própria, ela se adapta a
qualquer crença, a única coisa comum é a pratica espiritual e o fato de as
entidades serem todas elas representativas de personagens que pertenceram a
minorias perseguidas em seu tempo encarnado. preto-velho, índio, boiadeiro,
malandros, prostitutas, etc... Só o Kardec que recebe médicos e gente educada. A
própria prática da Umbanda não implica em nenhuma religiosidade explicita.
Depende da formação do chefe da casa e geralmente é uma mistura de catolicismo
e kardecismo. Assim eu não acho que ser umbandista é ter uma religião. Eu acho
que você tem uma e trabalha na Umbanda. [os destaques são do informante]
Aqui a umbanda é prática espiritual, que pode ser agregada a outros princípios
religiosos, sendo tal plasticidade focalizada com intuito de perceber a composição do campo
espírita a partir da lógica de sua umbandização. Vimos, através do relato acima, que os
indivíduos compõem suas crenças particulares partindo de um gênero religioso que foi
constituído não como um culto único e coeso, mas de variáveis práticas e crenças que são
confederadas num sistema religioso. As descrições apresentadas a seguir representam parte dessa
forma de viver não somente a religiosidade umbandista, mas a própria crença na intervenção dos
54
espíritos na vida cotidiana. As entidades aconselham, curam, indicam formas de realizar o ritual e
chegam a praticar sexo com seus devotos, como veremos adiante.
Os usuários religiosos, aqueles que circulam pelas casas em busca de soluções imediatas
para seus problemas sem estabelecerem vínculos, interagem com as “regras” pré-estabelecidas,
contribuindo para que o campo religioso permaneça “imprevisível”. Esta imprevisibilidade pode
ser constatada como forma intrínseca ao rito, ou seja, faz parte de sua estrutura. A observação de
modo sistemático levou à compreensão de que, mesmo as situações que eu a princípio considerei
“fora dos padrões”, como, por exemplo, alguém da assistência ser tomada por um espírito, eram
completamente naturais àquele ambiente.
Como disse o informante em seu texto, acredita-se que os espíritos ajam mediante a
ação do homem e se enquadrem em quaisquer modelos religiosos que possam vir a convidá-los a
trabalhar. Isso significa que o contexto social modela os planos espirituais. Entretanto, crê-se
também que a vida pode ser modelada metafisicamente. Esta ambigüidade constitui o quadro de
compreensão da ordem religiosa do mundo, em que a ação dos espíritos não se encontra num
plano distante do qual se vive, mas, ao contrário, vigora a idéia de co-existência dos seres. Desse
modo, para compreender essa engrenagem religiosa, detive-me nas relações entre indivíduos e os
grupos religiosos, e indivíduos com o sagrado.
A crença na magia imperava no contexto social que abrigou a criação da modalidade
religiosa denominada “umbanda”. Foi esta vastidão “mágica” que permitiu a Zélio conduzir seu
trabalho de modo diferente do que existia, contribuindo a princípio para organizar um culto
doméstico, no qual a possessão pelos espíritos se dava em sua casa, prática adotada
habitualmente nos dias de hoje.
Comumente ouvi a expressão “missão” e “destino” para justificar a escolha por
determinada função religiosa, ou como explicação para o abandono de uma antiga religião pela
prática espírita. Em alguns casos, esse “abandono” é relativo, pois algumas pessoas mantêm dois
ou mais vínculos religiosos, fato que explica, em parte, novas elaborações dos cultos e a
proliferação da umbanda em cultos coletivos ou privados. A partir deste contexto, mediante a
impossibilidade de Zélio de Moraes manter um vínculo com o kardecismo e realizar trabalhos
espirituais com os pretos-velhos e os caboclos, ele construiu um outro sistema de crença.
55
Alguns autores e religiosos 2 pensaram a umbanda a partir de sua gênese, referindo-se à
figura Zélio de Moraes, como a citada pesquisa de Diana Brown (1986). Como disse Brown,
Zélio tornou-se figura performática no campo umbandista e se destacou por representar uma
classificação típica da umbanda, a “Umbanda Pura” (Brown, op.cit., pp. 38-41). Segundo a
autora, a umbanda se teria tornado mais “pura” por sua aproximação com o kardecismo,
afastando-se dos rituais mais “africanizados”.
Atualmente a umbanda é matriz para inúmeros cultos e, diante da perspectiva analítica
de Brown, poderíamos compreender que se está configurando, após um século de vida, um
modelo de culto que procura apresentar uma identidade brasileira diversificada, em ritos nos
quais se experimenta harmonizar diferentes experiências religiosas. A exemplo disso, a barquinha
e a arca são significativos modelos de utilização de crenças e práticas umbandistas, expressando a
continuidade de um perfil religioso híbrido na sociedade contemporânea, assemelhando-se à sua
estrutura, conforme indicou Fry (1982); e, em certos momentos, como no culto aos pretos-velhos,
demonstrando que o rito representa a possibilidade de experimentar a inversão social. Assim,
novas práticas religiosas criam outras composições a partir de sua estrutura ritual, basicamente
formada da crença na força da natureza, através do culto aos orixás e numa tríade de espíritos:
caboclos, crianças e pretos-velhos. Suas cantigas e seu hino estão presentes em ritos da
barquinha, da arca, de grupos de candomblé “traçado” e de casas espíritas próximas ao
kardecismo. Neste estudo, a umbanda é referência para o entendimento sobre os pretos-velhos,
pois, afinal, como disse, seu culto segue um padrão estabelecido pela umbanda; e foi através da
repetição deste padrão que observei o enraizamento das práticas.
2.2.1 A peça em Umbanda: Zélio de Morais
Como moço que era, Zélio de Moraes sentia medo, por acreditar que podia em breve
perder os movimentos de suas pernas. Embora os médicos de sua família e outros tentassem
descobrir o que se passava, eram vãos os esforços. Dispostos a resolver de toda maneira aquela
paralisia, procuraram uma velha que, dizia-se, realizava curas. A senhora, curvada pela idade,
disse somente que a responsabilidade por tal malefício era das entidades que queriam trabalhar*.
Ao que parece, não houve um espanto da família do jovem Zélio de Moraes.
2
Há publicações religiosas que afirmam tal idéia como Bandeira (1961) e Leal de Souza (1925).
56
Por certo a compreensão imediata daquela realidade devia-se ao fato de alguns parentes
próximos serem simpatizantes e seguidores da doutrina kardecista. Isso facilitou a compreensão
do quadro de saúde e do remédio necessário à sua melhora. Sendo assim, trataram de levá-lo ao
lugar que acreditavam ser ideal para tal solução. Moradores de São Gonçalo, rumaram ao
município vizinho, Niterói, para que fosse examinado por especialistas na Federação Espírita
Brasileira.
Verificados o histórico e os sintomas do rapaz, foi-lhe dito que as entidades que o
acompanhavam não podiam trabalhar na doutrina espírita. Em meio a um interstício de confusão,
uma outra voz surgiu. Na falta de acordos, ocorre o inesperado. O jovem se transformara, não
demonstrava mais nenhum resquício de seu parcial “aleijão” e, do alto de sua postura erguida, ele
fez um discurso em que bradou: “Botarei no cume de cada montanha que circula Neves [bairro
de São Gonçalo] uma trombeta tocando, anunciando a existência de uma tenda espírita, onde o
preto e o caboclo possam trabalhar”.
Aquela cena era incompreensível para alguns presentes. Ficaram intrigados com o que
ouviam e viam. Zélio falava como um índio, mas, para alguns médiuns videntes, a imagem que
viam diante de si era semelhante a uma forte luz, envolta numa veste sacra, como um monge ou
algo parecido. A “outra” entidade, que o tomou, deixou-o com a aparência de um idoso em fim
de vida. Negava-se a sentar-se à mesa, dizendo: “Negro num senta não, meu sinhô. Negro fica
aqui mesmo. Isso é coisa di senhô branco, i negro deve arrespeitá. Num carece preocupa não,
negro fica num toco, que é lugá di negro.” 3
No dia seguinte, na hora determinada, a movimentação lembrava dia de festa em casa,
todos pareciam ansiosos para o começo. Às sete horas da noite a casa estava cheia, tinha gente do
lado de fora, observando pela janela todo o movimento e o trabalho espiritual que ali se iniciou.
A sessão começou às oito horas, e o caboclo e o preto-velho fizeram tarefas espirituais de
aconselhamentos e curas; e, diante dos olhos incrédulos dos fiscais da Federação, a reunião
ocorrera dentro de muitos dos princípios apregoados por eles. Em torno de uma mesa, conduzida
por orações e com porções de “água fluidificada”*, médiuns entravam em transe. A casa ficou
cheia naquele e nos dias seguintes.
Sobre o caso, comenta a filha de Zélio, Dona Zilméia:
3
Jornal Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, Ano I, Número5.
57
Papai tinha de 17 para 18 anos quando apareceu alguma coisa estranha na
matéria dele. Então, nós tínhamos muitos médicos na família, tios e avós meus,
e papai se preparava para a escola naval, e ali ninguém curou o que papai
sentia, uma espécie de paralisia. Aí alguém, minha família era católica, meu
avô, pai de papai, era kardecista, papai foi levado a esta pessoa, no Fonseca, eu
me lembro que era uma escura, chamada Cândida, era rezadeira, porque
naquele tempo não havia centros espíritas, eram pessoas que rezavam,
rezadores, né? Curandeiros vamos dizer assim. Aí ele foi, era espírito encostado
para fazer caridade e que papai não era médium não era nada. Aí ele foi levado
para a Federação que ainda existe hoje na rua Coronel Gomes Machado (...) e
ali pela primeira vez, papai recebeu o Caboclo das Sete encruzilhadas (...) era
um Caboclo que vinha na terra para difundir a umbanda.”
Relembrando sua história, segue o depoimento de Zélio, numa parcial incorporação*
com o caboclo das Sete Encruzilhadas 4 :
Fez ontem 63 anos que na Federação kardecista do Estado do Rio, presidida
por José de Souza, conhecido por Zeca, rodeado de gente velha, homens de
cabelos grisalhos, o enviado de Santo Agostinho chamou meu aparelho/ me
chamou 5 para sentar à sua cabeceira. Trazia uma ordem, fora jesuíta até aquele
momento, chamava-se Gabriel Malagrida, naquele instante ele ia criar a lei de
umbanda, aonde o preto e o caboclo pudesse manifestar porque ele não estava
de acordo com a Federação kardecista que não recebia pretos nem caboclos,
pois se o que existia no Brasil eram caboclos, eram nativos, se no Brasil, quem
veio explorar o Brasil trouxe para trabalhar para engrandecer este país eram
os pretos da Costa d’África, como é que uma Federação espírita não recebia
caboclos e nem pretos?
2.2.2 Montando tal engrenagem
O relato inaugura a avant-première da umbanda como um sistema religioso. Os relatos
indicam que os espíritos identificados com a figura de um índio e de um ex-escravo idoso
complementaram rituais kardecistas, a princípio acrescentando novas entidades. Além de abrigar
novos “tipos” de entidades para os trabalhos espirituais, sistematizaram-se encontros que visavam
à promoção de curas. Procurou-se criar cerimônias que retiravam os malefícios através da
desobsessão, ou seja, a retirada dos espíritos malfazejos, pela ação dos espíritos até então
considerados de pouca elevação espiritual, como os pretos-velhos, por exemplo.
4
Gravação de uma cerimônia em comemoração aos 63 anos de umbanda, 1972. Acervo pessoal de umbandistas.
Neste primeiro momento, parece que a incorporação ainda está confusa, e ora Zélio fala , ora o caboclo, assumindo,
posteriormente, de forma definitiva, o caboclo.
5
58
Embora por esses relatos a umbanda não tenha surgido exclusivamente do kardecismo,
mantém com ele uma relação de relativa proximidade de crenças e práticas. Naquela ocasião,
Zélio manteve a prática que era comum às reuniões kardecistas de reunirem-se ao redor de uma
mesa, recebendo ali as entidades, fato em desuso atualmente na Tenda Nossa Senhora da
Piedade 6 . Destaco que o campo espírita é maleável em suas configurações, assemelhando-se,
neste sentido, a paisagens que se modificam com a ação do tempo e o posicionamento do seu
observador. Apresentando argumentos para tal volubilidade, Peter Fry (1982:13) diz que: “O
grau de competição entre os terreiros e a preocupação com os “trabalhos feitos” e outros
ataques místicos revelaram que o umbandismo teria grande dificuldade para se articular a nível
local ou nacional”.
No decorrer da pesquisa, visitei alguns lugares que se auto-intitularam “Umbanda
Pura”, que, no entanto, realizavam ritos com elementos classificados como “africano” ou
“quimbandeiro”, tanto pelos estudos acadêmicos quanto por parte dos religiosos e demais
freqüentadores. Presenciei, entretanto, o uso de atabaques, bebidas e pólvora, normalmente
associados a ritos “mais pesados” ou “menos puro”. Observando tais ritos, recordava a análise de
Renato Ortiz (op.cit.) que dizia que a umbanda havia embranquecido as práticas africanas.
Naqueles ritos, vislumbrei o empretecimento das práticas kardecistas. Embora algumas pesquisas
apontem para a “africanização” da umbanda, com dirigentes umbandistas procurando ampliar
suas forças em ritos do candomblé, como descreve Patrícia Birman (1995), através da circulação
entre as casas que obtive com a pesquisa de campo, encontrei uma crescente “umbandização” 7 .
Ao contrário do imperativo de que a umbanda havia alterado tradições africanas para alcançar a
classe média, entendia que o “empretecimento” da umbanda levava a prática dos “negros” à
classe média brasileira.
Geralmente, os ritos da umbanda são basicamente acompanhados de defumação, hinos
de abertura, preces, cantigas, transe (caboclos, pretos-velhos, crianças e exus, variando conforme
6
Pude observar uma sessão de mesa na Tenda Nossa Senhora da Piedade, em que foi feito um atendimento aos
médiuns da casa. Esta cerimônia foi usada para a prática do desenvolvimento dos médiuns mais novos.
7
Luiz Felipe Rios, em artigo denominado “A fluxização da umbanda carioca e do candomblé baiano em terra brasilis
e a reconfiguração dos campos afro- religiosos locais” (www.naya.org.ar/congresso2000/ponencias/liuis_rios.htm);
em um subitem do trabalho denominado “Um passo a traz: a umbandização”, descreve o movimento de fluxo da
umbanda em Pernambuco.
Na 21ª Reunião Brasileira de Antropologia, o GT 16, coordenado pelos professores Mundicarmo e Sérgio Ferretti,
apresentou inúmeros trabalhos que discutiam o processo de umbandização dos ritos e práticas religiosas do campo
religioso denominado comumente de “afro-brasileiro”.
59
a casa), consultas e cantigas de finalização. O espaço principal onde ocorre o rito é chamado de
“terreiro” ou “salão”. Dentro do salão, há espaço reservado para os médiuns e outro para os
visitantes, que formam uma espécie de platéia. O rito chama-se “sessão” ou gira”. De modo geral,
as roupas são brancas para homens e mulheres. É através das consultas com as entidades que as
pessoas relatam os problemas que as levaram ao local, e o “espírito” ensina um modo de
solucionar tais dificuldades. Em algumas situações, os “espíritos” prescrevem feitiços e banhos
para serem feitos fora daquele ambiente. Na maioria das vezes, há recomendações de preces,
acendimento de velas e banho de ervas. Entretanto, há “espíritos” que pedem oferendas de
animais e comidas em locais específicos, como cemitérios e ruas.
Esta estrutura é aqui entendida como basilar nos cultos de umbanda, ocorrendo,
evidentemente, alterações próprias às adaptações desta prática à vivência da liderança e dos
praticantes, como aludi anteriormente. Destaco, contudo, que pude observar boa parte dessa
estrutura em ritos, como na barquinha e no candomblé “traçado”*, por exemplo, fato que
considero ser imprescindível na compreensão do culto aos pretos-velhos.
Vale lembrar que a figura de Pai Antônio, preto-velho de Zélio de Morais, causou um
desconforto maior que o caboclo que também se manifestou na ocasião de sua apresentação na
Federação Espírita de Niterói, conforme dizem os relatos atuais. Sobre a figura do caboclo de
Zélio, Caboclo das Sete Encruzilhadas, contaram-me que os videntes que estavam presentes
viram que se tratava de um espírito de um frei, que se apresentou como Padre Gabriel
Malagrida 8 . Ouvi relatos sobre tal momento, em que os kardecistas ficaram espantados com a
imagem de um frei que preferia assumir a figura subalterna de um índio. Entretanto, o pretovelho não queria sentar-se, pois, como escravo que era, reconhecia que ali não era o seu lugar.
Assim, dizem os médiuns que hoje freqüentam o centro, Zélio fundou um espaço religioso para
que os espíritos de índios e escravos pudessem manifestar-se.
Ainda que essa genealogia da umbanda não seja uma referência para as “casas de
umbanda”, compreende-se que as figuras priorizadas neste culto se tornam referência para outros
ritos similares. As observações em diferentes ritos demonstraram que esta estrutura é
8
O jesuíta italiano Padre Gabriel de Malagrida viveu no séc. XVIII entre o Brasil (Maranhão Pará) e Lisboa. Nas
terras brasileiras exerceu fortes influências na catequização dos indígenas. No colégio jesuíta regia teologia e belas
artes. Foi tomado como santo por sua fervorosa devoção e entrega à missão cristã. Seu misticismo o levava a ouvir
vozes e fazer previsões. Esteve ao lado do rei D. João V em seu leito de morte. Perseguido pela política do Marquês
de Pombal, foi acusado de crime de lesa-majestade, entregue ao tribunal do Santo Ofício e condenado à pena de
garrote e fogueira em setembro de 1721.
60
predominante no campo espírita. Embora as diferentes casas religiosas se proponham a
diversificar o campo de atuação, os componentes umbandistas são assimilados. Esta assimilação
pode ocorrer de diferentes formas, com alguns elementos dentro do ritual que já existia, ou
recorrendo-se a reuniões especificamente umbandistas. A exemplo disso, há casos de grupos
religiosos do Santo Daime* que, em separado, fazem gira de umbanda 9 ; e outros que absorveram
as práticas umbandistas com o canto dos seus pontos e a atuação das entidades que são seus
ícones, como os pretos-velhos e os caboclos.
Neste sentido, quando ocorrem rupturas dentro de um grupo religioso, a tendência é
introduzir algumas modificações, mantendo-se, porém, a estrutura inicial. Como Maggie (2001)
apontou, as cisões são componentes desses grupos religiosos. Assim, encontrei grupos que
descendiam da casa de Zélio de Moraes e faziam questão de apresentar tal filiação 10 . Outros,
embora desconhecessem essa trajetória do surgimento da umbanda, mantinham ritos e princípios
semelhantes aos daquela casa.
A consolidação da imagem de escravo vinculada à idéia de bondade e humildade está
relacionada a uma conduta religiosa pregada pela “umbanda pura” de Zélio de Moraes, assim são
entidades que a identificam. Como veremos, esta representação de “umbanda” e dos “espíritos de
escravos”, percorre inúmeros centros religiosos do campo espírita.
Lembro aqui a fala de D.Zilméia, filha de Zélio de Morais, “procuro fazer como papai
faria”. Seguem dois ritos considerados tradicionais pela casa. O rito das fitas, preparado para a
manutenção das forças espirituais da casa e de seus médiuns, e a festa dos pretos-velhos,
entidades-guias do lugar.
2.2.3 O ritual das fitas: configuração do além
Cheguei na Tenda Nossa Senhora da Piedade após um tempo de peregrinação por sua
procura. Os ritos ocorriam somente uma vez no mês, e, só após o contato com Dona Zilméia, é
que pude ter acesso aos dias certos das cerimônias. A casa fica no Município de Cachoeiras de
Macacu e, por ser distante do Rio de Janeiro, a maior parte dos médiuns passa o final de semana
9
O rito de Santo Daime da igreja de Lumiar (RJ) segue alternadamente o calendário do Santo Daime e da umbanda.
Cheguei a acompanhar o trajeto de grupos em São Paulo, no ABC paulista. Conheci na Tenda da Piedade,
membros de um grupo de Curitiba, “Pai Maneco”.
10
61
no local. Há ritos que exigem uma estada maior, como o caso da cerimônia das fitas, precedida
pela matança do porco e finalizada com o amassi, que é a limpeza espiritual do filho da casa.
No rito, a preta-velha Tiana liderava a organização do ritual na Tenda Nossa Senhora da
Piedade. Escolhia os médiuns e pedia que abrissem o braço. A seguir media três vezes o
comprimento de uma fita de cetim colorida, depois repousava a tal fita por detrás do pescoço
dele. Depois, o médium se ajoelhava e batia com a testa no chão. Organizados num semicírculo
as cores das fitas se destacavam no fundo branco da veste de cada um deles, num arco-íris
confuso: amarelo, roxo, azul, vermelho, verde, branco. Disseram que representavam as cores das
linhas de Umbanda.
O burburinho era enorme e, em alguns momentos, parecia que ninguém se entendia.
Uma pessoa dizia, “a Tiana pediu que fizesse assim”, o outro emendava, “mas não fizemos desse
jeito no ano passado”. Uma nova e definitiva fala determinava “mas este ano ela quer desse
jeito”.
Alguns médiuns pediam para chamar o cambono para segurar uma garrafa, peça de
fundamental importância neste ritual.
Em tempo: Havia duas garrafas de cachaça. Ambas passaram por um procedimento
mágico com o caboclo de Dona Zilméia, ou seja, duas entidades reversavam na produção desse
ritual: o caboclo e a preta-velha. As tais garrafas tinham sido “trabalhadas” com pemba* e
orações, como me informaram alguns médiuns-participantes, o que significava que estava
impregnada de elementos mágicos. Numa delas foram amarradas, com três nós, três fitas:
vermelha, branca e preta.
Finalmente, após o término desta primeira etapa, um dos membros do grupo passou a
garrafa pelos que assistiam. O movimento procurava transmitir a substância invisível da garrafa,
a parte mágica impregnada pelas entidades-guias, para os que ali estavam. A outra garrafa foi
utilizada noutro rito subseqüente. Um dos cambonos da casa ficou no centro da sala segurando-a
sobre a cabeça (ver figura 1). Alguns médiuns, escolhidos pela preta-velha da liderança da casa,
circulavam ao redor da garrafa num movimento de roda, lembrando uma dança folclórica, a
“dança das fitas”. Os movimentos não eram ensaiados, sendo resolvidos no momento por todos, o
que gerava alguns transtornos. A liderança incorporada com sua preta-velha pedia concentração e
silêncio para que todos pudessem mentalizar seus pedidos, enquanto o Orixá, entidade que regia a
cerimônia, trabalhava, ou seja, para que se produzissem os efeitos mágicos daquele ritual.
62
Fui informada por alguns médiuns da casa que o Orixá que conduzia esse ofício
religioso era o Orixá Malê. Historicamente para este grupo, a figura deste orixá remete a uma das
entidades principais do fundador da casa: Pai Antônio, preto-velho do falecido líder Zélio de
Moraes. Tanto o orixá Malê quanto o preto-velho eram tidos como os responsáveis pelos rituais
de feitiçaria 11 . Este fato é bastante relevante, porque falar a respeito do Orixá Male parece ser
um tabu entre os membros da casa, evita-se por completo qualquer referência a seu respeito.
Alguns dizem não saber quem era ou como atua nos dias de hoje. Outros respondem que não têm
permissão para falar. Há aqueles que aproximam a figura do Malê a Exu. A liderança da casa
informou que era um orixá Malaio que veio com a missão de fundar a umbanda, tendo, na
ocasião, uma importante atuação em sua instituição religiosa, estando, atualmente, em outro
hemisfério do Astral.
Este rito, segundo algumas pessoas, é considerado “tradicional” e de grande importância
para o grupo. Após o rito, inúmeras pessoas comentaram que tal cerimônia não existia em
nenhum outro templo religioso ou local de culto. A liderança chegou a me perguntar se em
minhas “andanças” eu havia visto algo parecido.
Ao final, por determinação da entidade-guia, a segunda garrafa ficou no congá* até o
dia seguinte (figura 2); na finalização deste ritual, foi realizada outra cerimônia, o amassi.
Considera-se que o amassi seja um rito coletivo anual de limpeza espiritual e fortalecimento da
cabeça dos médiuns, ou seja, é usado para a proteção e o bom desempenho das pessoas
envolvidas no trabalho com os espíritos desta casa.
2.2.4 Festa de preto-velho na Tenda Nossa Senhora da Piedade
Como assinalei anteriormente, os pretos-velhos são entidades de grande importância
nesta casa. Em homenagens a tais entidades, são realizadas três festas anuais, fora os ritos de
consulta que ocorrem nas sessões ao longo do ano. A primeira festa acontece em maio, quase
sempre no dia treze. A segunda em junho, em comemoração ao preto-velho Pai Antônio, antiga
entidade de Zélio de Moraes. A terceira homenagem ocorre em julho, uma cerimônia para a
preta-velha Tiana, da liderança da casa.
11
Esta informação foi fornecida por um membro antigo da casa.
63
Observei esta festa em homenagem ao 13 de maio, em 2004. Quase sempre, no início
das sessões, sendo ela festiva ou não, rememora-se o histórico da casa. Comenta-se a importância
de Zélio de Moraes e a atuação de suas entidades, o preto-velho Pai Antônio e o caboclo das Sete
Encruzilhadas. Geralmente, comenta-se o fato de não terem sido aceitos pelo kardecismo,
explicando que o fato de Pai Antônio se apresentar como ex-escravo e falar engrolado resultou
em sua não aceitação. Neste momento é ressaltada a idéia de que os pretos-velhos são entidades
de bondade e humildade. Explica-se que são espíritos que podem ter sido “doutor”, mas, por livre
escolha,preferiram trabalhar com a simplicidade de uma “roupagem espiritual”* de “negros,
pobres e sem nenhuma cultura escolar”.
Depois dessa etapa, a liderança chama os médiuns para riscar seus pontos*. Enquanto
faziam as inscrições no chão, a liderança iniciou uma conversa informando aos visitantes quem
eram os pretos-velhos. O discurso construía a imagem do preto-velho como escravo e sua
experiência em vida e, como “espírito”, aparecia vinculada à escravidão. Em sua fala, a liderança
explicou o fim da escravidão, dizendo que o negro sofreu muito, mas a princesa Isabel se apiedou
de todo o sofrimento passado e o libertou. Logo comentou novamente sobre o histórico da casa e
suas entidades, descrevendo o encontro que Zélio de Moraes na Federação Espírita. Finalizando,
cumprimentou as entidades, numa frase comumente usada, chamada “Salva”: “Salve Pai
Antônio!”. Ao que todos respondiam: “Salve!”. “Salve o Caboclo das Sete Encruzilhadas!”.
Novamente: “Salve!”. A dirigente cantou o Hino da Umbanda 12 . A seguir, uma canção de
proteção para a casa, o “ponto cantado”, junto à defumação de cada um dos visitantes. Ouvi este
ponto noutras casas que visitei: “Defuma com as ervas da Jurema; Defuma com arruda e guiné;
beijoim, alecrim e alfazema; Vamos defumar filhos-de-fé”. As cantigas, ou pontos, geralmente
são compostas de pequenas estrofes que se repetem, facilitando a todos o acompanhamento. Em
pouco tempo sabia as músicas de cor e algumas seqüências.
No salão, os médiuns ocupavam a mesma posição em todas as sessões. Dispostos em
duas fileiras, do lado direito os homens e do esquerdo as mulheres, se mantinham nestes lugares
até o final da cerimônia. Suas alvas vestes se diferenciavam conforme o sexo. As mulheres
usavam uma espécie de “guarda-pó”, como um longo jaleco em forma de vestido. O bolso,
localizado ao lado esquerdo do peito, era bordado em verde com o símbolo (ponto riscado) do
Caboclo das Sete Encruzilhadas, mentor espiritual da casa. Já os homens usavam calça branca e
12
Segue em anexo ao texto.
64
uma camisa de botão com o bolso semelhante ao das mulheres. O modelo desta roupa foi
designado pelo fundador, para evitar qualquer outra preocupação que não fosse o trabalho
espiritual. No templo, segundo suas orientações, deveria ser evitada qualquer manifestação de
orgulho e vaidade, neste sentido, as vestes deveriam ser simples e iguais para todos.
Cada médium usava guias ao redor do pescoço. Estes colares cumprem a função ritual
de proteção. Geralmente, a guia corresponde à entidade que vai atender naquele dia. Entretanto,
observei que dentre inúmeros colares, todos tinham um em comum, de contas brancas, laranja e
marrom, com uma cruz pendente, semelhante a um terço. Esta era a guia que identificava “Pai
Antônio”. Algumas entidades da casa aconselhavam os consulentes a usá-la e, por tal motivo,
vendiam-na pronta ao custo de quinze reais. Alguns visitantes eram presenteados pela liderança
com uma dessas guias, o que gerava muita comoção no beneficiado e nas pessoas que
acompanhavam o rito. A maioria dos médiuns apresentava inúmeras contas ao redor do pescoço.
Alguns chegavam a carregar mais de dez. Um dos médiuns brincou com o companheiro dizendo:
“Nossa, você tem guia até do fluminense!”, numa referência às cores verde, vermelho e branco,
do time carioca.
Ao fundo do salão, estava localizado o gongá com diversas imagens de santos católicos.
A assistência também estava dividida por sexo: mulheres no lado esquerdo e homens no direito.
A casa que abriga o templo teve algumas paredes internas demolidas para dar espaço ao salão,
onde ficam os médiuns desenvolvendo o trabalho com os espíritos. Ao que parece, o espaço pode
comportar de sessenta a cem pessoas sentadas, mas, de modo geral, as cerimônias são
acompanhadas, em média, por quarenta pessoas.
A
Visão parcial da Tenda Nossa Senhora da Piedade –
Cachoeiras de Macacu
A
B
d
A – Banheiros
B – Gongá
C – Quartos para materiais diversos
- Médiuns
- Assistência
- Portas
C
C
65
Após a defumação, a liderança da casa fez uma oração e começou a cantar para os
pretos-velhos. Os pontos são ritmados pela própria música e sem palmas. Procura-se evitar que os
médiuns dancem, no máximo fazem um leve movimento corporal lateral. Acreditam que, deste
modo, com poucas induções ao estado extático, compreendido como palmas, batuques e danças,
há uma melhor comunicação com o mundo espiritual. A primeira entidade a ‘incorporar’ foi a
preta-velha Tiana. A preta-velha contou um pouco sobre sua vida, comentou que foi escrava e
que morreu, ou, em sua linguagem “fez a passagem”, dois dias antes da libertação dos escravos e,
complementou: “Nasci em dia de preto e fui embora em dia de preto”.
Em pouco tempo os médiuns da casa entraram em transe. Um deles, fumando charuto
foi até as portas da casa e, diante da porta principal, acendeu velas, colocou um copo com água e
outro com aguardente. As músicas não cessavam de ecoar:
Eu também sou preto Calunga.
A minha terra é de preto Calunga.
Eu também sou preto Calunga.
Olha viva os pretos Calunga!
Neste momento, cada médium demonstrou formas diferenciadas de cair em transe,
predominando leves tremores e o corpo projetado para frente. Passado este momento, os médiuns
em transe com o seu preto-velhos são levados para seus respectivos bancos. Cada preto-velho
ocupava um lugar que lhes era destinado e, naquele canto, já estavam seus apetrechos rituais
pessoais como o cachimbo, fósforo, fumo, pemba*, lápis, terço, etc. Quatro pessoas se revezam
na assistência aos pretos-velhos, conhecidos no ritual como cambonos*. Eles eram responsáveis
por ministrar as bebidas, como por exemplo, o vinho, a aguardente ou a água, conforme o
costume de cada entidade. Além disso, procuravam manter acesos os charutos dos médiuns
incorporados.
Para a organização das consultas com as entidades, antes de se iniciar a sessão, foram
distribuídas senhas. Após os pretos-velhos se sentarem nos bancos, os visitantes começaram a ser
chamados pela ordem numérica dos respectivos pretos-velhos presentes na sessão. Logo um dos
cambonos gritou: “Número 1 para vovó Cambinda!”, e orientou a pessoa a tirar o sapato para
falar com a vovó. A retirada do sapato, numa determinada área daquele salão, funciona como um
66
delimitador do espaço sagrado. Acredita-se que, próximo aos pretos-velhos, abre-se uma espécie
de portal energético, onde estão concentradas as energias do lugar, e no qual atuam também
outras entidades que não se podem ver, mas são sentidas pelos médiuns. Este local é chamado de
“gira” ou “corrente”. Tal concentração de “forças” é medida em comentários do tipo “a gira está
forte hoje”, ou com a liderança pedindo a todos concentração para manter “a corrente”.
Na corrente, médiuns e assistentes em consulta devem manter um certo tipo de
comportamento, conversando mais baixo, sem brincadeiras. A focalização do pensamento no rito
é feita através das cantigas que ecoam ininterruptamente. O comportamento contrito com
pensamento direcionado para os valores religiosos produz, segundo os médiuns, a vinda de boas
entidades para a realização das curas. Em oposição, os pensamentos negativos, movidos pela
inveja e o rancor atrairiam entidades que dificultariam a cura.
Cada pessoa convocada pelo cambono foi encaminhada para o dileto preto-velho e
sentou-se num banquinho, semelhante ao do preto-velho. Ali, iniciava um diálogo, que mantinha
variações de acordo com a dupla. Havia pretos-velhos que escutavam, falavam pouco e
ministravam o tratamento básico: o passe*. Outros prolongavam a conversa, abraçavam as
pessoas longamente, de forma carinhosa, e mantinham a conversa num tom ameno, entrecortado
por risos quase rufados. Observei que os pretos-velhos de comportamento mais carinhoso e mais
atentos à fala de seu consulente tinham uma clientela fixa. Este tipo de preto-velho torna-se
amigo pessoal. Entre os pretos-velhos dessa casa, Pai Benedito, em todas as cerimônias, foi o
último a abandonar seu médium.
Depois de duas horas de cantigas e consultas, os médiuns, sem estar em transe, foram
apagando seus “pontos riscados”. Somente um preto-velho “ficou em terra”, como se costuma
dizer: o Pai Benedito. Já no momento final de dispersão, dois médiuns entraram em transe com o
espírito de “crianças”, denominado “erê”*. Um deles dizia, “Vim pro aniversário do vovô”,
referência à comemoração dos pretos-velhos. A sessão religiosa foi finalizada com uma prece e
cantigas, mas os três médiuns permaneceram em transe para a cerimônia festiva.
Num dos cantos da sala havia uma mesa com um bolo confeitado, salgadinhos, pé-demoleque e manjar. Um dos médiuns em transe com sua entidade criança pegou o manjar e
começou a comê-lo com as mãos. O médium em transe oferecia a todos que estavam no salão,
mas ninguém se atreveu a comer aquela iguaria já espatifada pelas mãos que a remexiam sem
67
cessar. Ele pegou parte deste mingau e passou na perna de uma senhora. Pareceu-me que ela
ficou satisfeita, pois significava um tratamento ritual.
No final do ritual, a maior parte dos visitantes foi embora; aqueles que ficaram cantaram
“parabéns” para os pretos-velhos. A dirigente da casa aproveitou a oportunidade e novamente
cantou “parabéns pra você” pelos aniversariantes do mês. Finalmente, todos os médiuns saíram
do transe. Todos se confraternizaram e conversaram animadamente pelo salão, comentando como
a festa havia sido bonita. Comentou-se também a vinda inesperada das crianças. Os médiuns que
as “receberam” se disseram cansados, mas satisfeitos.
2.2.5 Sem saída – parte 1: A quem seguir?
Este caso narra o conflito pessoal de um membro da Tenda Nossa Senhora da Piedade.
Durante um bom tempo ficou sem saber se recebia as orientações da tradição da casa ou se
aceitava ser guiado pela espiritualidade. A tentativa de solucionar seu problema revela os
mecanismos internos da estrutura religiosa. A quem seguir? Vejamos o caso.
A casa espiritual de Ricardo se auto-intitula “Umbanda Branca”, o que, para seus
membros, significa promover um trabalho de magia benéfica. Por isso, ele escolheu este lugar
para seu desenvolvimento espiritual. Como disse anteriormente, o templo é referência para outras
tendas espíritas, pois se acredita que teve como dirigente Zélio de Moraes, o fundador da
Umbanda no Brasil. Decerto que tal nomeação funciona para os médiuns da casa como a
demonstração da qualidade do trabalho espiritual que desenvolvem.
Como disse, este templo é considerado como pertencente a uma linha espiritual próxima
ao kardecismo, razão pela qual sua configuração ritual abole as oferendas e, principalmente,
qualquer matança de animais. O fato de não usar esse tipo de oferenda é constantemente referido
como diferencial desta casa em relação às outras. O mesmo procedimento serve para a presença
de exus em seus rituais. “Não trabalhamos com exus” e “muito menos com matança” eram a
frases constantemente repetidas. Existem outros sinais de distinção 13 em relação às demais casas
religiosas, como, por exemplo, a ausência de atabaques ou palmas na invocação das entidades
espirituais.
13
Sobre auto-classificação de pertencimento do “nós” em relação aos “outros” duas referências são importantes,
Góis Dantas (1988) e Cunha (1986: 98-9)
68
Presenciei uma crise deste regime de impedimentos. Na verdade, um dos encontros
místicos entre um médium e sua entidade provocou tal conflito. Sua entidade lhe pedia oferendas
de sacrifício animal. Ele entendia o pedido, mas tinha reservas. Deveria de fato cumprir ou não
tal determinação? Dizia que constantemente escutava, ao pé do ouvido, o pedido da matança de
um galo em um cemitério 14 . Pessoalmente era contrário à matança; além disso, sabia das regras
da casa, embora estivesse assustado e perdido. Seu pavor aumentava à medida que negava e, em
sonhos, a cobrança lhe torturava a mente. Era angustiante, pois, quanto mais negava, mais a
entidade demonstrava sua insatisfação. Num de seus momentos de descanso noturno, o Exu pedia
o galo, mas, como o médium não dava, a entidade pulava o muro do cemitério e colocava dois
galos debaixo do seu braço.
Aqueles recorrentes avisos estavam tomando conta de sua cabeça. Passou a dormir mal
e atravessava o dia com o pensamento fixo na situação, sem saber como resolvê-la. Em dia de
sessão*, procurava algumas pessoas para desabafar. Uns diziam para ele se agarrar ao seu
mentor, seu guia espiritual, e lhe pedisse que tirasse dele aquela idéia fixa. Outras pessoas o
aconselhavam a atender logo o pedido, pois sabiam que com aquela entidade não havia muita
negociação. Seu lamento gerava mais angústia e temor, pois, afinal, não encontrava uma solução
possível. Querendo resolver o imbróglio de modo definitivo, procurou ouvir os conselhos da
liderança da casa. Surpreendentemente, o sacrifício foi liberado para solucionar o caso.
Entretanto, porque a idade avançada impedia que o acompanhasse para auxiliá-lo no ritual do
cemitério, ensinou como deveria ser feito. Mesmo com tal liberação e com os conhecimentos
ensinados por sua liderança religiosa, o incômodo permaneceu. Ele tinha princípios morais fortes
sobre sacrifícios. Buscando outras alternativas, procurou conversar com uma das médiuns mais
antigas da casa, que o aconselhou a não realizar o ritual, fato este que desautorizava a chefe da
casa. A confusão só aumentava. Ele procurou mais uma opinião. Seu amigo se dispôs a
acompanhá-lo na oferenda. Combinaram tudo e pareceu que tinha ficado animado com tal
solução; mas, por fim, acabou desistindo. Decidiu pedir ajuda para Iasã, divindade que atua junto
às almas. Havia pedido uns acarajés à sua esposa que, embora inexperiente, atendeu seu
desesperado desejo.
14
Considero importante esclarecer como soube dessa história. O médium falava disso com imensa preocupação,
num comentário cabisbaixo com outra pessoa da casa que estava ao meu lado e, desse modo, ficara impossível não
escutar aquela conversa. Vale a pensa registrar que, percebendo o incômodo e a aflição estampada em seu rosto, fiz
menção de me retirar, mas ele sinalizou para que eu ficasse. No desenrolar da conversa, até me ofereci para ir ao
cemitério com ele. Diário de campo 15 de novembro de 2003
69
Mas, espere um momento. Esta casa não é contra qualquer tipo de oferenda? Este não é
um dos sinais diacríticos que utilizam para compor sua identidade em relação aos outros
terreiros? E isso principalmente porque as resoluções para os conflitos se estabelecem em
relações que nem sempre são respondidas pelos ditames tradicionais, fato que possibilita as
reconstruções de novos centros religiosos e significações religiosas às quais atribuímos a
plasticidade do campo religioso.
2.2.6. Outras configurações
O histórico da Tenda Nossa Senhora da Piedade é mantido como forma de instituir a
identidade do grupo e a manutenção de certos ritos que consolidaram sua performance diante dos
demais grupos umbandistas no campo espírita. Como descreveu Brown (1986, op.cit.), é
referência de uma modalidade de umbanda, a “umbanda pura”, fator este preponderante na
compreensão da representação dos pretos-velhos que a casa instituiu.
A referência maior da construção dos pretos-velhos da casa é “Pai Antônio”, entidade
de Zélio de Moraes. Pai Antônio é mencionado como um bondoso preto-velho que procurou
disseminar a prática da bondade, da humildade e da caridade. Era com esta entidade que Zélio
desenvolvia os trabalhos de caridade. Por outro lado, este preto-velho é reconhecido como
“mirongueiro”, ou seja, praticava a magia lidando com as forças malignas, tendo sobre elas um
poder de coerção. Dizem que, por este motivo, a casa não precisava dos exus, com os quais havia
perigo na lida, mas que se sabia serem bons guardiões. Assim, o trabalho espiritual do pretovelho guia da casa se assemelhava aos de exu.
A pesquisa de Marco Aurélio Luz e Lapassade (1972) confrontam essas duas figuras, os
pretos-velhos e exus. Os autores descrevem a figura libertária em oposição à submissão
representada pelos pretos-velhos. Os pretos-velhos representariam exclusivamente a bondade, em
oposição a uma certa picardia e malineza dos exus. Nesta casa, onde aparentemente não se
permite o trabalho com exus, os pretos-velhos desempenham uma dupla função. Relembro ao
leitor que, no início do ritual, um dos pretos-velhos foi até a porta do salão para ali depositar,
além de velas, um copo com água e outro com aguardente. A porta é reconhecida ritualmente
como habitação dos exus. Este ato, descrito como “firmeza da casa”, teve como função uma
forma de agradar aos exus que ali habitam e, entre as outras entidades da casa, é tarefa do preto-
70
velho que, nestas condições, se torna uma figura liminar, que transita entre os dois pólos: de
“luz”, considerado eu “reino”, e o das “trevas”, como disseram os informantes.
Em duas outras situações os pretos-velhos e os exus aparecem como entidades que
trabalham juntas, sem oposições. No caso do médium afetado por sonhos com exus, recordo de
uma outra situação que observei. Numa das entrevistas que realizei com ele, em transe com seu
preto-velho, que se identificou como “espírito de um capataz”, manipulou o fogo de uma vela
diante de mim, proferindo ameaças. Neste ponto o preto-velho assumia uma identidade ambígua,
apresentava-se como figura de bondade e amor, que podia também ameaçar e causar sofrimento,
se assim quisesse. Esta representação é bastante camuflada, imperando a figura piedosa que foi
atribuída aos pretos-velhos.
A esta casa de “umbanda pura” ou “umbanda branca” foi vinculada à imagem de um
espaço onde não se realizam oferendas de nenhuma espécie, muito menos de animal. Entretanto,
tal rito foi permitido para que trouxesse alívio a um de seus membros. A liderança ensinou como
deveria ser feito o rito de matança do galo no cemitério. Recordo a presença do orixá malê no rito
das fitas. Esta entidade malê não aparecia nos relatos feitos há décadas atrás; dizem agora que
cumpre uma função ritual de matança animal. A seu pedido, Zélio de Moraes matava um porco
na mata. Zélio percorria sanatórios e retirava as pessoas que considerava terem sido acometidas
por sofrimentos espirituais. Comenta-se que tal rito era feito para reforçar a proteção da casa que,
na ocasião, dava assistência a casos de loucura por obsessão espiritual. Entretanto, sob sigilo, na
noite anterior do rito das fitas, o porco era sacrificado, num ritual fechado. Algumas pessoas
fazem crítica, dizendo que o rito cumpria uma finalidade no passado e que atualmente não existe
mais; há também quem diga que hoje teria por finalidade a realização de desejos materiais dos
médiuns e da direção da tenda.
Nesta casa, que não permite o trabalho com exus, os pretos-velhos e o orixá malê
cumprem, em parte, a função a eles destinada. O orixá malê está vinculado às necessidades
materiais do grupo, representando os vínculos com as “energias da terra”, do “plano material”,
como protetor e importante entidade que livra e desmancha “magias negras”. Os pretos-velhos
podem executar tarefas que geralmente foram atribuídas aos exus, como a de manter a ordem do
ritual e a de castigar alguém que não esteja cumprindo o seu dever. A este respeito, ouvi a
história de um preto-velho que provocou diarréia numa pessoa para sinalizar que ela estava
cometendo uma falta grave, furtava materiais de seu trabalho. Na ausência de culto aos exus, os
71
pretos-velhos quibandeiros ou de “tronqueira”, como se costuma dizer, são aqueles em que o
significado de “escravo” deixa de ser subserviente para tornar-se “rebelde”, na promoção,
contudo, da certa ordem instituída.
Brown (1986) discorre sobre os pretos-velhos, considerando-os elementos que
representavam a aculturação brasileira. Esta via de “nacionalização” pôde ser também
confirmada por minhas pesquisas; há, entretanto, que se ressaltar quais os aspectos referidos
dessa “aculturação”, pois sua concepção de subserviência nem sempre significa obediência
irrestrita, mas estratégia que permite a sobrevivência e a ascensão na estrutura social.
2.3 Barquinha: Delírio lírico 15
2.3.1 Mestre-fundador: Daniel, o venturoso.
Passarei a descrever aqui um outro contexto ritual e o processo que levou à incorporação
dos pretos velhos da umbanda, reproduzindo de outra maneira a mesma estrutura da incorporação
dessas entidades no processo de criação da umbanda no Rio de Janeiro.
A narrativa que envolve a fundação da barquinha relembra as sagas místicas dos
profetas que as antigas escrituras cristãs apresentam. Esta representação é louvada e mantida
pelos grupos que descendem da linhagem espiritual do Mestre Daniel, que, atualmente, compõem
três igrejas cujas matrizes estão em Rio Branco, no Acre.
Costuma-se dizer que Daniel tinha “tomado umas a mais” e não conseguira percorrer o
caminho de volta para a sua casa. Deitou e aconchegou-se num montinho de folhas próximo ao
igarapé. A areia clara e límpida foi seu aconchego. Foi acordado por anjos que traziam em suas
mãos um livro de capa azul. Mostravam a ele o livro. Disseram que ali havia um imenso tesouro.
Daniel ficara curioso. Pensara que tinha vindo de longas terras justamente em busca de riquezas 16
e que talvez aquele fosse o momento certo de encontrá-la. Voltou o olhar para o alto, comprimiu
o máximo que pôde os olhos, e lá estavam os anjos, esperando-o pacientemente. No meio daquele
turbilhão de pensamentos, um deles era o mais intermitente: “Quem acreditaria em mim?”. E os
anjões, como se estivessem lendo seu pensamento, pois dizem que eles têm esse poder,
15
O termo “delírio” é aqui usado acompanhando a análise de Durkheim (1996:235): “(...) a religião sempre
acompanha um certo delírio... as imagens de que é feito não são puras ilusões... elas correspondem a algo no real”.
16
Daniel, como outros imigrantes, saíram do nordeste brasileiro atrás da promessa governamental e das histórias que
o povo contava que o trabalho de retirada da borracha da floresta os enriqueceria.
72
mostravam o livro de capa azul. Mas, desperto pelo sol que lhe queimava a pele, tratou de
esquecer aquela angelical visão, achou que tinha sido fruto da bebida ingerida na noite anterior.
Continuou a pensar na situação e indagava o porquê de delegarem a ele aquela nobre missão,
pessoa da farra, cantador da noite e amante de um bom trago. Relembrava que, por causa desse
costume, é que estava ali, como um Prometeu 17 . Cansado, pensava que tudo não tinha passado de
um sonho.
Entretanto, aquela celestial visão tornou a acontecer e isso significava que ele tinha sido
escolhido para uma missão. Sentia que não podia mais fugir, parecia que o destino teimava em
empurrá-lo para viver outra vida. Devia reunir-se ao grupo de oração Centro de Iluminação Cristã
Luz Universal, o Alto Santo, orientado por Mestre Irineu. Decidiu partir para lá e, então,
conheceu o Santo Daime* . Mirou* novamente os anjos. Desta vez, além de mostrarem o livro
azul, colocaram-no em suas mãos. Tudo isso era preocupante para Daniel. Recebia, além do livro,
a missão de encaminhar um novo ofício religioso. Mesmo temendo a responsabilidade, sentia um
enorme desejo de realizar a tarefa, pois enfim compreendia quais eram os planos divinos e,
especialmente, o sentido de riqueza que o havia empurrado para o Acre. A partir daquele
momento, estava selada a aliança.
Naquela época ele já tinha uma familiaridade com a doutrina do Santo Daime da
região, através do Mestre Irineu. Conhecia a “força” do chá e das orações, pois tinha feito um
tratamento espiritual para eliminar as dores sentidas naquele órgão que teimava em tirar o prazer
das noitadas, seu fígado. Era grato ao Santo Daime e ao Mestre Irineu por sua melhora, e
responsabilizava exclusivamente a si sua piora. Naquele momento, a memória de sua experiência
de vida militar, servindo à Marinha brasileira, lhe fazia lembrar que sua vida estava sob um
comando que não era exclusivamente seu. Passou tempos relembrando a miração* do chá, e
sentia que aquela visão já lhe ocorrera antes, mas que, embargado pelo vício, tinha sido
menosprezada. O vício prejudicara suas relações familiares, fazendo com que seus filhos e a
esposa voltassem para o Maranhão, sua terra natal.
Segundo me disseram, este conjunto de eventos pessoais fez com que Daniel se voltasse
para o universo religioso. Como é dito pelo “povo”: “a sorte não bate na porta duas vezes”; e,
17
Prometeu é figura mitológica grega. Sua história conta que pertencia à categoria de Titãs e, como benfeitor da
humanidade, roubou uma centelha do fogo que pertencia ao todo poderoso Zeus para presentear à humanidade. Ao
saber que fora enganado, Zeus condena Prometeu à prisão, sendo torturado diariamente por uma águia que lhe
despedaçava o fígado, que, recomposto à noite, voltava a ser devorado pela manhã seguinte. Da mesma forma
Daniel, com o fígado condenado pela bebida, que foi atingido durante anos, comprometendo completamente o órgão.
73
por isso, agarrou-a. Pedindo orientação espiritual através da meditação com o Daime, foi sendo
orientado aos poucos para que fundasse a sua igreja. Era sua missão abrir um lugar para obras de
caridade 18 . Uma voz interior ensinava: “Pede ao primeiro que encontrar, que assim vai
conseguir um lugar” 19 . Achou estranho, mas confiou. Logo depois, encontrou um amigo, dono
de uma extensa área de seringal. Assim que o viu, foi logo tratando de lhe apresentar sua
intenção, disse-lhe que precisava de um lugar para abrigar uma igreja. Ao que parece, Seu
Manoel Julião de Souza, o proprietário de terras, não estranhou o pedido, não perguntou para quê
e nem de que tipo seria, apenas cedeu o espaço, um terreno no final de uma picada em meio à
mata. Como pude constatar, aquela zona hoje é urbana e sem vestígios dos primórdios de floresta.
A figura do mestre é, porém, bastante reconhecida em meio a este bairro populoso e urbano.
Pois bem, como era bom cantador e também produzia seu próprio instrumento, ficou lá
na mata parando seu serviço em certas horas do dia, tomando o Daime que o amigo Irineu lhe
dava, cantando, escrevendo os hinos que as entidades traziam nas mirações, e orando. Vez ou
outra passavam uns caçadores que, escutando as modinhas religiosas num ritmo valsado, iam
achegando, conversando e participando. Rezava meninos e meninas que diziam estar com “mauolhado” 20 e outros males. Sua missão recebeu o nome de barquinha, por acreditar e desejar que
todos que se incorporassem ao grupo fizessem parte de um mesmo barco, remando juntos na vida
material e espiritual.
Daniel começou a atender o povo de lá em 1945. Logo depois, muitas pessoas da cidade
de Rio Branco o procuraram. Na igreja aparecia gente com o mesmo problema que ele teve com
o álcool. Outras com doenças que ele não conhecia. Alem disso, havia procura pela resolução de
conflitos pessoais e de relacionamentos familiares, de amizade e de inimizade e na vida
profissional. Muitos saíram curados, alguns ficaram e juntos foram construindo uma igrejinha: a
capelinha de São Francisco das Chagas, santo cristão considerado pelos seguidores da barquinha
o responsável pelas orientações espirituais: o mentor espiritual da casa.
18
As obras de caridade são atividades de cura espiritual e física através das preces e da prática de magia sob
intervenção do plano espiritual. Na barquinha da linhagem da Madrinha Francisca, além dos encantos, da Virgem
Maria, santos e anjos de Deus, os Orixás e os pretos-velhos são também responsáveis pelas curas.
19
Depoimento de um praticante da barquinha, Rio Branco 10 de setembro de 2005.
20
“Mau-olhado” é um termo correntemente usado para designar alguns malefícios mágicos, como por exemplo, os
causados pela “inveja” alheia. Costuma-se colocar pequenos talismãs em bebês recém-nascidos para que eles não
sejam vitimas do “mau-olhado”. Alguns ensinamentos da filosofia chinesa “feng shui” de harmonização do espaço
foram rapidamente compreendidos e absorvidos por pessoas que compreendiam as energias negativas como o tal
“mau-olhado”. Assim, espelhos localizados na porta principal da casa fazem retornar o mau-olhado para quem o
envia.
74
Quando Daniel morreu, treze anos depois de iniciados os trabalhos espirituais em ritos
mais sistemáticos, a igreja se dividiu. Hoje são três igrejas da barquinha em Rio Branco,
conhecidas como a Igreja de Seu Manoel Araújo, Igreja de seu Antônio Geraldo e Igreja da
Madrinha Chica, respectivamente Centro Espírita Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz,
Centro Espírita Daniel Pereira de Matos e Centro Espírita e Obras de Caridade Príncipe
Espadarte. As cisões ocorreram nas últimas duas décadas por discordância de algumas inovações
rituais. Especificamente no caso da Madrinha Chica, houve uma maior afinidade de seu
desenvolvimento espiritual com os trabalhos de umbanda.
Passado o momento de conflito provocado pelas rupturas, as linhas da barquinha se
uniram em 2005, numa confraternização pelo centenário de seu fundador. Este cerimonial
unificou o grupo até então disperso em torno da memória do Mestre e da narrativa criadora do
templo e suas obras, que todos conhecem como “missão”.
O Mestre Daniel ou Daniel Pereira de Matos, que um dia fora menino laçado para
enfileirar a praça da Marinha no Maranhão, transformou-se numa entidade espiritual. Na
barquinha, tornou-se entidade que movimenta outros seres celestiais para continuar sua missão.
Sua presença é constantemente invocada, surgindo através das mirações ou mesmo na
comunicação por incorporação, em que um médium, especialmente escolhido, incorpora seu
espírito.
Daniel deixou um rito organizado, baseado na comunicação com seres do mundo
espiritual. As cerimônias ocorrem semanalmente nos templos, freqüência que aumenta com as
romarias 21 . Os ritos ocorrem principalmente através do uso do chá, em cerimônia ao redor de
mesa, nos bailados e nas sessões de incorporação para atendimento.
Sistematizando a doutrina:
1)
O grupo organiza-se em vigílias religiosas com orações. As rezas
funcionam como um suporte para combater o mal, numa instância
espiritual denominada Astral*. Nestes ritos, os pariticipantes tornam-se
“soldados” do exército do Mestre Daniel.
21
A idéia de romaria está vinculada às peregrinações que os cristãos faziam aos territórios sagrados. Esta viagem
demorava dias, por vezes meses, revestindo-se de caráter sagrado e sacrifical. Dentro dos ritos, as romarias cristãs
compõem inúmeros ritos de rezas e cânticos em louvor aos santos. A culminância desses dias, além da liturgia
anterior, é uma caminhada pública com a imagem do santo (a procissão) e uma festa comunitária. Na barquinha, as
romarias são feitas em janeiro em louvor a São Sebastião (1-20); em março, a São José (1-19); em maio romaria à
Nossa Senhora (1 a 31); para Nossa Senhora da Glória em agosto (1-15) e de 4 de setembro a 4 de outubro, romaria
para São Francisco das Chagas.
75
2)
Esses soldados combatem para evitar ataques dos inimigos, espíritos
malignos (“intrujões”) e curar os malefícios já produzidos, como as
doenças e dificuldades nos relacionamentos pessoais..
3)
Responsabilizam-se por doutrinar espíritos causadores de tais malefícios
(mandando-os para o “chiquerador” 22 ).
4)
Dentre os elementos principais usados na doutrinação, está o “hinário”,
cânticos responsoriais que descrevem a ação das entidades espirituais,
veiculando mensagens de amor, paz, bondade, perseverança e justiça
divina.
5)
Os membros do grupo formam um corpo de combate. Amparados pelas
entidades-guia da casa, prestam auxílio para os que necessitam, no plano
físico e no plano espiritual.
6)
Os espíritos doutrinados pelo exército de Daniel no Astral passam também
a compor o seu exército.
7)
A bebida é considerada sagrada e funciona para estabelecer a ligação entre
os dois mundos: o visível e o invisível.
8)
O chá atua como transmissor de mensagens do outro plano para este e
vice-versa.
9)
Comumente chamam o “Daime” de “professor”, pois cumpre a função de
doutrinar, explicar através das mirações como funciona o plano espiritual.
Geralmente, todas as funções religiosas utilizam o Santo do Daime. As orientações
espirituais para as ações ocorrem através desta bebida, considerada sagrada. Vale destacar que o
cipó do qual é feito parte da mistura do chá é conhecido como “corda dos mortos”, espécie de
morada dos espíritos. Sendo assim, considera-se que seu efeito pode ser traduzido como
facilitador do encontro entre instâncias encobertas, mas não distante do habitat dos mortais. .
Michael Taussig (1993), em seu estudo sobre xamanismo e cura, descreve o efeito do yagé –
outra denominação do chá – como “a arte alucinatória do real” (op.cit.:312). Este efeito de
22
Segundo os freqüentadores, este seria um espaço destinado às almas que necessitam de instrução espiritual, sendo
elas doutrinadas para atuarem na missão desta casa.
76
“realidade” é também compartilhado pelos usuários, que acreditam na existência de diferentes
planos de vida que se conjugam ao nosso, sob o efeito do chá.
A história do Mestre Daniel nos apresenta um quadro de religiosidade popular, na qual
se somaram diferentes referências religiosas que partem, a princípio, de sua cultura católica,
alusões à crença nos elementos de natureza africana, com os orixás, próprios da religiosidade de
parte do povo maranhense, além da crença na ação dos elementos místicos que habitavam a
natureza encantada pelos indígenas, habitantes das florestas amazonenses. O uso do chá, da
aywasca, mescla estes fatores, formando uma cosmogonia particular para os seguidores do
mestre. Os trabalhos espirituais possuem estes registros, em cultos que apresentam também a
influência do kardecismo, representado aqui na crença de um mundo espiritual hierárquico, cuja
patente de oficial da marinha será uma representação de poder noutro plano. Na espiritualidade, o
fato de ter constituído um exército e tê-lo sobre seu comando, faz de Daniel uma liderança que
guia um povo e arregimenta tantos outros a partir de sua doutrinação.
Rainhas, encantos, duendes, ninfas, pretos-velhos, caboclos, santos, príncipes e luzes
compõem todo o cenário sagrado. Para manterem-se sob a proteção de todos estes seres, há um
calendário litúrgico extenso, com comemorações rituais dos santos cristãos, anjos, orixás, pretosvelhos, “crianças” 23 .
Como disse anteriormente, Mestre Daniel fundou um grupo que se dividiu. O grupo
liderado pela Madrinha Francisca, particularmente, é o que mais nos interessa pela sua
aproximação com a umbanda e, preferencialmente, por desenvolver um trabalho exclusivo com
os pretos-velhos, considerados mentores da casa.
O contato com o grupo do Acre e o acompanhamento dos rituais em Niterói, permitiume compreender a dinâmica do campo espírita, que aqui não se apresenta como cisão, mas como
relações de ruptura que levam a diversificações religiosas. Formou-se um agrupamento que
rompeu as fronteiras do Acre. A morte do mestre Daniel inaugurou um movimento para outras
possibilidades religiosas.
Assim como a narrativa da vida de Mestre Daniel é permeada de sinais religiosos, a
história da Madrinha acompanha a mesma trajetória. Dizem que o Mestre sabia antecipadamente
qual seria sua missão e, por isso, em cerimônias especialmente dedicadas a tal ofício 24 , preparou23
Entende-se que há espíritos infantis neste universo espiritual, que tanto podem ser os de crianças quanto dos seres
elementais como as fadas, por exemplo.
24
Entrevista com uma das médiuns mais antigas da casa de Niterói, em 23 de julho de 2005.
77
a para um contato específico com o plano sagrado. Nas sessões de desenvolvimento espiritual,
invocava as entidades que ela trazia para trabalharem na luz do Daime. Ela seria a porta-voz de
outra modalidade, um trabalho diferencial com as entidades, dando-lhes mais espaço para o
atendimento. Assim surgiu o “Centro Espírita e Obras de Caridade Príncipe Espadarte”, com a
Madrinha Chica ampliando o espaço de ação dos pretos-velhos em sua casa espiritual. Estas
entidades compartilham a liderança espiritual da casa, como veremos a seguir.
2.3.2 Centro Espírita e Obras de Caridade Príncipe Espadarte
Ao redor de uma fogueira de São João, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, fiquei sabendo
que havia uma religião denominada barquinha, em que os pretos-velhos trabalhavam. O grupo,
denominado “Centro Espírita e Obras de Caridade Príncipe Espadarte”, tinha uma igreja em
Niterói e, na ocasião, era uma gira no terreiro dedicada ao “Senhor São João”. Embora os cultos
sejam abertos, sempre é aconselhável contactar um membro do grupo para comunicar a presença.
Depois desses procedimentos iniciais, cheguei até a igreja de Niterói para participar da festa em
louvor a São João, uma cerimônia com elementos comuns à prática da cultura popular, como
preces e fogueira, que se somaram à ingestão de Santo Daime e danças em roda (“bailado”), com
hinos da casa e pontos de umbanda, além da presença dos pretos-velhos.
O nome da casa repete o de sua matriz em Rio Branco, Acre: “Centro Espírita e Obras
de Caridade Príncipe Espadarte”. O “Príncipe Espadarte” é um dos mentores espirituais da casa,
junto aos pretos-velhos, São Miguel, Mártir São Sebastião e São Francisco das Chagas. O
“Príncipe Espadarte e o “Príncipe Dom Simeão” são o mesmo personagem: um “encanto” 25 . O
trabalho espiritual da casa está vinculado a três “mistérios” do “Astral”, o “mistério do céu”, da
“terra” e do “mar”. Os “mistérios” seriam uma espécie de espaços sagrados do plano espiritual,
com o poder de influenciar na vida material. Neste sentido, o Príncipe Dom Simeão seria uma
entidade com capacidade de regência sobre a terra, o céu e o mar, tendo competência, através de
seus poderes de circular por vários ambientes espirituais. Como encanto que é, possui a
25
Os encantos são considerados, pela cultura popular, seres místicos que possuem a capacidade de tomar a forma
humana. Suas histórias geralmente estão relacionadas ao logro; entretanto, há referências de que podem prestar
auxílios aos homens, principalmente no quesito material, trazendo-lhes riqueza e saúde. Algumas formas de encantos
da Amazônia foram referidas por Maués e Villacorta (2001), relatando que os possíveis malefícios causados pelos
encantos devem ser cuidados através da cura xamânica.
78
possibilidade de metamorfosear-se num peixe e, especificamente quando assume esta forma,
chama-se “Príncipe Espadarte”.
O espaço onde ocorrem as reuniões é denominado de “igreja”. No Rio de Janeiro, a
igreja fica localizada no bairro de Maria Paula, fronteira entre os municípios de Niterói e São
Gonçalo. Sua localização é afastada da cidade, numa rua sem asfaltamento, com pouca
iluminação e muita vegetação. A casa localiza-se no alto do terreno e o acesso é feito por degraus
talhados na terra26 . Em dias de ritual, a entrada é mantida com duas velas acesas, disposta uma de
cada lado, sinal que indica pedido de proteção, prática comum na umbanda e no candomblé,
significando pedido aos Exus para que afastem qualquer entidade que queira atrapalhar a
cerimônia. Os responsáveis pelo culto disseram que assim as entidades-guardiãs não deixam
“intrusões” entrar para atrapalhar o andamento do ritual. Não se falou em exus guardiões, mas
“entidades responsáveis pela segurança da casa”, papel que pode ser assumido nesta casa pelos
pretos-velhos.
Ao final da escada, encontra-se
uma varanda retangular; logo à direita, uma
porta leva ao interior da casa; e, seguindo
a
b
c
e
f
um pouco mais adiante, um pequeno recorte
em L leva ao espaço onde ocorrem “os
trabalhos” de mesa.
Acompanhando o mapa ao lado, as
letras
a e b, correspondem ao espaço destinado à assistência, o lado “a” para as mulheres e o “b” para
os homens.O extremo da mesa (“e”) é ocupado pela liderança da casa (“c”); ao redor da mesa
ficam os membros fardados 27 da igreja e, ao final (“f”), está localizado o altar. A mesa central,
em formato de cruz, é mantida coberta por uma toalha branca – sobre a qual há imagens de santos
católicos, cruz, velas acesas – e enfeitada com vasos de flores. Ao fundo, em seu altar (“f”),
ficam dispostos, em diferentes níveis, imagens de santos, cruz, velas e, conforme foi dito, um
retrato do fundador, Mestre Daniel.
26
Em agosto de 2006, o grupo iniciou a construção de sua igreja na parte baixa do terreno.
A farda é uma vestimenta composta por calça, paletó, boina e sapatos brancos, com detalhes em dourado,
semelhante a um uniforme da marinha. A farda sinaliza o comprometimento dos membros com a missão do Mestre
Daniel. O processo de “fardamento” é feito no Acre, numa passagem religiosa com a Madrinha Francisca, em que o
iniciado permanece sob sua orientação durante uma romaria.
27
79
Nas paredes pintadas em azul claro, estão pendurados quadros de referência religiosa.
Numa delas está a tradicional figura do orixá Yemanjá representada como mulher de longos
cabelos saindo do mar, reprodução comumente presente em casa de umbanda e de umbandistas.
Noutro quadro, o desenho da face de Jesus Cristo. Outra imagem apresenta a figura de Nossa
Senhora. No teto, proliferam pêndulos de cristal, fadas e animais feitos de origami, arte
minimalista em papel colorido.
O “trabalho de mesa” é um ritual que se inicia com o consumo do Daime. As pessoas se
posicionam em filas, separadas por sexo, e recebem das mãos de um fardado uma pequena
porção, num copo plástico de café. Neste momento o fardado fala: “Que a paz de Deus lhe
acompanhe!”. De modo geral, a pessoa responde “Assim seja!” ou “Para sempre, Amém!”.
Alguns fazem o sinal da cruz, outros apenas se concentram e tomam o chá. Após beber, algumas
pessoas se cumprimentam dizendo: “Bom trabalho!”, ao que o outro responde: “Pra você
também”.
Há certo controle no uso do chá neste ritual. Pergunta-se, por exemplo, se a pessoa
pretende ficar até o final do rito, fato que definirá a quantidade a ser ministrada. O grupo procura
ter controle para que ninguém saia do lugar sob o efeito do chá; assim, todos permanecem
sentados acompanhando o hinário. Neste rito, é fundamental manter a concentração do grupo,
pois o trabalho consiste na aglomeração de forças para que o plano espiritual atue no material e o
material possa interferir no espiritual, contribuindo com a doutrinação das almas. Diz-se que, por
tal motivo, todos devem permanecer juntos na igreja. A dispersão pode prejudicar o “trabalho” e
atrair malefícios para a pessoa, pois fora do ambiente ritual, as entidades não-doutrinadas podem
dominar e causar mal-estar. Neste sentido, há um controle sobre o comportamento dentro do
ritual. Num dos trabalhos que acompanhei, um rapaz que tomava o chá pela primeira vez preferiu
ficar de costas para o altar, admirando a floresta; logo veio uma “irmã” e lhe pediu que se
sentasse voltado para frente e se concentrasse na cerimônia.
Como disse, este trabalho é conduzido especificamente para a “doutrinação”, que
significa um aprendizado da doutrina cristã e kardecista, através dos hinos que são cantados e das
mirações, insights ou outros conhecimentos que viria a partir do campo sensível da audição, visão
e sentimentos despertos, como o amor, a compaixão, a alegria ou a tristeza. Somente ao final do
rito uma entidade se manifesta. O espírito que se apresenta ao final é o da preta-velha da
80
liderança da casa, geralmente comentando sobre o trabalho e dizendo mensagens de
perseverança, agradecimento e fé.
Acredita-se no potencial de sensibilização do chá, efeito que no rito auxilia no
desenvolvimento da “mediunidade”, ou seja, um dos efeitos da bebida é potencializar o estado
extático, no qual seria possível se encontrar com diferentes seres que habitam o plano espiritual,
como, por exemplo, os elementos mágicos da natureza, espíritos, luzes divinas, encantos e outros
entes. Esta composição com diversas criaturas é percebida como uma possível compreensão da
divindade, que é encontrada em todos os lugares. Um dos hinos ensina que “Deus fez tudo e de
tudo ele habitou”.
Neste rito de concentração, “obra de caridade” ou “trabalho de mesa”, o participante
fica todo o tempo sentado. A repetição de parte do hino faz com que todos se mantenham em
relativa sintonia através das mensagens e imagens que invocam. Assim, os hinários invocam
entidades para purificar, guardar, expulsar ou doutrinar os espíritos “desencarnados” ou
“encarnados”; neste caso, daqueles que participam da sessão. Neste momento, cada um procura
interagir com suas deidades protetoras ou com os seres que se aproximam para pedir ajuda.
Imerso neste momento de reflexão e interiorização de sentimento religioso, o indivíduo passa por
um processo de reestruturação de seus valores pessoais, reconstruindo, aos poucos sua identidade,
mais próxima de uma concepção naturalista do mundo, entendendo-o como uma junção de
elementos da natureza. Por tal motivo, essas “forças” se tornam “sagradas”.
O “trabalho de terreiro” complementa o “trabalho de mesa”. Este rito pode ser
comemorativo, com pontos cantados, acompanhados pelo som do atabaque, ou para realização de
“obras de caridade”, ou seja, o auxílio prestado aos seres sofredores. É também no terreiro que
são realizadas as festividades para os Orixás, caboclos e pretos-velhos. Geralmente, nestas festas,
a direção é de responsabilidade dos pretos-velhos. Nos ritos de terreiro, além do atabaque,
comum a algumas cerimônias de umbanda, há momentos de preces cristãs, como a Ave-Maria, o
Credo, o Pai-Nosso e a Salve Rainha. É no espaço do terreiro que ocorrem as consultas com os
pretos-velhos.
Nesta igreja há dois terreiros. O primeiro é um espaço de chão de terra ao lado da igreja.
No centro há um piso em forma oval, onde são feitos os pontos riscados e acesas as velas. Ao seu
redor são colocados banquinhos para o momento da consulta. Recôncavos foram feitos nas
encostas, servindo como nichos em que são colocadas imagens de santos e velas. Em dia de
81
consulta, os pretos-velhos ocupam os banquinhos. Ao seu lado é mantida uma cesta de palha,
apropriada para guardar seus pertences, como pemba, cachimbo, fumo e velas coloridas. Cada
preto-velho tem um auxiliar, um cambono, que o acompanha durante a consulta. Este ajudante se
responsabiliza por manter os materiais em ordem e disponibilizá-los para a entidade, quando esta
lhe pede algo no decorrer da consulta. Normalmente, quando há necessidade de prescrever um
banho, o cambono cuida de anotar e, em certos casos, de explicar novamente o que a entidade
pediu. Há casos em que o processo de banho é feito no próprio local; e existem dias apropriados
para um trabalho de cura, a cada dia 27 do mês, data destinada à prestação de contas do mês,
quando os fardados apresentam à espiritualidade o compromisso cumprido ao longo do mês.
Nesta data, dependendo do caso, a pessoa permanece todo o ritual deitada num colchonete, sendo
assistida por algum “irmão”, que pode estar ou não em transe.
Retornando à descrição: subindo um nível acima do primeiro terreiro, situa-se o
“cruzeiro das almas”. Neste espaço, foi construído um quadrado cimentado e azulejado de
branco, rodeado de plantas, com uma grande cruz ao centro. No local acendem velas, rezam o
terço e, sobretudo, sentam-se para conversar mentalmente com as entidades. Algumas pessoas
cumprem parte de seu tratamento espiritual, fazendo ali suas orações. Antes e depois dos rituais,
sempre é possível encontrar ali alguém em prece.
Descendo por uma escada recortada na terra, entre árvores e grandes pedras, chega-se
ao terreiro onde são realizados os bailados. Este espaço fica no meio de uma mata, como uma
clareira cercada de árvores de altas copas. O chão é de terra batida. Não há nenhuma construção
no local.
O bailado no terreiro é o momento em que todos dançam ao som de cantigas ritmadas
com atabaques e violões, numa cerimônia bem diferente do “trabalho de mesa”. No início deste
ritual é ministrado o Daime, e todos se posicionam em círculos, um de homens e outro de
mulheres. As mulheres seguem à frente e os homens as acompanham.. Neste momento, muitas
pessoas entram em transe e, conforme se diz, “recebem suas entidades”, fato que dispensa os
clássicos ritos de iniciação, pois o bailado e as músicas funcionam como instrução espiritual. O
estado extático é concebido por algumas pessoas como parte de seu tratamento, pois a doença
pode ser compreendida como fruto da aproximação de alguma alma. A experiência do transe
pode fazer com que o espírito malfazejo se afaste e se aproximem entidades que podem trazer a
cura.
82
No momento do bailado, algumas pessoas às vezes dançam no meio da roda, outras
permanecem em seus lugares de olhos fechados, com movimentos corporais suaves, por vezes
com tremores. Assim como a dança em algumas casas de umbanda, há também expressões que
identificam a presença da entidade, como, por exemplo, uma mão para trás e outra no peito, com
o dedo indicador e o mediano juntos, posição que lembra o “caboclo”*; corpo curvado para frente
e andar vagaroso, representando os pretos-velhos; e, ainda, pulos e gritos agudos, lembrando as
manifestações dos espíritos infantis. Quando ocorre uma manifestação entre os visitantes, os
médiuns mais antigos da casa, por vezes incorporados com seus pretos-velhos, os auxiliam,
levando-os para o centro da roda, bailando com eles ou retirando a entidade de seus corpos. Ouvi
algumas pessoas comentarem que era importante sentir a presença de suas entidades, mas não
“incorporar”, pois o objetivo seria trazer essa entidade para dentro de si, sem necessidade de
externá-la, o que levaria ao “mimetismo e ao crescimento do ego”.
No decorrer do ritual, o chá é oferecido outras vezes. Conforme mencionei, a
quantidade segue o critério de permanência no local. Além das mirações, outro efeito considerado
benéfico do chá é a”limpeza” através de vômitos e diarréias. Nesta limpeza, maus pensamentos e
atitudes seriam expurgados, complementando o trabalho espiritual de transformação pessoal. A
transformação está relacionada à idéia de um ser humano voltado para sua natureza divina, que
liga a humanidade com criaturas de Deus. Assim, procura-se através do rito, aproximando-se do
“mundo espiritual”, tornar-se uma pessoa mais amorosa, solidária, fraterna, “equilibrada” e feliz,
em oposição ao apelo do “mundo material” competitivo, que tornaria os seres individualistas,
angustiados e tristes.
A maior parte deste grupo é composta por jovens universitários, graduados e pósgraduados (há mestres e doutorandos). Freqüentam assiduamente cerca de vinte pessoas, sendo
oito fardadas, das quais três se fardaram no intercurso do ano 2005/6. Em dias de festa em
homenagem aos santos padroeiros ou festas dos orixás e guias, a freqüência aumenta, chegando a
ter mais de cinqüenta pessoas, como na festa de preto-velho.
O trabalho espiritual com os pretos-velhos, na mesa e no terreiro, é bastante procurado.
As consultas são demoradas, pois os pretos-velhos conversam por quanto tempo for necessário,
não se preocupando com o horário, pois esta etapa acontece com o término do ritual de mesa ou
durante as giras, que podem durar até a noite inteira. Além disso, dependendo do que deve ser
feito para o consulente, os pretos-velhos atendem ali mesmo, manipulando a pemba, a fumaça do
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cachimbo, usando velas, retirando malefícios no cruzeiro, usando arruda e assovios, que são
sinais peculiares de sua ação mágica na barquinha.
Nesta casa, os pretos-velhos são tratados como entidades de luz, “irmãos” que estão no
mundo espiritual procurando difundir a idéia de amor ao próximo e à humildade, saberes
apreendidos em vidas passadas através da situação de opressão a que foram subjugados. Entendese que especialmente a escravidão os dotou desta sabedoria, pois lhes foi necessário superar a
mágoa de seu cativeiro para transformá-la em aprendizado espiritual de amor ao próximo.
Predominantemente, apresenta-se a representação dos pretos-velhos como “escravos”. Entende-se
que seu “sofrimento” pode servir como possibilidade de superação das dificuldades enfrentadas
no cotidiano. Além disso, tal superação se destaca como um aprendizado que leva à elevação
espiritual.
Sendo “entidades de luz”, são concebidos como potencialmente seres curadores,
responsáveis por esta atividade, através das preces e da magia das ervas e de elementos da
natureza, como o fogo. Os pretos-velhos cumprem a “missão” de auxiliar os “filhos” que estão
em busca do conhecimento e da transformação espiritual. Este é um território marcado pelo
desejo de transformação. Os relatos pessoais que ouvi demonstraram tal busca. Aqui a
possibilidade de transformação está impressa na figura de um de seus mentores espirituais, o
Príncipe Espadarte, encanto que utiliza o conhecimento dos “mistérios” para alterar sua forma,
transformando-se num peixe.
2.3.3 Festa de pretos-velhos na Barquinha: dia 13 de maio de 2006
A festa dos “irmãos pretos-velhos” 28 foi comemorada dando prosseguimento à romaria
de Nossa Senhora, compromisso de todos os membros do grupo. No decorrer da romaria,
cantaram-se hinos em louvor à Nossa Senhora, junto às rezas: Ave-Maria, Salve-rainha, Credo e
Pai-nosso. Após o trabalho de mesa, visitantes e irmãos foram para o terreiro que estava
cuidadosamente enfeitado. Fitas multicoloridas foram amarradas em um cercado de bambu, que
formava uma espécie de tenda circense. Neste cenário, fitas e papeis em forma de gotas douradas
faziam alusão à chuva 29 .
28
Costuma-se referir-se aos pretos-velhos como “irmãos” espirituais.
Neste dia, caiu uma chuva torrencial que não impediu o bailado. Todos dançaram, alguns sem sapatos, com os pés
na lama expressavam alegria no dia festivo.
29
84
Do lado direito, ao final da descida para o terreiro de bailado, estava a mesa com o
recipiente do Daime, junto ao qual havia uma vela acesa. Em outra mesa ao lado, imagens dos
pretos-velhos, santos católicos e do Orixá Omulu. Uma terceira mesa foi ornamentada para
receber as oferendas aos pretos-velhos. Nela, sobre a toalha branca, além das imagens dos pretosvelhos, foram preparadas alguns pratos com pedaços de rapadura, outro com farofa, além de um
preparado com tutu de feijão. Com a ameaça de chuva, sobre a mesa foi montada uma cobertura;
havia algumas cadeiras para quem quisesse descansar.
O Daime foi servido em fila, uma destinada aos homens e outra às mulheres. Algumas
pessoas que participaram do “trabalho de mesa” não repetiram a dose do chá. Ao toque dos
atabaques, todos se prepararam em duas rodas. Seguindo o sentido horário, homens e mulheres
começaram a bailar. A dança, embora livre, apresentava um certo padrão, principalmente entre os
irmãos. O passo repetido por eles consistia em um passo à frente e uma meia parada para trás.
Noutras cantigas as danças se alternavam: 1800 à direita e outro à esquerda. O bailado foi iniciado
com cantigas de caboclos. Algumas pessoas incorporaram as suas entidades e bradavam
fortemente: “okê,okê”, “Hu,hu,hu”, “Aiiiiii”, “kiô, kiô”. Naquele ambiente, cercado pela mata,
junto às representações de caboclos, vigorava a imagem de uma festa de aldeia indígena.
Os movimentos corporais se alternavam, algumas pessoas contorciam o rosto e o corpo
estremecia, mas se mantinha sob controle. Um participante explicou que o Daime servia para o
aprendizado mediúnico: através de sua “força”, aprendiam a reconhecer as diferentes entidadesguias e a controlar sua ação sobre o corpo. Finalizando a primeira parte de danças, entoaram
cantigas para que os caboclos fossem embora. As músicas passaram a invocar a presença dos
pretos-velhos.
Os transes coletivos novamente retornaram com os participantes em roda e dançando
incessantemente. Pude acompanhar de perto a incorporação de um dos irmãos que, já há algum
tempo, estava em estágio de desenvolvimento espiritual. Há alguns meses observava seu
aprendizado. Recordo que, certa vez, o rapaz foi auxiliado por uma preta-velha que o
acompanhava, estimulando o contato com sua entidade-guia, seu preto-velho. Percebia que ele
sentia certa dificuldade com o transe, principalmente com alguns movimentos de locomoção e
fala. A preta-velha que o orientava cantava próximo ao seu ouvido e lhe pedia que se entregasse
sem medo. O corpo do rapaz cambaleava e o rosto se contorcia. Ela encerrou a sessão, dizendo
que ele tinha medo e que era preciso evitar esse sentimento e se entregar, demonstrando
85
confiança na espiritualidade. Logo depois o encontrei no Acre, cumprindo a etapa final de seu
desenvolvimento espiritual, o fardamento na doutrina. Retornando às comemorações do pretovelho em Niterói: naquele instante, o rapaz demonstrava maior confiança em seu contato
espiritual, sua inibição e temor se desfizeram. A princípio o corpo parecia resistir, mas, ajudado
por uma preta-velha, foi entrando em contato com seu guia. Seu corpo foi-se modificando, passou
a dançar num movimento comumente atribuído a estas entidades que, assim como na umbanda,
sustentam o corpo um pouco curvado para frente, batendo um pé e depois o outro, com suaves
movimentos laterais. Outros médiuns, em transe com seus pretos-velhos, dançavam mais
rapidamente e rodopiavam ao som do tambor.
Passei a observar o transe de outro rapaz. A princípio seu caminhar foi-se tornando
vagaroso e ele parecia incomodado, pois insistentemente passava as mãos sobre o rosto. Seu
andar vagaroso transformava-se numa marcha suave e o corpo se projetou aos poucos para frente.
Caminhando vagarosamente, parou defronte aos atabaques e ali permaneceu por um tempo. A
liderança da casa, cantando e manipulando um maracá, o levou para o centro da roda. Ali o
jovem dançou e, com uma das mãos erguidas com dois dedos para frente, fazia movimentos ao
redor de seu próprio corpo. Esta performance durou pelo menos o tempo de umas quatro cantigas,
até retomar à antiga feição, apresentando um pouco de cansaço. Finalmente, depois dessa
experiência, sentou-se numa das cadeiras, absorvido por seus pensamentos. Tempos depois,
retomou ao bailado. Pareceu-me que esta era uma experiência recente para ele.
Os pretos-velhos dos médiuns da casa saíram do centro da roda, sentando-se nos
pequenos bancos para darem consultas. Quem queria conversar com a entidade procurava ficar
perto deles. Em algumas situações, as entidades mandavam chamar a pessoa, por considerar que
precisavam de algum aconselhamento espiritual. A chuva caiu, prejudicando um pouco o bailado.
Boa parte do grupo procurou algum espaço debaixo da cobertura, onde já estavam dispostos os
pretos-velhos em consulta. Debaixo do abrigo, reiniciaram as rezas. Oito entidades faziam os
atendimentos espirituais, enquanto rezas e cantigas eram entoadas por todos. Antes da
confraternização com a distribuição dos alimentos, os pretos-velhos se posicionaram diante da
mesa para juntos fazerem preces sobre as oferendas. A comida foi servida em pequenos pedaços
de folha de bananeira.
Num canto, um tanto introspectivo, estava o rapaz que julguei ter recebido pela primeira
vez o preto-velho. Aproximei-me e, aproveitando o momento de descontração, perguntei-lhe se
86
tinha sido realmente primeira vez que ele “recebia” 30 aquela entidade. A princípio ele não
entendeu minha pergunta. Disse: “Preto-velho?”. A resposta veio num português estrangeirado:
“Eu não entendo muito bem...”. Logo depois explicou-me que era um antropólogo europeu.
Ainda estava em fase inicial de pesquisa e não sabia o que era “preto-velho”. Os traços de seu
transe me levaram a interpretar “quem” havia tomado o seu corpo; entretanto, para um olhar
“estrangeiro” a experiência era de “possessão” por “espíritos”. Conversamos, até que o recomeço
dos atabaques anunciasse que a outra etapa seria para homenagear os orixás. A chuva parou e a
dança continuou. Após salvar a todos os orixás, a festa dos pretos-velhos foi concluída.
A festa aos pretos-velhos é um dos momentos mais importantes para o grupo, pois eles
são considerados os mentores espirituais da casa. Os “senhores pretos-velhos” e as “senhoras
pretas-velhas” são, junto aos santos, ao Mestre Daniel e o Príncipe Dom Simeão, as figuras
sagradas, responsáveis pelo desenvolvimento espiritual e pelas curas realizadas na casa. A festa
significa o momento de criação e manutenção de certos vínculos. É tomada como um
compromisso entregue à espiritualidade, indicando o desejo de manutenção dos laços do grupo
com o plano espiritual.
Nesta casa, os pretos-velhos são compreendidos como “escravos”. As comidas
destinadas à cerimônia de homenagem são associadas à “comida de escravos”. Assim, feijoada,
farofa, rapadura, coco, açúcar e grãos de café expostos montavam um cenário propício a este tipo
de representação. Nesta modalidade de “escravidão”, destaca-se o entendimento do aspecto moral
de sua representação, pois, segundo afirma o grupo, tais entidades lhes ensinam valores morais,
como a bondade e a humildade diante da adversidade. Entretanto, sua faceta “escrava” propicia
também o conhecimento da magia, capaz de beneficiar seus “filhos-de-fé”, aprendizado este que
vem de sua ancestralidade africana.
Os rituais de terreiro, como os de consulta, por exemplo, são considerados como ritos
mais próximos da umbanda, enquanto a cerimônia ao redor da mesa teria características mais
católicas. A figura dos pretos-velhos é destacada pelo grupo como ser de luz que pode auxiliar no
crescimento espiritual e na doutrinação das almas. Compreendo que sua aproximação com os
ritos umbandistas contribuiu para que se perpetuasse a representação dessas entidades como
“escravo”. Algumas práticas da umbanda são mantidas, como os pontos cantados e riscados, as
vestes brancas e as consultas, demonstrando que a umbandização produz uma linguagem comum
30
“Receber” é termo comumente usado pelos médiuns, indicando o contato com a espiritualidade.
87
que, para Diana Brown (1974), serviu como referência de brasilidade, e aqui pode ser apresentada
como manutenção de um entendimento comum: preto-velho representa o “espírito de escravos
brasileiros”, reforçando a idéia original da autora e nos apresentando entendimentos sobre esta
brasilidade.
2.4 Sobriamente de nação: uma casa Ketu.
Geralmente, no candomblé não há culto aos pretos-velhos. Dizem os praticantes que
eles são “eguns”, espíritos dos mortos. Entrar em contato com o morto, para eles, seria algo
desnecessário e até mesmo um tabu segundo suas crenças. Entretanto, diante daquelas fronteiras
porosas, encontrei casas que tocam umbanda e candomblé, outras se dizem de umbanda, mas
fazem rituais semelhantes ao candomblé, como por exemplo, em ritos de sacrifício de animais
em dias referidos aos Orixás, ou como parte de limpeza espiritual de um de seus filhos-da-casa.
Outros locais não fazem propriamente uma sessão para os pretos-velhos, mas lhes dão oferendas.
Em alguns casos, as lideranças recebem os pretos-velhos para consultas ou curas.
Em busca dos pretos-velhos numa afamada casa de umbanda na Região Oceânica de
Niterói, encontrei uma casa identificada por sua liderança como “de nação”. A bandeira branca
ao alto da árvore “Tempo” identificava o templo religioso. Não enxerguei tal sinal. Perguntava
pelas ruas de modo muito vago: “Sabe onde tem um terreiro por aqui?”; logo me indicavam um,
e mais outro e assim por diante. Talvez fosse melhor descrever um pouco a região em que me
encontrava.
Encontrava-me na Região Oceânica de Niterói, num sub-bairro conhecido por Timbau,
recentemente rebatizado com o nome de “Jardim Imbuí”. Este é um pequeno trecho de terra entre
o mar de Piratininga e sua lagoa. Parte de seus antigos moradores descendem de antigos
pescadores da região, mas há ainda aqueles que vêm ocupando sistematicamente a área como um
refúgio dos problemas urbanos da cidade do Rio de Janeiro, o que fez com que a especulação
imobiliária fizesse crescer os valores dos imóveis do lugar e, conseqüentemente, produzisse uma
alteração da composição de seus moradores. Nessa pequena área geográfica, localizei um centro
espírita de caridade (kardecista), um barracão de candomblé, um terreiro de umbanda, um espírita
que recebe o preto-velho para consulta em sua própria casa, além de uma antiga rezadeira e
curandeira, conhecida por seus trabalhos com ervas, Dona Conceição.
88
Observando o muro da casa, pintado de branco, sua calçada tomada de plantas e, sobre o
portão, palha-da-costa e alguidares, certifiquei-me que ali era uma casa-de-santo*. Estes eram
sinais para reconhecimento do espaço religioso. Ao toque da campainha, fui atendida por um
senhor. Disse brevemente o que procurava: faço uma pesquisa sobre os pretos-velhos, disse.
Explicou-me que ali era uma casa de “nação”, “ketu”, mas que gostaria de conversar comigo.
Marcamos um encontro. Despediu-se de mim, propondo uma charada sobre os pretos-velhos, que
deveria ser respondida em nosso próximo encontro: “Quem chegou primeiro, os pretos-velhos ou
os africanos?”.
2.4.1 A “África” em Niterói
Ao lado do terreiro de umbanda em que pesquisava, em Niterói, havia uma casa de
candomblé. O mudo pintado de branco e os jarros sobre o portão informavam este pertencimento.
Além disso, uma bandeira branca hasteada num mastro de uma árvore sinalizava que a casa era
de “tradição ketu”. Embora as referências sobre o culto aos pretos-velhos indicassem
exclusivamente os ritos umbandistas, resolvi saber quais eram as idéias que se mantinham sobre
os pretos-velhos nas casas que se definem como “ketu”.
Fui atendida por um senhor que se identificou como o “zelador” da casa. Diante de
minhas intenções, marcou um encontro para conversarmos; pediu-me, contudo, que pensasse no
enigma: “Quem chegou primeiro? Os escravos ou os pretos-velhos?”.
Na ocasião determinada, o portão foi aberto pelo mesmo senhor de antes. O caminho
que levava aos fundos do terreno era cimentado, ladeado por baixas cercas impecavelmente
pintadas de branco, com profusão de plantas. A primeira construção, do lado direito era um
pequeno cômodo, semelhante a uma casa de porta e janela, que –explicou-me ele – era destinada
aos pretos-velhos. Mas esta não era uma casa “ketu”? Como então havia casa de pretos-velhos, se
a tradição ketu, segundo dizem, não cultuava essa entidade?
Diante da casa dos pretos-velhos, encontravam-se os assentamentos* dos exus,
pequenos cômodos nos quais são depositadas as oferendas a esta divindade. Um espaço contíguo
foi reservado para as matanças rituais dos animais.
Seguindo o corredor, havia imensa árvore. A liderança explicou que aquela e as
inúmeras árvores e arbustos que ali estavam tinham um sentido sagrado, a frondosa árvore, por
89
exemplo, chamava-se Iroco, e era considerada sagrada, pois se acredita que sirva de abrigo para
as entidades divinizadas 31 . Próximo às suas raízes, encontrava-se outro vegetal sagrado: o
dendezeiro.
Próximo àquela “mata” estava o assentamento de Ogum, identificado por suas
ferramentas em ferro. Ao seu lado, uma construção azulejada servia de espaço para os orixás da
água. Por trás de Iroco, a grande árvore sagrada, havia uma seqüência de pequenos cômodos, que
eram destinados a outros assentamentos dos orixás, e um quarto usado especificamente para o
jogo de búzios. Destacava-se dessas construções uma pequena casa. Embora feita com um só
cômodo, primava pelos detalhes, com porta e janela, e acabamento de barro. Esta casa era
destinada a Iasã. A liderança me explicou que procurou reproduzi-la conforme um modelo
africano.
O barracão – local destinado ao culto, as “Xirès aos orixás”, era completamente branco:
piso, pilastras, móveis e enfeites. Nas paredes havia quadros com certificados de homenagens
recebidas e a foto da mãe-de-santo do médium que é liderança da casa.
Retornando à parte externa: uma cozinha foi destinada somente à produção da comida
ritual, com um fogão industrial e outro de lenha, pois a casa procurava preparar os pratos rituais
conforme fizera seus antepassados. Numa extensão da cozinha, foi mantida uma dispensa
reservada às louças, com alguns mantimentos e objetos rituais. Ao lado, ficava a casa do
religioso, cuja varanda era quase continuação desta cozinha-ritual.
Essas construções ocupavam uma área equivalente a dois lotes. Parte do terreno dos
fundos era ocupado com a plantação de ervas para a produção de medicamentos e banhos. Além
disso, fora construída a área de lazer da família, com uma grande piscina e a garagem para o
carro.
O encontro com os visitantes e filhos da casa aconteceu na cozinha-ritual. Em torno da
mesa, conversam e, havendo função religiosa, preparam as comidas para a cerimônia. Um quadro
de giz indicava os dias de gira, de consulta com o caboclo, com o preto-velho, e outras datas
destinadas ao jogo de búzios. O zeloso pai-de-santo me apresentava orgulhoso sua casa, suas
plantas (das quais procurou explicar minuciosamente as funções) e os objetos religiosos. Falava
de modo apaixonante sobre sua religião e seu trabalho espiritual. Suas histórias eram envolventes,
31
Diz Nina Rodrigues: “Geralmente estas plantas são antes residência de santos ou espíritos do que propriamente
deuses...” (Rodrigues, 2004: 256).
90
e sua voz, grave e calma, tornava atraente sua descrição. Geralmente sua fala começava ou
terminava numa referência aos antepassados. Quase sempre dizia que a tradição de seus
antepassados não devia morrer e, por tal motivo, dedicava-se tanto.
Embora fosse advogado, tinha abandonado a profissão para tal dedicar-se à religião.
Apresentou-me certificados nas paredes do barracão: homenagens e filiações a federações. No
quarto de jogos, contou sua história familiar e mostrou fotografias em que seu pai aparecia como
alguém que mantinha boas relações com políticos da década de 1930. Numa dessas fotos, seu pai
posava junto a seus filhos-de-santo numa casa de pau-a-pique onde dirigia um culto de umbanda.
Comentou que seu pai, embora fosse dirigente de umbanda, fez questão de que ele estudasse em
colégio católico e fizesse a primeira comunhão. Dito isso, pegou as fotos para comprovar sua
fala.
Posteriormente, acompanhando a produção de um ebó 32 , notei sua insistência em
manter certos comportamentos e tarefas, explicando para suas filhas-de-santo que esta era a
forma de manter a tradição.O corte dos legumes, o silêncio, a prece e as vestes tinham um padrão
pré-determinado, que garantiria a maior concentração de “forças” e, conseqüentemente, um
benefício de igual valor.
A festa de caboclo 33 foi produzida dentro desta compreensão de tradição. A árvore
Iroco estava enfeitada com fitas de cetim coloridas e, em cestos, as oferendas de frutas que, no
final da cerimônia, foram servidas aos visitantes. Neste rito, todos os presentes estavam
arrumados em trajes que atualmente são identificados como “africanos”: homens com batas
coloridas e mulheres com a cabeça coberta por um ojá colorido, uma espécie de turbante. O
tratamento entre eles seguia os costumes de sua tradição religiosa, alguns beijando a mão,
abaixando a cabeça ou se abraçando, conforme a hierarquia entre eles.
A história pessoal do pai-de-santo reflete a sua prática religiosa:
Sou filho carnal de José de Xangô, neto de João Bongolê, dentro do ritual do catimbó e
da umbanda, sem falar na parte de candomblé, que é a parte África, pura, cuja origem
é o Gantuá. Sou filho de Alice de Oxum, sou neto de Dalcia de Obaguerê, terceiro
barco de mãe menininha do Gantuá (...) Eu não digo que sou de origem “preto velho”,
eu sou de origem ketu, porque antes do preto-velho chegar aqui e dar consulta ele era
africano. Então eu sou de origem ketu e sou de origem “velho” porque adoro, amo
pretos-velhos. Eu sou neto e filho do vovô de Bongolê, que usa bengala e usa cachimbo,
32
Ebó é um ritual de limpeza espiritual. Observei neste dia de maio (16/05/2004) o ebó de uma das filhas da casa, e
eu mesma passei pelo meu próprio ritual.
33
Festa ao caboclo Xapanã, em 10 de julho de 2004.
91
cujo jogo encontra-se em meu poder por herança (...) Eu não misturo uma coisa com a
outra. Eu mantenho o gongá que era de meu pai, o meu primeiro banquinho da idade
de dez anos mais ou menos, que eu recebia meu preto-velho; tenho a mesma bengala, a
bengala que era do pai do meu pai e o cachimbo dele. Então ali eu faço minhas
orações, orações da umbanda, acendo minhas velas, recebo o preto velho, atendo as
pessoas que necessitam e não há nada que interfira neste segmento espiritual. Há hoje
uma aceitação por parte de minha mãe, Alice de Oxum, na preservação dos meus
pretos-velhos. Não havia como ser diferente. Você pode conversar com gente da minha
nação que pode dizer: “depois da minha feitura, preto-velho não desce, não me dedico
mais a pretos-velhos”, não incorporam, porque nação é nação, preto-velho é uma
entidade brasileira e nação são entidades africanas 34
O preto-velho do pai-de-santo candoblecista era “brasileiro” e, portanto, não desceria
mais numa cabeça entregue aos orixás africanos. Novamente a interpretação de Brown (1974)
sobre estas entidades se confirma. O pai-de-santo, porém, vive uma encruzilhada pessoal, pois
sua tradição familiar indica a permanência do culto aos pretos-velhos. Como veremos nos
próximos capítulos, esta afinidade revela um padrão de relação que se estabelece no culto aos
pretos-velhos. A liderança desta casa constantemente fazia alusão à sua “tradição”. Embora
inicialmente tenha apresentado uma certa disposição para falar sobre os pretos-velhos, sentiu
dificuldade em explicar sua escolha pela tradição africana, junto aos pretos-velhos, pois entendia
que, apesar de os pretos-velhos serem fruto da “escravidão”, em seu contexto religioso atual a
figura ganhara uma conotação de menor valor em oposição aos orixás.
Em sua fala procurava ser moderado, respondia após um longo tempo de silêncio, como
que medindo exatamente o que poderia ou não ser “revelado”. Sua dificuldade revelava um
contexto modelador da estrutura religiosa que determina o que é “tradição” ou o que é “raiz”.
Entretanto, procurava assinalar que era fiel às suas raízes e, por tal motivo, mantinha os ritos aos
orixás, que procurava zelar por uma conduta secular, como a manutenção de certo ritual no
preparo do alimento, por exemplo. Sua origem religiosa, porém, era plural: “Eu não misturo uma
coisa com a outra”. Por temer que fosse compreendido como alguém que “misturava” doutrinas,
freqüentemente sinalizava esta preocupação. Tal apreensão só era possível porque a imagem dos
pretos-velhos está relacionada à idéia de deteriorização da “cultura africana”, pois, quanto mais
“africano”, mais “tradicional” em oposição às “misturas” que indicam o “menos puro”. ”.
Entretanto, a configuração atual dos cultos aos pretos-velhos indica que sua figura está associada
34
Entrevista no dia 23 de novembro de 2004, após dez meses de convívio com o pai-de-santo, seus ofícios religiosos
e sua família.
92
à “mistura” do escravo assenzalado, que pode ser identificado como africano, mas, no rito de
umbanda, predomina sua classificação como mestiço.
Quando citou sua origem, “ketu”, remeteu à sua genealogia religiosa. Naquele contexto,
a expressão “ketu” busca afirmar determinada ascendência que, na atual configuração religiosa
“afro-brasileira”, é legitimadora da ordenação da “tradição de um povo” 35 . Entretanto, acredita
que sua herança familiar, que também é “tradição”, apresenta outra estrutura religiosa. Devo
assinalar ainda que o pai de santo freqüentava também a igreja católica. Na casa destinada ao rito
de consulta com os pretos-velhos, havia inúmeras imagens de santos católicos que pertenceram a
seu avô. Junto às imagens centenárias, repousavam o cachimbo feito com chifre de boi e a
bengala talhada em madeira, que pertenceram ao preto-velho de seu avô, que, segundo contou,
viveu de perto a tristeza da escravidão.
Em suas conversas, a memória de “África” e “escravidão” estava sempre presente. No
depoimento, dizia que era ketu, mas também era “velho”, termo que criou para empregar sua
participação em ritos de preto-velho. Disse: “(...) e sou de origem “velho” porque adoro, amo
pretos-velhos.”. Seu culto aos pretos-velhos acontecia esporadicamente na casa a eles destinada.
Ali ele e sua esposa recebiam suas entidades e davam consulta. Anualmente realizam uma festa
para as entidades, com feijoada e consultas dos visitantes. Além disso, presta socorro espiritual
com seu preto-velho na casa de clientes e amigos. Desse trabalho com os pretos-velhos, fala com
afeto e se emociona. As entidades são aqui considerados “antepassados” familiares.
Portanto, o culto aos pretos-velhos era mantido nesta casa como uma forma de culto aos
antepassados. Este antepassado tanto pode instituir a idéia de “povo”, de “escravos” e seus
descendentes, quanto uma prática familiar tomada como costume que deve ser mantido ad
eternum. Aqui, o culto aos pretos-velhos representa os “escravos” ou a “escravidão”, através da
manutenção da memória dos “africanos”, na figura dos velhos sábios e magiadores de antigas
aldeias. Entretanto, tais ancestrais são personagens identificados na figura de seu avô, com
35
Muitos autores apontam para uma construção orquestrada de legitimidade fundamentada na continuidade de
“tradições africanas”, como se pouco ou nada tivesse sido mudado nos rituais translados de outro continente por
séculos e séculos. Para compreender melhor tal quadro, “usei e abusei” de Beatriz Góis Dantas (1988) e seu estudo
comparativo dos nagôs de Laranjeiras e Salvador. Além de demonstrar o importante papel dos intelectuais na
construção do ser nagô, ser de nação e ser pertencente a um culto africano, a autora apresenta os nagôs de laranjeiras
com sua crença híbrida, auto-referida como tradição. Destaco especialmente a passagem em que uma seguidora do
culto “africano” e “católico” explicava ao padre que mantinha a outra religião por uma obrigação com seus
antepassados; e o padre a conforta, dizendo “fazei isso porque és laranjense”. Além de Góis Dantas ver Capone
(2004); Maggie (2001) e Birman (1995).
93
registros materiais de sua prática de fé em imagens religiosas, artefatos rituais, como o cachimbo
e a bengala, além de fotografias, histórias ouvidas e situações vivenciadas.
O culto aos pretos-velhos representa a possibilidade de manter um rito familiar, que se
desenvolve nos padrões umbandistas: com ponto cantado, consulta e cachimbo. A permanência
desta prática foi justificada pela necessidade de manter viva uma tradição familiar. Aqui os laços
consangüíneos se fortaleciam através do culto aos pretos-velhos. Não seria coincidência sua
nomeação familiar: pai, tio, vovô, titia, vovó. Para garantir a legitimidade do uso de duas
tradições, que na prática são consideradas antagônicas, há um apelo para tais laços de parentesco,
de modo que os pretos-velhos, por sua ancestralidade, tornam-se figuras “africanas”.
2.5 Grupo Espírita Servidores de Jesus
Através de uma informante kardecista, soube que este grupo mantinha tanto a doutrina
de Kardec, como o rito das consultas com os pretos-velhos. O primeiro encontro foi numa sessão
de cura, com o espírito do Doutor Fritz, em que conheci alguns freqüentadores e, deste modo,
pude observar os ritos e realizar algumas entrevistas com médiuns e um de seus dirigentes.
Passo agora a narrar um outro centro espírita para mostrar nova inserção dos pretosvelhos nesse campo religioso. Este grupo espírita organiza suas cerimônias a partir de
referenciais kardecistas, incorporando algumas práticas umbandistas. O Grupo Espírita
Servidores de Jesus procurou não se filiar à Federação Espírita Brasileira, instituição que procura
unificar o “movimento espírita” numa mesma diretriz. O motivo maior foi a opção de não
discriminar nenhum espírito que se apresentasse para trabalhar na prática da caridade. Assim,
pode exercer a prática espírita sem a preocupação de que apareçam para o ofício religioso, índios,
pretos, velhos ou jovens, exus ou qualquer outro. Comentaram que por vezes os nomes afastam
tanto os médiuns que trabalham, quanto aqueles que precisam de ajuda. Neste sentido,
procuravam mudar essa mentalidade. Mesmo seguros de sua escolha, volta e meia recebem
visitantes de grupos kardecistas, que os recriminam pela sua conduta. Ao que parece, o grupo não
se preocupa com tal postura, sendo costume convidar oradores kardecistas e metodistas para
falarem sobre espiritualidade. Sobre tal diversidade, disseram que ao grupo interessa somar
forças e não dividir.
94
A casa que abriga as atividades está localizada no centro de Niterói, recebendo pessoas
de municípios vizinhos e outros mais distantes. No salão principal, dependendo da hora em que
se chega, encontram-se todas as cadeiras ocupadas (mais de sessenta lugares), além de outras
pessoas em pé. São moços e moças, crianças e idosos, mulheres e homens abandonados pelos
respectivos companheiros, doentes que mal conseguem caminhar e muitos outros que procuram
respostas para suas dores físicas e emocionais.
Na segunda-feira 36 , o atendimento inicia-se às duas horas da tarde. Para consulta com os
pretos-velhos, a inscrição começa ao meio-dia, embora às oito horas da manhã já haja fila ao lado
de fora. Muitas vezes, após o meio-dia já não havia mais como agendar a consulta, o que deixava
algumas pessoas desanimadas, voltando cabisbaixas para casa, outras se desesperavam e diziam:
“Como posso fazer? Como vou deixar meu trabalho antes da hora?”. Se havia choro ou
descontrole, havia um socorro: alguém as encaminhava para conversar com algum médium da
casa e, conforme a situação, recebia deles um passe*.
Este grupo repete padrões de surgimento de casas, terreiros, centros ou barracões: a
ruptura com seu grupo de origem. Boa parte de seus membros participava de um grupo espírita
kardecista e, por discordarem da condução de algumas situações e desejarem trabalhar com os
espíritos de forma diferente, inauguraram este espaço. Dentro de sua linha de trabalho, incluíram
os pretos-velhos, avaliados como espírito “imperfeito” e de “paixões inferiores”37 pela Federação
Espírita, mas entendido pelo grupo como um espírito de bondade. Assim, encontraram uma
forma de contribuir para o crescimento espiritual dos pretos-velhos através da prática espiritual,
especificamente, nos ritos de consulta. Isto significa dizer que, através da ajuda desses espíritos
às pessoas que os procuram, podem também alcançar o desenvolvimento de seu espírito.
Os pretos-velhos não são as únicas entidades que sustentam o trabalho espiritual do
grupo. Embora a casa tenha como referência de seu trabalho o espírito do médico alemão, Dr.
Fritz, o ofício de cura é produto também da ação dos espíritos de caboclos e exus. Entrevistei um
dos membros do grupo que era responsável pelas operações espirituais, em algumas das quais era
auxiliado por pretos-velhos. Ele disse, na ocasião, que durante algumas operações podia ver um
homem alto e de longa capa, sempre num canto da sala observando a situação. Às vezes ele
36
Dia de consulta com pretos-velhos.
Fazendo a distinção dos espíritos, a Federação de Espiritismo Brasileira chama a atenção para os “puros” em
oposição aos “imperfeitos”. Na qualidade de imperfeitos, estão localizados os pretos-velhos, pois se acredita que
tenham obtido pouca instrução, tendo, desse modo, pouco a contribuir com a humanidade.
37
95
freqüentava por muito tempo e sumia, ficando um período sem aparecer, e depois voltava a
freqüentar a sala. Certa vez o espírito pediu para ajudar numa difícil situação. O médium
explicou-lhe que a casa tinha certas regras, e ele aceitou participar, mesmo sem oferendas e
coisas do tipo com que estava acostumado noutros lugares. Foi ficando e ajudando bastante,
depois sumiu novamente. Este último sumiço foi interpretado pelo médium como parte da
“elevação espiritual”, que o levou a um tempo de doutrinação.
A organização deste grupo segue os modelos de outras casas, com uma direção eleita
pelos praticantes: presidente, vice-presidente, tesoureiro e secretários. Há departamentos que
organizam as atividades assistenciais e rituais: “Promoção e Assistência Social”, “Evangelização
e Modernidade”, “Patrimônio”, “Eventos e Divulgação” e “Jurídico”. Apesar de não ocupar a
presidência, um dos fundadores é a figura de maior destaque para o grupo, responsável pelo
trabalho espiritual com Dr. Fritz, e principal mentor 38 da formação através de estudos e palestras:
Osvaldo Quelhas, ou professor Osvaldo, como dizem comumente.
2.5.1 Sessão com Dr. Fritz
Quando conheci o “professor Osvaldo”, ele estava incorporado com o espírito do Dr.
Fritz 39 . Até chegar àquele ponto do encontro, às oito horas da noite, ocorreram inúmeros
procedimentos. Primeiro, o agendamento da consulta na parte da tarde; depois, aguardei por
horas sentada no salão principal; e, por último, mais alguns minutos de espera numa fila que
antecede a porta principal do atendimento.
O salão de espera estava abarrotado de doentes, predominando caras sofridas e uma
intensa tristeza. Este clima parecia, ao menos pra mim, ser ainda mais melancólico com o fundo
musical em que revezavam músicas clássicas com ritmos new age. Havia pessoas em cadeiras de
roda e outras com o corpo enfaixado ou encoberto por gesso.
Fui chamada pelo meu nome para uma segunda etapa do cerimonial. Devia esperar um
pouco mais, perfilada junto a um grupo diante de uma grande porta: este era o indicativo que
estávamos chegando ao derradeiro momento do atendimento. O grupo que aguardava na fila foi
38
Observei que há um trabalho compartilhado, mas a figura do professor é usada como referência e legitimação.
Entidade famosa por operações de grande repercussão na mídia. Nas décadas de 1950-70, o médium que
incorporava esta entidade foi o mineiro Zé Arigó, sendo conhecido de artistas e políticos. O segundo médium a
trabalhar com Fritz foi Rubens Faria nas décadas de 80-90, responsável por uma operação do ex-presidente da
República João Batista Figueiredo (Fonte: Revista Isto é 23 de julho de 1997).
39
96
convidado a entrar. Era uma sala pequena e pouco iluminada, em cujos cantos estavam
posicionados médiuns que mantinham os olhos fechados, e outros que eram responsáveis por
fazer o passe em quem entrava, dos quais alguns eram atendidos de pé e outros deitados em
maca. Logo me colocaram numa maca, e dois médiuns fizeram o ritual dos passes. Levantaramme, e fui encaminhada para o Dr. Fritz.
Seu método consistia em segurar a mão do paciente e lhe dizer qual era o motivo de sua
doença e o que deveria ser feito. Na minha frente, um senhor ficara emocionado e, a cada palavra
dita, debulhava-se em lágrimas. O mesmo procedimento foi feito comigo. O atendimento foi
muito rápido; depois fiquei por um bom tempo conversando com outras pessoas que já tinham
sido atendidas. Elas demonstraram felicidade por se terem consultado e, mais ainda, pela entidade
“ter acertado”. A maior parte não era “espírita”, algumas eram católicas e outras se disseram
“sem religião”, mas todas encantadas com aquela experiência.
Embora naquela sala houvesse um número considerável de médiuns em trabalho
espiritual, um senhor, em especial, chamava a atenção. Homem alto, de cabelos levemente
grisalhos, voz morna e gestos sutis. Sua figura lembrava a de pais amorosos que chegam em casa
e logo os filhos se dependuram em seu pescoço. Nas semanas seguintes essa imagem se reforçou.
Demonstrou ser uma pessoa acolhedora, paciente e, de certa forma paternal. Tal qual a figura do
“pai”, os mais próximos quase se penduravam em seu pescoço. Observei ao longo do tempo que
procura estimular o crescimento dos “seus”, distribuindo tarefas e cobrando o desejo pelo saber.
As palestras e grupos de estudo demonstram que a busca pelo conhecimento é de fato a maior
cobrança que fazem aos médiuns e visitantes da casa.
Reparei que muitos médiuns não usavam roupas brancas. Especialmente a tal liderança,
que destaquei, evitava também tal cor nos rituais. O motivo? Disse que procurava demonstrar aos
freqüentadores que não era diferente deles, que a mediunidade não devia ser vista como algo que
torna a pessoa especial. Sua liderança procurava refletir essa idéia, mas, ainda assim, sua figura
era central e destacada dos demais.
Sua trajetória de vida serviu para construir suas referências espirituais. Quando menino,
batalhou pela sobrevivência, principalmente a emocional, porque o pai cedo lhe faltou. A perda
do pai o guiara definitivamente pelas questões espirituais. Ainda menino, começou a trabalhar
para ajudar nas despesas domésticas. Naquela época começou a pensar sobre as diferenças entre
as pessoas. Por que algumas tinham tudo e outras nada? Se Deus era infinitamente bondade, por
97
que existiam pessoas com defeitos físicos, que só lhes traziam mais dores? Por que algumas
pessoas tinham uma família bem estruturada e outras eram abandonadas à sua própria sorte?
Essas questões de foro íntimo foram guiando seu interesse, queria encontrar as respostas.
Ainda rapazola, começou a freqüentar o centro de umbanda de sua tia. Aos poucos,
observando atentamente os médiuns e lendo muito a respeito do espiritismo, principalmente
através da doutrina kardecista, começou a discordar de certos rituais e comportamentos. Naquela
época, não era médium, como disse, não sentia absolutamente nada em seu corpo, “nenhum
arrepio” 40 . Mesmo sem essas manifestações em seu corpo, sua vivência na umbanda o levara a
construir suas crenças e a encontrar algumas respostas para as questões que o angustiaram.
Depois dessa vivência na umbanda, conheceu um centro kardecista, no qual iniciou sua vida
mediúnica. Numa das reuniões de desenvolvimento, foi orientado a pôr seus braços sobre a mesa:
sentiu uma vibração como se o braço tivesse vontade própria. A partir desse dia dedicou-se à
psicografia e a outras manifestações mediúnicas.
Se de certa forma se especializava nos conhecimentos espirituais, sua paixão pelo
conhecimento o levou à graduação em engenharia e às sucessivas especializações, como o
mestrado e o doutorado. Depois de longos anos dedicados a uma empresa multinacional, arriscou
novas mudanças em sua vida. Com o dinheiro recebido pela indenização de seu antigo emprego,
comprou um imóvel e, junto com amigos, o reformou para que se tornasse sede de um novo
empreendimento religioso 41 .
Profissionalmente, assumiu a Academia e passou a ministrar cursos na Universidade
Federal Fluminense. Disse que a espiritualidade influenciou sua vida profissional, tornando-o
mais humano, despertando seu interesse pela ética e pela segurança do trabalhador. Seu currículo
é extenso: pesquisas, publicações, conferências e colóquios no Brasil e exterior. Na universidade,
quando passa pelos corredores, chovem cumprimentos por todos os lados, que ele devolve com
sorrisos, lembrando sua passagem pelos corredores do centro espírita.
Retornando à sua iniciação espiritual na umbanda, recordo que o jovem Osvaldo sempre
teve um interesse muito grande pelo estudo da espiritualidade. Ao freqüentar o centro espírita de
sua tia, procurava prestar atenção em tudo que estava ao seu redor. Fazia paralelamente leituras
de Kardec e ouvia os conselhos da preta-velha vovó Maria Baiana. Aos poucos esse aprendizado
40
Depoimento em 2 de agosto de 2005.
A reforma final da casa foi fruto da dedicação do grupo, que promoveu almoços, jantares e bingos. O grupo tinha
na época quase cem médiuns.
41
98
já servia, segundo suas palavras, “para cuidar de seus próprios problemas”. Sanadas suas dores,
continuou angustiado com aqueles que procuravam auxílio nas casas espirituais. Pensava que
todos deviam alcançar um nível de auto-atendimento e, para que isso ocorresse, seria
determinante a vontade pessoal. Esta “vontade pessoal” é a meta que procura despertar naqueles
que procuram ajuda no “Servidores de Jesus”.
Sua trajetória pessoal e seu empreendimento religioso focalizam a formação, no sentido
de instrução, para que cada consulente que o procure caminhe por suas próprias pernas. Percebo
que há um esforço para descentralizar decisões e tarefas. Além disso, recordo o uso de roupas
coloridas, elemento que procura utilizar para evitar o que chama de “personalização”, por
prejudicar a ação da espiritualidade. Disse que personalizar é animalizar, porque “você traz pro
seu ego humano (...) Eu tendo idolatrar o meu eu espiritual, cuido do meu corpo físico, mas não
idolatro meu corpo físico, eu tento idolatrar o meu eu espiritual”.
Embora procure esse mimetismo com o grupo ou destaque a ajuda espiritual e não
pessoal, é referência para visitantes e demais membros. Mesmo havendo satisfação por parte dos
freqüentadores, que disseram não encontrar por ali uma cobrança, de doações ou dedicação, a
figura do “professor” supria a demanda de uma liderança similar a de um “padre” ou “pai-desanto”. Até entre os médiuns com certa experiência religiosa, encontra-se a apreensão por
conselhos de um líder para resolução de determinados problemas. Observemos o seguinte relato:
... um médium que já trabalha comigo há dois anos, disse, “Ah, Osvaldo eu senti
falta de fazer uma oferenda pra meu povo da rua”. Isso a gente não faz lá, não
trabalhamos assim. Essa denominação “povo da rua” não existe, “povo da
rua”, de “dentro de casa”, não tem essa denominação, é tudo a mesma coisa.
Tranca Rua é apenas um nome, um pseudônimo que ele usa, pode ser Joaquim,
Manuel, José, por acaso ele usa o nome da falange dele: Tranca Rua que deve
ter um significado especial, algum tipo de simbolismo que ele utiliza nesse nome
pra descrever o trabalho dele no campo espiritual, limpar caminhos, desfazer
energias negativas que trançam e impede que a pessoa caminhe. Então, esse
rapaz veio ontem falar comigo e disse o seguinte, “Ah eu quero fazer”. Eu disse,
você sente em seu coração que é pra você fazer isso? A casa diz pra você que
não precisa. “Ah! Eu sinto”. Então faz. “Ah, eu vou fazer no centro tal”. Então
99
faz. Não pega nada. Era necessidade dele. Não adianta eu chegar pra ele e dar
o Evangelho Segundo o Espiritismo pra ele ler e dizer pra ele ler e refletir que
vai ter o mesmo retorno, o mesmo resultado, ele não vai conseguir. Ele teve que
ir no cemitério, pegou a mãe-de-santo, gastou um dinheirão comprando
material (...) A gente não trabalha com magia, trabalha com autoconhecimento. 42
O entendimento de não aceitar qualquer resposta como verdadeira, investigar novas
possibilidades para além dos limites impostos, procurar não ver impedimentos, ou, caso existam,
mover sua força interior, sua própria espiritualidade, seu “talento pessoal” para resolvê-los, foi de
fundamental importância em sua compreensão particular sobre os pretos-velhos. Duvidava da
incapacidade que foi atribuída a tais entidades. Sua experiência na umbanda fortaleceu essa idéia,
pois
havia acompanhado inúmeras curas e reconhecia nos conselhos destas entidades a
sabedoria.
Os conhecimentos contribuíram para criar uma meta para os trabalhos espirituais.
Segundo disse, cada pessoa procura descobrir seu “talento”. Explicou que a espiritualidade é o
talento de cada pessoa e cada um o manifesta de forma diferenciada. Assim, este “talento” é
recurso para a melhoria da qualidade de vida: “Você traz dentro de você e precisa expressar isso
e, ao expressar isso, você vai ser feliz. Teu destino é realizar o teu talento”. Esta fala foi dita pelo
professor Osvaldo, mas ouvi também expressão parecida dos pretos-velhos da casa e de alguns
médiuns.
É dentro desses padrões que atuam os pretos-velhos. Realizam as consultas, auxiliam
nos passes e nas operações espirituais. Para atender ao público que procura especificamente os
pretos-velhos, foram reservadas as segundas-feiras. Neste dia, na parte da tarde e da noite, há
atendimento, no qual, em média, trabalham oito médiuns com seus pretos-velhos, atendendo às
vezes a oitenta pessoas por sessão, durante a qual procuram resolver os males físicos e informar
as pessoas sobre a possibilidade de descobrirem seus “talentos”.
42
Entrevista citada anteriormente.
100
2.5.2 Preto-velho: aconselhamento e água fluidificada 43 .
Vou agora descrever uma outra inserção do preto-velho, com o objetivo de demonstrar a
minha hipótese sobre a universalidade dessa figura em muitos rituais e templos do campo
espírita.
Acompanhei alguns ritos de consulta dos pretos-velhos desta casa. Toda segunda-feira
há sessão de preto-velho na Casa Espírita Servidores de Jesus. A marcação de consultas para a
parte da tarde é feita a partir do meio-dia; para o turno da noite, a partir das cinco da tarde. O
agendamento é feito com o nome do consulente, seguindo a ordem de chegada. A localização da
casa, próxima ao centro da cidade de Niterói, facilita às pessoas que precisam retornar ao
trabalho. Outras, enquanto aguardam a consulta, circulam pela cidade. Aquelas que decidiram
exclusivamente dedicar seu tempo para o momento da sessão permanecem no local, escutando
música, lendo ou conversando com alguém.
Geralmente o rito se inicia com palestras sobre espiritualidade ou enfoca as atividades
da casa, além das explicações sobre o trabalho espiritual dos pretos-velhos. Relatavam sua opção
por trabalhar com estas entidades, pois acreditavam que os pretos-velhos eram “espíritos de luz”
que traziam mensagens de esperança e ensinamentos de humildade. Procurou-se distinguir da
umbanda, dizendo que não faziam uso de bebidas alcoólicas nem fumo. As entidades realizavam
as consultas com preces, passes e “água fluidificada”.
Enquanto isso, na sala de consulta, os médiuns se preparam para receber os consulentes.
Sem um padrão de vestimenta, conforme já havia comentado a liderança da casa, alguns médiuns
usavam roupa branca ou clara, outros coloridos estampados. Esta sala ficava ao fundo do salão
principal. O acesso aos consulentes era permitido somente durante a consulta, no decorrer da
qual somente os médiuns e seus auxiliares 44 transitavam por ele. Ao término da consulta, o
consulente tomava sua porção de água fluidificada e ia embora, iniciando-se outro atendimento.
Enquanto não começava propriamente a sessão, os médiuns conversavam assuntos
ligados à religião ou a alguma atividade espiritual feita por eles. Aproximando-se o horário
marcado para o início do rito, organizavam uma pequena roda e faziam orações. Em silêncio e
43
Acredita-se que as preces alterem a composição da água, tornando-a receptora de “fluidos” do mundo espiritual,
que podem gerar substâncias curativas.
44
Estas pessoas ajudavam fornecendo algum material para as entidades, como papel, lápis, pemba ou água; além
disso, em algumas situações, ministravam passes, cantavam e faziam preces.
101
concentrados, os médiuns entravam em transe. Seus corpos pendiam levemente para frente num
suave tremor, depois caminhavam lentamente amparados por auxiliares que os colocavam
sentados em cadeiras.
Do lado de fora, um assistente chamava alguns consulentes; uns entravam na sala e
outros aguardavam num banco, ao lado de fora. Este roteiro prosseguia até a finalização do
momento de consulta, aproximadamente duas horas e meia depois. Cada pessoa era encaminhada
ao preto-velho que inicialmente tinha escolhido. No primeiro momento do encontro, a entidade
abraçava o consulente, numa espécie de confraternização. Alguns tocavam ombro a ombro e
outros se tocavam de forma mais demorada, finalizando com um beijar de mãos e o pedido de
benção: “Sua benção Pai Joaquim!”. Alguns encontros lembravam o de velhos amigos,
fraternais e alegres, uma conversa cheia de risos de ambas as partes.
Enquanto observava a consulta de uma preta-velha, vi que ela pediu ajuda para uma das
auxiliares do salão. As duas, num coro suave e baixo cantaram um ponto de preto-velho no
ouvido da consulente. Esta, uma senhora de meia idade, fechou os olhos, e seu corpo começou a
balançar e tremer; em seguida, o tronco tombou para frente e ela abraçou a preta-velha, em que a
senhora que estava consultando entrou num transe com “sua preta-velha”. A “vovó” passou a
conversar com a preta-velha de sua consulente. Dizia que precisava de ajuda, e gostaria de contar
com ela. A senhora em questão tinha problemas com o marido que não aceitava sua mediunidade.
As duas conversaram, procurando unir-se para ajudar aquela senhora a acalmar o marido e poder
trabalhar com a espiritualidade, ou seja, para que atuasse com sua preta-velha. Depois da
conversa, as duas pretas-velhas se cumprimentaram. Ao final da consulta, consulente e entidade
riram juntas numa postura de cumplicidade.
Noutro canto da sala, um preto-velho, depois de escutar e aconselhar seu consulente,
tratou de preparar a solução para o problema apresentado. Pegou um pedaço de papel e pediu
para que escrevesse seu nome. Sobre o nome escrito no pedaço branco de papel, fez desenhos
com a pemba, colocando-o debaixo de um copo d’água. Disse ao senhor: “Você tem fé, meu
filho?”. A resposta saiu de uma voz embargada e um aceno com a cabeça, “Tenho”. A entidade
lhe garantiu: “Mantenha a fé que sua situação será resolvida”.
No salão, algumas pessoas eram atendidas em dupla: marido e mulher, irmãos e outras
relações de parentesco. Este tipo de encontro era mais demorado, mas quase sempre imperava
uma relação descontraída. Acompanhei a consulta de duas mulheres, mãe e filha, com o preto102
velho “Pai Joaquim”. Entendi que aquele não era o primeiro contato e, numa consulta anterior,
tinha sido descoberto um problema de saúde na menina, para o qual ele indicara a procura de um
médico que, na consulta, constatou a necessidade de intervenção cirúrgica. Na ocasião, o pretovelho explicava para a menina que tudo sairia bem, que não haveria problemas na operação, mas
que a melhora efetiva de sua vida dependia exclusivamente dela. Além de confortá-la, dizendo
que tudo sairia bem na cirurgia, aconselhou que saísse mais de casa, arrumasse amigos e se
divertisse. Para melhorar algumas questões pessoais, seria necessário o contato com outras
pessoas.
No decorrer da sessão, os pretos-velhos aconselharam sobre diversas situações: brigas
de marido e mulher, separação de casais, namoros, saúde espiritual e física, problemas com o
trabalho, etc. À medida que terminava a fila de seus consulentes, o preto-velho passava a mão
sobre o corpo e ‘desincorporava’. O gesto de “passar a mão” sobre o corpo indicava uma limpeza
do corpo do médium, para que qualquer “energia” negativa fosse levada pelo “espírito”. Ao final,
em roda, rezavam uma prece e todos davam graças a Deus por terem feito mais uma tarde de
caridade.
Neste rito de consulta estão expressos os valores da casa, como, por exemplo, a prática
da “caridade”, do auxílio “àqueles que sofrem”. Em tal tarefa espiritual, utilizam os espíritos dos
pretos-velhos, pois os concebem como entidades em busca de crescimento espiritual através da
prática do “bem”. Os pretos-velhos são orientados a realizarem um trabalho diferente da
umbanda; não usam bebidas alcoólicas e nem fumam, não escrevem seus pontos escritos no chão,
mas utilizam a pemba como instrumento de magia. Os pontos cantados não fazem parte do rito
coletivo, mas estão presentes no rito de consulta, mediante a necessidade de invocar uma outra
entidade que não pertencia àquela casa.
A concepção de “pretos-velho” como “escravo” permeia sua trajetória nesta casa.
Embora o preto-velho do professor Osvaldo seja considerado um clérigo, compreende-se que tais
espíritos sejam vistos como inferiores, por terem adquirido poucos conhecimentos; além disso, a
herança da feitiçaria africana contribui para que não compreendessem outras formas de mudar
sua vida espiritual, mantendo-os aprisionados noutra vida. Acredita-se que o trabalho espiritual
com os pretos-velhos permita que esses espíritos sejam doutrinados; e, também, que o exemplo
deles sirva aos sofredores que procuram seu auxílio, entendendo-se, através deles, que existe a
possibilidade de transformação ainda em vida. Por vezes, a classificação “escravo” aparece como
103
garantia da comunicação da mensagem que o grupo deseja propagar:
a superação das
dificuldades encontradas na vida cotidiana.
2. 6 Associação de Medicina e Espiritismo do Rio de Janeiro
Uma conhecida, que se autodefinia como “espiritualista”, contou-me sobre o trabalho da
“sociedade” - antigo nome da “associação” – como sendo um espaço que trabalhava com todas as
“linhas”, e garantia que “era diferente de tudo o que eu tinha visto até então”. Este foi um bom
motivo para que eu fosse verificar o que me dizia,
Conforme venho apresentando, a figura dos pretos-velhos pode ser encontrada
facilmente em diferentes grupos religiosos do campo espírita. Diferentemente dos demais, neste
local que irei descrever, não há ritos de consulta, nem pontos cantados ou riscados, nem
tampouco vestes rituais ou outros elementos tradicionalmente relacionados ao culto dessas
entidades. Ainda que estes elementos não estejam presentes, a figura dos pretos-velhos é
considerada essencial para os trabalhos espirituais que realizam.
Na movimentada avenida no centro do Rio de Janeiro, meninos pediam dinheiro,
rapazes e moças vendiam doce, um grupo de estudantes parava os transeuntes perguntando-lhes
se gostavam de chocolate – produziam uma matéria para a tv universitária. Todo o percurso até o
grupo religioso era sonorizado por buzinas dos automóveis e gritos dos ambulantes. Na portaria,
através de um painel, certifiquei-me do andar e do número da sala. Entre consultórios médicos e
escritórios de contabilidade e advocacia lá estava: “Associação de Medicina e Espiritismo do Rio
de Janeiro”. Como disseram, a atividade espiritual desenvolvida pelo grupo era semelhante à de
um hospital: atendiam emergências espirituais. Fui recebida por um gentil senhor de modos
aristocráticos. Sua origem é catalã e foi criado em internatos religiosos espanhóis, período em
que ampliou seu conhecimento sobre temáticas espirituais. Casou-se com uma brasileira, com
quem teve dois filhos. Durante algum tempo freqüentou centros espíritas de diferentes vertentes,
até conhecer este lugar que, na época, chamava-se “Sociedade de Medicina e Espiritismo do Rio
de Janeiro”. Há quinze anos se dedica ao ofício, junto com sua companheira. Embora não seja o
presidente, é uma das lideranças do lugar, orientando alguns trabalhos de cura. O objetivo do
grupo é agregar médiuns de diferentes doutrinas religiosas para o estudo das manifestações
espirituais e a cura dos usuários religiosos que procuram a Associação. Dentro dessa meta, a
104
cerimônia de cura é realizada por seus membros – médiuns umbandistas, kardecistas, e os
denominados, genericamente, “espiritualistas”
A associação cuida de casos que envolvem suicidas, alcoólatras, dependentes químicos
e pessoas em depressão. Para receber o tratamento, deve-se passar por uma triagem que consiste
no preenchimento de uma ficha com os dados pessoais – analisados por médiuns videntes – e
sintomas, que podem ser considerados como problemas de ordem espiritual. Depois desta etapa,
o interessado recebe em sua casa a resposta sobre a necessidade do tratamento e a definição do
número de sessões indicadas para resolução do problema, variável conforme a situação, chegando
no máximo a dez encontros.
Na ante-sala, tem-se a impressão de estar numa recepção de um consultório médico:
balcão, recepcionista e filtro de água. Antigos móveis de madeira escura dão um ar de
circunspeção ao ambiente. Através de uma grande e pesada porta de madeira, o grupo entra para
a sala principal. Nela, cadeiras de madeira lembram antigos bancos escolares que se fecham
quando o ocupante se levanta. A disposição das cadeiras se assemelha a um anfiteatro. Embaixo,
ficam posicionadas três mesas, duas maiores e uma menor ao centro. Ao fundo, como painel, há
uma pesada cortina verde com um crucifixo ao centro.
Alguns médiuns se posicionaram na mesa, orientados pelo anfitrião. A mesa do centro
era ocupada por uma senhora e um rapaz e, na mais próxima da porta, outro grupo era liderado
por uma antiga médium da casa. De pé, atrás dos médiuns de incorporação, ficaram os médiuns
de doutrinação, aqueles que conversam com os espíritos quando eles chegam. Não há um modelo
especial de veste, nem predominância de cor.
A sala foi preparada especificamente para sessões e estudos: cadeiras de madeira,
enfileiradas em níveis diferentes, com capacidade para receber cerca de setenta pessoas. No
primeiro plano, estão localizadas as mesas que são ocupadas pelos médiuns. O transe ocorre no
momento em que o médium entra em contato com o “paciente” ou algum membro de sua família
que o represente. Geralmente este contato é um toque da mão sobre o ombro do médium.
A atuação dos médiuns é variada, pois se acredita que existem diferentes formas de
contatos com a espiritualidade: os médiuns videntes, por exemplo, podem ver o que um médium
de incorporação* não vê, e, mesmo entre os videntes, parecem existir inúmeras percepções sobre
a espiritualidade. Há ainda os intuitivos, que ali cumpriam a função de auxiliar na doutrinação
das entidades que promovem os malefícios aos humanos.
105
No início do ritual todos ficam de pé, e cantam uma música conhecida como “Oração de
São Francisco”, rezam uma Ave-maria, um Pai-nosso e uma prece de Kardec. Por ter
permanecido algum tempo na mesa destinada aos médiuns, tomei ciência das motivações dos
consulentes. Os problemas variavam muito e, em parte, não eram os problemas afetivos ou
familiares que levavam as pessoas àquele local. Boa parte procurava a “Associação” com
problemas relacionados a doenças graves, como o câncer, e depressões que provocariam tentativa
de suicídio.
Cada consulente chamado apresentava sua ficha, a liderança fazia o controle de quantas
sessões haviam sido destinada ao caso e devolvia o papel; depois o consulente colocava a mão
sobre o ombro do médium e este manifestava a entidade que estava provocando sofrimento. A
partir dessa manifestação, os doutrinadores passavam a conversar com a entidade, acalmando-a
ou “doutrinando-a”. Ao final deste transe, alguns médiuns se contorciam e faziam ânsias de
vômito, alguns expeliam secreções. Segundo disseram, esta seria uma forma de fazer a limpeza
da entidade e do próprio médium, a catarse. Após este estado, o médium se acalmava e dizia:
“Graças a Deus a caridade foi feita”.
Disseram que havia pretos-velhos, mas não via nenhuma manifestação de êxtase com
pessoas encurvadas e falando engrolado. Não havia banquinho, cachimbo, cantigas e nem
consultas. Com cara de interrogação, perguntei como os pretos-velhos atuavam naquele ritual.
Explicaram-me que a organização do rito segue o seguinte princípio: cada sessão é liderada por
um agrupamento espiritual, cujos membros agem na imaterialidade, ou seja, não “incorporam”. A
ação dos pretos-velhos é sentida pelos médiuns, que, ocupados em receber em seus corpos o
espírito que incomoda o usuário, invocam seus guias e os outros que acompanham o trabalho
espiritual da casa para promoverem a cura. Os pretos-velhos agem junto com os médiuns
doutrinadores, aconselhando, convencendo e encaminhando as entidades que promovem doenças,
desequilíbrios emocionais e desentendimentos interpessoais. Vez ou outra os pretos-velhos
incorporam num médium, para dar uma mensagem, de ordem particular ou para todo o grupo.
Ao final há um momento de meditação, em silêncio. Um dos médiuns incorpora um frei
que, em vida, foi sacerdote cristão. Esta manifestação é responsável pela limpeza energética do
ambiente. Depois, todos rezam novamente e se preparam para sair. Algumas pessoas, em horário
de trabalho, para lá retornariam. Os médiuns também saem rapidamente, alguns com
106
compromisso em outras casas religiosas. Poucas pessoas permanecem para o segundo turno,
dedicado aos estudos.
Naquele local, o preto-velho é figura imaterializada, sem cantos, imagens ou símbolos
complementares que os identificam, como o charuto ou as ervas. Entretanto, o grupo entende que
o rito se faz sob a sua presença. A maior característica da casa é o “estudo”; e nesta busca por
conhecimento – junto aos inúmeros médiuns de origem religiosa diferente que abrigam –, a
concepção de “pretos-velhos” é bastante variada. Evidentemente, essa variação compõe um
quadro eclético de definição sobre o que é uma entidade, ou o que seria um preto-velho.
Centrando a questão na formação da liderança, inicialmente proposta, temos apenas
uma visão parcial, que, no entanto, indica a concepção geral dos membros participantes. A visão
holística de sua liderança credita a imagem dos pretos-velhos a seres em expansão de seu
aprendizado espiritual. É importante ressaltar que essa idéia compõe um quadro de referência de
constituição do universo espiritual, semelhante a um cosmo composto de “energias” e seres que
estão emanados dentro e sobre o planeta Terra, e transcendendo-o, noutras constelações
espirituais. O reconhecimento desses percursos espirituais junto às manifestações em forma de
espírito segue algumas alterações, levando tal energia condensada a sublimar sua característica
“preto-velho”, a qual é mais associada ao seu corpo terrestre. Dessa forma, os pretos velhos
podem ser considerados corpos de memória mais totalizadora, como “espírito eterno” ou “energia
divina”. Sua ação no rito teria uma dupla função, auxiliar o espírito sofredor e permitir à sua
vítima trilhar sua própria iluminação.
Sobre a composição e pensamento da casa, disse Fortunato45 :
Esta casa aqui é muito eclética. Trabalham todas as vibrações aqui. Então,
ocorre que, às vezes, na incorporação de um pretenso obsessor, um espírito
doente, muitas vezes nem o espírito está ali, foi projeta uma imagem. O espírito
está recolhido em algum lugar, um hospital no espaço, enfim, qualquer canto. É
projetada dele uma imagem mental que vem no centro “incorpora” num
médium, recebe o tratamento, a vibração, mas é transmitido energeticamente
como se ele estivesse ali (...) para o caso em si não interessa saber se é ou não é
[espírito] o que importa é o resultado, fazer o benefício para aquela entidade.”
45
Entrevista em 10 de agosto de 2005.
107
Parte de sua fala descreve o mundo espiritual. O espírito não seria a reprodução do ser
vivente, mas uma parte dele como desdobramento de uma mesma pessoa. Dessa forma, acreditase que o menos importante dos rituais promovidos seria a autoria do benefício. Entretanto,
considera que sua visão não corresponde ao que a maioria julga ou entende sobre o fator “cura
pela espiritualidade”. Para algumas pessoas, ainda seria importante manter a relação do “espírito”
com a dádiva. Buscando esclarecer melhor essas temáticas, o grupo procura estudar e manter
constantes encontros temáticos que envolvem temas da espiritualidade, como a filosofia e a
história, organizados e ministrados por um professor de Ffilosofia. Entretanto, segundo a
liderança, a maior parte dos médiuns de incorporação acha que cumprir sua missão significa
emprestar seus corpos para a passagem dos espíritos, sem maiores comprometimentos com o
“espírito de investigação”.
Esse espírito de investigação está definitivamente incorporado à liderança. Procura ler
tudo o que acrescente novas visões sobre antigas certezas. Associa a incorporação de Xangô aos
cultos egípcios da antigüidade, e as noções sobre a totalidade do ser são baseadas nos estudos da
cabala. Disse que a curiosidade é que move o saber, porque, quando menos se espera, vem uma
nova informação, que às vezes é somente a ponta do iceberg.
Saindo pela porta principal, retornamos ao prédio comercial. Após as sessões
observadas, ao olhar para trás a impressão inicial de “consultório médico” tinha-se desfeito por
completo. Ali os pretos-velhos foram representados como “vibração” que auxilia na cura
espiritual. São reconhecidos como importantes conhecedores da magia e, em alguns casos de
sofrimento causado pela magia negra, são aqueles que colaboram no desmanche desses feitiços.
Retomamos assim a idéia inicial da associação dos “pretos-velhos” aos “escravos”, pois o
conhecimento de “magia negra”, que aqui serve para fazer o “contra-feitiço”, seria fruto da sua
genealogia africana. Embora as referências não estejam explicitadas em cântigos de louvores à
“África” ou os corpos não reforcem a idéia da presença de um escravo, sutilmente o
conhecimento se torna epíteto de valorização de uma identidade.
2.7 Pai Jair de Ogum e a festa de Preto-velho.
Conversando com dois novos amigos sobre os pretos-velhos, perguntei-lhes se eram de
umbanda, riram muito e não conseguiram definir sua prática religiosa; convidaram-me então para
108
assistir à festa dos pretos-velhos, em Pilares, subúrbio do Rio de Janeiro, explicando que a casa
que freqüentavam era dirigida por “Pai Jair de Ogum”. Esta referência foi rapidamente
familiarizada por mim, pois este era um afamado pai-de-santo, cujo nome estampava colunas de
jornal e que freqüentemente aparecia na mídia como “mago”. Disseram que o momento seria de
grande importância, pois era a inauguração de um novo espaço ritual.
Segue a descrição de um outro centro religioso, em que a circulação do culto aos pretosvelhos foi registrada, através de uma homenagem pelo seu dia, por Jair D’Ogum, pai-de-santo
que se declara candomblecista “tradicional”, mas que não deixa de reverenciá-los. Para que possa
manter as entidades bem cuidadas, a liderança estabeleceu um calendário diferenciado. A festa
procurou reforçar a representação de “escravo” dos pretos-velhos, mas a história de seus devotos
sugere que, além dessa compreensão, tais entidades são concebidas como confidentes, amigos e,
em alguns casos, parentes próximos.
Jair de Ogum Faislon, conhecido e reconhecido publicamente como Pai Jair de Ogum,
fez sucesso na mídia nos anos oitenta. Tamanho reconhecimento o levou a incluir o nome de seu
Orixá “Ogum” em seus documentos de identidade. Quando menino, sonhava em ser artista. Disse
que este motivo o levou inicialmente a fugir de um compromisso religioso. A princípio foi a
necessidade econômica que o levou a enveredar pelos caminhos da vida religiosa, mas, ainda
assim, tal comprometimento permitiu-lhe também satisfazer seus dons artísticos. Na década de
1980, participou de um programa de televisão no Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), o “Viva
a Noite”, comandando o quadro “Noite de Mistério”. Seus vínculos com os empresários da TV o
levaram ao Vaticano, viagem presenteada por Roberto Marinho, falecido proprietário da Rede
Globo de Televisão. Atualmente, é colunista do jornal carioca “O Dia”, opinando sobre eventos
políticos e culturais, além de responder a questões enviadas por leitores. Comentou que no
carnaval é consultado por Escolas de Samba para predizer o resultado do campeonato. Outra área
de que freqüentemente participa com previsões são as disputas futebolísticas: afirmou, por
exemplo, acertadamente, que o Brasil não seria hexacampeão mundial de futebol na Alemanha.
Em 1994, candidato a vereador do Rio de Janeiro pelo Partido da Frente Liberal, obteve
5.134 votos, considerando-se, por isso, fracassado. Responsabiliza a pouca votação ao fato de não
estar mais com a mesma evidência na mídia. Outro fator que disse ter contribuído para seu
afastamento foi a construção de um santuário em Itaguaí, região rural do Rio de Janeiro, onde
“toca” candomblé e umbanda, cada um com seu calendário específico. Entre seus filhos-de-santo,
109
há os de umbanda e os de candomblé. Desse modo, o processo de iniciação respeita a
procedência de seu filho-de-santo, separando os que possuem Orixá de candomblé, dos que
trabalham com as entidades de umbanda. Comentou que o fato de manter um templo mais
distante do centro urbano colaborou para a avaliação de que estava derrotado; mas, ao longo
deste período, nunca deixou de atender em ritos e jogos particulares em sua casa no subúrbio do
Rio. Acrescentou que seu maior desejo e, talvez erro de avaliação, foi pretender ser uma
liderança dos espíritas: gostaria de ter realizado grandes eventos que atraíssem a mídia e
favorecessem a identidade do praticante espírita, para que sentisse orgulho de sua religião.
Como comentei, para atender à dupla espiritualidade, a casa dirigida pelo Pai Jair de
Ogum procura realizar dois ritos separadamente. A casa promove sessões dos pretos-velhos para
que os médiuns não deixem de trabalhar com suas entidades. Sua casa em Itaguaí chama-se “Ylê
de Oxum Opará”, de tradição ketu. Diminuindo a distância para freqüentadores e filhos-de-fé que
tinham dificuldades de irem até Itaguaí, foi inaugurada outra casa, em Duque de Caxias, no bairro
de Pilar. Naquele local, denominado “Centro Espiritualista Filho de Jesus”, Pai Jair disse que
pretende atender a demanda da clientela que o procura, e a de seus filhos-de-santo, que têm
dificuldade de freqüentar o santuário de Itaguaí.
A festa no Centro Espiritualista Filhos de Jesus estava marcada para começar às quatro
horas da tarde; para tanto, os membros da casa chegaram cedo para preparar o ritual e a
homenagem aos pretos-velhos. Acompanhei de perto o preparativo. Todos pareciam felizes,
especialmente porque para todos era uma nova casa. Em Itaguaí havia cômodos para todos os
filhos, alguns levavam alimentos e aparelhos eletrônicos e lá passavam todo o fim de semana;
além disso, o espaço era adequado às demandas do trabalho espiritual, com mata e água em
abundância. A distância, porém, os afligia, pois nem sempre podiam ficar por muito tempo. Este
também era um problema para Jair de Ogum, pois a distância afastava seus costumeiros clientes
do jogo. Sempre que tinha que fazer algum trabalho indicado pelos búzios, a clientela desistia
porque a locomoção era grande e o tempo escasso. Ele comentou que numa época em que se faz
jogo por telefone fica difícil atender a clientela, mais ainda quando se exige que ela vá para um
lugar distante e lá possa pernoitar. Além disso, o ambiente da casa, que funcionava como espaço
fixo de jogo, em Olaria, não permitia a feitura de trabalhos espirituais mais complexos, pois
poderia gerar problemas com a vizinhança.
110
Em meio a tais dificuldades, bateu-lhe à porta uma antiga conhecida de Pai Jair, sumida
há trinta anos. Ela lhe pediu auxílio espiritual e disse que queria acabar com sua casa de santo,
abandonada há quatro anos. Encurtando a história: a tal senhora transferiu a propriedade para Seu
Jair que, em agradecimento, promoveu uma festa em homenagem à preta-velha de sua benfeitora,
“vovó Moema”. Portanto, a festa aos pretos-velhos daquele ano (maio de 2006) inaugurou as
relações do terreiro com a comunidade, estando presentes moradores e representantes de outros
grupos religiosos do lugar.
Retornando aos preparativos: embora a sessão fosse começar somente à noite, logo cedo
os filhos chegaram para arrumar e organizar o ambiente, e cozinhar a feijoada para os pretosvelhos. A organização seguia o princípio do candomblé, em que todos ajudavam, havendo ofício
específico para os filhos mais velhos e os mais novos (abiãs). Durante o preparo, músicas com
temáticas religiosas tocavam no aparelho de som. Revezavam-se dois cd’s gravados por uma das
filhas-da-casa, a médica Anita, que em uma das canções afirmava:
Macumbeiro é termo pejorativo,
macumba não é religião
É pra ofender o espírita inofensivo;
Como resposta canto este refrão:
Macumbeiro sim, por quê não?
Com guias e tudo que tenho direito,
Trago esta raiz no coração
Deixando pra lá todo preconceito.(refrão)
A cerimônia estava movimentada e alegre; muitas pessoas conheciam as cantigas e as
cantarolavam enquanto se ocupavam de alguma tarefa, comemorando o fato de terem uma casa
mais próxima para cumprir com suas tarefas religiosas. As conversas eram animadas e todos
estavam envolvidos em afazeres, alguns na cozinha preparando a comida; outros na limpeza e na
troca de lâmpadas, além daqueles responsáveis pela animação do bate-papo. As roupas eram
impecavelmente brancas, a maioria dos homens com “modelos” da vestimenta do Candomblé:
calça branca e camisa tipo bata, colorida ou branca conforme o encargo religioso. O mesmo para
as mulheres: calça por debaixo de saias rodadas, bata e faixa amarrada na cabeça. As mulheres
com função de ekedi* vestiam roupas coloridas.
O ritual começou com Pai Jair comentando um pouco sobre sua história de vida e,
convocando a todos a assumirem sua religião. Pedia as autoridades ali presentes, pais e mães-de111
santo, para colaborarem com a visibilidade da religião. Disse ter criado uma espécie de disqueJair-de-Ogum para recolher assentamentos abandonados, pois está planejando criar um museu.
Nesta primeira etapa de seu projeto, atente as ligações e procura recuperar e restaurar as peças
religiosas. Após a introdução, pediu a todos que ficassem de pé para cantarem o hino da
umbanda. Depois, ajoelhados, rezaram uma Ave-Maria e um Pai-Nosso. Sinalizou com a cabeça
para que se iniciasse o toque do tambor. Os médiuns, em roda, começaram a dançar e a cantar os
pontos dos pretos-velhos. O transe iniciou-se com os médiuns alternando tremores corporais e um
caminhar lento. A seguir, foram guiados até os banquinhos preparados previamente para recebêlos. Em pouco tempo algumas pessoas da assistência dirigiram-se aos pretos-velhos para
conversarem. Entidade e consulente eram mantidos numa postura de bastante proximidade: o
banco era pequeno e deixava o consulente quase ajoelhado diante da entidade, posição que
favorecia abraços e toques, comuns na consulta com pretos-velhos.
Assim prosseguiam as conversas. Seis médiuns incorporados com as entidades
conversavam, faziam preces sobre a cabeça ou qualquer outra parte do corpo. Nas preces, usavam
as mãos, água, passavam galho de uma planta considerada própria para curas, a arruda*. Alguns
pretos-velhos seguravam em suas mãos o terço*. A relação entre consulente e entidade é quase
secreta, para que todos fiquem bem à vontade. Minha localização, porém, favoreceu à observação
de repetidos problemas com a justiça – uma ação contra antigo patrão; também amor e dores
físicas foram comuns nas conversas daquele dia.
O tempo destinado a esta parte da consulta foi suficiente para atender a todos que
procuraram ajuda. Terminando a fase de consultas, algumas pessoas em transe com seus pretosvelhos se levantavam, saudavam o gongá* e a preta-velha “Vovó Moema”, a homenageada da
noite, e desincorporavam 46 . Outras caminhavam até a roda, dançavam um pouco e partiam.
Houve ainda aquelas entidades que só saíram do rito após as cantigas que pediam que elas
partissem. Os gestos neste momento são quase idênticos uns aos outros: passam a mão pela
cabeça, às vezes estalando os dedos. Depois por todo o corpo, como se estivessem limpando-se.
Ao final, um leve tremor toma conta do corpo e a pessoa abre os olhos como que recobrando sua
consciência. Alguns reclamam um pouco de uma dor generalizada pelo corpo, fruto de horas em
que permaneceram com o corpo contorcido.
46
Incorporação e desincorporação são termos usados pelos médiuns como referência ao contato com suas entidades.
Incorporar seria aproximar a entidade de si; em oposição, desincorporar seria o afastamento da entidade.
112
Todos retornaram à roda. As cantigas foram interrompidas e a liderança explicou o
trabalho que pretende fazer em seguida: não estaria ali para dividir o espaço, mas para somar
forças com todos que já realizam há mais tempo o trabalho espiritual nas redondezas. Relembrou
novamente sua história pessoal. Falou da importância da união dos espíritas para evitar os ataques
recebidos, especialmente da Igreja Universal do Reino de Deus. Agradeceu a atenção, e pediu o
toque para os caboclos.
Depois que os caboclos dançaram bastante, Pai Jair D’Ogum encerrou a sessão,
convidando a todos para compartilharem da oferenda (a feijoada) aos pretos-velhos, que ali
representavam o sofrimento e a vitória do povo negro. Comentou que a comida tinha sido feita
sob preces e vela acesa.
O ritual era semelhante ao que havia acompanhado em outras casas de umbanda: hino
da umbanda, preces, pontos de preto-velho, incorporações e consulta. Ao término, foram
cantados “pontos” para os caboclos. Observei que parece ser comum a finalização do ritual com
os caboclos nas giras de preto-velho. Aqui disseram que a energia movimentada pelos caboclos
torna as pessoas menos melancólicas, ou seja, a energia dos pretos-velhos produziria introspecção
e certa melancolia, em oposição aos caboclos.
Todos pareciam satisfeitos. O ambiente era festivo, com comida e bebidas (cerveja,
caipirinha e refrigerante). Perfumados e vestidos para a ocasião, por ali circulavam homens e
mulheres, algumas com sapatos de salto alto. A comida era servida pelos filhos-da-casa. Na
verdade, conforme comentei, as tarefas seguiam a hierarquia do candomblé, as abiãs e as mais
novas no santo serviam; as mais velhas e as ekedis já tinham cumprido outra função e agora
descansavam. Outra regra ritual era cumprida: só depois que o pai-de-santo comesse é que seus
filhos comeriam. Foram feitas saudações aos pretos-velhos; em homenagem às entidades que
passaram por tantas agruras, disseram presenteá-las com um “buffet sagrado”. Todos gritaram
“vivas!” aos pretos-velhos. Ao final, a sobremesa: arroz doce.
A confraternização simbolizou um momento festivo. Ali as entidades foram lembradas
como “espíritos de escravos”, mas não havia lamento nem crítica social por trás dessa
rememoração. As entidades eram “irmãs” numa outra causa: a busca pela solução dos problemas
cotidianos daqueles que freqüentemente procuram ouvir o que os pretos-velhos têm a dizer. No
grupo havia relações de proximidade entre um médium que não incorpora entidades da umbanda,
113
mas lhe pedia um conselho. Os pretos-velhos dessa casa transitam em dois universos religiosos,
tratados de maneira diferencial, mas que se complementam em certas circunstâncias.
Os pretos-velhos são também pensados como “espíritos de escravos”. Neste dia de festa
e nos encontros que precederam a cerimônia, tais entidades foram louvadas como conhecedores
da magia africana e dos espíritos bondosos que conheceram a humildade através do sofrimento.
Entretanto, como “pai”, sua bondade não o impede de castigar um filho que não cumpra
devidamente com suas obrigações. Por isso, pode auxiliar em situações que considera “injusta”,
como, por exemplo, o caso de um patrão que explora o funcionário e não lhe paga o que deve.
Nestes casos, o conselho pode indicar a sublimação do problema, através da paciência ou do
“ajuste de contas”, expondo a figura ambígua do “escravo”, que pode demonstrar passividade ou
rebelar-se diante de situações conflituosas. Além disso, retomo sua configuração paterna/materna,
personificada na consulta através dos conselhos e comportamentos carinhosos, que em tal
situação amparam seus filhos. Este momento ritual pode fornecer elementos para a concepção de
que os pretos-velhos são escravos dóceis ou ainda antepassados, um vínculo expresso por uma
parentela espiritual.
2.8 Ritos de consulta
Observei diversos ritos de consulta 47 . De modo geral, a cena se repetia alternando
somente os cenários. Conforme a seguinte descrição:
Os consulentes chegam ao terreiro e se acomodam no lugar destinado à assistência. Em
alguns casos procura algum médium da casa para receber a senha. Há casas que distribuem
“fichas” numeradas limitando o número dos consulentes para cada pretos-velhos e dispõe de um
membro da casa para tal função. Este modelo é similar à forma de organização das filas dos
serviços de bancos e hospitais.
Geralmente, os cambonos são os responsáveis pela organização destas consultas no
decorrer do ritual, distribuem as fichas e chamam o visitante para a conversa particular com a
entidade. Assim, ao ouvirem seu número ser anunciado o consulente caminha para o encontro
47
A consulta nos terreiros foi associada à sessão de psicanálise na entrevista feita pelos antropólogos Alba Zaluar,
Luiz Fernando Dias, Peter Fry, Carlos Nicea e Joel Birman ao psicanalista Jurandir Freire. Conferir Zaluar (1984).
114
com àquele que considera ser expressão de divindade e que naquele momento se prontifica a
atendê-lo.
Inicia o encontro: Duas pessoas se aproximam. Como velhos conhecidos se abraçam
saudosamente. Percebo que o abraço acolhe quebrando a resistência inicial. O visitante ensaia um
choro, está melancólico e comovido. O choro leva aos soluços e o consulente encontra aconchego
no colo estranho. A divindade, ali representada na figura do preto-velho, ampara. Para alegrar o
seu recém afilhado conta um caso e conversa tranqüilamente tornando serena a situação. Os dois
riem. Parecem se conhecer a muito tempo. Caso a entidade necessite fazer uma limpeza no seu
“filho”, sua fisionomia se modifica; torna-se sério e às vezes toma uma aparência intimidante,
como verdadeiro pai ralhando com quem ameaça seus filhos. Logo, deixam transparecer uma
relação confortável e amena, os risos estampam as duas figuras que parecem ser velhos amigos.
Ao final, conforta, ergue a cabeça do filho e se for preciso pede um copo d’água para
acalma-lo. Depois, olha olho-no-olho para verificar se está tudo bem. Em alguns casos, a
conversa é interrompida pelo cambono, que aponta para a fila de espera. A despedida comove os
amigos, que marcam um novo encontro.
É comum que ao final da consulta, os pretos-velhos dispensem o consulente com o
fraternal abraço rogando: “Que meu Pai Oxalá lhe abençoe!”; “Que a minha Mãe, Maria
Santíssima lhe abençoe!”; “Que Deus lhe abençoe!”; ou: “Saravá!”.
O banco vazio logo é ocupado novamente, recomeçando a ciranda ritual.
Normalmente a saudação aos pretos-velhos é sua marca identitária. Pensada como uma
entidade cordial e afetuosa, recebe seu consulente num caloroso abraço, alternando ombro a
ombro. No momento seguinte, o consulente lhe beija as mãos e pede sua benção. Quando o
visitante desconhece tal saudação, a própria entidade o abençoa, puxando-o levemente para um
abraço. Fui informada que neste primeiro contato o preto-velho já está “trabalhando”. Através
dessa saudação, as entidades tomam ciência de alguns problemas daquele “filho” e iniciam o
trabalho de desfazer os males que trazem.
Embora os ritos de pretos-velhos que observei tenham suas peculiaridades, a saudação e
o momento de consulta pouco se modificaram. A diferença está, sobretudo, no uso de
determinados objetos rituais. Algumas entidades usam cachimbo para realizar seu “trabalho”,
pois se acredita que a fumaça é elemento indispensável para este ofício mágico. Há entidades que
fazem uso de bengalas, ervas, velas e diferentes tipos de águas (do mar, da chuva e da cachoeira),
115
dentre outros componentes. Outros pretos-velhos usam somente o terço e suas preces neste ritual
de consulta. Estes objetos identificam a linha religiosa da casa. As tendas mais próximas da
doutrina kardecista orientam as entidades, por exemplo, para que não façam uso do fumo. Já os
terreiros mais próximos do candomblé, podem utilizar bebidas e usar pólvora.
O rito de consulta é o clímax da sessão dos pretos-velhos. Algumas pessoas, logo após a
consulta, pedem permissão para ir embora sem esperar a finalização do ritual, demonstrando que
seu interesse era exclusivamente tal momento. No Grupo Espírita Seguidores de Jesus, a
marcação da consulta é feita com horas de antecedência e o ritual da consulta é destacado da
parte que o precede, ou seja, a palestra. Neste local, os consulentes só têm contato com a entidade
no momento de sua conversa, enquanto não chega o seu momento, esperam numa sala distante
das entidades.
2.9 Tecendo os fios
As instituições religiosas foram pensadas a partir de seus agentes– as lideranças da
casa, os médiuns ou as festas comemorativas. De modo geral, os praticantes religiosos e os
usuários tecem lentamente as teias de significações que são expressas como um bloco coeso, que
denominamos “ritos”, “cerimônias”, “sistemas religiosos”. Casos e biografias relatados podem
ser pensados em referência a uma totalidade que procurarei demonstrar nos capítulos seguintes.
Discorrer sobre a infância de um líder religioso ou as dificuldades de saúde de um outro pode
contribuir em quê? Recorro à idéia de que a individualidade é socialmente construída e, por tal
motivo, nos revelam as idéias socialmente compartilhadas. Nesta ordem, os pretos-velhos dos
“ritos íntimos” são mantidos sobre a mesma estrutura coletiva, aparelhados na forma de
“escravo” e solicitados em ritos similares ao do grupo de origem, que seguem os traços das
cerimônias umbandistas.
Neste circuito religioso, os “pretos-velhos” são categoria em uso, explicitando certas
convenções sobre a “escravidão”, predominando a idéia de que os “escravos” viviam subjugados
pelos brancos, mantidos sob castigos corporais e impossibilitados de viver a sua religião. Este
regime propiciou o desenvolvimento de dois tipos de espíritos: os revoltosos e os passivos. Os
revoltosos transmitem a mensagem do inconformismo, que os impede de crescerem
espiritualmente, e produzem um mal duplo, pois são capazes de provocar o mal e danificar sua
alma, pois impedem sua evolução espiritual. Os espíritos passivos seriam considerados como
116
detentores de uma sabedoria benéfica, pois têm uma sabedoria da magia que utilizam para
combater os malefícios; além disso, são transmissores de ideais cristãos, como a paciência, a paz,
o amor e a humildade. Essas características os tornam figuras bondosas, que se acomodam a
outras crenças que podem ser mantidas em relação de complementaridade.
As fronteiras tênues ou porosas dos grupos religiosos estão atravessadas pela figura do
preto-velho. A princípio, a figura do preto-velho “Pai Antônio”, da Tenda Nossa Senhora da
Piedade, apresenta a figura clássica do “escravo” que reconhece um lugar de subalternidade para
si, dizendo não poder sentar-se à mesa. Na casa de candomblé, a figura do preto-velho foi
elaborada, representando simultaneamente uma figura de distinção da cultura de um grupo “dos
escravos africanos”, e considerada também um antepassado familiar. A homenagem preparada
pelo grupo liderado por Jair de Ogum também festeja os escravos, conhecedores da magia e do
poder das ervas. Esta composição predomina nas casas de umbanda e nos festejos dedicados a
estes espíritos noutros centros de devoção.
Na barquinha da linhagem da Madrinha Francisca, a casa segue as orientações dos
pretos-velhos. Eles são compreendidos como escravos; a idéia de superação dos sofrimentos é a
mensagem principal que procuram destacar como aprendizado a ser buscado nestas entidades. A
festa em homenagem a tais espíritos demonstrou o pertencimento dessas entidades à escravidão.
O ritual, embora alegrado por tambores e cantigas, em preces e orações relembrava o sofrimento
dos cativos. Este lamento sobre o sofrimento é significativo para o processo de transformação
pessoal que o grupo deseja promover. Assim, os pretos-velhos, como “espíritos” de “escravos”
sofredores, transmitem a idéia de superação das dificuldades, seguindo um modelo de ação
baseada na fé cristã. Este modelo apresenta a solução para os problemas com base numa ação em
longo prazo, pois está propondo a valorização da “paciência” em oposição à “revolta”, uma
forma imediata de solucionar o problema.
Embora a representação do preto-velho como escravo se mantenha noutras casas, sua
forma modifica-se. No “Grupo Espírita Servidores de Jesus”, sua condição de “escravo” é
subsumida ao seu status de “espírito que pratica a caridade”. A entidade do professor Osvaldo
pertenceu ao alto clero, mas naquela sessão se faz presente como um preto-velho. Não sendo
“espírito de escravo”, por que se identificaria como tal? Ou por que o grupo mantém esta
expressão diante das evidências contrárias?
117
Na “Associação de Medicina Espiritualista do Rio de Janeiro”, nenhuma representação
clássica, como os transes que levam o corpo a se curvar, formando a representação religiosa do
“espírito de escravo”, foi expressa sua característica escrava. Sua expressão simbólica consistia
em promover a cura no plano espiritual, através do conhecimento que tinha de magia. Assim,
“escravo”, “magia” e preto-velho” compõem uma tríade comum na representação vulgata dessa
entidade.
Desse modo, a representação dos pretos-velhos neste campo atende a inúmeras
demandas.
Aqui, cerimônias e situações, observadas nos espaços religiosos tratados nesta
unidade, contribuíram para procurar compreender as configurações religiosas dos pretos-velhos.
Até então, naturalizou-se sua associação com “escravos” e “escravidão”. “Escravidão” remete ao
sentido do sofrimento de um “povo” e à manipulação dos conhecimentos de magia.
Retomo as cerimônias de homenagem aos pretos-velhos. A data reservada para tal
festividade é o dia 13 de maio, ensinado tradicionalmente nas escolas como data histórica da
libertação dos escravos. Movimentos sociais ligados a esta temática, principalmente o
Movimento Negro Unificado, fazem críticas a esta data, por compreenderem que ela cumpre a
função de manter o estigma de submissão do negro e, por tal motivo, criaram uma data
alternativa para a comemoração do “dia da consciência negra”, dia 20 de novembro. Para
representar tal “consciência”, escolheram a imagem de Zumbi dos Palmares, como símbolo que
representa a ideologia desse movimento. Embora o 20 de novembro seja considerado
oficialmente como data de promoção da “consciência de negritude” – feriado no Rio de Janeiro e
em algumas cidades de outros estados -, este é um momento político dos grupos politicamente
mobilizados. Enquanto isso, o treze de maio se mantém como celebração da liberdade. Nos
terreiros a data é festiva e vinculada à escravidão. As comidas servidas procuram reforçar esta
idéia. Mesas com café, feijoada e rapadura unem elementos que foram consagrados como
“tradição dos escravos”.
Estas homenagens não se restringem propriamente aos espaços sagrados, alguns devotos
realizam a feijoada em suas casas. O dia treze de maio oficializa, no culto e na prática popular de
devoção ou rememoração histórica, um momento de reflexão popular sobre a escravidão
brasileira. Nesta data reflexiva o status de escravo e escravidão predominante não se restringe à
subalternidade escrava, mas enfoca o sofrimento de um grupo e a capacidade de dominação do
118
outro. Neste enaltecimento de relações bipolares, os pretos-velhos, configurados como “espíritos
de escravos”, são considerados representantes de um grupo oprimido.
A imagem dos pretos-velhos é anualmente reforçada como “espírito de escravos” nas
festas, e mantida ao longo do ano através dos discursos das lideranças, médiuns e usuários
religiosos. Recordo a abordagem da liderança da casa ketu. Foi perguntado se haveria preto-velho
se não tivesse existido a escravidão. Essas idéias se entrelaçam e formam um conjunto de
representações sobre os pretos-velhos.
A representação de que a escravidão trouxe a crença na magia para inúmeras práticas
religiosas brasileiras é constantemente referida por estudiosos e antigos folcloristas, além de ser
expressa nas tradições orais de nosso povo. Como mencionei anteriormente, impera um modelo
de “escravidão” e de “escravo”, que serve aos ritos e aos devotos como referência para sua
conduta cotidiana. Este padrão sofreu variações nos ritos que observei, mas, sem dúvida, foi a
idéia predominante. Destaco que há um processo de umbandização das religiões do campo
espírita, fato observado através da circulação das práticas que envolvem os ritos de pretos-velhos,
como os de consulta, em que os consulentes aguardam serem convidados para uma conversa com
a entidade; geralmente a saudação lembra um encontro entre velhos amigos que se abraçam, mas
o pedido de “benção” por parte do consulente antevê uma relação familiar. De modo geral, alguns
elementos rituais são comuns, como: cachimbo, ervas, pemba e terço. A estrutura moral atribuída
às entidades pouco se altera nos locais em que estive: predomina quase sempre a idéia de
“bondade” e “humildade” que são atribuídas aos pretos-velhos.
O predomínio dessa estrutura da entidade pode ser concebido como abrasileiramento
das práticas rituais, pois a umbanda – como destacou Brown (1974) e relataram inúmeros
informantes – representa uma religião brasileira. Os pretos-velhos, entretanto, apresentam uma
ambigüidade própria aos símbolos, segundo Turner (2005), pois, como representação de
“escravos”, é exaltada sua característica liminar de ritualmente ser transposto a uma categoria
divina; é, no entanto, figura domesticada, pensada como parente consangüíneo e, nesta forma,
reforça os laços comunitários. Esta ambigüidade pode explicar a adesão significativa de seu culto
às práticas em que podem ser considerados “espíritos impuros”, como no kardecismo e no
candomblé, e sagrados por manifestações religiosas recentes, como a barquinha.
No próximo capítulo pretendo entender o significado da escolha dos pretos-velhos como
representantes dos “escravos” e da “escravidão”, tratados como referência de passado escravista,
119
es reconhecido pelos devotos como demonstração do “nosso passado”. Acreditando num passado
em comum, os pretos-velhos sugerem uma identidade compartilhada a partir da escravidão,
atualizando o “ser brasileiro” como “ser afro-descendente”. Esta sugestão de pertencimento
comum é expresso na nominação “tia”, “vovó” e “pai”, indicando relações parentais. Os escravos
se tornaram ancestrais divinos, representando um passado comum a toda a nação brasileira.
120
CAPÍTULO III: A MAGIA DA “ESCRAVIDÃO”
“Ora, as crenças só são ativas quando partilhadas”.
Èmile Durkheim
3.1 Elaboração de uma performance.
As cantigas e os instrumentos rituais, como o cachimbo e as ervas usadas no culto aos
pretos-velhos são partes da elaboração de sua performance “escrava”, e servem de manufaturas
simbólicas, condensando valores e emoções. “Escravos”, “escravidão” e “pretos-velhos”
mesclam-se em sentidos comuns, como se, ao falar de uma das partes, pudéssemos logo associála a outra. É sobre esse fato que vou me debruçar neste capítulo.
A narrativa da escravidão, presente no culto aos pretos-velhos, tanto representa a
possibilidade de compreender um histórico coletivo de “antepassados” comuns a certos grupos,
que se costuma ouvir que todos os brasileiros “têm um pé na senzala”1 . De certo modo, este
pertencimento é compartilhado socialmente levando muitos a crerem que o conhecimento sobre a
escravidão representa em parte uma forma de conhecer sua própria história pessoal. Diante da
dificuldade de se estabelecer de modo definitivo sua própria cor 2 , as várias possibilidades
ampliam as possibilidades de administrar identificações diferentes, e até contrastantes. Ou seja,
costuma-se dizer que o dinheiro pode embranquecer alguém, e que quanto mais dinheiro menos
preconceito. Na esteira do passado, a associação com o “escravo” movimenta as políticas
públicas e, no campo religioso espírita, permite a criação de identidades de vidas passadas no
modelo de sociedade escravista. Tais situações religiosas levam a identificação dos participantes
com papéis sociais, como por exemplo, aqueles que levam a pessoa a estabelecer vínculos com
“escravos”, “capatazes” (na figura do “mulato”) ou com os “senhores”. Além disso, ouvi histórias
sobre pessoas que se emocionavam ao entrar numa antiga fazenda de café, por sentirem que no
passado viveram num local semelhante. Nestes casos, predomina o sentimento de que a
“escravidão” tem algo a revelar sobre a contemporaneidade.
Predominantemente, as entidades que encontrei na umbanda, na barquinha no
candomblé, nas casas com doutrinas kardecistas e de outros tipos de mesclas religiosas, tinham
1
O ex-presidente da república, Fernando Henrique Cardoso, ao mencionar o passado comum de todo brasileiro
vinculado à escravidão, disse que todo brasileiro tinha “o pé na cozinha”.
2
Ver Peter Fry (2005).
119
sua imagem vinculada à ideologia do escravismo. A idéia de subjugo perpassa as relações que se
estabelecem dentro e fora do ritual. Numa entrevista, uma liderança disse que era importante o
culto aos pretos-velhos nos dias atuais, pois mostrava que o negro também tinha o seu valor. Na
maior parte das cerimônias que observei, os pretos-velhos se ocuparam exclusivamente do rito
das consultas, ouvindo os consulente que os procuram para auxiliá-los na resolução de suas
aflições.
Em consulta ou na liderança dos ofícios religiosos, os pretos-velhos simbolizam a
“escravidão brasileira”. Percorrendo o circuito religioso apresentado no capítulo II, é relevante
destacar que tais entidades foram consagradas como “espírito de bondade” ou “espírito de luz”,
indicando sua capacidade para a promoção de benefícios. Apreciadas como “escravos”, junto à
valoração de “bondade” e “luz”, compreende-se que há uma interpretação de que os escravos,
que um dia foram temidos pela elite brasileira, como afirma uma historiografia brasileira
(Azevedo, 1987), atualmente são vistos como espíritos de “bondade” e de “luz”.
Além da compreensão do viés político do escravismo, presente no culto aos pretosvelhos, a “escravidão” dentro do quadro religioso é entendida como uma etapa que propiciou o
crescimento espiritual dos escravos. Compreende-se que todo sofrimento vivido pelo escravo
contribuiu para a supressão de “sentimentos negativos”, como a raiva, o ódio e a angústia, além
de ter promovido o desenvolvimento de habilidades espirituais, como a capacidade de cura pelos
seus méritos espirituais e o conhecimento acumulado da magia advinda de sua procedência
“africana”.
A compreensão da “escravidão” representaria o “caminho” para se chegar aos pretosvelhos. Este “caminho” de experimentação e superação do sofrimento está presente em seu culto.
O “sofrimento” não é tema exclusivo deste culto, está presente na motivação que relaciona o fiel
ao seu “santo”, mantendo tal relação sob o risco de que um tratamento inadequado por parte do
“filho-de-santo” produza seu sofrimento; dessa forma, portanto, sacrifícios e recompensas
caminham juntos, como já disse Patrícia Birman (1995:138). O sofrimento experimentado na
vida cotidiana pode ser esquecido no rito, pois estes revigoram as forças, tornando, como disse
Durkheim (1996), a vida menos tensa mais agradável e mais livre (op.cit.: 417). Portanto, o culto
aos pretos-velhos fornece inúmeras possibilidades de compreensão e superação das angústias
vivenciadas dentro de um quadro específico de referência à “dor”. Esta mesma referência é
suporte na concepção sobre a ação da magia, porque se acredita que está vinculada a uma
120
procedência escrava, ou seja, a magia presente nas religiões do campo espírita seria proveniente
dos descendentes dos escravos africanos. Esta idéia contribui para que a crença nos poderes
mágicos dos pretos-velhos seja, em parte, uma elaboração deste significado.
Cada um que conhece ou reconhece os pretos-velhos como representação de escravo
tem histórias para contar sobre o cativeiro brasileiro. Geralmente, são narrativas que apresentam
o tráfico de escravos da África para o Brasil e as relações de trabalho no universo escravista, as
quais se referem, principalmente, ao trabalho escravo nas lavouras de cana-de-açúcar e no plantio
de café; e, com menor incidência, sugerem também a exploração da mão-de-obra escrava da
extração de minério ou de outra atividade de cunho mercantil. Neste ambiente, é forjada uma
imagem de exploração continuada do trabalho, sendo a permissão para seus “folguedos” o único
momento destinado à oportunidade de liberdade. Comenta-se que este espaço de autonomia era
usado pelos escravos para a produção de magia. Enquanto os “senhores” pensavam que seus
escravos brincavam, eles praticavam a magia, pensamento que aparece nas falas de religiosos e
“entidades”, como um logro necessário à manutenção de antigas práticas religiosas.
A magia no Brasil está associada aos “africanos”. A partir deste paradigma, os
“africanos” tornaram-se os portadores do conhecimento que promove a manipulação dos
elementos naturais e sobrenaturais, que podem levar à cura ou à morte. Estes “escravos”
tornaram-se referência para a formação da população brasileira. No decorrer do século XX,
inúmeros costumes, designados como frutos de “origem africana”, tornaram-se símbolos da
identidade brasileira como a “feijoada” que serviu como reflexão aos estudos de Peter Fry
(1982); nos dias atuais, tal idéia ainda é referência 3 para a compreensão da organização social ou
de seus problemas.
Nos espaços religiosos visitados, freqüentemente encontrei idéias sobre o culto e o
processo de cura baseados na “herança africana”. De certa forma, este era um modo de garantir a
antigüidade e autenticidade do culto, dando-lhe legitimidade social. Quando conversava, porém,
com os pretos-velhos, ou seja, através de seus médiuns em estado de transe, a menção de sua
origem “africana” aparecia com menor freqüência do que a expressão: “nasci na senzala”.
O folclorista Câmara Cascudo (1972: 871-873) em seu verbete sobre “umbanda” definiu
os pretos-velhos como,
3
Recentemente, a “mulata”, mulher que representa a “mistura das raças”, tornou-se marca de cerveja, lançada no
mês de maio de 2006, como produto vinculado à brasilidade.
121
Os velhos escravos sabidos nas coisas da África encontram seu lugar na
Umbanda entre os cacarucai, os “pretos velhos” componentes da chamada
Linha das almas, que, como diz um dos folhetos (Byron Torres de Freitas e
Tancredo da Silva Pinto, Doutrina e Ritual de umbanda, 1951), “não
cumpriram toda a sua missão na Terra”. Maria Conga, Pai Joaquim e o Velho
Lourenço são os mais conhecidos entre eles. Talvez seja a contribuição
particular dos “cambindas” (cabindas) de João do Rio ao flos sactorum
popular.
Nesta definição, o vínculo da entidade com a escravidão é reforçado, pois são “velhos
sabidos nas coisas da África”. Este “saber” pode ser compreendido como o conhecimento da
magia, apresentado como área de domínio do “africano”, por conseguinte, do escravo e,
finalmente, dos “pretos-velhos”. Entretanto, a expressão: “nasci na senzala” indica uma diluição
da “origem africana”. No culto aos “pretos-velhos”, referências à origem africana, como a que foi
destacada por Câmara Cascudo - “cambinda” -, é menos valorizada que sua procedência
“escrava”. Portanto, a África surge como referência, mas boa parte da performance dos pretosvelhos está voltada para um ser brasileiro nascido nas senzalas. Assim, os pretos-velhos podem
até ser entendidos e cultuados como “africanos”; porém é em sua representação como “escravo”
que se baseia a crença no poder de sua “magia”. Entretanto, este poder expresso no cativo
relaciona-se a outras representações invocadas no rito e procuradas por seus devotos.
3.2 Pretos-velhos: divino, escravo e parente.
Além da crença num universo espiritual em que espíritos co-habitam com os seres
vivos, duas outras estruturas de pensamento são basilares na construção da sacralização dos
“escravos” na figura dos “pretos-velhos”. Como foi visto nos relatos do capítulo anterior, existe
uma crença de que o mundo no qual se vive é um espaço para aprendizagem, onde se produzem
experiências que definirão a vida após a morte. Nestes termos, a vida seria percebida como um
estágio, o mundo um ambiente de “passagem” e os pretos-velhos figuras que podem auxiliar a
caminhada terrena. Sua estimada ajuda está relacionada à representação de “escravo” e aos
valores adquiridos nesta condição, como a sabedoria e a paciência, aprendizados necessários para
superar as dificuldades cotidianas. Junto à sua convencional expressão cativa, está a nomeação
que indica o parentesco com seus devotos, pois são considerados por esta condição. Lembro os
evocativos de seu nome: “pai”, “tio”, “tia”, “vovó”.
122
Nos ritos públicos de pretos-velhos, o momento mais propício para a instituição dessa
relação familiar é o rito de consultas. A condução deste momento apresenta a estrutura fraternal
desta entidade: pois ela abraça e afaga o consulente. Como disse no capítulo anterior, além da
promoção de certos estados morais, através das consultas é possível reconhecer referências de
“passado escravista”. A ambientação do rito favorece o sentimento e a performance da entidade
como escravo, e todos os fiéis partilham de tal entendimento. Nesta ocasião demonstram seu
estado de escravo, falando engrolado, numa linguagem que lembra antigos moradores da zona
rural. Estas performances são referenciais na constituição de sua sacralização.
No âmbito particular das conversas íntimas ou da consulta, como costumam chamar, as
entidades conversam, às vezes ouvindo mais do que falando. Entretanto, são conhecidas como
entidades que gostam de conversar e contar histórias. Algumas delas, nesse longo diálogo
descrevem seu passado, gerando por vezes afinidades com o presente. Em outros casos, o
conselho dado pela entidade está relacionado às qualidades que lhes foram atribuídas, como, por
exemplo, a “paciência”, a “sabedoria”, a “bondade” e a “humildade”. Há um processo de
socialização desses atributos quando alguém comunica, por exemplo, que está necessitando de
auxílio espiritual. Normalmente, comenta-se este desejo para alguém que possua algum
conhecimento nesta área. A segunda etapa desse processo é escolher e encaminhar tal pessoa para
a entidade “certa”. Escolhida a entidade, são explicitados seus atributos: “vai te acalmar”, “vai
trazer teu marido de volta”, “vai ajudar a arrumar um emprego”. Algumas orientações procuram
situar a pessoa no rito: “Ele vai te chamar e você abraça, beija a mão e pede a benção”. Se as
diretrizes não forem tão explícitas assim, certamente procuram fornecer uma orientação básica do
tipo: “gira de exu” serve para cuidar dos bens materiais, relacionados ao dinheiro, enquanto a
“gira de preto-velho” serve para o cuidado com os bens espirituais, como a garantia da paciência
numa situação conflituosa. Desse modo, o rito da consulta reforça a propriedade que indivíduos e
grupos querem produzir socialmente, como, por exemplo, “manter a fé em Deus”, “ter paciência”
e “ser humilde” diante das situações adversas da vida, conselhos que refletem a moralidade que
se quer instituir ou manter.
Na maior parte dos ritos de preto-velho que observei, com exceção do ritual na
Associação de Medicina Espiritualista, a consulta é o clímax ritual, como foi visto no capítulo
anterior, momento em que o “escravo” recebe uma visita e tudo faz para ajudá-la a solucionar
seus problemas. Após os cumprimentos iniciais, uma pergunta clássica é feita pela entidade: “O
123
que trouxe misi fio até aqui?”. Nesta frase inicial, querendo saber o que levou o seu “filho” até
aquele local, começa a etapa da consulta, numa aproximação que em pouco tempo tende a se
constituir como relação de intimidade e de parentesco. O grau de proximidade é revelado pela
própria denominação de parentesco atribuída ao preto-velho, que é chamado de pai, avô, avó ou
tia ou tio. O consulente, por sua vez, é denominado por “filho”; assim sendo, a conversa é
potencialmente atravessada pela afetividade marcada comumente por estas relações. Esta
afinidade se assemelha às relações consangüíneas e, no rito, indicam de que forma a relação será
estabelecida. Ao contrário dos exus, que não são parentes, mas “compadres”, com os pretosvelhos – figuras maternas e paternas – são estabelecidas relações baseadas no cuidado e no amor.
Já os “compadres” são consideradas entidades pouco confiáveis, ao contrário dos pretos-velhos
que, por serem considerados “parentes”, tornam-se figuras confiáveis.
Além do caráter afetivo, outra referência que apresentei compõe a figura do preto-velho:
é “escravo”. Esta característica contribui para a identificação desta entidade como ser dotado de
dupla experiência, a do cativeiro, que lhe sustenta a imagem do sofredor que superou suas
mazelas e que, através de sua ascendência africana, possui atributos para promover a cura; e o
fato de ser pensado como parente consangüíneo, pai, tio, avô, avó, tia, o que faz com que esta
entidade seja considerada, diferentemente dos exus e pombas giras, seres fraternos, calorosos e
incapazes de desejarem o mal; ao contrário, acredita-se que são conselheiros que ajudam os
humanos a encontrar um caminho para evitar futuros sofrimentos. Em oposição a esta idéia, os
exus são entidades com as quais não há contrato possível, pois podem fazer o bem ou o mal, e
não há como prever sua ação.
A representação do escravo se faz presente em todo o cerimonial dedicado aos pretosvelhos. É significativo o arranjo de cantigas, gestos e outros elementos como o cachimbo e as
vestes, que reforçam a idéia central de sua origem escrava. Nas conversas que mantive com
freqüentadores de diferentes casas religiosas, constantemente foi mencionado o aspecto da prática
da magia como herança dos escravos. Por conseguinte, os pretos-velhos seriam no rito os
legítimos herdeiros desse saber. Assim, os pretos-velhos são seres sobrenaturais dotados de uma
“força” pelo fato de terem sido escravizados. Esta crença é aceita e reforçada nos ritos que
observei, sendo uma linguagem compartilhada e facilitadora da comunicação de indivíduos e
grupos.
124
Como disse, no rito de consulta os devotos se aproximam dessa configuração, tomando
parte desta construção. Em uma conversa que tive com um preto-velho da barquinha, ele se
referia a mim como “sinhazinha”. “Sinhá” é uma referência à esposa do “senhor”, vulgo dono de
terras e escravos. Naquela situação, o consulente tornara-se “sinhá”, que necessitava de ajuda, do
conselho do preto-velho, que, na ocasião, era “escravo”. Os papéis se invertiam e o preto-velho,
como escravo, estava capacitado a libertar a “sinhá” de seu sofrimento. Além disso, ele era “pai”
e eu o escutava como “filha”.
De modo geral, nos ritos de preto-velhos o salão é dividido em partes, de um lado ficam
os médiuns com seus pretos-velhos, e de outro a assistência esperando ser convocada para a
consulta, representando a categoria que outrora rivalizava. Na umbanda, a assistência como
platéia que observa a performance, age com comiseração, aguardando a palavra final que a leve à
redenção. Os consulentes comportam-se como se estivessem próximos de sua expiação, para
serem redimidos do sentimento de pertença à classe senhorial opressora, do jugo de outrem ou
das agruras que os abatem diariamente. Do outro lado, no raio de ação do terreno sagrado,
aguardavam os “escravos”, sentados no “toco”, prontos para demonstrarem a grandeza de sua
humildade. Neste contato, pensando sobre a inversão que pude observar, os pretos-velhos
tornam-se representantes da redenção de seus consulentes e dos escravos que não se rebelaram,
tornando-se espíritos que “não fazem o mal”, ao contrário, produzem o “bem” em benefício de
sua “sinhá”.
A rotina ritual diviniza os espíritos de escravos. Através das cerimônias, sua imagem
como escravo e ancestre divino é constituída e reforçada, e sua eficácia simbólica se mantém. O
valor atribuído às entidades e às suas qualidades mágicas é sancionado pela participação coletiva
e pelos instrumentos rituais como as cantigas, vestes e comportamentos. Neste espaço sagrado, o
escravo foi encantado, tornando-se ancestral divinizado e sua personificação, além de representar
uma linguagem compartilhada por grupos religiosos que refletem a crença na magia africana,
vislumbra a possibilidade de entrever o social através do status adquirido nesta posição de ente
divino.
No rito, o pertencimento dos pretos-velhos a uma cultura específica africana é
procurado por pessoas que os consideram mais fortes. Aos espíritos de pretos-velhos “africanos”
são atribuídos cuidados extras, pois podem oferecer perigo na medida em que creditam a eles o
conhecimento de fortes feitiços. Entretanto, as observações que fiz, em diferentes casas
125
religiosas, indicam que o caráter de familiaridade expresso por estas entidades produz um maior
efeito sobre a crença em sua ação mágica do que o afamado perfil “africano”. A representação do
escravo de procedência africana sugere um poder imediato de cura e conquistas materiais; por
outro lado, o aspecto familiar atribuído aos pretos-velhos é referencial de companheirismo e
afeto, que leva à compreensão, por parte de seus devotos, de que existe a possibilidade de ser
criado um vínculo para toda a vida.
A relação que se expressa na consulta pode ser concebida como estrutura do rito dos
pretos-velhos. Compreendo que, dentro daquela ambientação, quem procura ajuda pode ser
identificado como procedente da “classe opressora”, ao passo que os pretos-velhos são
identificados como figuras “destituídas de autonomia”.
Estes fatos reforçam a idéia apresentada por Maggie (2001), que identificou o processo
de inversão na figura dos exus, pombas-giras, pretos-velhos e caboclos nos rituais de umbanda:
“Marginais, prostitutas, pretos e índios, transformados em deuses (...) representam, no ritual, o
inverso do cotidiano, do profano e da estrutura” (op.cit.:118). A familiaridade com as entidades
indica igualmente inversão. A “sinhá” se torna beneficiada dos poderes de que seu escravo é
dotado; a figura dos pretos-velhos, desprezada inicialmente pelo kardecismo como espírito
inferior e de pouca luz, na umbanda e noutras religiões afins, foi considerada figura divina;
enquanto representação das camadas menos favorecidas da população brasileira, posicionando-se
no rito em lugar de destaque. Estas e outras inversões são indícios de sua configuração sagrada,
sugerindo algumas possibilidades de compreensão para o fato de um escravo ter-se tornado uma
figura sagrada. Junto a tais representações, sua figura fraternal se destaca pela nomeação que
indica um grau de parentesco. A partir da relação entre devoto e entidade, traçada pelo viés
familiar, desvenda-se uma configuração em que a sacralidade não é exclusiva aos pretos-velhos,
mas possibilita aos seus devotos compartilhar dessa atribuição, visto que são parentes, pois,
afinal, seu “pai”, “tio”, “tia,“avó são seres dotados de poderes e, dessa forma, a relação contígua
lhes pode favorecer.
Compreende-se que a permanência da figura do cativo junto ao reconhecimento da
relação de parentesco pode ser associada à idéia de Diana Brown (1986), que, como disse
anteriormente, compreendeu a umbanda a partir da lógica da promoção da identidade brasileira.
Deste modo, a manutenção do culto aos pretos-velhos é indicativa da representação de uma
identidade brasileira que surge do cativeiro. O culto aos escravos é significativo na construção da
126
identidade nacional que é constantemente atualizada deste sentido através dos pretos-velhos,
considerados parentes de todos os seus devotos e, por conseguinte, um ancestral
de tal
coletividade.
3.3 Configurações contemporâneas da escravidão brasileira.
“Escravo” e “escravidão” são símbolos, que aglutinam entendimentos e sentimentos,
expressos na figura e nos objetos presentes no culto aos pretos-velhos. A figura dos pretos-velhos
e seu rito condensam entendimentos sobre o universo “escravista”, direcionando-se propriamente
para uma concepção de sociedade estratificada, composta basicamente de duas classes
antagônicas. Este modelo social perpetuou-se com certo vigor nas estruturas sociais, fato que
também pode ser observado através da sacralização dos pretos-velhos.
Compreendidos como espíritos de escravos sofredores, sua atuação nas cerimônias
indica uma freqüente atualização dessa idéia de “sofrimento”. Devotos explicavam seu
sofrimento, comparando-o ao do escravo; por vezes, comparavam sua vida de trabalhador aos
sofrimentos da “escravidão”.
Na representação do “sofrimento” dos “escravos” há uma interpretação do passado
históricono culto aos pretos-velhos. O sistema político e econômico baseado na exploração de
mão-de-obra escrava é reinterpretado por um viés sentimental. Como professora da rede pública,
por anos deparei-me com a dificuldade de inserir algumas novidades históricas no conteúdo que
geralmente começa a ser ensinado no primeiro ciclo de ensino. Recordo-me de um período em
que ensinava para alunos da sexta série, de uma escola municipal do Rio de Janeiro4 , a vida dos
primeiros habitantes do Brasil. Explicava que “índios” era uma categoria que igualava todos os
nativos brasileiros, mas que cada grupo tinha suas peculiaridades, seus mitos e sua organização
política. Entretanto, na construção de suas idéias permanecia a figura do índio mítico, belo,
guerreiro, protetor da natureza, promotor de relações cordiais e que mantinha uma vida coletiva.
Numa redação, uma aluna escreveu: “Para o índio brasileiro não havia ambição. Pelo contrário
todos eram solidários, humanos e humildes” 5 .
Situação similar ocorria com o ensino da escravidão. Procurava apresentar as complexas
relações sociais entre senhores, homens livres, pobres, cativos e libertos. Ensinava a respeito das
4
5
A escola estava localizada no Complexo da Maré, próximo à Avenida Brasil.
Texto da aluna Jéssica, Colégio General Napion, setembro de 2004.
127
diferentes procedências étnicas e do trânsito interno na África, que é um imenso continente.
Apresentava as organizações políticas e sociais de alguns povos. Explicava-lhes a diferença entre
os escravos urbanos e os que trabalhavam na lavoura e, através de documentos históricos, tentava
demonstrar as significativas transformações ao longo de quatrocentos anos de escravidão. Mesmo
assim, em textos e discursos dos alunos predominava a curiosidade sobre as situações de castigo.
Todo conhecimento anterior que o “africano” possuía era anulado pela “escravidão”. Os alunos o
tornavam “coisa” ou gente de uma única espécie, “sofredores”. Por vezes, o sofrimento dos
escravos era sentido como se fossem os seus. Em certas circunstâncias, comparavam com sua
própria vida, sendo comum mencionar a violência urbana e, principalmente, a tortura imposta
pelo tráfico de drogas na comunidade. Ao final, o escravo quase sempre permanecia como uma
figura bondosa que foi martirizada pelo malvado homem branco.
O contexto social atual, acrescido, sobretudo, das recentes produções historiográficas,
favorece a novas reflexões sobre a escravidão; predomina, entretanto, a representação: escravolavoura-sofrimento. Ressalto a significativa presença deste modelo de “escravidão” na
representação coletiva. Esta representação ficou mais evidente ainda com as recentes políticas
públicas voltadas para as reparações e para o combate ao racismo. A lei de reserva de vagas para
“negros”, o Estatuto da Igualdade Racial 6 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
das Relações Étnico-Raciais e da Cultura Afro-Brasileira e Africana 7 são alguns dos exemplos
da promoção da representação da escravidão como modelo que orienta as relações sociais.
Categorias ou idéias de “reparação”, presentes em ambos os documentos, indicam que vigora
entre certos grupos sociais a concepção de que há “danos” que devem necessariamente ser
sanados através das políticas públicas, que, acredita-se, sirvam para um maior equilíbrio social.
A idéia geradora deste processo é que, além do prejuízo promovido pelo tratamento desigual
entre “brancos” e “negros”, o sofrimento e as dificuldades atuais vividas por aqueles que se
consideram descendentes dos escravos são resultantes desse passado escravista.
As significações do termo “escravo” e “escravidão” foram centro de um debate na web.
Numa comunidade virtual intitulada “99%mestiço”, o tema da conversa era: “Às vezes tenho
6
Projeto de Lei no. 3198/00 de autoria do Senador Paulo Paim, atualizada e encaminhada para votação na Câmara de
Deputados como Projeto de Lei no. 6264/05, com diretrizes para implementação de políticas públicas voltadas para
a educação, saúde, acesso a emprego e à posse de terra em casos considerados como remanescentes de quilombos.
7
Lei no 10.639/03 MEC pelo Governo Federal em março de 2003, que altera a Lei de Diretrizes e Base (LDB) e
esclarece as Diretrizes Curriculares, instituindo a obrigatoriedade do ensino da História da África e dos africanos no
currículo do ensino fundamental e médio.
128
vergonha de ser branco”:
as vezes Tenho Vergonha de ser branco 12/8/2005 8:55 PM
salve galera gostaria de deixar uma kestão para os brancos (os negros tbem
podem opinar) vc branco não sente as vezes vergonha de sua raça por tudo q
nossos antepassados fizeram com a raça negra??(escravidão,descaso c/a
africa etc) 8
Claramente, a representação da sociedade atual se espelha naquela formação do modelo
escravista: brancos X negros e senhores X escravos. A idéia que predomina é a existência de um
“povo branco” contra um “povo negro”. O termo “vergonha” aparece como um sentimento
pessoal por algo praticado contra um grupo cujo contato está restrito aos saberes escolares. O
saber e a emoção se sustentam em nome de “seus antepassados” e dos “brancos”, como se sua
ascendência pessoal adviesse de escravocratas. A estrutura escravidão como um sistema políticoeconômico se esvai, solidificando a compreensão moral de subjugo de um homem sobre o outro.
Segue ainda o rapaz:
bom eu as vezes sinto pq afinal tem muitos negros q ainda tem vergonha de se
assumir como tal enquanto ser branco,(principalmente descendente europeu)é
motivo de orgulho enquanto q deveria ser motivo de vergonha afinal a
colonização foi muito covarde e criou essa ... de diferenças sociais sem falar da
áfrica q até hoje sente os males da divisão inglória feita pelos europeus
No Brasil, definir a que grupo de origem a pessoa pertence é uma tarefa difícil. A “raça”
é retórica (Maggie & Rezende, 2002) e permite estabelecer certos lugares sociais. Portanto, as
gradações das cores se alternam de acordo com o local e status social que o indivíduo ocupa.
Peter Fry (2005) afirma que no Brasil a ascendência não é estabelecida através de um único
antepassado, e ressalta que: “Enquanto os americanos acham que um único ancestral africano é
suficiente para produzir “afro-americano” ou uma pessoa de “ascendência africana”, os
brasileiros acreditam herdar as característica de todos os seus ancestrais” (op.cit.176).
Continuando o debate anterior, em resposta àquela postagem, o comentário enfatiza a
polêmica do pertencimento:
8
Foi mantida a escrita original.
129
E QUEM DISSE QUE VOCE E BRANCO?? VAMOS ACABAR COM ESSA
POLEMICA DE PRETO, BRANCO, AMARELO, PARDO, INDIO, OU COISA
PARECIDA. SINCERAMENTE, NÂO CONSIGO ENTENDER O MOTIVO DE
VOCE TER VERGONHA DA SUA "SUPOSTA" RACA BRANCA. PRA SER
MAIS CLARO: DE ONDE VEM ESSES CABELOS ONDULADOS? 9
Em pouco tempo, o rapaz que sentia vergonha por ser “branco” já era considerado
pertencente ao grupo dos “negros”. Não se pretende aqui entrar em nenhumas dessas questões,
pois há pesquisas relevantes 10 que tratam dessa temática; entretanto, quero apenas frisar que o
debate atual sobre a escravidão, reparação e cotas para negros traz muitos elementos da visão que
se tem da escravidão nesses rituais em que aparecem os pretos-velhos.
A narrativa da escravidão, como linguagem que comunica identidades e compreensões
acerca das experiências cotidianas, é amplamente compartilhada por pessoas de todas as classes.
Num debate entre os candidatos para prefeito do Rio de Janeiro em 2004, o candidato petista
Jorge Bittar fez uma pergunta a Marcelo Crivella, liderança espiritual da Igreja Universal do
Reino de Deus, sobre o polêmico assunto Estado/Religião. O pastor-candidato respondeu que,
como pastor, lutava para livrar o povo da escravidão espiritual e, como político, lutava pela
libertação do povo da escravidão social 11 .
O atributo “sofrimento” é elemento aglutinador dos fenômenos que compõem o culto
aos pretos-velhos. Presenciei, num dos terreiros, um diálogo entre duas mulheres sobre os
castigos dos escravos; uma delas, de aproximadamente 30 anos, comentou: “nós sofremos muito
com aquilo tudo”. Na pesquisa sobre a escrava Anastácia, o depoimento de uma senhora trazia
para o campo emocional todo seu entendimento sobre a “escravidão”; chorava, lembrando dos
maus-tratos sofridos pelos escravos, dizia ser parente da escrava e pedia que eu conferisse em
seus traços físicos tal parentesco. Noutra situação, após uma comemoração do dia 13 de maio, na
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, um grupo de senhoras relembrava o
auge da celebração: uma peça sobre o cotidiano dos escravos. Disseram que o momento foi de
9
Foi mantida a escrita original. Esta é a única resposta com todas as letras em destaque, maiúsculas, o que demonstra
uma expressão de surpresa, como se quisesse gritar.
10
Ver: Fry (2005); Sansone (2004); Skidmore (1989); Bacelar (2001); Guimarães e Huntley (2000), Maggie e
Rezende (2002).
11
Rede Globo, entrevistas, em 30 de setembro de 2004.
130
comoção geral e que todas choraram muito relembrando a época do cativeiro. Falaram isso com
os olhos úmidos 12 .
O que podemos entender dos discursos com referência à escravidão atualmente
expressos pelas ongs e pelas campanhas de “reparação” 13 em que se fala de “danos causados pela
escravidão”, e na própria legislação que institui cotas universitárias destinadas aos negros? Estas
narrativas demonstram um conflito na definição desta herança cultural. O culto aos pretos-velhos
parece ter o mesmo substrato cultural que estas narrativas políticas. Qual é a proximidade entre
esses discursos políticos contemporâneos e aqueles veiculados pelos médiuns e seus pretosvelhos quando se referem à escravidão?
Os debates que encontrei na web, os relatos e rituais descritos no capítulo anterior sobre
os diversos cultos e a presença dos pretos-velhos, e as ações afirmativas têm em comum um ethos
de cativeiro, que representa um modo-de-viver e um modo-de-pensar a realidade. Neste sentido, a
“escravidão” proporciona a ancoragem de idéias, como a “exploração da mão-de-obra escrava”, e
de sentimentos como “prisão”, “dor”, “sofrimento” e “submissão”. Através do culto aos pretosvelhos, estes significados são instituídos de uma materialidade, que pode ser acessada e
experimentada. Assim, o sujeito institui vínculos e sua história se torna uma referência coletiva.
3.4. Pretos-velhos: espírito de escravo, espírito da escravidão.
A categoria “escravidão” está em uso, num percurso por vezes metafórico e mimético.
O preto-velho pode ser ou não ser “escravo”, pode ser ou não ser “africano”, pode ser ou não ser
“preto”, pode ser ou não ser “velho”. Entretanto, essa profusão de imagens concentra-se de modo
mais persistente na figura do “escravo” e, mais ainda, numa figura dotada de “força” espiritual.
Conforme mencionei, em certos casos, a referência à África pode torná-lo uma figura dotada de
maior poder, sendo dessa forma concebido como: mais africano = mais negro e mais forte; e
menos africano = mais branco e menos forte. Mas o que comunicam as imagens que servem ao
seu culto, em que os pretos-velhos são representados como negro idoso, sentado num tronco de
árvore, fumando um cachimbo?
12
Tais relatos estão presentes de forma mais ampliada e comentada em minha dissertação de mestrado em História
intitulada “Construção simbólica da escrava Anastácia”.
13
Ver sobre o tema das reparações e das cotas raciais os artigos presentes no site www.observa.ifcs.ufrj.br e
especialmente Góes (1988).
131
A idéia de que os pretos-velhos seriam devotos cristãos predomina nos terreiros de
umbanda e na barquinha. Na maioria dos terreiros as entidades mantêm um terço14 em suas mãos.
Especialmente na barquinha, todos os pretos-velhos usam o terço na mão ou no pescoço. O fato
de apresentarem um terço nas mãos pode servir de alento àquelas pessoas que procuram o rito
fora de suas tradições religiosas, pois compreendem tal objeto como símbolo de bondade e de
devoção cristã.
A construção de “bondade” dos pretos-velhos foi pensada como uma forma de aceitação
do cativeiro, em oposição à atitude de inconformismo associada aos escravos que se rebelaram. A
partir desta oposição, duas figuras dos rituais umbandistas foram destacadas, os exus e os pretosvelhos. Exu foi concebido com perfil libertário, como demonstraram Marco Aurélio Luz e
Lapassade (1972). Sua inserção no plano umbandista se sustenta como facilitador das conquistas
materiais e da não moralização das relações, fato este que permitiu sua vinculação à imagem do
diabo do imaginário cristão, como descreve Negrão (1996), e ao orixá exu dos cultos afrobrasileiros, tal qual compreendem os estudos promovidos por Prandi (2001).
Dessa forma, a ambigüidade dos pretos-velhos oscila dentro desse padrão de
pertencimento a uma categoria que, politicamente, o concebe como passivo, em oposição à
rebeldia expressa pelos exus. O termo “passivo” aqui é compreendido numa concepção negativa,
enquanto a “rebeldia” possui a significação positiva do aclamado inconformismo. Entretanto, sob
significação religiosa, a passividade é interpretada como “pacifismo” e a “rebeldia” como
“angústia” que leva ao “ódio”. Nas minhas observações de campo, encontrei a figura dos pretosvelhos constantemente relacionada ao conceito de “humildade”. Num sentido oposto, os exus
representavam a arrogância.
Todavia, a figura dos pretos-velhos nos ritos sofre variações, entre a imagem do cristão
e do feiticeiro. Algumas entidades são apresentadas com as duas características, sendo atributo a
qualidade apresentada como “força”. Na descrição da Tenda Nossa Senhora da Piedade, vimos
um caso de preto-velho expressando esses dois lados, quando manipulava elementos
considerados mágicos, ocupando o lugar dos exus no cuidado com a porta. Naquela casa citada,
o “preto-velho fazia o papel de tronqueira”, compreendido como entidade capaz de trabalhar com
14
Terço é um cordão de contas que cumpre a função de seguir um certo número de preces: totalizam 53 contas
destinadas às ave-marias, seis contas ao pai-nosso e uma peça destinada à salve-rainha. Numa das extremidades há
um crucifixo.
132
a magia branca e com a magia negra. Esta “tronqueira” seria uma referência aos caminhos15 deste
plano e do plano espiritual; atributo que permitiria seu trânsito por diversos espaços no mundo
espiritual. Acredita-se que os cemitérios, por exemplo, sejam de domínio dos exus, mas um
“preto-velho de tronqueira” seria capaz de adentrar este submundo espiritual. Assim, operam com
certa mobilidade, produzindo o efeito de maior alcance de sua magia.
Embora histórias sobre a vida dos pretos-velhos circulem nos terreiros, os visitantes,
médiuns e, com menor freqüência, os dirigentes dos cultos, dizem não fazer diferença tomar
conhecimento sobre a história pregressa daquela entidade. As pessoas que conheciam histórias
sobre pretos-velhos atribuíram-lhes um certo perfil “escravo” que se configura da seguinte
maneira:
I.
Os pretos-velhos são identificados como espíritos de escravos.
II.
Nem todos os pretos-velhos foram escravos, mas são identificados com
significados da escravidão, com sentimentos que se creditam à situação de
cativeiro, como, por exemplo, os sentimentos de dor, perda, sofrimento,
humilhação, ódio, angústia, solidão, revolta, saudade, compaixão, solidariedade,
humildade, amor.
III.
Nem todos os pretos-velhos foram escravos, mas há uma identificação de sua
persona com a situação de “exclusão” social do negro na sociedade brasileira.
IV.
São considerados figuras caridosas e carinhosas, e tratados numa relação
parental.
V.
Embora encontremos a figura do preto-velho de tronqueira, capaz de ocupar o
lugar de exus no rito, esta forma não é muito comum.
Predomina, contudo, a representação dos pretos-velhos como escravos humildes,
dotados de sabedoria e paciência,capazes de promover a cura e levar conforto espiritual aos seus
devotos. Além disso, informa um perfil religioso, cabia a este escravo a religiosidade cristã,
expressa no uso do terço e, de forma menos explícita, a magia se evidencia. Prestemos atenção no
depoimento de Osvaldo Quelhas, liderança espiritual da casa Servidores de Jesus:
15
Aqui aparece uma similaridade com os exus, que nas religiões afro-brasileiras são divindades que cuidam dos
caminhos.
133
O caboclo é um sujeito também amoroso, mas ele não tem a empatia [do pretovelho], porque qual é o grosso dos problemas que chegam até os pretos-velhos?
É a dor, é a perda de emprego, perda de entes queridos, é a enfermidade ... é a
dor. E o caboclo não. O caboclo é alguém que está querendo construir alguma
coisa, empreender alguma coisa. A pessoa já saiu daquela etapa da dor, do
momento difícil, ela já está refeita e está olhando pro futuro, fazendo planos.
Então já é uma segunda etapa. O que está mais presente é a dor, é a falta de
amor e o caboclo viria numa segunda etapa do processo de apoio pra pessoa
caminhar, pra auto-realização: pra sair de alta. Todo um processo de carência.
O preto-velho é apoio à dor. Dor psicológica é a palavra de esperança, é a
palavra de iluminação. O preto-velho tem a visão da magia, o caboclo também
tem, mas o preto-velho tem a visão da magia, de desfazer a magia, ele tem essa
sabedoria de desfazer. Ele trabalha parado, o caboclo trabalha andando. O
caboclo não é uma entidade de desfazer magia, ele até desfaz a magia, mas
quem desfaz a magia é o preto-velho, parado, observando. Então ele olha,
diagnostica e vai, na veia pra poder resolver o problema.
Quanto à associação preto-velho/escravo:
É um símbolo. Por exemplo, Pai Joaquim, na maioria das vezes quando o vejo
ele não se apresenta como preto e velho. Ele se apresenta com o rosto um
pouquinho claro, às vezes mais escuro, moreno e tal. A roupa, uma roupa clara,
mas não exatamente uma roupa de preto-velho. A maioria das vezes se
apresenta com feições normais. Então é um simbolismo. A gente trabalha muito
com simbolismo (...) Ele é igual a mim, sofreu igual a mim. Há uma
identificação da pessoa com aquele que está ali, que sofreu também, que está ali
não pra analisar e nem criticar ele, mas pra acolher ele, como um grande colo,
né?
Já disse que o rito da consulta é o clímax da cerimônia. A ação dos pretos-velhos no rito
é voltada para o atendimento aos consulentes. Normalmente só os pretos-velhos do dirigente da
casa conversam com todo o grupo na sessão, explicando sobre o modo de proceder num
determinado ritual e, de certo modo, organizando o grupo e comentando sobre o trabalho da casa
ou o comportamento dos médiuns. Em algumas situações específicas, como o 13 de maio, podese comentar sobre sua vida pessoal. Normalmente, nessas falas estão presentes ensinamentos
sobre a vida após a morte e suas memórias. Este momento é raro e um marco, pois circunscreve
um outro espaço de ensinamento propriamente fora da doutrinação, revelando as noções desta
identificação com “escravos e “escravidão”.
Compreende-se através do culto aos pretos-velhos que a “escravidão” está relacionada a
uma forma de desenvolvimento espiritual. Religiosos e dirigentes de casas espíritas explicaram
que a apresentação do espírito como preto-velho é uma forma de aprendizado. Ser escravo ou
134
passar por situação de escravidão seria uma forma de extirpar pecados e aprimorar certas
qualidades pessoais, como a necessidade de tornar-se humilde, por exemplo. Assim, a escravidão,
através do sofrimento que produz, colabora no crescimento espiritual.
Duas representações se cristalizam no culto e na crença aos pretos-velhos: a dos
“espírito dos escravos” e a do “espírito da escravidão”. Os primeiros são os agentes que
contribuem para a significação do outro. Em conjunto, esses dois elementos agrupam significação
que reiteram uma experiência do tempo presente, após as significações de um passado latente.
Deste modo, a configuração destas representações não pode ser relegada sob um único aspecto;
ao contrário, as ambigüidades do “ser” escravo e da própria escravidão são mantidas para que se
possam garantir inúmeros usos contemporâneos, como as políticas de reparação às quais nos
referimos anteriormente.
Além disso, as interpretações do caráter de bondade, junto à ambigüidade que instituiu
alguns tipos de pretos-velhos como os de “tronqueira” – representados como mandingueiros e
feiticeiros e, portanto, entidades capazes de irritar-se e, punir um “filho”. Esta configuração
aproxima os pretos-velhos das características humanas, pois são divindades que demonstram suas
“falhas”, sendo este perfil uma motivação adicional para celebrá-los, pois este perfil, como
veremos, diz respeito à construção da idéia que fazem da sociedade brasileira e de si mesmos.
3.5 Panfletários: os divulgadores da representação da escravidão no culto aos pretos-velhos
A comunhão sobre idéias a propósito da “escravidão”, expressas nas sessões anteriores
deste capítulo, demonstra alguns motivos que levaram os pretos-velhos à sacralização. A
encenação da escravidão como lócus dos pretos-velhos não se restringe ao campo religioso, ainda
que as representações propagadas fora deste circuito sejam por ele apropriadas 16 . De modo geral,
tanto o material impresso (informativos, jornais, revistas e livros) quanto as narrativas das
entidades e lideranças religiosas descrevem a história da escravidão a partir de um núcleo central,
que é o tráfico de escravos, e sustentam a idéia de uma sociedade dividida em duas partes, de um
lado os senhores e do outro os escravos, cuja rota está sempre presente na narrativa que procura
16
Sobre a circulação e apropriação das representações conferir os estudos de Roger Chartier (1990) sobre
apropriação; a investigação da rota do pensamento revolucionário por Robert Darton (1989); e as análises de Carlo
Ginzburg, (1998/1991) sobre a crença.
135
contar a história da religiosidade afro-brasileira, da umbanda e, por conseguinte, dos pretosvelhos.
Neste sentido, destaco algumas referências:
1. Revista Umbanda. Publicação paulista vendida nas bancas no Rio de Janeiro. Venda em
grande escala nas bancas de revista da cidade e, segundo informou um vendedor, “é um
material que não encalha”. Muitos umbandistas citaram a revista como material utilizado
para sua informação. De modo geral, as matérias publicadas na revista apresentam
entrevista com lideranças, fazem descrições de comemorações ou outros ritos, além de
freqüentemente apresentarem tópicos sobre temas religiosos abordados a partir de
referenciais históricos.
O trecho que segue apresenta um breve histórico da umbanda:
Como a Umbanda nasceu envolvida com a história do Brasil, através dos
europeus que invadiram nosso país e tentaram subjugar os caboclos sem
sucesso, trouxeram então os africanos, e de toda essa mistura nasceu a uma
história 17 .
2. Cadernos de Umbanda. Publicação da Editora Pallas, Rio de Janeiro. A editora Pallas
possui um editorial de publicações religiosas, comercializadas em livrarias e lojas de
artigos religiosos. Este texto do “Cadernos de Umbanda”, especialmente, apresenta uma
versão do tráfico de escravos. Junto ao texto inicial desta coleção, aparece a ilustração de
naus portuguesas. O título anuncia: “Como aqui chegaram os negros africanos”, seguindose a narrativa do tráfico de escravos, em que se destaca a viagem nos navios negreiros,
especificamente do sofrimento, como por exemplo, a pouca provisão de alimentos e água
potável, as péssimas condições do alojamento e o sofrimento pela perda dos parentes e
companheiros de viagem que não resistiram a tais condições. Há também relato do
trabalho nas lavouras e dos castigos a que eram submetidos. Como referência histórica,
foram citados os Anaes do Parlamento Brasileiro, Nelson Remarks, Robert Edgar Conrad
e José Honório Rodrigues. Logo após a análise histórica, um texto sobre os pretos-velhos,
cujo título anunciava: “Veneráveis Protetores”:
17
Revista Espiritual Umbanda Colection, no. 1. Primeira revista dessa unidade, vol.4, 2005. Entrevista com
Fernando Guimarães.
136
Até o ano de 1900, aportaram no plano astral cerca de 8 milhões de almas
africanas e seus descendentes. Foi daí que surgiu uma plêiade de negros,
anciãos em sua maioria, que idealizaram e comandaram um movimento de
retorno ao plano físico através de sua mediunidade (...) são nato, da raça
africana, entre outras virtudes, tolerância, alegria, musicalidade, meiguice,
desejo de servir, além da sabedoria das idades sorvidas biologicamente pela
religião africanista.
3. As entidades. Como divulgadores da representação de escravidão, descrevendo histórias
sobre o cativeiro, estão os próprios pretos-velhos, pois em algumas cerimônias – além do
rito de consulta em que dialogam exclusivamente com o consulente – conversam com os
presentes, orientando-os e, em alguns casos, contando sua história de vida, ou seja,
apresentando o cenário da “escravidão”. Esta performance reforça a idéia de que os
pretos-velhos foram “escravos”, tornando-se a narrativa um exemplo real dos fatos. A
história da preta-velha Maria do Rosário, da Seara do Caboclo Flecheiro, é ilustrativa
neste sentido:
Naquele templado o povo africano vivia em nações, não era como hoje
“África”. Nem todos os pretos-velhos foram escravos, tem muitos brancos que
foram pretos porque não tinham “pataca”, tinham liberdade, mas eram
prisioneiros do “preconceito”.
A abolição libertou os pretos, mas eles foram para outro tipo de escravidão,
moram em favelas e continuam como no passado sem assistência médica ou
educação, entendeu?
4. Liderança religiosa. Entre outras tarefas, as lideranças religiosas cumprem a função de
orientar os visitantes, guiando seu olhar na compreensão do rito. Sua comunicação integra
o grupo, procurando esclarecer os fenômenos que observam, e familiarizando a todos para
uma compreensão semelhante da cerimônia. Neste sentido, orientam as consultas e, no
decorrer de uma sessão, podem explicar o que está acontecendo, pedir concentração ou
convidar alguém da assistência para cumprir com algum procedimento ritual. É sobretudo
esta figura que apresenta o funcionamento da casa e fornece explicações sobre as
entidades para os visitantes.
Depoimento da liderança religiosa do “Cantinho de Pai Cipriano”:
Tem uma história dos negros, da religiosidade dos negros, que eles se
ajoelhavam aos pés dos santos católicos para viver sua religiosidade...
137
É uma categoria espiritual, eles apresentam uma certa humildade, mas na
verdade tem muito mais sabedoria que qualquer doutor (...) As pessoas não
separam a visão material da espiritual. Elas permanecem com a mesma
ignorância, como se eles fossem aquele negro escravizado, açoitado, que não
tinha instrução nenhuma, que não sabia ler e nem escrever; que eles não
deviam estar na direção de uma casa, mas ele é um espírito superior.
Estes divulgadores não estão isolados uns dos outros. Conforme citei, conheci a revista
“Umbanda” através de alguns médiuns da umbanda. Destaco que no campo religioso, como
apresentei no primeiro capítulo, há uma intensa circulação de visitantes e médiuns que procuram
prestigiar as festas de amigos ou conhecer novos terreiros, como descreveu Birman (1995). Tal
circulação contribui para a ampliação de certas idéias e reforço de outras. Além disso, encontrei
centros que procuram promover cursos internos sobre a mediunidade; como a cura através dos
cristais e da irradiação das cores; sobre o funcionamento da aura, entre outros. Tais cursos nem
sempre são destinados especificamente aos médiuns, há casos de palestras – algumas delas
focalizando o conhecimento sobre as entidades e os orixás - voltadas para o público geral,
visitantes, praticantes e curiosos, como os ministrados no Cantinho do Pai Cipriano, no Meier.
Neste circuito as idéias sobre “escravidão” e “escravos” são freqüentes e repetem o
mesmo padrão escravo-sofrimento-lavoura-senhor. Natércia18 , liderança religiosa, disse que tem
por convicção pessoal a necessidade de questionar os dogmas. Comentou que os mais jovens no
santo, ou seja, os iniciados no rito, têm dificuldade de aceitar explicações que não apresentam
uma certa coerência e, por tal motivo, gostava de explicar tudo com muita clareza. Sobre pretovelho, comentou:
Não sei. Desde que eu nasci eu ouço isso [que são espíritos de escravos]. Mas eu
questiono muito. Quem me passou isso estudou aonde? Aprendeu com quem?
Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Foi uma coisa que foi sendo
divulgada, foi sendo transmitida.
Considerando-se ainda jovem na vida espiritual, com dezoito anos de feitura no santo*,
procurou fazer cursos para aperfeiçoar seu sacerdócio, como o curso de língua yorubá. Além
disso, é professora com formação em história. Disse que sempre foi fascinada pela História
18
Entrevista realizada com a líder religiosa no barracão em São Gonçalo, no dia 18 de maio de 2002.
138
porque gosta de saber a fundo as explicações sobre as coisas. Assim explicou o motivo pelo qual
um espírito escolhe apresentar-se como “preto-velho”:
Então o preto-velho, eu já acho errado chamar assim preto-velho, porque já
colocou preto como se só houvesse velho preto. Então vamos dizer que lá em
cima, no outro plano, onde ficam essas energias, essas entidades que vão vir à
terra, será que lá em cima Oxalá dividiu: ‘aqui ficam os pretos-velhos, os
negros escravos, são esses que vão descer na umbanda. Nós nos condicionamos
a falar preto-velho, ‘vamos cantar para a linha ...’, porque a gente não fala
‘vamos cantar para a linha dos velhos, das tias, ‘daquele pessoalzinho que ficou
lá no passado, nossos ancestrais?’. Nós demos uma nomenclatura, preto-velho,
mas na minha visão lá em cima no Orun, no espaço entre o céu e a terra onde
ficam essas energias, eu não acredito que Oxalá, Deus, tenha feito essa
separação dos negros e dos brancos, essa separação foi feita na terra, nós
continuamos com isso? Como é que nós continuamos com isso? Nós estamos
numa umbanda e é tudo divididinho, olha só, hoje é sessão dos pretos-velhos,
depois é sessão de exu, prostitutas e bandidos, vamos dizer, homens de vida
errada aqui na terra, os excluídos, engraçado, né? Depois temos a sessão dos
índios, caboclos. Então será que a umbanda pegou só os excluídos? Será que
quando ele chegou lá em cima, onde deve ter uma energia maior que os conduz,
essa energia conduziu assim em separado? Agora desce só os índios, agora só
os caboclos; agora só as pomba-giras, prostitutas; agora só os pretos. Daqui a
pouquinho vai ter uma gira de só homossexuais, não é verdade? Então eu não
aceito isso. O negro sofreu, nós sabemos disso, nós lemos isso o tempo inteiro,
mas o branco foi mal o tempo inteiro? Todos os brancos eram ruins? Será que
todos os negros eram bons? Vamos tirar aí a condição dele, terrível, mas
independente disso todos eles eram bons porque sofreram? Ah, porque o branco
era o senhor de engenho, donos das terras, todos eram maus? Será que ali não
houve nenhum senhor que era bom e que envelheceu, fez a sua passagem e que
vem a terra para fazer caridade? Está junto com seu escravo, desce junto com
seu escravo, porque não? Engraçado, porque Pai Joaquim? Joaquim é um nome
muito brasileiro, não é? Será que Joaquim era negro mesmo? Ah! O preto-velho
rei de Congo esse com certeza é negro, mas aí você não pode esquecer que
quando chegavam no Brasil, que houve essa miscigenação, aonde o branco
fazia amor com o negro, onde o negro fazia amor com o índio. Dessa forma os
filhos já não tinha mais nome africano, ketula, kisanjarê, Mutaguemi, não tinha
mais, já era José, Tomé, José, Joaquim, Manoel e será que esses eram negros
mesmo?
139
Ao descrever sua vida de cativo, o preto-velho Pai Benedito, da Tenda Nossa Senhora
da Piedade, contou que foi reprodutor 19 de uma antiga fazenda colonial. Ressaltou que os pretosvelhos representam os “escravos”, mas nem todos foram escravos. Sua fala espiritualista dizia
que importava compreender que o espírito era eterno, ali estava somente uma parte de sua
existência. Fez questão de ressaltar, e pediu que eu tomasse nota, que sua forma de “escravo” era
exclusivamente tomada para atender à escolha de seus consulentes que procuravam “escravos”.
Comentou que, “se os filhos querem dessa forma não há problema. Me chamam Pai Benedito,
quantos Pai Benedito existem? Me dão carinho dessa forma e eu aceito. Quantos Jesus existem?
”. Além disso, contou que em sua vida no cativeiro não conheceu castigo e chegava a duvidar das
histórias que contavam sobre tantos castigos. Sua história foi longa e rica de detalhes sobre a vida
que tinha na casa grande; era homem de confiança do senhor, o produtor da renovação da mãode-obra e seu protetor, pois cuidava para que nenhum feitiço o atingisse.
Embora se propague a idéia de “escravidão”, soube através do dirigente de uma casa
umbandista que há um movimento entre os religiosos pretendendo acabar com a associação dos
pretos-velhos com os escravos, pois querem esclarecer que nem todo preto-velho foi escravo:
poderiam ter sido médicos, religiosos, cientistas, entre outras ocupações. As giras passariam a ser
denominada “gira de pai-velho”. Meu informante disse não concordar com essa mudança, porque
há um propósito em manter o sentido de “preto”. Para ele, no momento em que os pretos-velhos
apareceram e não foram aceitos pelo kardecismo, imperava um preconceito racial. A umbanda
teria acolhido estes espíritos para provar para a sociedade a importância étnica e social de todas
as pessoas, sem discriminar ninguém; assim, não poderiam discriminar um espírito. Neste
sentido, havia uma importância em manter os “pretos-velhos”; ao final, comentou que a tentativa
de retirar o “preto” da nomeação destes espíritos demonstrava a resistência em valorizar o “preto”
na sociedade atual.
Nos terreiros, os pretos-velhos encantam, produzem emoções e diferentes informações
que dizem respeito à história coletiva e pessoal daqueles que ali estão, promovendo
identificações. Os divulgadores desempenham o papel de anunciar o entendimento predominante
que o rito reforça. Junto a isso, as relações sociais anunciadas pelas narrativas de cativeiro
sinalizam modelos binários - amigo/inimigo, branco/negro, negro/branco – que de certa forma
19
Em alguns plantéis escravistas escolhiam-se escravos para serem “reprodutores”, ou seja, sua função seria a
reprodução da escravaria.
140
facilitam a compreensão da lida cotidiana. As aflições vividas no dia-a-dia podem ser
comparadas com as “de antigamente”, como se costuma dizer. Na resolução desses conflitos,
algumas pessoas encontram na figura do preto-velho os mediadores ideais, pois o compreendem
como sábios, pacientes e, sobretudo, experientes na superação do sofrimento e, igualmente,
reconhecem neles as figuras parentais.
Algumas expressões são usualmente usadas como sinônimo dos pretos-velhos. Além da
referida associação com a escravidão, a “humildade” foi a característica citada com mais
freqüência pelos devotos. A humildade foi a qualidade apontada por muitas pessoas para
distingüi-los das demais entidades do panteão umbandista; é sobre ela, portanto, que discutirei a
seguir.
3.6 Pretos-velhos: humildade e cordialidade
Mencionei anteriormente que o culto aos pretos-velhos representa a possibilidade de
experimentar a inversão do modelo social vigente. Entretanto, a ambigüidade destas entidades
indica a persistência da estrutura social, apresentando um sistema de crenças no qual ela
compartilha sentimentos comuns, reforçando alguns padrões. Neste sentido, pensar o caráter
“humilde” que foi atribuído aos pretos-velhos é conceber tal configuração a partir destas duas
perspectivas.
No épico sobre a fundação da umbanda, descrita a partir da história de Zélio de Moraes,
cuja história narrei no capítulo anterior, os pretos-velhos e caboclos são considerados figuras
divinizadas. No caso dos pretos-velhos, sua configuração como escravo submisso contribuiu em
sua elevação à categoria de “escravo humilde” e, no rito, como veremos, foi primordial para sua
sacralização.
A relação dos pretos-velhos com a “pobreza” está relacionada à sua condição cativa, da
qual advém sua caracterização como “ser humilde”. A humildade, assim como a própria entidade,
é repleta de significações, como, por exemplo, pode ser indicativo para
o fato de terem
envelhecido dentro de um sistema que é representado como violento e desumano. Recordo que a
história de perseguição e exclusão dos escravos é referência no culto aos pretos-velhos, como
também o fato de terem “resistido” contribuiu para sua edificação como elemento divino. Tal
resistência se vincula, sobretudo, ao valor moral da notificada “humildade”, conotada como
141
paciência, mas que foi, igualmente, interpretada como submissão e fraqueza. Neste sentido, o rito
favorece a compreensão do poder atribuído aos elementos considerados socialmente
enfraquecidos.
Como disse, a “humildade” representada pelos pretos-velhos significa “resistência”,
embora em nada se compare à bravura ou rebeldia dos emblemas eleitos pelos movimentos
sociais. A virtuosidade dos pretos-velhos, amparada na humildade, ilustra - para os grupos nãoreligiosos - a resignação com a situação de opressão em que viviam. Contudo, para os religiosos,
a resignação é valorizada positivamente, indicando, sobretudo, a sabedoria em lidar com os
conflitos.
A vertente “humildade”, dada aos pretos-velhos, indica sua formação de um caráter
moral e espiritual e, conseqüentemente, daqueles que procuram seguir suas orientações espirituais
ou lhes prestam devoções. Tais valores compreendem o plano simbólico das entidades, expressos
nos ritos observados, apregoados nos discursos e narrativas sobre as entidades, presentes nos
comportamentos dos devotos e nos conselhos que as entidades ministram nas consultas.
Ainda que as duas significações de “humildade” predominem – submissão e paciência -,
a humildade representada pelos pretos-velhos é multirreferencial. Num plano ideológico de sua
significação, é associada à idéia de submissão, humilhação, depreciação e inferiorização. Por
outro lado, seu pólo emotivo a designa como valor moral, tal qual virtude que sensibiliza a
promoção de relações humanas mais harmônicas.
A prática da humildade - no campo religioso ou fora dele - abriga em si contradições.
Apregoa-se que a humildade deve ser mantida como atividade constante e plena, cultivada de
forma solitária e sem alarde. Este valor criaria disposição para o auxílio à coletividade, que
reconhece e legitima a pessoa “humilde”, atribuindo-lhe um status diferencial das demais. Deste
modo, a categoria “humilde” pode-se transformar em seu oposto: o orgulho – através da
autocontradição performática expressa em frases do tipo: “Sou muito humilde”.
A interpretação dos pretos-velhos como entidades que representam a “humildade”
compreende os múltiplos significados agrupados nos dois pólos: ideológico e emotivo. Grande
parte dos religiosos e dos apreciadores do culto aos pretos-velhos exalta seu caráter virtuoso,
enquanto teóricos e lideranças de movimentos sociais – exclusivamente voltados para a
“negritude” – indicam sua caracterização de “humildade” como exemplo de sujeição.
142
No rito, esta louvada característica é procurada por seus devotos, fato que interpretei
como repertório cultural, mantido e acionado para compreender e criar estratégias para soluções
de problemas cotidianos. O comportamento “humilde” pode ser acionado de acordo com as
conveniências sociais 20 ou, na esfera religiosa, encarado como prática que leva ao crescimento
espiritual.
Normalmente, ao referir-se à humildade dos pretos-velhos, o devoto a compara aos
atributos dos exus, entidade referida como orgulhosa e prepotente; e aos caboclos, que
representam a arrogância do saber. Em parte, a valorização de seu potencial de “humildade”
refere-se à idéia cristã, sendo constantemente referida e legitimada em referências bíblicas, como,
por exemplo, na citação: “os humilhados serão exaltados”.
As diversas observações das cerimônias em templos e locais diferentes demonstraram
que o caráter “humildade” neste circuito religioso se inverte em relação à sua concepção
socialmente concebida e validada como “submissão”. A estrutura ritual designa o status de
humildade à elevação moral desta entidade e dos praticantes que procuram guiar-se por suas
orientações.
Na estrutura ritual os pretos-velhos são, por excelência, a figura liminar: nem africano,
nem brasileiro; nem negro, nem branco; nem feiticeiro, nem cristão; nem rebelde, nem passivo.
No rito, suas fraquezas expressas no caráter “humilde” se tornam aditivo de “força espiritual”;
espíritos de escravos, socialmente instituídos como fracos e impotentes, tornam-se divinizados
neste ambiente. Além disso, sua representação contemporânea, associada de maneira geral ao
“sofrimento”, pode ser compreendida como suporte que contribui na elevação simbólica de
sujeitos sociais, que com eles mantêm afinidades.
A associação dos pretos-velhos como escravos sacralizados é revestida de “força” e
“poder”, ampliando o número de adeptos, que se valem da possibilidade de alterar o lugar que
ocupam no mundo. Há uma procura pela transformação da vida íntima, em que se deseja alterar
os sofrimentos vividos ou vivê-los numa outra perspectiva, pois a mensagem é explicita e de
amplo reconhecimento social: “os humildes serão exaltados”. Nesta crença reside a possibilidade
20
A humildade foi descrita por Canclini (palestra, UFRJ, 24/07/2006) como estratégia dos jovens das periferias no
momento em que eram abordados pela polícia: procuravam manter a cabeça baixa e assentir com a cabeça para as
perguntas feitas. Noutra situação, numa tentativa de não pagar o transporte público, por exemplo, o comportamento
se diferenciava, tornando-se mais agressivo. Estas alterações anunciam uma gramática particular de comportamento,
numa prática de sociabilidade própria ao grupo.
143
de superar ou suportar as agruras cotidianas, enquanto se aguarda o benefício de um dia vir a ser
exaltado.
A experimentação do “ser exaltado”, porém”, passa por ajustes constantes, já que o
sentido de manter a humildade e deixar-se humilhar por vezes é confundido entre os fiéis.
Acompanhei algumas consultas em que o preto-velho marcava a diferença entre os termos; dizia,
por exemplo, que os “filhos” não se deviam deixar “humilhar” ou “agüentar tudo”; ao contrário,
deviam aguardar com sabedoria o momento exato para se expor e, ao fazê-lo, apresentar suas
opiniões e argumentos com amor. Da mesma forma, o sentido de “servilidade”, diferentemente
do que sugere o pólo ideológico – submissão –, no pólo afetivo não teria o caráter de fazer sem
questionar o que o outro quer, mas o que os outros precisam que seja feito.
Fora dos ritos, a figura da tolerância que os pretos-velhos e os religiosos costumam
ensinar parece não ter representação tão eficaz quanto sua figuração de submissão. “Pai João”
(Reis e Silva, 1989), uma das figuras literárias à qual os pretos-velhos foram associados, tornouse arquétipo do escravo submisso e fiel ao seu senhor. Na literatura norte-americana esta figura é
representada por “Pai Thomas”, um escravo vendido pelo senhor a quem amava, e faleceu sob
castigos, glorificando a última aparição de seu amo, que lhe fora resgatar após décadas de seu
sofrimento. O padrão “Pai João” predomina na concepção sócio-cultural dos pretos-velhos;
entretanto, outras configurações coexistem na esfera religiosa. Mesmo a humilhação teria um
valor positivo, ao sugerir associação à possibilidade de alcançar a sublimação moral e espiritual,
que permite a elevação de sua condição cativa a ente divinizado.
A condição cativa inerente à concepção dos pretos-velhos constitui outro fator que
permite a exaltação de um certo perfil social, que envolve outro aspecto da humildade: o ser
humilde. Geralmente, caracteriza-se por “humilde” uma pessoa pobre, com mínimas condições
de sobrevivência, ou aquela que, possuindo bens materiais, vive como se não os tivesse, evitando
que a demonstração de sua riqueza não venha humilhar a quem não a tem. Ao contrário da
“humildade” que possui interpretações negativas, ser uma pessoa humilde, contraditoriamente,
pode ser interpretado como um valor positivo.
No culto aos pretos-velhos, o desenvolvimento do “ser humilde” é meta a ser alcançada
por muitos religiosos. Procura-se criar um discurso e um ambiente que favoreçam esta prática.
Costuma-se evidenciar a idéia que o desapego material colabora com o processo de evolução
144
espiritual, idéia presente no culto aos pretos-velhos, sobretudo, através da prática da “caridade”21 .
A caridade, no sentindo espiritualista apregoado pela maioria das casas em que estive, está
relacionada à concepção de que toda a ajuda espiritual não deve ser cobrada. A dedicação do
tempo para louvor ou cura é compreendida como prática que leva ao desenvolvimento da
humildade como virtude. No sentido religioso, ter “posses” não contribui para a evolução
espiritual da pessoa, ao contrário, compreende-se que a riqueza pode gerar o orgulho, elemento
fatal para o “crescimento espiritual”. A humildade forneceria ao rico o comportamento ideal,
aquele de não ostentação de sua riqueza.
Lembro uma médium que descrevia a vida dos escravos: não tinham nada, somente a
roupa do corpo; foram maltratados e humilhados. E interrogou: “No entanto, onde estavam
atualmente?”. Para ela, os escravos conseguiram “dar a volta por cima” após serem humilhados
por seus senhores, os quais foram praticamente esquecidos. E completou: “Ao menos ninguém
conhece um culto aos senhores de escravo, ou conhece?”. O comentário ilustra a importância que
se atribui ao sentido de se manter “humilde” ou quase pobre.
Ainda a respeito deste tipo de humildade, um dos médiuns com quem conversei
ilustrou-a através de um versículo bíblico: “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma
agulha do que um rico entrar no reino dos céus”. Embora a referência direta seja o termo “rico”
associado à posse de riquezas materiais, foi evidenciado pelo médium um caráter de bondade,
atribuído aos “humildes de coração”.
Neste sentido, “ser pobre” pode significar a possibilidade de alcançar benefícios futuros,
como um “bom lugar” na vida espiritual; além disso, a figura de pobreza está associada à imagem
de bondade. Num sentido oposto, o rico quase sempre significa pessoa avarenta e, dependendo da
situação, pernicioso, de moral duvidosa e dado a perversões. Uma médium comentou que sua boa
situação financeira às vezes a deixava envergonhada, pois se sentia desconfortável diante da
miséria que a cercava, inclusive de algumas de suas irmãs-de-fé.
Uma história contada por uma médium ilustra a idéia de que espiritualmente é vantajoso
ser pobre:
Morreu um industrioso, homem rico e avarento. Chegando no Astral foi
encaminhado para sua futura morada. Caminhava encantado por alamedas de
flores perfumadas e coloridas. Ele percebeu que tinham casas diferentes umas
21
Sobre a caridade ver: Brown (1986) e Birman (1985).
145
das outras, umas de grande porte e outras menores. Dentre aquelas que
considerou mais bem cuidada parou e perguntou ao anjo que o conduzia: “É
aqui que vou ficar?”. O anjo respondeu negativamente. Aquela casa pertencia a
dois de seus antigos funcionários. Ele ficou contente, imaginou que sua
residência fosse um palacete, afinal, se seu motorista e sua empregada estariam
agora habitando aquela mansão, qual seria a sua morada? Diante de uma
choupana o anjo parou e disse: “É aqui que o senhor passará a viver”.
Intrigado ele queria saber o motivo, já que seus funcionários ficaram com a
melhor casa que ele tinha visto até então. O anjo lhe disse: “A gente aqui
constrói, mas o material é o senhor que manda lá da terra”.
Em oposição à opinião geral de que todo senhor de escravos era uma pessoa avarenta,
orgulhosa, vaidosa e violenta, a idéia de “humilde de coração” serviu para exemplificar inúmeros
casos de “senhores bondosos”, que não torturavam seus escravos. Alguns depoimentos dos
pretos-velhos sustentaram esta imagem; vários deles disseram conhecer muitos casos de
sofrimento, mas eram gratos aos seus senhores, que não lhes infligiram nenhum mal. Contudo, a
maioria dos casos de senhores amorosos era atribuída às senhoras e não aos senhores.
A própria postura corporal do preto-velho, encurvado e sentado no toco, numa
referência aos tempos da escravidão, expressa esta idéia de humildade. A formação do espaço
ritual informa o lugar em que preferencialmente preferem estar: no toco. Este lugar demarca sua
condição cativa e o pertencimento que quer apresentar, ou seja, sua condição de ser humilde,
podendo suscitar exclamações como: “Nossa! Olha o quanto eles são humildes!”. Estas falas
ocorrem, sobretudo, quando o preto-velho se identificou anteriormente como “médico”, “freira”
ou outra denominação fora de seu padrão “escravo”, fato que amplia consideravelmente seu
atributo de humildade; o espanto, assim, é maior ainda, pois demonstra a grandeza daquele ser, já
que não precisava estar em condição subalterna.
Entre as representações do “escravo humilde” está a associação com a idéia de
resignação, expressa em dois ditados populares usados por um preto-velho: “O calado também
vence” ou “Quando um não quer dois não brigam”. Isso significa dizer que, diante de um
confronto, seria melhor recuar do que atacar: singelo, modesto e submisso.
Segundo a narrativa expressa no ritual, a falta de humildade acarretaria inúmeros
sofrimentos. A exemplo disso, a paciência e a humildade foram descritas como virtudes que
faltaram na vida de dois pretos-velhos. Eles me contaram que sofreram duplamente: por não
terem conseguido manter a paciência e, por acreditar que tinham que suportar suas aflições,
146
procuraram resolver violentamente a situação, criando mais dores em suas vidas. Pai Antônio,
fugindo para um quilombo, levou um tiro nas costas. Vovó Rosa Baiana, em vingança por não
poder ficar com seu filho, matou crianças, jogando-as num tacho de óleo quente. Ambos disseram
que conheceram o maior sofrimento após a morte; como conseqüência, em terreiros diferentes,
em forma de entidade, representavam para os religiosos a persistência na paciência diante das
adversidades da vida.
Além da humildade e da paciência, descritas como virtudes próprias aos pretos-velhos,
outra qualidade lhes é peculiar: a sabedoria. Uma vez mais, o cativeiro é modelador deste
atributo, pois se comenta que são dois os elementos formadores da sabedoria dos pretos-velhos.
Primeiramente, sua procedência africana teria fornecido conhecimentos milenares a respeito da
prática da magia e do conhecimento das ervas, repetindo-se novamente a idéia de que o
sofrimento gera experiência, pois ensina como viver a vida. Neste sentido, a sabedoria seria a
capacidade de retirar aspectos positivos do que aparentemente poderia ser compreendido
exclusivamente sob um aspecto negativo. Nesta situação, a humildade se torna virtude desejada
pelos devotos dos pretos-velhos, pois, entre outros ensinamentos, ajuda a formar a paciência que
contribui na resolução pacífica dos conflitos. O plano ideológico, de ação política para a vida, se
guarnece deste sentido, em oposição à rebeldia cacofônica expressa nos gritos e gargalhadas dos
exus. A rebeldia dos escravos é substituída, no sentido religioso, pela humildade e doçura dos
pretos-velhos, como elemento primordial para que conseguissem converter os senhores de
potencial inimigo em seu amigo ou protetor.
Assim, a sabedoria do preto-velho em utilizar a paciência como recurso para sua
sobrevivência no cativeiro seria estratégia na composição de seu estado de “invisibilidade”. No
rito, chegam de mansinho e sentam nos bancos, ao contrário dos caboclos que passam a maior
parte do rito de pé ou andando de um lado para o outro. Costuma-se dizer que o preto-velho
trabalha parado, olhando e desfazendo as mandingas. Durante a consulta, evita provocar
polêmicas ou dizer algo que desagrade ao consulente.
Observando as consultas, acompanhei de perto este tipo de estratégia. Na consulta, por
exemplo, uma consulente contava a epopéia familiar, um conflito que envolvia a trilogia maridomãe-sogra. Ela descrevia o caso como se fosse uma guerra: “estou vivendo uma verdadeira
guerra”. Contava detalhes, mostrando acusações sofridas e os ressentimentos que tinha por sua
sogra e seu marido. O preto-velho ouvia com atenção, assentindo esporadicamente com a cabeça.
147
Ao final, ria com compaixão, demonstrando compreender bem o que se passava, fato que a
deixou bem à vontade. Calmamente lhe disse: “Nenhuma parte está com a razão. Não tome
partido de nenhum dos lados. É preciso ter coragem para tomar as decisões, não faça nada de
cabeça quente!”. Ela saiu satisfeita e reconheceu algumas encrencas que tinha provocado.
Os pretos-velhos são conhecidos como entidades que aconselham, em oposição a outras
que prometem realizações; assim, seu aconselhamento, portanto, é procurado justamente porque
não fornece alternativa radical, mas conciliatória. O fato de ser considerado um espírito ancião
contribui para a representação de sabedoria frente aos problemas, pois se acredita que a
experiência possa gerar bons conselhos. Além disso, como espírito pode fornecer uma
perspectiva oracular. Representa, assim, a experiência, por ter suportado as dores vividas na
situação de cativeiro; sua idade avançada indica que acumulou experiências; e, sobretudo, é
considerado uma “santa alma”, aquela que pratica a caridade. Estas qualidades em conjunto
fazem com que sua representação cativa seja louvada e santificada.
Além de todos os atributos descritos, o dirigente de uma casa espírita chamou a atenção
para o fato de serem entidades que gostam de ouvir os consulentes, além de acolhê-los
carinhosamente. Comentou o fato de que os pais não tinham tempo para conversar com seus
filhos, maridos e mulheres mal trocavam meia dúzia de palavras, e o ambiente de trabalho
deixava a todos impacientes, fazendo com que os problemas cotidianos se avolumassem de tal
forma que a pessoa adoecia e se entristecia. Entretanto, na falta de amizade, camaradagem e
gentileza entre as pessoas, os pretos-velhos teriam todos estes elementos para lhes oferecer.
De modo geral, as pessoas que procuram os pretos-velhos já sabem o que vão escutar.
Geralmente esperam palavras de apoio ou simplesmente que alguém que os ouça. Mesmo quando
são solicitadas realizações mágicas ao consultor, tais entidades indicam soluções que caibam em
suas crença. Para algumas pessoas, os pretos-velhos podem pedir a mentalização do desejo pelo
consulente durante certos dias da semana, com ou sem vela acesa; podem indicar também um
banho de erva. Mas algumas vezes dizem apenas: “Filha, você tem que ser fiel a você mesma,
siga suas intuições e procure dentro de você a resposta que está procurando. Você vai
encontrar”.
A prática do “bem” é lema de boa parte das religiões do campo “espírita”, comunicada,
sobretudo, na necessidade de se exercer a caridade. Como disse anteriormente, a caridade
religiosa pode ser praticada de diferentes modos. Acredita-se que a não cobrança dos trabalhos
148
espirituais seja um reflexo do grau de espiritualização de uma casa, embora algumas pessoas
digam que o serviço espiritual bem remunerado seja garantia de realização dos pedidos. De todo
modo, a palavra “caridade” foi mencionada em todas as casas em que pesquisei. Sem exceção,
procuravam explicar-me que tipo de caridade desenvolviam, evidenciando constantemente um
ditado comum no meio espírita: “Sem caridade não há salvação!”. Por tal motivo, de diferentes
formas procuram conduzir trabalhos voltados para a “prática de caridade”, cuidando de doentes,
preparando sopa para os mais necessitados, distribuindo cestas básicas para os pobres da
comunidade e prestando o auxílio espiritual.
Prega-se a necessidade de praticar a caridade todos os dias, mesmo fora do ambiente
religioso, acreditando-se que caridade deve ser feita pela própria pessoa interessada, pois
contribui para o seu crescimento espiritual, e não confiada como um serviço a terceiros. Como
disse um médium, ser bondoso e praticar o bem não é tarefa que possa ser feita por procuração,
alude, ao contrário, experiência pessoal. O rito dedicado aos pretos-velhos promove o
comportamento necessário para a ocorrência da humildade: consulente e entidades se encontram
na prática da caridade, pois para ambos a experimentação da “caridade” e da “humildade” pode
servir de passaporte para estágios superiores do crescimento espiritual e, de acordo com a
situação, contribuir para a manutenção e melhoria das relações sociais.
Numa conversa sobre a humildade, uma médium kardecista explicou que humildade não
era submissão, mas uma forma de reconhecer os erros e vencer o orgulho. Em situações de
conflito, a humildade favorece, pois ao responder humildemente, com amor, seu interlocutor
acaba cedendo. Nesta e em outras situações similares reside uma estratégia de poder, pois, diante
de uma pessoa “tão boa” e “tão humilde”, quem teria coragem de lhe fazer mal ou simplesmente
lhe negar algo? Aqui a invisibilidade se torna visível, a busca pelo comportamento humilde
fornece elementos para a disputa nos espaços sociais. Assim, o comportamento humilde coloca os
humildes numa situação em que se torna possível serem “exaltados”.
Vale lembrar que o ritual reforça a representação dos pretos-velhos como entidades que
congregam gentileza-humildade-doçura-sabedoria. No transe, os pretos-velhos apresentam-se de
modo tranqüilo, vagaroso e delicado; sua fala é mansa e o tom é ameno; a aproximação com o
consulente é carinhosa e fraternal; quando lhes chamam a atenção, evitam assuntos conflituosos,
simplesmente “puxam-lhes as orelhas”, como se fossem crianças; em sua dança, tanto na
barquinha quanto na umbanda, predomina a leveza dos passos. Mesmo em situação tensa – que
149
por vezes ocorre no ritual –, o semblante pouco se altera, mantendo um riso “monalísico” no
canto da boca; e, quando riem, não apresentam sarcasmo ou explosão de alegria, mas um ri,ri,ri
onomatopaico e enigmático. De modo geral, são representados como figuras gentis e leais,
somadas ao um caráter emotivo, “maternal” ou “paternal”. Os pretos-velhos estabelecem laços de
parentesco com seus consulentes.
Expressam grande afetividade em suas interlocuções, como: “Como você está minha
filha?”. Ou: “O que minha neta está sentindo?”. Esta manifestação de acolhimento reforça o
padrão de bondade e fraternidade, como se aquele espaço de consulta acontecesse na varanda da
casa da avó. Este tipo de relação representa um território familiar – para consulentes e religiosos
– porque, de certo modo, comunica a aceitação de um comportamento socialmente definido como
“apropriado” na lida cotidiana, ou seja, as relações cordiais.
A performance cordial representa a autoridade dos pretos-velhos. A autoridade da
cordialidade, da bondade, do amor, da caridade, da humildade e da sabedoria. Este poder é
estabelecido com base na conveniência em ser “humilde”. Uma humildade que alude não
somente às qualidades de seu caráter, mas aos intercâmbios possíveis de serem alcançados a
partir dele.
Sendo os pretos-velhos representantes dos escravos, majoritariamente dos “escravos
brasileiros”, no rito a humildade como expressão de virtude relembra um “traço cultural”
estigmatizado como virtude do povo brasileiro, a “cordialidade”. Tal virtude é celebrada como
característica do “nosso povo” que, de modo geral, acalenta-se modesta ou humildemente, pois é
uma representação que se costuma reforçar orgulhosamente. Ou seja, acredita-se que o brasileiro
é cordial e humilde, aspectos propagados pelas agências de turismo como estratégia de
marketing.
A cordialidade do povo brasileiro foi tema de análise de Sérgio Buarque de Holanda
(1995) na década de trinta (1a edição do livro é de 1936). Buarque de Holanda referiu-se à
cordialidade como alusão à personalização das relações fora dos círculos familiares,
representando a permanência do ruralismo em oposição às relações modernas da democracia,
baseada em modelos impessoais. Entende-se que imperam no Brasil as relações pessoais, tanto
nos ambientes privados quanto no público, espaço concebido para associação coletiva impessoal.
Além da familiaridade dispensada no tratamento dos consulentes, a humildade dos
pretos-velhos pode ser compreendida como parte dessa “cordialidade” expressa por Buarque de
150
Holanda. Entretanto, esse valor do brasileiro é pensado sob seu aspecto de humildade
subserviente, ou seja, a cordialidade do brasileiro representaria uma idealizada obediência,
atrelada a uma herança cultural de submissão e servilitude em relação ao Estado. Exagero da
esfera privada sobre o público?
Os pretos-velhos são símbolos rituais que, através de seus atributos, sustentam valores,
normas e crenças do grupo religioso e da sociedade que abriga seu culto. O significado de
cordialidade para o grupo é revestido do caráter religioso. Portanto, a servilitude e a humildade
subserviente são variáveis positivas de sua estrutura simbólica, que servem para a compreensão
da vida social e da permanência desses códigos em tal estrutura.
A cordialidade, como propriedade simbólica dos pretos-velhos, é um elemento prático,
ou seja, inspira ações cotidianas. Ser cordial é aquisição básica no treinamento para o mundo do
trabalho, sendo exigência para funcionários que lidam com o público, para os quais vale a
máxima: “O cliente tem sempre razão”.
O comportamento gentil, compreendido como servil ou dócil, mais do que modo-de-ser
e modo-de-agir, é tomado como gene, perpetuado por herança genética; estamos habituados a
ouvir que: “Está no sangue”. As motivações emocionais superam as de ordem experimentadas
na razão. Tal cordialidade pode ser (re)atualizada no jeitinho brasileiro: performances sociais
para lidar com o universo público. No espaço público impera a camaradagem entre amigos ou
conhecidos, instituindo-se redes de solidariedade que promovem mútuos benefícios
(DaMatta,1997). O “homem cordial” é metonímia que sugere uma ordenação harmoniosa da
sociedade brasileira. A representação da humildade e cordialidade dos pretos-velhos, neste
sentido, não significaria uma característica de subalternidade, ao contrário, inspiraria a confiança
na possibilidade de inexistência ou resolução dos conflitos.
Guiados por este contexto, os pretos-velhos são modelos que inspiram a cordialidade
através da representação de sua paciência, sabedoria e humildade. Diante do sofrimento, luta-se
para eliminá-lo. Em busca do não-sofrimento, os pretos-velhos representam a experiência na
resolução das dores do corpo e da alma, baseada na experiência. Como símbolos sagrados,
envolvem seus consulentes, procurando desenvolver-lhes idéias das quais se tornaram legítimos
representantes: a humildade, o amor, a bondade, a paciência e a sabedoria; comunicando e
produzindo a interiorização de sentimentos e ações.
151
3.7 Finalizando a performance “escrava”.
Finalmente, esta unidade procurou demonstrar que, a partir da designação “escravo” ou
“espírito de escravo”, configuram-se inúmeros entendimentos que promoveram afecções,
especialmente através do sentimento de companheirismo e familiaridade que seu perfil “humilde”
traduz. A humildade está relacionada à contribuição de seu histórico de cativeiro, reinterpretada
numa valoração cristã, que permite compreender ter sido aquele momento de vital importância
para o crescimento espiritual dos pretos-velhos. Da mesma forma, sofrimentos vividos no
cotidiano
são
reinterpretados
à
luz
dessa
compreensão,
promovendo
afinidades
e
comportamentos, como a ressignificação da humildade e da paciência.
A humildade representada pelos pretos-velhos contribui para que sua relação com os
devotos seja marcada pela mútua cordialidade, que gera a reciprocidade de cuidados dentro e fora
do circuito religioso. Além disso, o fato de serem representantes da “humildade” e da “paciência”
permite relacionarem-se com os consulentes num patamar que produz outras formas de
identificação. No quesito “humildade”, suas histórias recriam inúmeras estratégias na vida
pessoal. Segundo informaram seus consulentes, os conselhos auxiliam no dia-a-dia, tornando-os
companheiros ou pais mais amorosos, empregados mais pacientes, e devotos mais freqüentes,
contando, sobretudo com a possibilidade de intervenção das entidades na mediação de seus
conflitos e aflições.
O cativeiro que os pretos-velhos representam cabe nos arranjos de normas e valores que
guiam as pessoas e seus grupos de origem. Os pretos-velhos e as narrativas de escravidão – que
compõem o seu culto – são referenciais de comportamentos socialmente aceitos e louvados na
sociedade contemporânea, com significados atualizados pelo rito. Os sentimentos que despertam
promovem inúmeras identificações.
A pesquisa baseada nas informações dos devotos, lideranças religiosas e diferentes
publicações reforça o perfil “escravo”. Este escravo, como pude observar através dos ritos de que
participei, é cultuado como divindade. Sua estrutura ritual reforça a idéia de que os grupos
religiosos promovem uma entidade cuja representação é conhecida e aceita como subalterna. A
devoção aos pretos-velhos indica um paradoxo teórico, que sugere a análise do rito como
inversão (Maggie, 2001; Turner, 1974) e como prática que traduz e reforça a estrutura
(Durkheim, 1996). A inversão apresentada no culto aos escravos decerto reforça as estruturas
152
sociais, pois, como afirma Peter Fry (1982:53): “Quando se converte em símbolos de fronteiras
étnicas em símbolos que afirmam os limites da nacionalidade, converte-se o que era
originalmente perigoso em algo ‘limpo’, ‘seguro’ e ‘doméstico’”.
Vimos até aqui a instituição de sua performance “escrava”, a partir da elaboração do
“cativeiro” e seus significados. No capítulo que se segue, sua performance se personaliza nas
histórias de cunho pessoal, transcritas a partir das entrevistas com entidades, religiosos e
médiuns. A idéia sobre o cativeiro permanece e igualmente predomina neste cenário de narrativas
sobre a escravidão nos livros “mediúnicos” e nas cantigas rituais. A instituição de seu perfil
“escravo” é destacada também na pesquisa com alunos do ensino fundamental e superior das
redes pública e particular de ensino, diversificando e reforçando certos padrões de “escravo” e
“escravidão” representados na figura dos pretos-velhos.
153
CAPÍTULO IV: “ENTIDADES-SUJEITO” E SUAS TRAJETÓRIAS.
A magia é pouco poética, ela não quis fazer a história
de seus demônios. Estes são como soldados de um exército,
formam tropas, ganas, bando de caçadores, cavalgadas; não
possuem uma verdadeira personalidade ... A magia não
considera neles o indivíduo, mas a qualidade, a força, seja
genérica, seja específica, sem contar que as deforma à vontade
e as reduz com freqüência a não serem mais que simples
nomes.
Marcel Mauss
4.1 Pré-texto: sobre nomes e narrativas.
Em decorrência da representação dos pretos-velhos como símbolo do cativeiro, as
histórias de suas vidas são narrativas que servem para notificar tais significações. É a partir delas
que este capítulo pretende ampliar o quadro de referência simbólica dos “escravos” e da
“escravidão”. A partir de entrevistas com médiuns, com as próprias entidades, com religiosos e
com devotos pude constatar que sua representação como “escravo” predominava, embora tenham
surgido outras histórias de vida dos pretos-velhos. Quando as representações não se relacionam
diretamente à escravidão, os relatos foram acrescidos de explicações sobre o motivo de se
apresentarem como pretos-velhos, pois em nenhuma outra vida foram cativos.
Grande parte das histórias dos pretos-velhos, no entanto, é composta de narrativas sobre
o cativeiro. No decorrer das entrevistas com as entidades, a biografia dos pretos-velhos foi
transmitida sob forte tensão emocional, alguns se comoviam recordando suas vidas; outros
apresentavam comentários que ressaltavam os conflitos vividos e suas reações diante deles,
lembrando que importavam os valores aprendidos com tal experiência.
Além das biografias recolhidas através das entrevistas ou nas conversas informais, serão
apresentadas as descrições sobre a associação do preto-velho com o cativeiro ou narrativas do
cativeiro, que circulam no campo religioso espírita através de cantigas rituais e de leituras das
obras “espíritas conhecidas como “obras mediúnicas”. Existe uma produção literária voltada
especificamente para tratar de temas relacionados às histórias sobre vida após a morte, sendo,
alguns desses livros, romances “de época”, nos quais podemos encontrar histórias sobre o
cativeiro e as trajetórias espirituais de escravos.
156
Procurei identificar as possíveis representações sobre pretos-velhos de pessoas que não
são participantes ativos desse campo religioso. Foi elaborado um questionário para ser aplicado a
estudantes de uma escola pública do Rio de Janeiro e de uma universidade particular de Niterói.
Por esta via, foi possível compreender identificações da figura do preto-velho com padrões do
tipo “curandeiro”, “africano” ou “macumbeiro”. Este estudo foi direcionado a jovens estudantes
do ensino fundamental, moradores de comunidades do Complexo da Maré; e a outros, estudantes
universitários, residentes em diferentes municípios, como os de Niterói, São Gonçalo e Maricá.
As narrativas biográficas dos pretos-velhos, as histórias mediúnicas, as cantigas rituais e
as representações dos estudantes, tributam à entidade um caráter de “escravo místico”.
Entretanto, as pessoas que mantêm uma relação mais próxima com o campo religioso devido à
devoção, os representam de modo diferenciado. Para tal grupo, estas entidades são seus
protetores, que desfrutam de suas aflições e alegrias, e são cuidados como se fossem parentes
“mais chegados” e “queridos”. Afinal, como apresentei no capítulo anterior, o ritual aos pretosvelhos possui uma estrutura de culto familiar em que tais entidades são compreendidas como
parentes, como anuncia seu próprio nome: “tio”, “pai”, avó”, “tia”. Além disso, os pretos-velhos
têm uma história de vida que pode servir de exemplo para seus devotos, pois o sofrimento que
viveram no cativeiro os purificou e os ensinou a viver, de modo que podem informar aos seus
devotos estratégias de sobrevivência para as adversidades cotidianas. Assim se delineia o perfil
sagrado dos pretos-velhos, baseado nos atributos de “bondade” e “cuidado”, fato que os torna
figuras populares e queridas.
Curiosamente, ouvi declarações de que pouco valiam os “nomes” e as biografias,
importando somente o que tais entidades faziam no terreiro. Esta conduta ressalta que haveria
uma valoração do nome por parte dos consulentes, creditando a uma ou outra entidade um
reconhecimento por seus atributos mágicos. Entretanto, alguns nomes de pretos-velhos se tornam
referência e, por conseguinte, existem médiuns que comparam o trabalho do “seu” preto-velho a
uma entidade afamada. Constatei isso no caso do preto-velho “Pai Antônio”, mencionado como
se fosse a mesma entidade de Zélio de Moraes”, fato que angariava legitimidade para o médium.
Assim o nome adquire uma importância compartilhada por dirigentes, médiuns, freqüentadores
esporádicos que circulam pelos terreiros e devotos. Seguem as narrativas que os pessoalizam.
157
4.1.1 Pai Antônio – Tonico da Vila.
Entidade de uma liderança que visitava a Tenda Nossa Senhora da Piedade
Era um momento festivo na Tenda Nossa Senhora da Piedade, em que se comemorava o
aniversário de Pai Antônio, junho de 2003. A casa estava repleta de convidados. Realizava a
entrevista como prática de minha observação e, por isso, fui encaminhada para conversar com o
Pai Antônio. Naquele dia havia uns três “Pai Antônio” no terreiro, e aquele era o do convidado
paulista. Comovido por tantas lembranças, me deu como presente uma de suas guias. Este era o
preto-velho da liderança de uma casa de Santos (São Paulo).Logo depois da nossa conversa,
alguns médiuns vieram pedir que eu lhes passasse toda a história, pois ele nunca tinha falado de
sua vida. Assim, contei-lhes a seguinte narrativa:
O escravo Antônio era conhecido por Tonico da Vila, codinome que indica o lugar de
origem. Aos quatorze anos ficou livre, benefício da tal lei que empurrava os pretos para a
liberdade de ir e vir. Embora as terras em que trabalhava fossem perto da vila, vivia mesmo na
fazenda. Nela passou toda sua vida cuidando da roça de café. O lugar era lindo de dar dó, entre
muitos montes verdejantes das Minas Gerais. O nome foi recobrado aos poucos dos marafundos
da memória: ‘Vila dos Padres’. Mesmo com esse nome, a vila guardava os segredos dos escravos,
principalmente de sua religiosidade; uma religiosidade experimentada nas rodas de batuque.
Batiam palmas e outros instrumentos apaixonadamente preparados. Era batuque de dar gosto, uns
batiam no couro ou em ferros, outros, como Tonico, acompanhavam com palmas. Era o catiço:
não existia umbanda não, mas sim catiço, que era uma roda em que se batucava e vinham os
antepassados, os caboclos e depois os pretos. Mas a origem verdadeira de Tonico não era a Vila
dos Padres. Sua família era estrangeira. Tinha feito a viagem a contragosto, retirados de suas
terras na África agora mais distante do que nunca. Eram da Costa, de uma aldeia. Daqueles
tempos o maior e talvez o único registro foi o monte de águas: água de sua terra e água que teve
que percorrer para chegar aqui. Era muita água. Tonico constituiu família, por necessidade e por
gosto mesmo. Amasiou-se com Sebastiana e tiveram dois meninos e uma menina, Tonico,
Maneco e Joaquina. O nome da menina foi homenagem a uma senhora branca tão bondosa, que
sua mãe, Sebastiana, pediu que fizesse a gentileza de homenageá-la com o nome da neta. Do
segundo enlace, com Clarissa, nasceram Maria Joana, Maria Joaquina e Maria Clarissa. Desse
amor, doía no peito lembrar. Como também dos momentos de lazer, cantando modinhas ao redor
158
da fogueira. Era o momento de assar mandioca, tomar um café e beber marafa. Da liberdade
mesmo, não lembrava muita coisa, porque, dizia, foi mentira. Continuou tudo em separado, casa
de fé e escolas para brancos. De mudança mesmo não se recorda, pois sempre havia lugar de
preto e lugar de branco.
.
4.1.2 Pai Antônio
Entidade de um médium da Tenda Nossa Senhora da Piedade
Contou que a viagem foi longa e desesperadora. Era criança e o inesperado trazia um
desconforto na alma e no seu corpo; também porque já sentia na pelo todo o sofrimento que
estaria por vir. Havia a angústia da incerteza do paradeiro final, anunciada no desespero da morte
de seus pais no porão daquele navio. O Congo ficara para trás. A vida de moleque, que gostava
de embrenhar-se na mata, também. A meta imposta era o trabalho. Ainda pequeno lidou com a
plantação de cacau. Amassou quilômetros do fruto. Disse que sobrevivia de umas sementes pretas
cozidas... cujo nome... “Bem... acho que chamam... de feijão”. Também tinha uma raspa de
mandioca que complementava o cozido, a farinha. Para alimentar a alma, aprendeu a cuidar dos
seus deuses, os Orixás. Fazia mironga. Enquanto os senhores batiam a cabeça para seus deuses,
os escravos festejavam os seus próprios. O dele era Ogum. Relembrou que existia uma
dependência muito grande dos brancos com os negros: o senhor não vivia sem os escravos. Era
tudo com os escravos, comida, doença, parto... Corre e chama os pretos. Era assim que
funcionava. Mesmo que muitas doenças dos brancos fossem de feitiços vindos da senzala. Filho
não pôde ter, foi impedimento rigoroso que vinha da casa grande. Não se resignando com a
situação, ganhou o mundo com as pernas. Queria alcançar um lugar em que, diziam, poderia
viver em liberdade. Viveu no quilombo. Respirou por um bom tempo aqueles ares. Liberdade
experimentada até o último suspiro de vida, numa emboscada que o tombou com um tiro à
queima roupa pelas costas. Não pode lembrar, pois traz dor e raiva, sentimentos que precisa
superar. Sentimentos que vêm à tona quando relembra os castigos. Dores impressas na sua
postura curvada de tanto apanhar. Sinal de uma época que se mostra sempre quando pode
aparecer. Agora, porém, no corpo de outrem. Diz ser também quimbandeiro. Afirma que
quimbanda é feitiço e umbanda é caridade.
159
4.1.3 Pai Joaquim
Entidade de um médium da Tenda Nossa Senhora da Piedade
O médium de Pai Joaquim pouco conversava, assim como sua entidade. Não parecia
disposto a contar sua história; e sempre dizia que isso pouco importava e que tinha segredos que
não poderia me dizer. Durante a sessão ficava sozinho, fumando cachimbo e olhando as pessoas.
Depois da insistência, disse que só podia revelar uma coisa.
Quando finalmente concordou em conversar ficou um longo tempo em silêncio e disse:
“Tem coisas, minha filha, que fazem parte do segredo. Nem tudo eu posso falar com você. Mas,
olha minha filha, eu fui branco, não era preto não. Assim como este cavalo* que você está vendo,
até mais branco do que ele. Não morava nessas terras aqui não. Era um lugar muito frio e longe
daqui”.
Viveu em época de crise, em que havia a fome e a miséria do povo. Era um conflito muito
grande entre as nações, que acabaram declarando guerra. Todos os jovens de sua idade tiveram
que lutar para defender o povo, e assim também ele teve que ir para a guerra. Disse que teve que
lutar, que matou gente, mas foi ali que também morreu.
Durante um tempo ele ficou em silêncio. Depois recomeçou: “Fui um soldado que lutou
na Primeira Guerra Mundial. Usava uma capa branca com uma estrela vermelha no peito. Nesta
guerra morri em combate. A estrela você entende, né?”.
Creio que se referiu à antiga União Soviética.
4.1.4 Pai Benedito
Entidade de um médium da Tenda Nossa Senhora da Piedade
Esta é a entidade de um dos médiuns mais antigos da Tenda Nossa Senhora da Piedade.
Sua mãe comandava os cânticos há mais de sessenta anos no local, e, como disse “cresceu por
ali”. A princípio freqüentou a tenda para acompanhar a mãe e depois para paquerar as mulheres, e
só após um tempo é que veio a responsabilidade com a mediunidade. A espera por uma conversa
com sua entidade sempre foi demorada, pois seu preto-velho era bastante procurado. Embora
passasse a maior parte do tempo conversando sobre a espiritualidade e dissesse que não adiantava
contar sua história, após algumas tentativas acabou narrando sua vida.
O tempo dos escravos não foi do jeito que dizem por aí. Os escravos sofreram, é claro,
mas não foi o tanto que comentam. Eles trabalhavam muito, faziam todo o tipo de serviço; podia
160
ter sido menos se os índios também ajudassem, mas eram preguiçosos; aí sobrava para os negros
cuidar da terra, curar doenças físicas e espirituais, mordidas de cobras ou de qualquer outra
enfermidade: tudo era com os pretos. Queria que você pudesse me ver, eu não sou como este
cavalo meu (baixo e já de idade), era um homem alto, forte e muito bonito. Talvez por conta
dessa aparência, tenha sido escolhido para fazer algo de que não me orgulho: era o escravo
reprodutor da fazenda. Não tinha problemas com os senhores, pois nos tratavam bem. Morava
dentro da casa grande, e por isso sei que os horários e a alimentação que tinham eram diferentes
dos daqueles que viviam na senzala. Quem sabe esse não era o motivo de não gostarem muito de
mim. A relação de confiança com meus senhores fez com que me ocupasse com a tarefa de
cuidar pessoalmente de sua comida, tentando impedir que algum feitiço chegasse até eles. Isso
era muito comum, jogavam o feitiço e depois se apresentavam para cuidar deles. Mas jogavam
porque também recebiam castigos. A comida enfeitiçada dos senhores provocava às vezes
desarranjo, noutras podia até matar. Mas isso foi há tanto tempo, que não importa. Nós somos um
grãozinho de areia no universo e nossa história é pequena diante do todo.
4.1.5 Vovó Palmira e Pai Cristiano 1
Entidade de uma ex-medium da Tenda Nossa Senhora da Piedade
Dona Jandira foi médium na Tenda Nossa Senhora da Piedade por mais de sessenta
anos. Quando a tenda funcionava no centro do Rio de Janeiro, por vezes teve que ir andando do
subúrbio, onde ficava sua casa, para a sessão, pois não tinha sequer o dinheiro da passagem. Na
época lavava, engomava e passava roupas “para fora” para sustentar seus dois filhos. Contou-me
que sua única tristeza foi ver a tenda dividida entre as duas irmãs. Preocupava-se com o espírito
de Zélio, que devia não estar satisfeito com a contenda. Sua felicidade era sentir-se útil, ajudando
as pessoas que a procuravam.
Assim a vida dessa médium em parte se mistura à de sua preta-velha, uma mulher que
batalhou para vencer os conflitos cotidianos. A palavra “desistir” tinha sido cortada do
vocabulário dela há muito tempo. Relembrou que andou a pé quilômetros para economizar o
1
O relato foi reelaborado a partir do depoimento da médium Jandira, 90 anos, membro da Tenda Nossa Senhora da
Piedade. Embora no racha da Tenda ela tenha ficado num grupo que não é reconhecido “oficialmente”, que é o grupo
da Círia, todo seu relato foi envolto na tristeza pela cisão e paixão pela Tenda Nossa Senhora da Piedade. Aqui está
unido pelo amor à sua causa e pela memória que não se fragmentou com a ruptura do grupo.
161
dinheiro do bonde para o pão das crianças. Depois de uma longa jornada de lavagem de roupas,
que deveria devolver engomadas, cuidava ainda da louça, do chão, de suas roupas e dos filhos,
em sua humilde casa. Humilde aqui significa pobre mesmo. Depois de todos os afazeres diários,
havia alguns dias em que tinha trabalho extra para fazer, ela passava o pente pelos cabelos,
tomava água para enganar a fome, fazendo antes uma oração sobre ela, e punha-se a andar por
quarenta minutos para chegar à Tenda Nossa Senhora da Piedade, sua casa espiritual.
Logo no princípio, sem querer um compromisso, por já ter muitos, uma de suas
entidades se manifestou. O líder daquela casa, em sua função religiosa, perguntou: “Qual é seu
nome?”. A entidade respondeu: “Vovó Carlota”. O dirigente foi rigoroso e repetiu a pergunta.
Depois conversou, dizendo: “Olha só vovó, acho melhor a senhora voltar lá e procurar seu
nome porque não é este”. A preta-velha riu e disse: “Meu nome é Palmira. Eu também tenho o
direito de testar filho de terra, viu?”.
Êta vovó arretada! Dali para frente formou-se uma parceria que só terminaria com a
morte de Zélio de Moraes. Palmira realizou com ele muitas tarefas, como desenterrar um crânio
num cemitério, para ajudar a curar o “tífano”, que ameaçava um médium de perder sua vida. Em
diversas circunstâncias era chamada para curar feridas, algumas com diagnósticos médicos de
“incuráveis”. Quando tinha trabalho “pesado”, Zélio a invocava.
Se a vidinha dessa intermediária não era moleza, o mesmo ocorrera com sua vovó e seu
preto-velho, Pai Ricardo. Contou que seus dois pretos-velhos foram companheiros numa mesma
fazenda. Não bastava estarem juntos no mesmo lugar, tinham ainda uma relação de amizade.
Ricardo era muito fominha e Palmira sempre dava um jeitinho especial de levar algo para ele
comer. Era uma gentileza misturada com a picardia de darem juntos um certo prejuízo aos seus
senhores. Algumas vezes retirava uma parte de sua própria comida, para aplacar a fome dele.
Ricardo, que era muito rebelde, não se conformava com tal situação, sempre tinha um comentário
sobre as maldades que sofria e lamentava-se sobre a angústia do aprisionamento. Sua amiga
Palmira tentava acalmá-lo.
Depois de alguns dias sem ter notícia do amigo, ela começou a ficar preocupada, sentia
que outros companheiros desviavam o olhar quando a encontravam. Puxando conversas, mas sem
poder largar a casa-grande, descobriu que Ricardo tinha aparecido morto dentro do tacho de
melado. Não demorou muito tempo para que Palmira também morresse. Embora seja chamada de
Vovó Palmira, morreu moça, conforme sua expressão, “pura como a lua”.
162
No plano espiritual, os dois amigos se encontraram e foram trabalhar numa mesma
tenda de umbanda.
4.1.6 Vovó Moema
Entidade de uma liderança do Centro Espiritualista Filho de Jesus
Depois de anos de dedicação à casa de umbanda, resolveu fechá-la. A idade tornou
cansativos demais o comando da casa e a prática do ritual. Por tal motivo, pediu ajuda a um
amigo: que ele desse continuidade ao seu trabalho, doando-lhe todo o material para que pudesse
reerguer a casa, onde agora só comparece como visita.
Em seu depoimento disse: “Eu nunca fui escrava, mas tive um dono. Meu coração teve
um dono. Vivi no século XVIII em Vila Rica, Minas Gerais. Vivi na cidade, mas gostava mesmo
do campo, com suas paisagens verdejantes e animais a circular por cá e acolá”. Disse que
convivera com os escravos, e isso não a deixara satisfeita, mas também não tinha sido esta sua
minha maior preocupação. Na verdade, disse que não teve uma vida de preocupações. No
decorrer de nossa conversa reafirmava constantemente que tinha sido uma moça muito bonita e
que inspirou líricos versos de um moço que se tornou um famoso poeta 2 :
Os teus olhos espalham luz divina,
A quem a luz do Sol em vão se atreve:
Papoula, ou rosa delicada, e fina,
Te cobre as faces, que são cor de neve.
Os teus cabelos são uns fios d'ouro;
Teu lindo corpo bálsamos vapora.
Ah! não, não fez o Céu, gentil Pastora,
Para glória de Amor igual tesouro.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Reafirmava constantemente sua identidade: “Sei que é difícil de acreditar, mas, sim, eu
fui a Marília de Dirceu”. O poeta descreveu o amor e a dor: “A dor de nossa separação”. Contou
que sofreu com a prisão e com o sumiço dele.
2
Trecho do livro “Marília de Dirceu”, de Tomás Antônio Gonzaga, que aqui reproduzo como forma de ilustrar a
identificação mencionada pela preta-velha .
163
Olhando firmemente nos meus olhos disse: “Você pode não acreditar, mas eu fui a
Marília. Maria, que se tornou Marília, comparada a Diana, de rara beleza. Em nada pareço com
este cavalo, muito menos com uma escrava, fui uma jovem menina que agora aqui está aqui
como preta-velha num terreiro de umbanda”.
4.1.7 Vovô Chico das Canárias
Entidade de um médium do Grupo Espírita Servidores de Jesus
Até a idade adulta o médium do vovô Chico das Canárias viveu em Rio Branco, Acre
Quando menino gostava de viver lá, mas sonhava em vir para o Rio de Janeiro. Formado em
português e literatura, por muitos anos lecionou tais disciplinas. Foi no Rio de Janeiro que passou
a freqüentar um centro de mesa kardecista e entendeu algumas sensações que tinha há algum
tempo. Resolveu dedicar-se exclusivamente à vida espiritual, estudando os fenômenos espíritas e
participando dos grupos de estudo. Além da consulta com o preto-velho, trabalha na sala de cura
e de psicografia.
Seu preto-velho se encantou com sua história: teve muitas coisas lindas em sua vida,
mas outras lembranças não tão boas assim. Viveu num tempo de muita crueldade, e isso não
gostava nem de lembrar. “Fui africano”, disse contente. “Eu vivia em liberdade numa ilha
chamada ilhas Canárias. Lá era muito bonito e eu vivia solto, mas a gente sabia que tinha
irmãos sendo aprisionados”.
Não demorou muito dentro do navio, pois juntou suas forças e conseguiu fugir. Não
moveu um dedo sequer para isso, apenas através de sua força mágica. Assim, sem nenhum
transporte, percebeu que podia dormir num lugar e acordar em outro. Voltou pra sua gente,
ajudando a curar quem precisava; e, quando se sentia ameaçado, mudava de lugar.
A entidade disse que enfrentou muitas dificuldades para trabalhar com este médium,
porque, pois antes de ir trabalhar naquele centro, ele freqüentava um centro de mesa kardecista,
em que se dizia que o preto-velho era um espírito sem evolução. Mesmo as curas que fazia com
ervas e preces não eram consideradas. Toda a desconfiança machucava muito o médium, que
disse: “Eu sabia que não era um espírito sem evolução e sofria muito com isso”.
164
O preto-velho contou feliz que: “Hoje estamos bem praticando a caridade,
aconselhando e curando quem nos procura. Vez em quando alguém pergunta: “Como posso
fechar meu coração para as coisas ruins?”. E eu respondo: “Minha filha, você fecha seu coração
abrindo seus olhos”.
Sua máxima foi: “É minha filha, o ser humano é que nem melancia, a gente nunca sabe
como está por dentro”.
4.2 Ser ou não ser: perfis coletivos e identidade pessoal.
A nominação dos espíritos “pretos-velhos” segue o princípio que fundamenta sua
própria existência: é “escravo” e representa a “humildade”. Portanto, os nomes refletem estes
signos, pois se compreende que os escravos foram trazidos da África e aqui batizados com nomes
cristãos, deixando no passado suas referências africanas. O sistema de nominação traz esta
representação: são “Joãos” e “Marias”, nomes comuns, ou por serem considerados nomes típicos
dos “populares” ou pessoas mais pobres da população brasileira 3 . Os nomes dos pretos-velhos
correspondem a uma identificação relacionada a uma certa época, principalmente da primeira
metade do século XX.
Ser espírito e ser cultuado dentro de uma estrutura religiosa é fazer parte de uma
coletividade. Há um destes agrupamentos que é o de conhecimento dos religiosos. Em linhas
gerais, o panteão umbandista se organiza da seguinte forma: Os orixás são as forças da natureza
responsáveis pela criação e mutação espiritual e material; estes orixás compõem sete linhas de
força: Ogum, Xangô, Oxóssi, Yemanjá, Yori, Yorimá e Oxalá; cada linha se subdivide em
legiões que, por sua vez, agrupam falanges de forças em cujas vibrações se manifestam as
entidades 4 . Os pretos-velhos seriam entidades que têm afinidades espirituais com a linha de
Yorimá. As falanges dessa linha são: Falange do povo da Costa (Rei Cambinda); Falange do
povo do Congo (Rei do Congo); Falange do povo de Angola (Pai Joaquim); Falange do povo da
Guiné (Pai Guiné); Falange do povo de Moçambique (Pai Jerônimo); Falange do povo de Luanda
3 3
Embora atualmente se perceba um momento de inversão, em que ‘ricos’ usam nomes ‘simples’ como ‘Maria’,
‘João’ , ‘Ana’ ou ‘Zeca’, os nomes da moda entre os populares acompanham as escolhas dos nomes que os artistas
da tv fazem para seus filhos ou de papéis que interpretam. Há também uma escolha por nomes que representem um
certo status social, como “nome de doutor” ou de “príncipe” ou de “princesa”. Em tais escolhas, está presente a
identidade da realeza européia como os “Wilhans”, “Sofias” e “Dianas”.
4
“As Sete Linhas de Umbanda”, in: Revista Planeta Umbanda. Fevereiro de 1985, pp 20-32.
165
(Pai José); Falange do povo de Bengala (Pai Tomé). Esta linha se ocupa de cuidar das dores,
consolando os aflitos, reanimando os fracos e valorizando o sofrimento humano com o
fundamento da transformação. Cada falange se ocuparia em promover a transformação de modo
diferenciado; o povo de Moçambique, por exemplo, seria: “Legião de espíritos dos negros
escravos que trabalham com as forças que se transformam do cativeiro para a liberdade, através
da paciência em suportar o cerceamento do direito de liberdade do ser humano”. Enquanto o
povo de Bengala seria: “Legião dos negros escravos que trabalham com a missão de
compreender o que representa para o ser humano a incerteza, a falta de resignação e o
sofrimento, pois eles passaram por tudo isso aqui na Terra”.
Neste sistema de identificações a entidade é o último elemento de uma complexa cadeia
de nominações. Ainda assim, costuma-se dizer que as entidades nunca trabalham sozinhas e
podem representar todo um agrupamento como, por exemplo, se forem os guias de uma falange
ou “falangeiro”, como é denominado. Deste modo, “Pai Joaquim” pode ser o representante de
uma falange, com inúmeras entidades. A citada falange do povo de Angola, liderada por Pai
Joaquim, pode agrupar inúmeros “Pai Joaquim” ou “Pai Benedito”, sendo o nome referencial ou
não deste pertencimento.
Acredita-se que, pelo fato de haver esta integração entre entidade-falange-linha-orixá,
sua identidade pessoal não teria tanta importância. Entretanto, a maior parte dos grupos religiosos
segue a doutrina kardecista para pensar o sistema de pertencimento às classes espirituais.
Acredita-se que os espíritos passem por etapas e “evoluam”, mudando seu pertencimento. Em
parte o trabalho dos religiosos seria não só assistir o sofrimento de quem procura ajuda nos
terreiros, mas também dos espíritos que estão ali para auxiliá-los, pois, conforme alguns
religiosos informaram, estes estão em busca de “reparação de seus erros” e “mudanças em seu
espírito”.
Nas casas e templos espíritas, e também na devoção privada, as entidades aparecem
pessoalizadas e poucas pessoas comentam sobre sua ascendência espiritual, se é um preto-velho
da alinha de Xangô ou de Oxalá que está presente. Neste espaço, o anonimato das linhas é
substituído pela biografia do espírito. Conforme narrei no início deste capítulo, esta biografia
também não é muito conhecida, mas predominam versões sobre as histórias de um ou outro
preto-velho, que são divulgadas como se fossem de todos. Portanto, em certos casos esta
166
biografia não deve ser traduzida como unidade circunscrita a um espírito em especial, mas a uma
categoria, como por exemplo, as histórias de “Pai Joaquim”.
Através do nome relaciona-se a biografia do espírito com sua aparência e sua atuação
nos templos ou centros espíritas, como, por exemplo, seu gosto por bebidas e vestimentas. Como
dizem os devotos: “a minha Padilha é assim...”, “meu preto-velho não foi escravo, mas um
médico e por isso não fuma cachimbo.”. É comum a idéia de que o nome não se refere à
biografia, mas está relacionado à procedência espiritual, ou seja, haveria grupos afins
denominados “Vovó Catarina”; dessa forma, todas as pretas-velhas “vovós Catarinas”
corresponderiam a uma energia similar e não necessariamente a alguém que um dia se chamou
“Catarina”.
Notei que, tanto para assistência fiel quanto para os demais usuários religiosos – aquelas
pessoas que circulam descompromissadamente pelas casas -, importavam muito mais os poderes
mágicos atribuídos às entidades do que propriamente a sua biografia. No entanto, ainda que fosse
dito que as narrativas não importavam, inúmeras histórias de vidas de pretos-velhos foram
descritas por médiuns e consulentes. Alguns médiuns narraram as histórias fazendo comparações
como: “como naquela época da escravidão”, detalhando a forma física, contando minúcias sobre
as vestes ou marcas corporais que sua entidade apresentava, explicando, que através da vidência
que possuíam, podiam descrever se eram realmente pretos, morenos, brancos, magros, gordos,
baixos ou altos.
Diante de inúmeros relatos que afirmaram que nem todo preto-velho foi escravo, a
possibilidade de compartilhar histórias sobre as entidades, sobretudo as histórias de cativeiro, me
vi remetida à questão primeira deste trabalho: Se nem sempre os pretos-velhos foram escravos,
por que sempre se diz que representam escravos ou foram escravos?
Ouve-se constantemente essas entidades dizerem:: “fui escravo”, “apanhei”, “sofri”,
“comi mandioca”, “curava”. Há um padrão em que se pode reconhecer um processo de
personificação, como nas narrativas apresentadas no início deste capítulo, nas quais podemos
encontrar dois “Pai Antônio” com histórias diferentes, mas que se apresentam como persona
“preto-velho”.
Ao contrário do candomblé, em que no decorrer de 21 anos o filho-de-santo, após
inúmeras obrigações rituais, se completa como pessoa, fortalecendo em si as qualidades de seu
santo (Goldman, 1984), na umbanda e religiões afins seus santos passam a fazer parte do
167
cotidiano imediato, podendo seus atributos, de acordo com a personalidade do médium, pode
serem rapidamente absorvidos, não há propriamente ritos de iniciação do médium 5 . Assim, a
paciência do preto-velho já é parte do médium, do mesmo modo que a “força” de seu caboclo e a
vaidade de sua pomba-gira.
Na coletivização os pretos-velhos são “escravos”; na perssoalização se tornam “Vovó
Catarina” ou “Pai Benedito”; mas, na vida íntima dos devotos, eles são “meu pai” e “minha
vovó”. Suas potencialidades também são ressignificadas no fórum privado. Um preto-velho pode
ser considerado “curador”, como manifestação de sua suposta herança “africana”, mas, no recato
do lar, ele dissolve brigas, arranja empregos, toma conta de crianças ou resolve problemas de
impotência sexual.
Se as biografias não importam muito aos médiuns e consulentes, as histórias que se
constroem no cotidiano religioso, baseadas nas curas e benefícios alcançados por intermédio de
entidades, percorrem longas distâncias, fazendo com que freqüentadores de cidades longínquas e
doutrinas religiosas rígidas – que não aceitam o “espiritismo” – procurem consultas com algumas
entidades específicas. Com poucas exceções, cada terreiro abriga uma entidade que se destaca.
Em certos casos, a tal “fama” não está necessariamente ligada à exclusividade da prática do bem,
mas refere-se àquela entidade que anda pelos “dois lados”, à “esquerda e à direita”, ou seja, pode
trazer benefícios e malefícios, ou que, por conhecerem a magia, podem desfazer trabalhos de
feitiçaria. Este tipo de entidade teria a permissão de circular em lugares obscuros do plano
espiritual, espécie de “guetos”. Tais guetos abrigariam aqueles espíritos que não têm
“consciência” da possibilidade de evolução espiritual. Como conseqüência, algumas entidades
circulariam livremente entre os grupos, com o propósito de levar tal consciência aos que a
ignoram. Alguns religiosos associam este local ao “reino dos exus”, espaço em que alguns pretosvelhos poderiam circular, principalmente os que foram denominados por “pretos-velhos de
troqueira”, capazes de mediar tal circularidade, conforme narrei no capítulo dois.
Joelma 6 confirmou tal poderio de um preto-velho; e contou que jurou nunca mais
abandoná-lo, pois suas “forças” foram comprovadas; disse também que procurou sua ajuda para
5
As reuniões destinadas ao “desenvolvimento mediúnico” substituem os ritos iniciáticos. Elas podem ocorrer dentro
da sessão pública, com o médium na “corrente” sem receber devotos para consultas.
6
Joelma (o verdadeiro nome foi substituído) freqüentava um dos locais no qual eu fazia a pesquisa. Era médium e
pesquisadora da espiritualidade. “Correu” (termo usado para dizer que freqüentou) vários locais e sempre esteve
interessada em assuntos ligados à espiritualidade. Jornalista, escreveu nessa área dois livros que aguardam
publicação. Neste terreiro ela estava disposta a ficar e Pai Benedito era uma espécie de “padrinho”.
168
resolver um problema que julgava sem solução, pois recorrera a inúmeros artifícios sem um bom
resultado final. Contou a seguinte história que, segundo ela, confirma o poder dos pretos-velhos:
Ela era dona de uma pequena loja no centro da cidade do Rio de Janeiro, que
administrava com a filha e a ajuda de alguns funcionários; tinha, porém, grande desconfiança de
que algum de seus empregados a estivesse lesando, embora não pudesse confirmar sua suspeita.
Dera conta do sumiço de peças e algum dinheiro, mas isso não era suficiente para sua certeza.
Diante dessa situação, recorreu ao preto-velho. A entidade lhe pediu um tempo e, para que ele
pudesse ajudá-la, ensinou-lhe uma forma de invocação; durante este período, ela deveria chamar
pelo seu nome na loja, aplicando toda a força mental de que dispusesse. Pediu-lhe que ficasse
atenta, pois em pouco tempo a própria pessoa se denunciaria. Assim foi feito: Joelma seguiu
todas as etapas. Alguns dias depois, uma de suas funcionárias faltou ao serviço; por telefone,
desculpou-se, dizendo que estava com dor de barriga. Ela ficou desconfiada, mas não quis de
imediato responsabilizá-la pelo sumiço de mercadorias. Depois de um tempo, a funcionário
retornou; mas bastou que pusesse os pés na loja, para que o desarranjo voltasse. Joelma pensou:
“Aquilo ali só podia ser um sinal”, mas, mesmo assim, não tomou providências. Finalmente, a tal
enferma-diarréica pediu demissão. A proprietária retornou ao preto-velho para confirmar o
resultado de sua previsão e agradecer seus préstimos. Depois da situação resolvida, a todos os
passos que daria procurava consultar-se antes com o “Pai Benedito”, além de propagar sua
“força” para muitos de seus amigos.
Mesmo imperando o discurso do “não importa quem sou”, em dias de consulta naquela
casa faltam senhas 7 para serem distribuídas aos consulentes do tal preto-velho. Percebi que em
alguns locais de culto procura-se evitar que determinada entidade seja preterida por outras. Uma
das alternativas é a distribuição igualitária das senhas. Segundo me informaram, esta é uma
conduta que visa atender a todas as entidades da casa, para que possam evoluir sistematicamente,
promovendo a todos o acesso à caridade. É uma tentativa também de se evitar que haja ampliação
do ego do médium. De fato, nos intervalos a gabolice dos médiuns apresenta a vaidade por ter
este ou aquele guia, fato que detona muitos conflitos dentro dos grupos religiosos. Para os
consulentes, resta uma medida a ser tomada: aqueles que já se acostumaram a tratar com uma
certa entidadedevem chegar mais cedo ou pedir para ficar depois do tempo destinado às
7
Há terreiros que distribuem senhas para os pretos-velhos antes de iniciar a sessão.
169
consultas, argumentando normalmente que estão em processo de tratamento com aquela entidade,
o que contribui, em alguns casos, para a extensão da fila.
Os nomes, as histórias de benfeitorias e a distribuição de senhas garantem o espaço de
dupla pessoalização: a das entidades e a de seus médiuns. Em alguns casos, o conhecimento que
se tem das histórias de suas entidades é utilizado para legitimar a atitude perante o grupo, por
vezes apostando num destacado papel de liderança entre seus pares. Mesmo que não seja
considerado relevante o histórico e que isso pouco importe, “os espíritos/ entidades” deixam seu
estado disforme de “massa celestial” - sem forma ou identidade -, simplesmente anônimos, para
se apresentarem em conformidade com os anseios dos grupos que os invocam.
A partir da invocação coletiva, tornam-se pretos-velhos: espíritos de escravos, para a
seguir tomarem unidades biográficas. Esta identificação pode ser feita através de alguns
instrumentos rituais, pertences que são considerados propriedades das entidades. Alguns pretosvelhos têm compartimentos especiais para guardar seus pertences; de modo geral são caixas,
cestas ou sacolas, contendo o cachimbo, o charuto, o fumo, o fósforo, a vela, o terço, a pemba,
etc. Alguns pretos-velhos possuem também sua própria toalhinha de mão, bordada com o seu
nome.
Na barquinha, cada preto-velho tem uma caixa de palha com todos os pertences
necessários para seu trabalho: velas, pembas coloridas, cachimbo, fumo, terço e outros apetrechos
rituais. Esta caixa fica sob o cuidado dos cambonos, que a guardam e zelam para que não falte
nenhum material. Além desses instrumentos, cada preto-velho velho da barquinha tem a sua
“espada”, que é um tecido pintado com o desenho do mistério 8 ao qual pertence. A espada é
utilizada durante a consulta para realizar o trabalho de limpeza espiritual, ao ser passada pelo
corpo do consulente ou mantida sobre sua cabeça.
Para além dos bordados, o nome é usado como fórmula mágica de chamamento em
feitiços, como demonstrou o caso de Joelma. A prática de invocação pelo nome é um
ensinamento comum dessas entidades: “Chame meu nome, minha filha”; “Diga três vezes o meu
nome”; “Chame por mim no momento de aflição...”. É comum o uso de nomes escritos em
papéis junto aos pedidos. Os nomes podem transformar-se em verdadeiros talismãs. Acredita-se
que ali, junto à sua escritura, há uma “vibração energética”, que, por contigüidade, pode atingir a
8
Na barquinha, a origem do espírito está no seu mistério, ou seja, se é originário ou comandado pelas “forças” do
“céu”, da “terra”, do “ar” ou do “mar”. O mistério revela os arranjos espirituais ou quais são as relações que indicam
sua identidade.
170
pessoa através de seu enunciador. Além disso, o nome serve para promoção de magias, que são
adicionadas a outras substâncias como o mel e o fogo.
Existem também outras formas de nomeação invocatória. Uma delas é a “guia”, espécie
de colar de contas coloridas, parte da identificação da entidade. A “guia” informa o
pertencimento espiritual, como, por exemplo, qual seria sua “energia” de origem (orixás).
Conhecendo-se a referência de cores e sua correspondência em relação aos orixás, desvendam-se
as filiações das entidades, como, por exemplo: contas de Oxossi com Xangô para um caboclo;
contas de Omulu com Oxalá para preto-velho. As cores adquirem outro sentido quando se
configura sua relação com os atributos das entidades, como o poder de curar ou de desfazer
magias.
A encenação ritual demonstra o particularismo da construção da entidade em pessoa. É
através das relações pessoalizadas nos ritos de consulta que tanto entidade quanto consulentes se
aproximam e se reconhecem como “pessoas”. Neste fórum, cada um pode apresentar sua
intimidade e, assim, ser de “tronqueira” pode ser atributo essencial na diferenciação de um pretovelho dentre os que cumprem a missão de praticar a “caridade”; da mesma forma, expor suas
mazelas mais íntimas sem temor de um preconceito pode fazer com que o consulente se
identifique com a entidade que está diante de si, e possa, ao seu modo, divinizá-la.
4.3 Identificação pelo ponto riscado e a fama do nome
Em alguns terreiros de umbanda, na fase inicial do rito, as entidades costumam riscar seu
nome no chão. Este signo, que é seu nome, é uma inscrição simbólica, o desenho anuncia o
pertencimento coletivo da entidade e seus atributos mágicos. Ao final da sessão, o chão fica
repleto de desenhos, formando uma espécie de arte naїf. Além dos desenhos, são colocados copos
d’água, flores, velas, cigarros e charutos, e objetos como punhais e taças, que se alteram de
acordo com a entidade. Há cerimônias em que estes riscos são cobertos com pólvora e acesos,
precipitando uma leve explosão e cobrindo a sala com uma grossa camada de fumaça. Sobre estes
riscos podem ser depositados os nomes dos consulentes para lhes garantir o benefício desejado. A
esta inscrição dá-se o nome de “ponto riscado”.
O ponto riscado identifica o pertencimento espiritual da entidade ou, como se diz na
barquinha, o “seu mistério”, sua procedência espiritual do Astral; ou seja, demonstra se a
entidade está vinculada aos espíritos da terra, do céu, do mar ou do ar. Serve ainda para
171
demonstrar qual o local na terra em que atua, se no cemitério, na linha de trem, nas ruas, nas
praias, na cachoeira ou nas matas. Os rituais ali realizados tornam estes locais “sagrados” e, por
se tratar, na maioria dos casos, de um espaço público, os objetos e o próprio rito muitas vezes se
tornam reconhecidos por não-religiosos.
Os desenhos se assemelham a ideogramas e geralmente são compostos dos seguintes
elementos: estrelas de cinco pontas, tridentes, triângulos, luas, círculos, ondas, arcos, flechas,
setas e diferentes riscos que complementam o desenho.
Na barquinha os pontos riscados são registrados num local apropriado para tal função, no
meio do terreiro, onde geralmente são feitas as consultas com os pretos-velhos. Este espaço feito
de cimento tem a forma oval. Em seu centro é mantida uma pedra com uma vela acesa durante
todo o ritual e, antes das entidades ocuparem o lugar de consulta, imprimem ali o seu nome de
trabalho, espécie de crachá de identificação. Os pontos são feitos com diferentes cores de pemba,
como o branco para Yemanjá e Oxalá, e o rosa para as crianças.
Costuma-se dizer que o ponto riscado representa a impressão digital da entidade, pois não
pode haver repetição. Dentro da umbanda é de fundamental importância que a entidade apresente
seu ponto riscado, indicando sua origem e função; por isso, o desenvolvimento espiritual de um
médium é marcado por esta referência. Do mesmo modo que se valoriza na liturgia do candomblé
o “dia do nome” - momento em que o neófito em transe com seu orixá diz o nome espiritual –
também o ponto riscado é referência em sua introdução no universo espiritual, além de ser
indicativo das potencialidades daquela entidade que se apresenta e da capacidade do médium em
trabalhar com ela. Além disso, é através desta inscrição que se pode manipular a “força” das
entidades para a promoção da magia.
A compreensão do significado do ponto riscado é restrito ao grupo religioso, pois a
informação nele contida é exclusivamente compartilhada pelos membros da casa, de modo que os
consulentes inexperientes não reconhecem tal representação. Os praticantes aprendem a
identificar qual seria a entidade que está por vir numa sessão quando o médium traça os riscos no
chão, pois, ao observar um ponto riscado, compreende-se o tipo de entidade que se apresentará se exu ou preto-velho, por exemplo –, podendo, de acordo com a situação ritual, ser invocada
outra entidade para solucionar um problema inesperado.
De acordo com os elementos apresentados, é feita a interpretação sobre a entidade. Um
preto-velho se abaixa no chão, traça um pequeno retângulo, um traço embaixo e uma cruz acima.
172
Geralmente, imagens deste tipo – indicando que trabalha no cemitério – demonstram que tal
entidade tem a qualidade de desfazer magia.
Como disse, os pontos riscados nem sempre são reconhecidos pelos freqüentadores,
estando relacionados a um saber iniciático; entretanto, é possível conhecer alguns aspectos
através de publicações religiosas 9 e na web, como, por exemplo, nas comunidades desta
temática 10 , ou através de sites específicos 11 . Numa comunidade sobre pretos-velhos (orkut), os
internautas conversaram a respeito dos pontos-riscados:
Olha, se os triângulos que ela riscou é um em cima do outro virado um para
baixo e um para cima, pode significar a linha do oriente, mas pode significar
uma mironga dela. As cruzes correspondem possivelmente a linha de trabalho
"das almas" ou então "os caminhos da vida" se forem 3 cruzes. Quanto às três
ondas, representa Yemanjá. É com esse orixá que ela trabalha. Funciona assim:
1 onda = Nanã Buruquê
2 ondas = Oxum
3 ondas = Yemanjá
Espero tê-la ajudado.
Beijos!!!!
Em resposta a esta explicação, entrou no debate outro umbandista:
cuidado
não se divulga o ponto riscado de uma entidade assim não viu..pois o ponto
riscado mostra as fraquezas de uma entidade...espero ter ajudado tbm....
oxala lhe guie!!!!!!
Os pontos seriam uma espécie de nome secreto, que deve ser usado exclusivamente
cumprindo a função religiosa. Além disso, a legitimidade da entidade é testada quando se pede ao
neófito que apresente seu ponto riscado; o fato de não conseguir fazer tal registro pode ser
9
3333 pontos cantados e riscados. Coletânea. Pallas, volume 1, 2002.
Ver: (http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=593575).
10
11
Dentre tantos, ver: http://br.geocities.com/rsnsolo/pontosriscadostxt.htm e
http://www.nativa.etc.br/umb_magia_S_018.html
173
compreendido como um despreparo do médium ou mesmo como embuste. Por tal motivo, o
rapaz na internet chamava a atenção: “não se divulga o ponto riscado”. Além disso, comentou
que “mostrava as fraquezas” das entidades. No meio religioso, como o nome pode ser
manipulado para enfraquecer ou fortalecer o “inimigo”, as magias são feitas basicamente com
nomes, invocando-os ou os escrevendo, posteriormente depositando-os em locais considerados
próprios para a função mágica, como sob velas e flores, enterrados no cemitério, dentro de
animais, etc.
Já vimos que é através do nome que se procura validar as manifestações religiosas.
Relembro a história da vovó Palmira que, diante da averiguação do dirigente do culto, criou um
outro nome para si, dizendo a seguir: “Se você me testa eu também não posso fazê-lo?” 12 .
Um outro caso contado por um médium da Tenda Nossa Senhora da Piedade narra a
situação de um rapaz em desenvolvimento. A entidade riscou seu ponto, mas o dirigente ficou
desconfiado, afinal, o ponto riscado era muito parecido com um outro da casa, um espírito
conhecido e reconhecido pelos seus poderes mágicos. Intrigado, conversou com o médium e o
orientou para que não ficasse nervoso, pois mais cedo ou mais tarde sua entidade lhe daria o
verdadeiro ponto.
Os dois relatos revelam a importância do nome ou da pessoalização das entidades em
oposição ao anonimato promovido pelos agrupamentos como os “pretos-velhos”. O segundo caso
apresentado é um indicativo de que existem nomes de entidades que possuem prestígio e, por
isso, são desejados, pois podem garantir legitimidade para o seu médium. Por isso, ao fim da
sessão, é comum escutarmos alguns comentários entre os médiuns: “Nossa! Como a fila para seu
preto estava grande!”. Em resposta geralmente se ouve: “Isso me deixou esgotado”. Ou: “Ele
exige muito de mim”. Há casos em que a busca pelo nome de sucesso serve à valorização do
templo.
Existem médiuns que incorporam a mesma entidade que um dia tenha sido da antiga
liderança da casa. Geralmente, este tipo de situação leva a alguns conflitos internos, evidenciando
disputas por status na esfera de comando e, evidentemente, pela busca da legitimação pessoal.
Observei conflitos que partiram dessa situação, ou de outra semelhante, como o caso de uma
médium que dizia ter uma entidade “chefe” e que aguardava o momento certo para liderar o
grupo.
12
Caso da vovó Palmira descrito nas Histórias de Pretos; a liderança foi Zélio de Morais.
174
Esta situação dos nomes e cargos são responsáveis por parte das cisões que são comuns às
casas de umbanda. Observei rituais em que, em certas cerimônias, o número de freqüentadores
era menor do que o de médiuns e, considerando-se que a maioria se sentia “líder”, os conflitos
eram permanentes.
Uma das lideranças que entrevistei disse que seu preto-velho era Pai Antônio. Seu rosto
emoldurava uma expressão que demorei a compreender, pois dizia: “Meu preto-velho é Pai
Antônio”; erguia as sobrancelhas, como quem diz, “Entendeu?” ou “Sacou?”. Ele acreditava que
eu iria automaticamente compreender; entretanto, ao notar meu total desconhecimento daquele
código, meu interlocutor exclamou: “O mesmo preto-velho de Zélio de Morais!!”. Desta forma,
ficava esclarecido que o nome e a procedência valiam naquele circuito religioso. Não estava
exclusivamente em jogo qual sua procedência – se era africana ou baiana -, mas havia uma série
de pertencimentos demonstrando que a pessoalização das entidades está relacionada às estruturas
interna e externa ao rito, pois as entidades podem servir para criar estratégias de sobrevivência
em diferentes situações. O nome da entidade pode garantir o respeito entre os membros de um
grupo religioso por seu prestígio ou - como demonstrei no segundo capítulo -, através da história
da paraibana e de sua pomba-gira, o respeito dos colegas, através do temor.
4.4 Cantando pra subir 13 : paisagens sonoras
4.4.1 Pontos cantados
Em todos os ritos que acompanhei, a música estava presente. Em alguns apenas
tambores, por vezes ritmados por palmas, em outros, somente com o entoar de vozes vibrando no
ar. As cantigas iniciam ou “abrem” as sessões - como se costuma dizer -, sustentam todo o rito e
também o finalizam. Os religiosos explicaram que sua utilização não é adereço festivo ou apenas
para alegrar o ambiente; ao contrário, cumpre a função de estabelecer elos entre os dois planos, o
material e o espiritual. Para os leigos, as músicas servem para manter um certo vínculo com o
rito, pois a assistência passa a maior parte do tempo sentada, por vezes cantando, até ser atendida
na consulta. Através da cantiga, a assistência é informada dos atributos de cada entidade e fica
conhecendo parte de sua história.
13
O termo “cantar pra subir” para além do sentido religioso de convocar as entidades a se despedirem de seus filhosde-terra, é usado em sentido laico como despedida irônica e bem humorada: “Está tarde, vou cantar pra subir” ou de
deboche imperativo, quase ameaça: “É melhor você cantar pra subir”.
175
Por meio dos pontos cantados são expressas as histórias que os vinculam à idéia de
escravidão. Inúmeras músicas fazem referência ao “tempo do cativeiro”. Estas citações, contudo,
não são entendidas apenas como representação da escravidão. Religiosos costumam dizer que,
embora sejam feitas alusões ao período da escravidão, no rito elas podem adquirir outros
sentidos, como veremos adiante.
No rito, som e ritmo caminham juntos. A música produz uma movimentação corporal. O
som produz movimento e é considerado o próprio movimento, pois propaga-se no ambiente e
produz sensações, consideradas como “energia” dos seres sobrenaturais . Junto à música - que
invade o ambiente ritual - estão corpos ritmados, vestimentas cuidadosamente preparadas, gestos
aprendidos e meticulosamente representados.
Há cantigas de louvor, chamamento, despedida, apaziguamento e afastamento. Sons que
procuram atrair estados de alteração de consciência, que tranqüilizam ou estimulam, que atraem
“prosperidade” e produzem “curas físicas e espirituais”, hinos sagrados, denominados “ponto
cantado” entre os umbandistas e os praticantes das religiões circunvizinhas. Este aspecto de
circulação dos pontos nos indica a “umbandização” de certas práticas rituais, como, por exemplo,
o culto aos pretos-velhos. Os pontos de umbanda são entoados no ritual da barquinha 14 , quando
as entidades trabalham no terreiro ao som de atabaques. É comum cantarem certos pontos no
ritual de consulta. Às vezes um preto-velho canta antes de receber o consulente, como forma de
preparar o ambiente; é comum cantar também no decorrer da consulta, para que seja feita uma
limpeza espiritual ou como forma de invocar uma proteção.
A respeito da utilização dos pontos de umbanda nos diferentes ritos que observei, a
Associação de Medicina e Espiritismo do Rio de Janeiro foi o único local em que não os escutei.
O rito foi iniciado com um hino de louvor a São Francisco, canção bastante comum noutras casas
“espíritas”. Ouvi também esta prece em forma de canção na arca - grupo de doutrina e ritos
“ecléticos” -, que será analisada no próximo capítulo. Neste local cantam-se mantras, hinários
(dos mestres Irineu, Gabriel - da “União dos Vegetais” 15 - e de mestres da barquinha), pontos de
14
No rito de concentração, dentro da igreja, canta-se exclusivamente o hinário, músicas recebidas mediunicamente –
ou seja, em estado alterado da consciência que servem para invocar certas entidades e doutrinar os seres espirituais e
os “irmãos da terra”. As canções são responsoriais, ou seja, são entoadas pela liderança religiosa e trazem um refrão
que é repetido em coro pelos irmãos fardados* e pela assistência. As cantigas são escolhidas no momento anterior ao
rito, quando a liderança se concentra e escolhe os hinos que serão cantados no decorrer do ritual.
15
A União dos Vegetais ou UDV como é conhecida, é um grupo religioso de linha kardecista e cristã, que utiliza o
Santo Daime como sacramento religioso.
176
umbanda e cantigas católicas. A cantiga de São Francisco foi entoada em rituais da barquinha, e
sua letra estampa bandeirinhas em uma das igrejas em Rio Branco (Acre) 16 .
No salão de espera de atendimento do Grupo Espírita Servidores de Jesus, o som
ambiente é a música clássica e algumas instrumentais, misturadas ao som da natureza, como a
queda d’água da cachoeira, ondas do mar, vento e pássaros. Na sessão de desenvolvimento, e nos
momentos posteriores às consultas com os pretos-velhos, exclusivamente entre os médiuns,
cantaram-se pontos de umbanda. Em algumas situações no decorrer das consultas, observei que
os pontos cantados da umbanda foram “puxados” 17 pelas entidades. Também nesta casa foi
cantada a prece de “São Francisco de Assis”, às vezes no início, junto à parte pública da sessão e,
noutras, ao final, somente entre os médiuns.
A partir deste panorama, percebe-se uma circulação comum entre algumas cantigas.
Religiosos explicaram que os pontos, embora presentes em ritos distintos, acabam por cumprir a
mesma finalidade: aproximar e manter a vibração de certas entidades, promovendo curas e
estados alterados da consciência, não só nos médiuns – preparados para esta função: alguns
religiosos disseram que as cantigas servem também para beneficiar a assistência, preparando os
presentes para escutar o que seria dito pela entidade, promovendo um estado mental que
favorecesse a compreensão.
O enfoque da cantiga dos pretos-velhos seria próprio para desenvolver certas disposições
do espírito humano, como o amor, a paz, a fé e a perseverança, indicando o compromisso que a
entidade teria na promoção das transformações. As ilustrações de mudanças na natureza, em rios,
mares e florestas, por exemplo, podem servir como referência à possibilidade de intervenção na
natureza humana. Dessa forma, acredita-se que, quando o ponto descreve a ação de uma entidade
sobre a pedra, a folha ou as águas, pode-se indicar sua capacidade de interferência em múltiplos
planos, o que leva à compreensão de que tudo é possível no plano espiritual.
É através dos pontos cantados que se apresenta a biografia das entidades. No caso dos
pretos-velhos, são freqüentes as ilustrações do cativeiro. Alguns médiuns comentaram que
gostavam de determinada cantiga que lembrava “o quanto o preto sofreu” ou “o quanto meu
preto é forte”. Falaram também sobre a vida do trabalho e os castigos, evidenciando o aspecto do
16
Como afirmei no segundo capítulo, existem três linhas doutrinárias da barquinha. A igreja em que encontrei estas
bandeirinhas foi a do Mestre Antônio Geraldo.
17
“Puxado” é um termo normalmente usado pelos religiosos em substituição ao “cantar”
177
sofrimento. Representando o cativeiro, as cantigas fornecem detalhes sobre a vida dos escravos,
abordando, sobretudo, aspectos mágicos de sua crença.
Noutras cantigas de preto-velho, destaca-se a vertente religiosa atribuída ao seu
catolicismo. Geralmente, são odes de louvor aos santos e, principalmente, a Nossa Senhora.
Freqüentemente, os pontos cantados clamam por “Nossa Senhora do Rosário”. Os santos mais
invocados são Santo Antônio e São Benedito, considerados santos que detêm poderes mágicos,
próprios ao combate aos malefícios provocados por feitiço. Quanto aos orixás, embora existam
cantigas que os associem aos pretos-velhos - pois, como disse anteriormente, eles descendem das
linhas dos orixás -, as cantigas se referem mais freqüentemente à Oxalá, divindade suprema da
umbanda, associada a Deus ou a Jesus Cristo.
Certas cantigas apresentam as estratégias de manipulação das forças espirituais que os
escravos procuravam esconder de seus senhores. Portanto, alguns pontos cantados demonstram a
ambigüidade dessas entidades, que escondiam de seus senhores suas capacidades mágicas e, ao
mesmo tempo, demonstravam suas qualidades, como o caráter afetivo e humilde. Há pontos que
indicam a inversão ocorrida no rito, em que os pretos tornam-se divindades:
Ponto 1
Seu doutorzinho
Quer que chame de
doutor
É desaforo
Cativeiro já acabou!
Branco sabe ler!
Branco sabe escrever!
Mas não sabe dizer dia
em que vai morrer.
O preto é quem vai
Ponto 2
Ele é preto-velho
É sim senhor
Na Lei de Umbanda
Ele é doutor!
Ponto 3
Lá no cruzeiro
Tem fita preta e amarela
Quem não acredita nas
almas
Acho bom não mexer
nela.
dizer.
Na primeira cantiga , embora o preto-velho pareça aborrecido com a condição de ter que
chamar o branco de “doutor”, afinal, o “cativeiro já acabou”, ele possui um saber que é
exclusivamente de seu domínio: o fato de conhecer aspectos da vida futura o distingue – com
outra espécie de sabedoria - do “doutor”. No segundo ponto cantado, ele se declara doutor na lei
de umbanda, assumindo uma vez mais um saber que lhe é peculiar. No terceiro ponto, o cruzeiro
representa sua morada; as fitas coloridas, amarela e preta, indicam sua associação com a magia,
178
que pode ser usada como ameaça estratégica, pois, para quem não acredita nas almas, “Acho bom
não mexer nela”.
Conforme mencionei anteriormente, a maior parte dos freqüentadores leigos normalmente
registra o aspecto informativo do canto, mais precisamente suas características “históricas”. Neste
sentido, ao perguntar sobre as cantigas dos pretos-velhos de que se recordavam, grande parte dos
visitantes mencionava aquelas que associavam as entidades à escravidão e à sua religiosidade
cristã. Os pontos mais lembrados foram:
Ponto 1
“Eu mandei fazer um baile
na fazenda do senhor
foi no dia 13 de maio
quem tinha escravo chorou”
Ponto 4
Da licença Pai Antonio eu
não vim lhe visitar
Eu estou muito doente vim
pra sucê me curar
Se a doença for feitiço, Pai
Antonio vai curar
Se a doença for de Deus oh,
cura-rá neste gongá
Coitado de Pai Antonio,
preto velho curador
Foi parar na detenção oh,
por não ter um defensor
Pai Antonho na Umbanda é
curador
Pai Antonho na Umbanda é
curador
É pai de mesa é curador
É pai de mesa é curador
Ponto 2
Preto d’Angola
É preto-velho
Preto que nunca falhou
Galo cantou
Jesus nasceu
Inimigo estremeceu
Ponto 3
Vovó não quer
Casca de coco no terreiro
(2X)
Pra não lembrar
Do tempo do cativeiro. (2X)
Ponto 5
Ponto 6
Chora meu cativeiro, meu
cativeiro, meu cativeirá.
No tempo do cativeiro,
Quando o senhor me batia,
Eu rezava pra nossa
senhora, meu Deus, como a
pancada doía.
Chora meu cativeiro, meu
cativeiro, meu cativeirá
O branco batia no negro, de
tarde, de noite, de dia.
E o negro amarrado no
tronco chorava e rezava pra
virgem Maria
Chora meu cativeiro, meu
cativeiro, meu cativeirá
A lágrima é branca do
branco, é branca do negro
também
No tempo do meu cativeiro.
Ah como o sinho me batia
No tempo do meu cativeiro
Ah como o sinho me batia
Eu rezava pra Nossa
Senhora, Oh meu Deus
E rezava por Virgem Maria.
179
Se o sangue do negro é
vermelho, do branco é
vermelho, do Cristo é
também.
Primeiramente, estes pontos evidenciam o aspecto que configura o preto-velho como
representação do cativeiro. Este fato demonstra que o rito é usualmente espaço destinado para
promover um comportamento religioso e oferecer possibilidade de compreensão da realidade
social. As cantigas compõem um cenário apropriado para a performance que colabora para este
entendimento, pois ecoam num ambiente em que os pretos-velhos se encontram vestidos “a
caráter”, como se fossem escravos – andam, gesticulam e falam aparentando esta forma. Além
disso, outros aspectos sonoros se coadunam com essa significação. As palmas e/ou tambores, as
danças e os cumprimentos em “salvas”, garantem a aparência de historicidade do cativeiro
narrada pelo cerimonial, que todos os presentes procuram cumprir.
A respeito dos pontos, convenções religiosas determinam certo formato sobre sua
produção e execução. Quando digo “convenções”, pode parecer contraditório, pois - sendo a
umbanda e o próprio campo religioso espírita fragmentado - seria complicado definir o que seria
um “padrão”; existem, porém, certas formalidades que indicam a manutenção de pontos cantados
e a maneira adequada de apresentá-los. Evidencia-se, portanto, neste circuito religioso, a
existência de grupos que procuram criar instruções, sistematizando o conhecimento praticado ou
desejado. Neste sentido, destaco a vertente umbandista liderada por Ahrapiagha (1997), que
produz fontes que, embora não sejam compartilhadas por todos, se tornaram referência para
alguns grupos:
Dentro da ritualística de Umbanda, os pontos cantados são indispensáveis.
São verdadeiras preces cantadas, que expressam a fé, a mística, a magia da
ritualística de Umbanda. Mas hoje em dia, infelizmente, existe muita
adulteração. Antigamente – e mesmo hoje, em raros templos de Umbanda –
nossos mentores os ensinavam, cantando-os durante as giras. Quando uma
Entidade Espiritual (Caboclo, Pai-Velho, etc.) ensina um ponto cantado,
dizemos que o mesmo é de raiz.
Hoje em dia os pontos cantados de raiz são raros (...) Os verdadeiros pontos
cantados são, como já dissemos , os de raiz, dados que foram por uma Entidade
Espiritual de fato e de direito. Expressam, de maneira sublime, uma mensagem,
uma emoção, um sentimento, uma imagem, um alerta, etc. Como podemos
observar ao ouví-los, além de ativarem o misterioso fogo renovador da fé e do
puro misticismo, movimentam uma linguagem metafísica onde cada um entende,
180
segundo seu alcance, várias mensagens. Com eles as Entidades impregnam
certas energias e desimpregnam outras, dependendo do ponto cantado no
momento.
Em sua descrição, destaco um elemento que foi constantemente referido por outros
religiosos como raridade de ser encontrado nos dias atuais. Do mesmo modo que o ponto riscado
funciona como espécie de identidade, o ponto cantado cumpriria a mesma função, revelando
igualmente os seus “mistérios”, ou seja, suas funções espirituais e procedência. Ao contrário,
porém, da iconografia do ponto riscado, que é significativa na capacitação do médium, a cantiga
não lhe é cobrada. A dirigente de uma casa comentou que seu preto-velho, que é o mentor* de
sua tenda, só deu o ponto recentemente, após vinte anos de parceria espiritual.
O “ponto riscado” indica a pessoalização do ente sobrenatural, tornando-o, no caso dos
pretos-velhos, um escravo com nome e biografia. Seu cântico diz respeito aos seus atributos
coletivos ou que serão apreciados coletivamente, pois indicam feitos que podem vir a fazer, e
ilustram ainda sua vida pessoal. Neste sentido, a raridade em se encontrar a enunciação individual
do ponto cantado colabora para a repetição dos pontos, tornando alguns “mais conhecidos”.
Assim como o ponto riscado é facilmente encontrado, o mesmo ocorre com os pontos
cantados. Em sebos e livrarias rapidamente podem ser comprados exemplares com até 3333
pontos cantados e riscados 18 ! Como disse anteriormente, na internet este número pode ser
triplicado, sendo possível o ponto ser acessado em mp3 para ouvir on line, acompanhando-o com
as letras, ou gravado diretamente para seu HD. Na comunidade “Preto-velho” - no orkut -, a troca
de informações sobre pontos tem sido intensa. Algumas pessoas procuraram especificamente por
pretos-velhos que tinham alguma afinidade: “Alguém conhece ponto de Pai Chico?”. Ou:
“Alguém conhece ponto de Pai João?”. Tal divulgação atravessa a fronteira brasileira e chega
aos países que estão importando a umbanda. Em algumas traduções, foram mantidos registros da
“língua oficial” dos pretos-velhos - como o tradicional “misi fio” e “mandinga” -, conforme
constatei no ponto cantado na Argentina:
Yo andaba deambulando
sin nada para comer
Abuela no quiere
corteza de coco en el terreiro
Si festeja es en vano
quien no "aguanta" a
18
Referência ao livro “3333 Pontos Cantados e Riscados” (vide bibliografia). Algumas casas produzem sua própria
coletânea e outras gravam seus pontos em cd, vendendo-os após as sessões.
181
recurrí a santas lamas
su auxilio era menester
socorro de las almas me
llego
socorro de las almas me
llego
divino espíritu santo
viva dios, nuestro señor.
por no acordarse
del tiempo del cautiverio
mandinga
no carga "escapulario"
benedito viene al frente
su gongá ha de ser cuidado
Nessa exportação de modelos religiosos, o preto-velho segue como “espírito de escravo”,
saído da senzala do Brasil para confortar “irmãos” franceses, espanhóis, paraguaios, uruguaios e
argentinos (Oro, 1993; Frigério & Carozzi, 1993). Nas consultas 19 , assim como em alguns
trechos das cantigas, foi preservado o uso do português, sendo o estrangeiro auxiliado por um
tradutor.
Acompanhando a linguagem rústica, o som de algumas cantigas de preto-velho é entoado
como um lamento. Segundo os religiosos, os lamentos e descrições do cativeiro cumprem uma
função sagrada; portanto, a manutenção da linguagem garantiria a conservação da “força” que a
entidade possui. A partir desta significação religiosa, o ponto cantado “Vovó não quer/Casca de
coco no terreiro (2X)/Pra não lembrar/Do tempo do cativeiro” comunicaria, além da ilustração
do trabalho escravo, uma competência espiritual, pois este evocativo seria responsável por uma
“limpeza do coração”, retirando possíveis mágoas. Assim, compreende-se que a vovó não quer
mágoas e tristezas no coração, não quer nada que lembre o sofrimento.
No rito o ponto cantado é utilizado para invocar as entidades, mas, fora deste espaço,
funciona como protetor. Contudo, costuma-se dizer que se deve evitar tratá-lo com displicência,
pois a lida dessa forma gera efeito contrário, podendo atrair malefícios. Para ilustrar tamanho
perigo, contaram-me um caso sobre uma pessoa que enlouqueceu por cantar pontos enquanto
andava pela rua; cantarolando de brincadeira, só “para testar”. Outra pessoa foi possuída pela
entidade e adoeceu por um longo tempo.
A música compõe a paisagem sonora do rito e, de certo modo, instaura um sentimento de
coletividade, pois é através das cantigas que os consulentes podem participar mais ativamente,
visto que, dependendo do templo, este é o único momento em que a assistência participa. Os
19
Um amigo visitou uma sessão de umbanda na França. O preto-velho mantinha o português secular nativo onde
“você” é “suncê”.
182
visitantes são convidados a cantar e a acompanhar o ritmo com palmas, para manter a
concentração de “forças”.
Em alguns casos as próprias entidades participam indicando pontos. Na barquinha, uma
preta-velha interrompeu a consulta que fazia para explicar que estavam entoando a música de
forma errada. Disse que havia um descompasso entre a canção e o ritmo; levantou de seu banco e
foi até os atabaques. Primeiro cantou baixinho e depois pediu para que o rapaz acompanhasse:
“Segura o touro Cabinda ... amarra no mourão...”. O rapaz demorou um pouco, mas a “vovó” só
sossegou quando ele fez como devia.
Junto à música está a dança. Quando os pretos-velhos dançam, na umbanda ou na
barquinha, seu movimento corporal é suave, num leve compasso, com o corpo projetado para a
frente, às vezes batendo o pé de um lado e depois do outro. Quando estão sentados, alguns
acompanham a canção com a batida dos pés. Vi pretos-velhos dançarem e alguns disseram gostar
mesmo é de samba, em conformidade com sua representação de brasilidade. Esta performance é
referida numa canção do músico Jorge Bem Jor: “Este samba, é samba de preto-velho, é samba
de preto-to”.
Como o rito do preto-velho é marcado pela representação da dor e do sofrimento, é o
prenúncio de algo bom quando um preto-velho dança, pois isso não ocorre com freqüência. As
pessoas ao redor ficam felizes, porque acreditam que tal expressão de felicidade pode beneficiálas, renovando as “energias” da casa e de seus freqüentadores.
Os pontos cantados são, portanto, fontes determinantes da performance ritual dos pretosvelhos. Atuam na configuração do perfil escravo religioso, de fé híbrida, que pode apresentar a fé
em Oxalá, em Deus e Nossa Senhora simultaneamente; que guarda suas mandigas na barra da
saia ou no cachimbo. Neste circuito religioso, as cantigas se repetem, principalmente as de
umbanda, demonstrando que o culto do preto-velho mantém fortes vínculos com esta matriz.
Entretanto, o cativeiro é elemento que permite a personificação do preto-velho em escravo e
sensibiliza, no plano religioso, despertar ou manter sentimentos afins a tal expressão, como, por
exemplo, através do ponto cantado: “Chora meu cativeiro, meu cativeiro meu cativerá...”.
Observando diferentes ritos, percebi que em algumas situações este ponto produzia um “efeito
senzala”, pois as pessoas deixavam transparecer seu sofrimento cativo.
Enfim, a exaltação do estado de escravo predominou em todos os pontos cantados que
tive a oportunidade de ouvir e ler. A performance corporal e sonora complementa o anseio do
183
público de querer ver o preto-velho como cativo. Destaco que os pontos cantados de preto-velho
dizem respeito ao cativeiro e, sobretudo, ao seu sofrimento, mas são compreendidos pelos
religiosos em seu significado espiritual que, ainda assim, remete ao sentido de libertação. Sua
interpretação textual, das “palhas espalhadas pelos terreiros”, nos apresenta um quadro imóvel de
Debret 20 , que comunica açoites e trabalho pesado. Entretanto, no culto aos pretos-velhos os
atores - médiuns e assistentes - se posicionam no lugar de sofrimento, por vezes sentindo-se
como eles, acreditando que a magia do trabalho espiritual produz a libertação desejada. De modo
geral, os pontos cantados nos revelam a crença no poder dos “escravos”.
4.4.2 Pontos e hinários na barquinha.
Os hinários da barquinha são um conjunto de cantigas, também conhecidas como
“salmos”. Relembro a história que apresentei no segundo capítulo, que narrava a fundação da
casa pelas mãos do Mestre Daniel. Numa visão, Daniel vislumbrou anjos que lhe entregavam um
livro de capa azul, o qual continha a doutrina em forma de cantos. Esta é a referência ideal para
compreender a função dos hinos na barquinha.
Acredita-se que eles são enviados por Deus, sendo mensagens que podem trazer
proteção, purificação e doutrinação dos participantes do culto. As cantigas são recebidas
mediunicamente, ou seja, se apresentam através da miração com o Daime, numa concentração em
meio à oração ou numa escuta interna. Esta recepção independe de local e pode ser notada como
se fosse uma forma de pensamento fixo. Algumas pessoas que recebem os salmos explicam quem
os deu, descrevendo qual a entidade que apresentou o hino. Um hino pode vir inspirado pelo
perfume que se sente junto com as palavras que jorram na mente; pode-se, assim, dizer que o
salmo foi inspirado pela flor ou por uma fada. Pode também ser apresentado por um santo, como
a Santa Bárbara. Tive a oportunidade de acompanhar a primeira apresentação de um salmo em
louvor a esta santa na barquinha de Niterói. Desta forma, os salmos, por terem como mensageiros
entidades celestiais, são considerados ensinamentos divinos. Geralmente os salmos são recebidos
por “membros fardados” da casa, que possuem uma experiência mais avançada nos
conhecimentos da irmandade.
20
Debret (Jean Baptiste), pintor e desenhista francês, foi membro da missão de artistas franceses,k solicitada por
Dom João VI, que chegou ao Brasil em 1816. Foi nomeado professor de pintura histórica da Academia de Belas
Artes (1820).
184
Como disse, os temas são especificamente para a doutrinação, purificação e proteção,
existindo para cada uma dessas funções, inúmeros salmos. Na barquinha da Madrinha Francisca
Gabriel, cantam-se os salmos de sua casa e também os que foram deixados pelo fundador da
doutrina, Mestre Daniel e pelos outros companheiros: Mestre Antônio Geraldo e Mestre
Francisco Hipólito.
Os hinos são fundamentais para o processo ritual. No trabalho de mesa ou de “obras de
caridade”, após ser ingerido o chá, todos se sentam ao redor da mesa – conforme descrevi no
capítulo dois – e acompanham os hinos, cantando juntos os refrões, pois eles são responsoriais.
Os primeiros e últimos salmos são fixos: abrem e fecham o trabalho espiritual, tendo como
função invocar a proteção e permitir que todos retornem para suas casas sem perturbações. Para
tanto, canta-se invocando “reforços invisíveis, da terra, do céu e do mar”, além do reforço das
cavalarias celestiais enviadas por Cristo, na cantiga “Troco-troco”. Ao final, depois de inúmeros
salmos e preces, canta-se orientando os participantes a manterem a “firmeza”, como uma virtude
que é abençoada por Deus.
Há salmos que invocam a força dos anjos de Deus; outros específicos de louvor à
Virgem Mãe de Deus; alguns cantos invocam a proteção ou os ensinamentos dos santos; há
salmos que descrevem o sofrimento de Jesus e invocam uma reflexão sobre a cruxifição. Em dias
dedicados à doutrinação, os salmos executados cumprem a função disciplinadora, ilustrando
quais são as conseqüências para quem não seguir a doutrina com seriedade, explicando-se
também que “o Daime não é para brincadeiras”. Cada cantiga revela parte dos mistérios da
natureza e do poder Divino, que os participantes percebem através das sensações e/ou mirações.
Predomina em quase todos os hinos a mensagem de amor e paz. Em todos estão
referências à fé em Deus e seus enviados. Na maior parte das cantigas, são feitas alusões à luz.
Estes elementos são basilares na doutrina da barquinha: fé, paz, amor, luz e Deus. Relembro que
o nome original da barquinha é Casa de Oração Jesus Fonte de Luz (1947). Os outros grupos
foram: Centro Espírita Fé, Luz, Amor e Caridade (1962); Centro Espírita Daniel Pereira de
Mattos (1980); e Centro Espírita e Obras de Caridade Príncipe Espadarte Reino da Paz (1994) 21 ,
o grupo referência para este trabalho.
A partir da base fé, amor, paz e Deus, são feitas inúmeras combinações que descrevem
os seres celestiais, encantos, santos e anjos, entre outros. O hinário, junto com o efeito do Daime,
21
Conferir em Clodomir Monteiro da Silva (2004) sobre a barquinha e suas vertentes .
185
produz sentimentos e entendimentos sobre a doutrina cristã-espírita, que orienta os trabalhos
espirituais da casa. A orientação religiosa vem predominantemente do Daime e dos hinos, salvo
os casos em que, ao final do rito, a dirigente da casa comenta algo sobre a forma de cantar um
hino, ou notifica alguma orientação recebida da madrinha ou mensagem de algum guia da casa.
Em alguns ritos, a dirigente da casa recebeu a sua preta-velha, que comunicou aos participantes
uma mensagem ou uma benção.
Os hinos cantados numa sessão são escolhidos antecipadamente pela dirigente, de
acordo com o calendário que deve ser cumprido, seguindo os dias consagrados aos santos e às
romarias. Entretanto, havendo um imprevisto, como, por exemplo, um tumulto em decorrência de
uma manifestação espiritual, pode ser cantado um outro hino.
Diz-se que a seqüência de hinos faz parte do cumprimento das obrigações que o grupo
assume com a espiritualidade. Ao final da sessão, é feita a entrega do número de salmos cantados
e de preces em louvor a Deus, à Virgem Mãe, a Jesus e aos santos, bem como às almas que ali
estiveram e foram beneficiadas com tal rogativo. Além disso, este é um compromisso com a
entidade-guia da casa, o Príncipe Dom Simeão, que clama para que os seguidores dessa missão
permaneçam em constante oração.
O trabalho espiritual com os hinários é preparatório também para o rito das consultas,
pois há curas que acontecem durante o trabalho de caridade na mesa. Os pretos-velhos podem
indicar para o consulente assistir ao trabalho de mesa, pois os hinos têm também a função
curativa. Para este tipo de trabalho específico, o dia 27 do mês é a data determinada para as
“prestações de contas” dos fardados e o dia de cura. As prestações de conta dizem respeito aos
atos e pensamentos referentes àquele mês; assim, as cantigas levam a este tipo de reflexão. As
pessoas que procuram a casa em busca de curas físicas e/ou espirituais ficam na área destinada ao
rito de cura, que é um espaço onde permanecem deitados, auxiliados por médiuns incorporados
com seus pretos-velhos e por alguns cambonos, enquanto o restante do grupo permanece
cantando. Os pretos-velhos fazem preces com uma vela acesa nas mãos, permanecendo por um
bom tempo ao lado de cada pessoa. Dessa forma, a cura conjuga a ação mágica da entidade com
as cantigas.
São poucos os hinos cantados nos trabalhos de terreiro. O bailado geralmente é feito com
pontos cantados. Enquanto na umbanda a assistência acompanha com palmas ou repete refrões,
na barquinha o ritual de terreiro é seguido por todos. Após tomarem o Daime, a roda é preparada
186
para o bailado. Na roda, os homens ficam numa fileira e as mulheres noutra. Este é o rito em que
cada pessoa experimenta o contato corporal com as entidades, permitindo, assim o entendimento
aconteça no próprio corpo. Novamente o Daime é tratado como “professor”, aquele que vai
mostrar o caminho, pois aqui o “caminho” é individual, cada um deve encontrar o seu; entretanto,
ao final desta descoberta, acredita-se que todos estão num mesmo “barco”, numa referência
também à nominação do grupo: “barquinha”.
Geralmente, o bailado começa com um hino que invoca o Príncipe Dom Simeão para
proteger os trabalhos. Após este momento, novos “reforços” são invocados com os pontos de
Ogum. Algumas pessoas incorporam os caboclos e ficam no meio da roda. Este é um momento
dedicado ao desenvolvimento mediúnico, em que cada membro ou participante sente a força do
chá e de se sua entidade, recebendo mensagens e aprendendo a conviver com sua espiritualidade.
As cantigas e o bailado servem para integrar o grupo e para a instrução espiritual de todos; neste
momento, o grupo externaliza sua prática religiosa e internaliza sentimentos e conhecimentos
compartilhados.
4.5 Vozes do além: documentos mediúnicos
Assim como as histórias contadas por religiosos ou depoimentos biográficos das
“entidades” 22 são significativos para a construção simbólica dos pretos-velhos, os pontos riscados
e cantados são instrumentos que colaboram na reflexão da multifocalidade dessas entidades. Seja
qual for a forma de representação, essas entidades foram ancoradas socialmente numa
significação de “escravo”. No decorrer da pesquisa de campo, alguns freqüentadores e religiosos
me indicaram a leitura de romances mediúnicos para que eu conhecesse os pretos-velhos.
Através da literatura mediúnica
23
, os sentimentos de perda e sofrimento são
apresentados em forma de narrativa literária, sendo o significado de “escravidão” articulado com
ilustrações que representam outros sentidos do termo. Notadamente, o texto procura fornecer
subsídios para a auto-ajuda, com a identificação de vivências similares na atualidade, através dos
22
Digo depoimentos dos pretos-velhos, com seus médiuns em estado de consciência alterada.
A literatura mediúnica é um estilo literário baseado em histórias que se supõe serem contadas por espíritos através
da psicografia (em que o espírito toma de empréstimo as faculdades mentais e físicas do médium) e por intuição (em
que o espírito descreve através do plano mental do médium toda a história). Ver: StolL, 2003.
23
187
sentimentos de angústia, perda, impotência diante dos limites, dores físicas e emocionais, e assim
por diante.
Existe no Brasil um mercado editorial cujas publicações são voltadas especificamente
para este tipo de literatura. Além dos livros doutrinários, boa parte das narrativas de romance
refere-se a encontros amorosos dos espíritos que, após a morte, recobram a memória de todas as
vidas anteriores – pois se acredita que tenham vivido inúmeras existências –, em que tiveram
momentos de união. Ainda a respeito de amor, esta literatura promove a busca por entendimento
das relações familiares, fornecendo elementos significativos sobre parte dessa estrutura social. A
literatura mediúnica produziu algumas obras sobre a “escravidão”, base para certas explicações
sobre os pretos-velhos, segundo constatei.
As obras usadas como referência apresentam diversos tipos de escravos como, por
exemplo, o Pai Thomas, que envelheceu, ganhou sua alforria e morreu no seu cantinho,
iluminando com suas bondosas palavras a todos que o procuravam. Noutra, a “Bá” era a escrava
que cuidava da menina Nina que, por sua vez, a via como um exemplo moral em oposição à sua
mãe, voltada para os bens materiais. Já Euzália é descrita como um espírito que abandonara os
finos trajes de madona européia e se travestira com vestimentas escravas. Outra escrava, a Maria,
fazia curativo e cuidava da horta. Tião é descrito como o escravo encarregado de ensinar as
regras da fazenda aos escravos recém-chegados.
As trajetórias de escravos descritas por alguns escritores-médiuns são narrativas
significativas, expressando os moldes e modos do período colonial brasileiro. Para os
consumidores desta modalidade literária, o caráter de “verdade” é indiscutível, pois se
compreende que o que “se lê” pode ser investigado e comprovado em duas outras fontes: a
literatura acadêmica ou a escolar. Além disso, existe a possibilidade de confirmar algumas
situações com os pretos-velhos. De acordo com a descrição de alguns médiuns, os pretos-velhos
seriam os próprios personagens daquelas narrativas.
Geralmente, quando algum médium indicava a leitura desses livros, destacava sua
qualidade em termo de conteúdo, dizendo que sua leitura seria também uma forma de conhecer
um pouco mais a História do Brasil. Algumas obras se assemelhavam a livros paradidáticos sobre
a escravidão brasileira, aqueles que os professores usam como complementação ao ensino em
sala de aula, por exprimirem o conteúdo através de narrativas ficcionais. Assim, a partir da trama
188
de uma história de amor, foi descrita a Lei Euzébio de Queiroz 24 , sugerida como sinal de
mudança para os escravos. Além disso, a Lei dos Sexagenários 25 foi criticada: em sua
abordagem, a autora explicou que tal Lei não promoveu “nenhum benefício” aos escravos idosos
(Vargas, 2002).
Nas histórias de cativeiro é ressaltado, sobretudo, o sofrimento, tratado como modo de
alcançar a elevação espiritual. Segundo estas obras, o cativeiro foi um recurso da “Piedade
Divina” para permitir a evolução espiritual de alguns povos. Dessa forma, através da escravidão
haveria a promoção da expiação coletiva. Dentro de tal combinação, haveria a possibilidade da
escolha individual pela reencarnação, de modo que, ao escolher retornar à terra elegendo a forma
“escrava”, o espírito opta por expiar mais rapidamente suas imperfeições.
Entre os romances baseados em histórias do cativeiro, uma análise sobre os pretosvelhos se tornou referência entre umbadistas e kardecistas: “Aruanda” (Pinheiro, 2004). Inúmeros
religiosos indicaram a leitura deste livro. O best-seller apresenta alguns pretos-velhos como
espíritos de luz, que se travestem na forma escrava para adentrarem universos espirituais e
realizarem trabalhos na terra. “Aruanda” tem intenção de apresentar a importância dessas
entidades numa interpretação kardecista, sendo obra psicografada de um médium kardecista.
Toda a história é narrada a partir de uma perspectiva do espírito de um jornalista que, ao manter a
mesma função no Além, acompanha o trabalho espiritual de dois pretos-velhos. Duas praticantes
do kardecismo disseram que mudaram a forma de pensar sobre os pretos-velhos após lerem este
livro, talvez por terem sido esclarecidas que entre os pretos-velhos não havia somente espíritos de
“africanos” de natureza religiosa “fetichista”, mas europeus cristianizados e elevados
espiritualmente.
O espírito do jornalista se descreve espantado pela mudança de forma de “dois
digníssimos e elevadíssimos espíritos” que se transformam em pretos-velhos:
Mirei Euzália e presenciei outra vez a madona de rara beleza na figura simples
de uma escrava (...). Pouco a pouco, seu vestido assumiu aspecto mais simples;
então completamente diferente, assemelhava-se à vestimenta própria das
mulheres das senzalas, segundo o costume de meados do século XVIII (...) A
aparência clara, de tipo europeu, tomou as características de uma negra, sem
perder, porém, a delicadeza no olhar e a simplicidade do espírito nobre. (p. 74)
24
25
A Lei Euzébio de Queiroz impediu o tráfico de escravos a partir de 1850.
A Lei dos Sexagenários, de 1861, tornava liberto os escravos acima dos sessenta anos.
189
(...) é preciso que nós mesmos possamos assumir aparência comum aos olhos de
nossos irmãos, para não insulta-los com nossa altivez. Precisamos todos
compreender que, para falar a linguagem dos umbandistas e de outros
companheiros que tem alguma afinidade com os cultos afros, é necessário que
tomemos conformação compatível com a visão de nossos irmãos. (p. 66)
As descrições indicam que o tipo europeu cedeu forma à negra da senzala, mas, para
alívio do jornalista, foi mantida a delicadeza do olhar. Em outras obras, os traços que
caracterizem um padrão “senzala” ou “africano” são modificados. O caso do escravo Tião é
ilustrativo neste sentido (Vargas, idem). Tião morre e vira preto-velho; no Além, um outro
espírito se esforça para fazê-lo falar “corretamente”, mas ele resiste por amor à sua identidade de
escravo, manutenção esta que, podendo ser compreendida como “apego”, é prejudicial ao
crescimento espiritual.
Manter a fala num vocabulário tosco, que lembra o de moradores do sertão de séculos
atrás, foi uma das críticas que ouvi de kardecistas a respeito dos pretos-velhos: “não tem
necessidade”, foi o que disseram. Se o espírito é milenar, não haveria motivos para manter-se
vinculado a tal encarnação. Manter-se vinculado a padrões de escravidão é um signo de “atraso”,
entretanto, Eulália, que preservara vestes e traços europeus, não foi pensada como um espírito
apegado a sua forma e seu comportamento: européia e aristocrática.
A respeito da manutenção de um padrão dos espíritos no Além, o livro de relatos de
operações espirituais no Lar de Frei Luiz 26 (Lima, s/d:241) descreve a ação de um preto-velho.
Conta a história que a entidade socorria um senhor em seu profundo mal-estar. O filho deste
senhor, um jovem médico que nada conseguira fazer para amenizar o sofrimento paterno, ao vêlo sendo cuidado por uma entidade a qual, segundo seus padrões, mal sabia falar, foi acometido
por uma tremenda raiva. Para a surpresa do jovem doutor, o espírito mudou sua postura e se
apresentou como antigo médico francês, dissertando sobre um tratado a respeito da doença do
idoso. Impeliu o rapaz a procurar em seu livro de medicina informações sobre a doença,
apresentando inclusive a página em que elas se encontravam. O moço, envergonhado, aceitou a
ajuda daquele espírito. Apresentar uma comunicação lingüística no mesmo nível que o acadêmico
foi primordial na aceitação do preto-velho.
26
O Lar de Frei Luiz é um templo religioso kardecista reconhecido pelas operações espirituais que lá ocorrem e pela
freqüência de artistas da TV. Entre as entidades que realizam o trabalho espiritual, estão médicos, religiosos e
também pretos-velhos.
190
A representação dos “escravos” como pessoas que sofreram castigos físicos, e que
emocionalmente tiveram que se sujeitar a eles, é percebida como uma referência positiva, por ser
compreendida como intermediária de um benefício maior. A liberdade perdida nas senzalas pode
ser entendida como aquisição de uma libertação de sentimentos que aprisionam o “espírito”,
como o orgulho, a mágoa, a arrogância e a ganância. Em algumas descrições, o escravo que
adquiria sua liberdade mantinha comportamentos semelhantes ao de cativo, permanecendo no
cativeiro, em alguns casos, para ensinar aos escravos mais jovens a importância de se manterem
pacientes:
Tião dizia aos negros: “Mior te pacença, aceita. É ruim, mais fugi pra onde?
Quando Tião chegou também queria fugi. Tinha raiva do sinhô, não ouviu a
nega veia que ensinou ele a fala a língua de branco... Custei a intendê que ela
tinha razão. O único jeito era esse. (Vargas,2002:32)
A imagem do Pai Thomas (Carvalho, 1993) compreende a versão de que não importava
a liberdade, mas valiam os sentimentos de bondade. O nome do escravo inspirou o título da saga
descrita por Harriet Beecher Stowe (2004), a clássica obra literária americana “A cabana de Pai
Thomas”. Assim como seu homônimo, o Pai Thomas brasileiro acreditava que ser livre
juridicamente não era a coisa mais importante da vida, ao contrário, sentia que na verdade os
senhores é que eram os prisioneiros daquela situação: “Escravos do que julgam possuir (...)
cativos pelo desejo de ter, são possuídos pelo desejo de possuir” (op.cit.: 226). Além disso, o
sentimento de submissão e descontrole sobre a própria vida poderia ser compreendido através do
termo “escravidão”, como expressa a frase: “Se temos sentimentos ruins, somos escravos deles, o
perdão e o amor nos liberta” (idem:228).
A ordem social escravista se inverte e senhores e escravos mudam de posição
(Vargas,idem: 400):
Existem muitos tipos de escravidão. Essas que enfrentamos fisicamente é
dolorida e os negros sofrem. Mas aprenda, Juvêncio, a ver os que são
escravos de si mesmos, atendendo a ilusões efêmeras provocadas por paixões
e vícios de todo o gênero e aqueles outros que se escravizam pelo poder, pela
ganância, pela ambição, pela luxúria, pelos preconceitos, por sentimentos de
ódio e revolta e tantas outras coisas...
191
O livro “Lições da Senzala” apresenta a trajetória de um menino africano livre, que foi
aprisionado nas florestas e trazido para o Brasil. Miguel, o personagem principal da trama,
descreve a vida de sua tribo e as brincadeiras de criança, além do sofrimento de perder sua
família, sobreviver ao navio negreiro e enfrentar o trabalho e os castigos numa fazenda. Toda sua
trajetória de vida é alinhavada com a política da época, que o deixava à espreita da possibilidade
de tornar-se livre. Entretanto, as relações na senzala contribuíram para que pudesse manter sua
sobrevivência: “Com minha vovó Joana e o negro velho Santino aprendi a ciência das ervas e
preparava garrafadas para muitas moléstias” (Dória, 2002:43). Além de manipular as ervas,
aprende também a ser cordial, pois acredita que só assim poderia manter um bom relacionamento
com os brancos, evitando conflitos que lhe poderiam trazer sofrimentos; e, se revidasse os maustratos e as ofensas, poderia perder a possibilidade de garantir o “reino dos céus”.
O personagem Miguel é descrito como exemplo de escravo que, ainda em vida, se
transformou numa espécie de entidade espiritual. Através dos companheiros mais idosos,
compreendeu a religiosidade de seu povo, pois havia saído cedo da África sem ter este
conhecimento, assim como os escravos nascidos nas senzalas. Também aprendeu a devoção dos
brancos, um meio de aproximação com os senhores, pois através dela demonstrava sua intenção
cordial. Se a princípio chegara rebelde e revoltado com sua situação, aprendeu com os mais
velhos a ter paciência, repassando esse aprendizado aos jovens e inconformados escravos que
chegavam, explicando-lhes os tormentos que poderiam ser evitados caso agissem dentro de
determinados padrões. Assim o escravo Miguel foi perdendo sua africanidade e, aos poucos, foise abrasileirando.
Nesta literatura, os escravos rebeldes aparecem como exemplo de sofrimentos, tanto em
vida quanto após a morte, pois o ódio os atormentaria pela eternidade. O “escravo cordial” sugere
o modelo a ser seguido, seja como padrão de relacionamento, seja como estratégia para alcançar a
elevação espiritual. Assim, por ter superado as adversidades, continua, na figura dos pretosvelhos, como modelo ideal de amparo às dores atuais.
4.6 Você conhece esta imagem?
Após os anos iniciais da pesquisa, resolvi perguntar aos meus alunos se conheciam os
pretos-velhos. Surpreendentemente, alguns os associaram à figura literária de Monteiro Lobato:
Tio Barnabé e Tia Anastácia. No momento em que falei sobre o tema, o burburinho tomou conta
192
da sala de aula, num debate em que cada um dos alunos procurava demonstrar seus
conhecimentos, descrevendo a escravidão brasileira. Vez ou outra alguém bradava a sentença:
“Isso é coisa de macumba!”. Houve também a interpelação: “Professora, esse negócio não é
coisa da escravidão?”. Entendi que uma reflexão mais elaborada sobre o significado social dos
pretos-velhos contribuiria para sua compreensão.
Assim, realizei para estes jovens de idade variada um levantamento direcionado, com
questões objetivas e ilustrado com as imagens em gesso de dois pretos-velhos (foto anexa),
figuras normalmente vendidas em casa de artigos religiosos. Os grupos entrevistados foram
escolhidos por certa proximidade pessoal que havia: grande parte era de alunos de uma escola do
ensino fundamental no Complexo da Maré. A escolha por este grupo proporcionou a
compreensão da estrutura social e das propriedades do símbolo, tipificando através de
associações, fatos, lugares e atividades que tais entidades representam.
Convidei alguns alunos 27 para entrevistarem amigos e parentes, levando o questionário
para suas casas, repetindo o mesmo procedimento que tínhamos feito em sala de aula.
Comuniquei-lhes que as respostas deveriam ser livres e sem a necessidade de auto-identificação
(ver questionário em anexo). Procedimento similar foi feito com jovens de diferente grupo social
e faixa etária.. Nesta segunda etapa, a pesquisa enfocou alunos de uma faculdade particular de
Niterói, moradores de bairros circunvizinhos, como Maricá e São Gonçalo.
Apostei num amplo reconhecimento dos pretos-velhos. Minha hipótese era que seriam
figuras facilmente reconhecidas como símbolo religioso; entretanto, como demonstra o gráfico,
eles não foram reconhecidos, como eu inicialmente pensara. Na primeira pergunta, procurei
identificar se os pretos-velhos eram tão populares quanto imaginava: Você conhece a imagem ao
lado?
27
Dois alunos demonstraram interesse e, posteriormente, fiz o pagamento pelo serviço prestado, mesmo sob a
resistência de ambos, que disseram ter feito porque gostaram.
193
CONHECE A IMAGEM?
42
45
40
35
30
25
20
15
10
5
0
28
SIM
NÃO
A segunda pergunta era direcionada àqueles que responderam que conheciam a
entidade: “Conhece de onde?”:
DE ONDE CONHECE
A IMAGEM?
18
OUVIU FALAR
DO COLÉGIO
16
16
DO CENTRO DE MACUMBA OU "DA
MACUMBA
14
DA UMBANDA
12
10
DO CANDOMBLÉ
8
CENTRO ESPÍRITA
6
4
2
3
2
1
0
2
1
2
1
DA CASA DE CONHECIDOS OU
FAMILIARES
LOJA DE ARTIGOS RELIGIOSOS
Procurei, junto àqueles que (re)conheciam as imagens, a descrição de seu significado. A
partir de diferentes informações, busquei aproximar as variáveis de sentido comum, como: “que
faz o bem” semelhante ao “que cuida”.
194
O QUE SABE SOBRE A IMAGEM?
QUE SÃO DA MACUMBA
QUE FAZEM O MAL
60
48
50
QUE ABENÇOA
40
QUE SÃO DO CANDOMBLÉ
30
PRETOS-VELHOS OU ENTIDADES
20
7
10
8
212 11
0
1
2
NEGROS SACRIFICADOS E
HUMILHADOS
SANTOS
NÃO RESPONDERAM OU NÃO
SABIAM
A representação majoritária dos pretos-velhos como elemento religioso os aproxima de
uma expressão religiosa híbrida que, no senso comum, tem um significado pejorativo: a
“macumba”. A “macumba” pode ser compreendida como categoria acusatória em relação às
diversas práticas do campo espírita; por vezes é identificada como prática distante dos dogmas
cristãos e, portanto, causadora de malefícios; como expressão religiosa que se pensa “misturada”;
ou, ainda, como possibilidade de auto-afirmação de certo padrão identitário (Cardoso, 2004).
Um dos entrevistados, cuja religião foi expressa como "umbandista de nação” e que
possuía curso superior completo, identificou os pretos-velhos com “negros, sacrificados,
humilhados e chicoteados para atender aos desejos dos senhores de engenho”. Visivelmente,
grande parte dos entrevistados associou a imagem dos pretos-velhos à “macumba”, não sendo
possível, entretanto, qualificar a que tipo de “macumba” se referia.
A associação à “macumba” também foi referência expressiva quando se perguntou qual
imagem que se fazia deles mesmo sem conhecimento prévio. Entretanto, no quesito “o que se
vê”, em oposição a “o que se sabe sobre”, a imagem de escravo foi predominante:
195
MESMO SEM SABER DE QUEM SÃO
AS IMAGENS, O QUE ELAS REPRESENTAM?
PAI E MÃE DESANTO
SANTOS
20
18
16
14
12
10
8
6
4
2
0
18
AFRICANOS
MACUMBEIROS OU "DA MACUMBA"
ESCRAVOS
ESPÍRITOS
10
9
8
IDOSOS
4
2
3
11 1 11
RELIGIÃO DA POPULAÇÃO NEGRA/RELIGIÃO
AFRO-BRASILEIRA
ARTESANATO
NEGROS/RAÇA NEGRA
CANDOMBLÉ
1
2
CIDADÃO DA BAHIA
Destaco que, por vezes, a referência a “santo” era acompanhada das expressões: “santo
católico”, santo da macumba”, “santo do candomblé” e “do santo”. Numa das entrevistas, além
de apresentar a denominação “escravos”, foi acrescentada a idéia: “um casal de escravos que
passam o mal”. O predomínio da identificação com a escravidão indica o vínculo desejado e
mantido socialmente, expresso no culto aos pretos-velhos.
Merece destaque o elevado percentual de identificação com “religião negra”. Ressalto
ainda que o termo “afro-brasileiro” foi usado exclusivamente pelo núcleo “universitário”, fato
que pode ser relevante, pois pode indicar um avanço dos estudos acadêmicos e de políticas
públicas na produção do discurso de “africanidade” e “procedência escrava”.
A respeito dos entrevistados, sua procedência, religião, idade e escolaridade:
196
MUNICÍPIOS, BAIRROS E COMUNIDADES
DOS ENTREVISTADOS
14
13
12
10
9
9
9
8
8
6
4
4
2 2
2
2
2
2
1 1
2
1 1 1 1
0
NOVA HOLANDA
BONSUCESSO
PARQUE UNIÃO
BECO DA ALEGRIA
RUBENS VAZ
RAMOS
ROQUETE PINTO
BAIXA DO SAPATEIRO
PINHEIRO
MANGUINHOS
MARÉ
MARICÁ
NITERÓI
NOVA IGUAÇU
PENHA
BELFORD ROXO
SAQUAREMA
SÃO GONÇALO
ESCOLARIDADE
SEM ESCOLARIDADE
FUNDAMENTAL INCOMPLETO
QUANTIDADE
50
40
FUNDAMENTAL
30
MÉDIO INCOMPLETO
20
MÉDIO
10
SUPERIOR INCOMPLETO
0
SUPERIOR
1
197
IDADE
60
51
50
DE 10 A 20
DE 21 A 30
40
DE 31 A 40
30
DE 41 A 50
DE 51 A 60
20
10
10
DE 61 A 70
4
3
1
1
0
1
RELIGIÃO DOS ENTREVISTADOS
30
CATÓLICO
24
25
EVANGÉLICO
21
ASSEMBLÉIA
PROTESTANTE
20
15
BATISTA
15
ADVENTISTA
UMBANDA E NAÇÃO
10
KARDECISTA
5
111122
0
1
2
SEM RELIGIÃO
NÃO RESPONDIDO
2
Os dados apresentados demonstraram que, embora as entidades tenham menor
reconhecimento popular do que se pensava inicialmente, a sua identificação com os escravos
predomina. Compreende-se, através dessa circulação simbólica que associa os pretos-velhos aos
escravos, que tal percepção, além de ser estrutural nos ritos, reflete a interpretação que a
sociedade mantém deles. Compartilham-se as idéias de que os escravos sofreram, fato expresso,
por exemplo, nas declarações de que “são sofredores” e que foram “humilhados”. Geralmente,
quem fez a associação dos pretos-velhos com os escravos me entregava o questionário reforçando
198
sua opinião com os conhecimentos escolares, procurando demonstrar que seu juízo era baseado
em fontes mais confiáveis do que as daqueles que respondiam de outra forma.
O simbolismo dos pretos-velhos, por parte daqueles que passaram por uma reflexão
escolar, adicionando-lhes elementos retirados dos livros, em parte reflete a integração de um tema
que se acredita dizer respeito à vivência cotidiana. Recordo que meus alunos, nesta e em outras
situações em que conversávamos sobre o tema, procuraram dialogar com as informações que
tinham, incluindo fatos conhecidos através dos livros, comentários de outros professores e
reflexões sobre imagens retiradas dos livros didáticos, de músicas ouvidas e de programas de
televisão, principalmente as telenovelas. Todos estes elementos são significativos para a
elaboração da performance ritual dos pretos-velhos, que, presentes em diferentes práticas
religiosas, mantêm suas duas principais características: são escravos e “umbandistas”, como
veremos a seguir.
Diante de outras significações, como mestre, doutor, padre ou freira, acredita-se que
está, mas pode não ser. O estar reflete aquele momento: passagem. Naquela situação, pode estar,
mas, posteriormente, pode deixar de representar tal condição. Deste modo, o estado é fornecido
por propícias condições: é agenciado. E quem agencia esta condição de cativo?
Sua configuração habitual, “preto-velho-espírito-escravo”, pode ser alterada, conforme
vimos no caso do “preto-velho-espírito-soldado”. Tais significações são composições estruturais
que partem de suas agências (centros religiosos) e de seus freqüentadores, quer religiosos, quer
leigos. Neste sentido, tanto podem ser considerados “péssimos” exemplos de negritude, porque
foram pensados como subservientes, ou “excelentes” modelos da mesma “negritude”, porque,
através de sua mandinga, podiam matar os senhores; seu perfil cordial pode ser concebido como
estratégia que favoreceu a manutenção de certas práticas rituais que vigoram na atualidade.
A pesquisa aferiu que essas entidades são consideradas um “sujeito” independente de
seu mediador - seja ele o templo ou o médium – e, neste sentido, podem ser capazes de interferir
na vida ordinária de seus consulentes. Esta mesma configuração, entretanto, relativiza a relação,
pois os consulentes também contribuem na produção da representação dos pretos-velhos-cativos.
O “espírito” se torna escravo para satisfazer as demandas do social, que clama por confrontar
suas angústias com aqueles que consideram ser “especialistas em sofrimentos”. A mobilidade dos
significados, ou sua fruição, diz respeito à busca de experimentação da superação e da
transformação para os consulentes, que os rituais dos pretos-velhos oferecem.
199
No capítulo que segue, essas significações são expressas em outros arranjos fora do
contexto religioso; são também focalizados os ritos particulares, que demonstram a manutenção
de práticas, cerimônias e valores que estão vinculados ao culto dos pretos-velhos na umbanda.
Além do entendimento sobre os códigos morais compartilhados, procurou-se conhecer “quem” os
manipulava e “como” os pretos-velhos são conduzidos nas relações extra-religiosas.
200
CAPÍTULO V: RITOS PARTICULARES E TRAJETÓRIAS INDIVIDUAIS
Parece-me que o homem está cheio de deuses como uma esponja embebida no
céu (...) Eles são a necessidade de movimento. Vou, pois, passear, com
embriaguez, em meio a mil concreções divinas.
Aragon, Lê Payasan de Paris.
5.1 Prévia das narrativas
Em nossa sociedade, a crença no poder dos espíritos, em sua capacidade de promover
benefícios e malefícios, atravessa fronteiras culturais e temporais, sendo compartilhada por
dogmas religiosos distintos, como descrevi nos capítulos anteriores. Há regras de reciprocidade a
serem cumpridas; agradam-se, portanto, aos espíritos e demais divindades para ganhar algo ou
para evitar perdas; em troca, para impedir o esquecimento das entidades sobrenaturais, são
ofertados a eles elementos prescritos, de acordo com a profissão de fé, comidas, bebidas, gestos,
preces, incenso, flores, velas, cantigas e danças. Como observou Mauss (2003), os espíritos
necessitariam do culto para se manterem vivos; e é através dos atos, das solenidades com as quais
se trata, que se fabrica o rito e o conduz em busca dos benefícios que se podem dele retirar 1 .
Vimos até aqui que a crença nos pretos-velhos propaga inúmeros aspectos simbólicos da
escravidão brasileira. Os ritos públicos dessas entidades configuram esta representação, sendo,
sobretudo, idealizados como ritos de aflição. Destaco que no rito religioso coletivo o caráter do
preto-velho “escravo” é endossado através de elementos que reforçam esta significação,
demonstrando respeito e consideração por pessoas consideradas de posição marginal na
sociedade. Este fato é indicativo do sentido de communitas empregado por Turner (1974),
evocando sentimento de responsabilidade moral dos ditos sujeitos sociais.
Nos ritos íntimos, percebi que há uma tendência para que esta representação de escravo
sofra modificações. Isto significa que o padrão “escravo” se altera, afastando-se deste modelo
predominante até então; entretanto sua configuração “escrava” não desaparece; suas
características de “bondade” e “humildade” são evidenciadas em detrimento das representações
1
Mauss (2003:49-178) descreve a natureza do rito e distingue ritos orais e manuais, apresentando suas
especificações a partir de uma teoria geral da magia.
199
sobre “cativeiro”. Nos ritos domésticos os pretos-velhos tendem a figurar como “guia” ou
“mestre”.
No fórum doméstico, os atributos morais e as qualidades mágico-espirituais são
evidenciadas. Acredita-se que os pretos-velhos são hábeis na arte de transmitir sua sabedoria,
visto que se acredita que tenham acumulado experiências no cativeiro. A prática do altruísmo,
que modelou seu espírito cordial, seria a capacitação necessária para “acalmar”, “tornar
paciente”, “criar harmonia”, “proteger”, e assim por diante. A capacidade em auxiliar na
superação do sofrimento é, sem dúvida, a habilidade mais procurada pelos consulentes e por
aqueles que mantêm a devoção em particular.
Embora o culto a estas entidades faça parte das estruturas religiosas que apresentei, a
crença na sua ação como “guia” ou “protetor” apresenta uma existência diferencial,
compreendida, sobretudo, na figura do devoto que se torna templo, abrigando a devoção e as
próprias entidades. As posições hierárquicas, que na esfera pública são demarcadas entre o
neófito e o dirigente, desaparecem, sendo este culto especialmente tomado pelo caráter de
inversão.
O culto doméstico às divindades é um costume secular no Brasil. Estava presente nos
altares domésticos ao longo dos séculos passados, em oratórios expostos nas salas de visita ou no
quarto de dormir. Nas fazendas, costumava-se erguer capelas para o santo de devoção de seu
proprietário (Karash: 2000). Carlos Rodrigues Brandão (1986) fornece uma descrição sobre essa
lida íntima dos moradores das zonas rurais de Itapira (Minas Gerais) com o sagrado, numa rotina
de cuidados, demonstrando que havia uma combinação entre a demanda pessoal com os recursos
em oferta “dos bens de salvação”. Entretanto, nestes altares domésticos populares predominava a
presença de santos católicos, que atualmente se misturam a divindades indianas e umbandistas.
Além desses altares domésticos, os devotos realizam cultos particulares e recebem orientações de
seus guias. Considerando a si próprio templo divino, os devotos desenvolvem suas fórmulas de
aproximação e evitação das entidades, criando um sistema de crenças e práticas íntimas.
Ressalto que o fato de ter localizado a devoção aos pretos-velhos fora do ambiente
religioso não significa a inexistência da adoção deste tipo de prática em relação a outras
entidades, – até mesmo porque descrevi no primeiro capítulo o caso da relação entre uma mulher
e sua pomba-gira; e, ainda neste capítulo, comentarei sobre uma história similar de uma mulher
com seu caboclo. Entretanto, o culto doméstico revela a presença mais freqüente dos pretos200
velhos, em relação às demais entidades do panteão umbandista. Acredita-se que tais entidades
apresentem um perfil religioso cristão; são conhecedoras da magia benéfica; de uma magia
branda, que lhes pode trazer benefícios; reconhecem o sofrimento e amparam aqueles que
sofrem; e, além dessas características, são concebidos como “parentes”.
O devoto mantém uma relação íntima e por vezes familiar com as entidades, baseada na
confiança e na busca por proteção. O sentimento de “proteção” nos cultos particulares inspira em
alguns de seus devotos o “poder”, pois as qualidades que são atribuídas às entidades podem ser
por eles captadas.
O rito da arca apresentado neste capítulo ilustra as mudanças no campo religioso, sendo
significante de expressões voltadas para a ação do indivíduo, que reavalia seu pertencimento
sócio-religioso. O rito contribui para fixar a performance liminar deste sujeito, que se alinha a
antigas práticas e conceitos, mas, que, concomitantemente, empreende novos códigos neste fazer
espiritual. A cerimônia é exemplar desta expressão religiosa contemporânea, atendendo a uma
demanda de personificar as relações espirituais. Neste rito, assim como no da barquinha, faz-se
uso da ayhuasca que, conforme descreveu Beatriz Labate, neste contexto pós-moderno está
associado a um projeto de autoconhecimento que se encontra em sintonia com a “ênfase
contemporânea, quase obsessiva, na busca de si mesmo” (Labate,2004:91).
Além do rito da arca, ritos domésticos e casos de relações íntimas com as entidades
compõem a estrutura dessa ritualística contemporânea desterritorizada, mas contextualizada aqui
através da crença nos pretos-velhos, que, conforme anunciei, se afastam momentaneamente do
significado de “escravo”.
5.2 Ritos íntimos
Os ritos íntimos são ritos mágicos, baseados na crença de que o contato com mortos
pode trazer benefícios, como a aquisição de um poder. Se, como demonstrei no primeiro capítulo,
a magia é a “segunda lança” para as explicações sobre os infortúnios cotidianos, eliminando os
mediadores religiosos, nos ritos domésticos, cada pessoa se torna apta para administrar os
conflitos de seu dia-a-dia e as demandas espirituais a que está habituada a crer e a praticar.
201
Descrever o rito “íntimo” ou “privado” é o esforço para compreender um quadro de
referência numa situação singular, que nos pode levar à estrutura. Como explicou Durkheim
(1996:239), “a parte lembra o todo, ela também evoca os sentimentos que o todo sugere”.
Em momentos de indefinição do pertencimento religioso não observamos um surto de
“ateísmo”, ao contrário, a experimentação da espiritualidade é crescente, como demonstram os
índices do IBGE, apresentados no primeiro capítulo. Procura-se o caminho do ocultismo ou o
caminho de Santiago; o caminho das preces ou o caminho dos pontos. As adesões simultâneas,
bem como o desenvolvimento de religiosidades sem vínculos institucionais se destacaram na
pesquisa direcionada aos jovens, abordada por Novaes (2004), que questiona se tais opções
seriam fruto da mudança ocorrida nos paradigmas dos anos setenta e oitenta. Tais mudanças
teriam relegado ao presente um ser religioso, mas sem religião, significando, sobretudo, a
existência de um consumo de bens religiosos sem a clássica mediação institucional.
Sem mediadores, o culto doméstico torna-se espaço para a experimentação dessa
religiosidade sem fronteiras. O culto particular dos pretos-velhos pode ser compreendido pelo
caráter doméstico que é atribuído a essas entidades, em oposição aos exus, que são considerados
“donos da rua”. Aos pretos-velhos está dedicado o lar, protegem a casa e a família, cuidando para
que as relações familiares transcorram na paz. Se as pretas-velhas representam esse universo
maternal, as pomba-giras, como verificaram Augras (1989), Birman (1995) e Meyer (1993), são
compreendidas como “mulheres da vida”, “amantes” e “prostitutas”.
Observando os ritos particulares, notei, como disse anteriormente, que a presença dos
pretos-velhos foi maior do que as demais entidades do panteão umbandista. Ainda que os
caboclos sejam também referidos como “guias”, a presença dos pretos-velhos nas experiências
corporais e nos ritos íntimos é superior a outras entidades.
5.2.1 Caso Marcos.
Conheci o jovem rapaz através da web, numa das comunidades em que se discutiam
temas sobre os “pretos-velhos”. Na ocasião, ele descrevia os sintomas que sentia e queria saber se
era uma manifestação espiritual, mais ainda, se a dormência no braço e o peso nas costas eram
sinais da presença de um preto-velho.
Disse-me que nunca tinha estado num local onde “desciam” espíritos. Nunca estivera
num lugar assim, até que um dia sentiu “necessidade”. Não que dependesse daquilo para buscar
202
explicações para seus conflitos internos, mas havia muitas indagações. Estava ali em busca de
respostas para suas aflições, que se iniciaram algum tempo antes.
Tudo começou quando ele, por causa de infecção provocada por um peircing, ficou
internado por um mês – um momento de reflexões. Um dos motivadores dessa imersão em
questões do espírito humano foi sua adorável namorada, que gostava de leituras “espíritas”. Ela
achava o tema interessante e, suavemente, comentava sobre o assunto com o namorado que,
normalmente, incitava-lhe dúvidas. Numa dessas conversas, ela lhe emprestou um livro,
“Médiuns Notáveis”, recomendando especialmente a leitura do sexto capítulo. Ainda enfermo e
internado, recebeu a notícia da morte da amada, aos 23 anos. A morte súbita lhe provocou um
grande sofrimento. Ele procurou fazer a leitura recomendada e leu todo o livro com afinco.
Depois de um tempo, a mãe de sua antiga namorada o apresentou ao autor. Ela também insistiu
para que ele conhecesse uma pessoa que considerava especial, um homem que praticava reiki* e
cromoterapia*. Ele resistiu um pouco, mas acabou cedendo. No tratamento, ele começou a sentir
coisas diferentes em seu corpo. As sensações foram aumentando: pesos sobre a nuca e o braço.
Nos momentos em que sentia isso, às vezes mal conseguia levantar-se. Experimentou uma
vivência completamente diferente de tudo o que lhe havia acontecido.
Certa vez, inesperadamente, respondendo ao chamado de seu terapeuta Paulo, cujo
corpo estava fora de controle, deu-lhe um passe, invertendo o papel de paciente e cliente. Na
ocasião, seu corpo não respondia às suas ordens, via claramente suas mãos e sentia a respiração
alterada do padrão de “normalidade”, mas não conseguia fazer nada. Essa experiência repetiu-se
com sua nova namorada, quando ela se encontrava adoentada. Intrigado, procurou um “lugar”,
termo geralmente usado para indicar um centro espírita – não soube definir bem se umbanda ou
kardecismo, descreveu a sala com uma mesa e, ao seu redor, pessoas que em estado de transe
manifestavam alguns espíritos. Achou muito estranha toda aquela performance. Mas ficou
extremamente intrigado com a definição feita pela liderança da casa, que disse ver uma pessoa
acompanhando-o e a descreveu. Suas palavras muito se assemelhavam à descrição de Paulo, o
seu terapeuta. Além disso, foi dito que uma de suas entidades era um preto-velho. Embora
algumas opiniões reforçassem a importância de sua entidade como um preto-velho curador, ele
sentia que este guia era um ser que contribuiria para o seu crescimento pessoal. Na verdade, nem
bem sabia o que era um preto-velho, pois nunca tinha visto um. A primeira vez que viu alguém
203
incorporado com esta entidade foi na TV, numa reportagem do “Fantástico” (programa exibido
na TV Globo em 20 de novembro de 2005).
Os estados alterados de sua consciência começaram a ser mais freqüentes e começou a
sentir o seu preto-velho. Ele lhe falava dentro de sua cabeça, dizendo o que estava acontecendo
com as mudanças do seu corpo; comentava também sobre questões de sua vida, do passado e do
presente. Os laços foram-se tornando mais intensos, e Marcos passou a se comunicar
mentalmente com sua entidade. No trabalho ou na ida para o lazer, ele o invocava para sua
proteção. Disse que tal transformação o deixou mais ciente de si, mais paciente e atento aos
conflitos que estão ao seu redor.
Na experiência narrada por Marcos, o preto-velho, embora seja compreendido como um
ser que lhe trouxe a “sabedoria” e a “paciência”, foi mantido como símbolo da escravidão, e só
tomou conhecimento dos aspectos clássicos de seu perfil através de um programa de televisão.
Sem que tais informações fossem realmente significativas para o que acontecia com seu corpo e
mente, instituiu para si uma devoção particular: um rito doméstico.
Fora do ambiente religioso, o rapaz tomou ciência do que estava acontecendo com ele.
Passou a observar, investigar, intuir e, sobretudo, sentir modificações corporais e mentais.
Buscava em seus conhecimentos sobre a biologia um esforço a mais na tentativa de encontrar
explicações. Nos sucessivos encontros que tinha com a entidade, procurou avaliar criteriosamente
o que lhe estava ocorrendo: ritos particulares contínuos que duraram dias e noites inteiras. Após
um longo tempo, experimentando crises, procurou sozinho formas para solucioná-las – encontrou
com a entidade uma forma de vivência pessoal em que as informações que lhe chegavam
deveriam ser fonte exclusiva para sua formação. Assim, para seu desenvolvimento espiritual,
criou cerimônias particulares, baseadas em prece, meditação e transes temporários.
Relembro que, mesmo contrariando antigas convicções, procurou um “lugar”, mas não
se identificou com nenhum dos que visitou. Sozinho, procurou ler mais e trocou informações com
seu cromoterapeuta, que considerava uma pessoa com a espiritualidade desenvolvida e exercitada
em encontros esotéricos, em viagens à Índia e na prática da meditação. Marcos confidenciou que
seu rito de iniciação propiciou mais “luz” ao preto-velho e, em contato com esta entidade, passou
a ter conhecimento de um lado seu até então desconhecido, tornando-se mais sensível e captando
com certa facilidade os sentimentos alheios. Por tal motivo, contou que prestou mais atenção em
si, no que sentia, pensava e falava.
204
A conduta de Marcos foi conduzida por ritos pessoais, tornando-se, portanto,
“personalizado”. O caso de Marcos foi escolhido entre outros similares para pensar essa
modalidade de relação com as entidades, principalmente no que se refere à sua modificação de
significados no âmbito da pessoalização: ainda assim se mantêm “escravos”?
Assim como Marcos, inúmeras pessoas vêm seguindo seus próprios “mestres”,
configurando uma prática ambígua, pois muitas pessoas que optaram seguir este trajeto dizem ter
dificuldade de encontrar um lugar em que “se sinta bem”; entretanto, repetem algumas
performances, conhecimentos, e se utilizam de certos instrumentos simbólicos dos grupos que,
por princípio, dele divergem, como o cachimbo, o banco, as ervas, etc. Além disso, em certos
casos, é comum o uso de pontos cantados, velas e incensos; há o predomínio de gestos rituais
clássicos, como o ficar de joelhos, deitar, girar o corpo e caminhar, e falar vagarosamente,
elementos significativos da estrutura ritual dos pretos-velhos.
Se nos terreiros os ritos cumprem a função de reforçar os significados compartilhados a
partir da crença e dos laços comunitários, sua particularização pode ser significativa da
construção de novos paradigmas religiosos. Percebo que a grande circulação dos usuários
religiosos amplia as significações do rito, pois, para além das interações subjetivas, parte dessa
estrutura do rito é confiada a cerimônias particulares, como nas orientações para banhos de ervas,
defumações, jaculatórias e outros aditivos rituais. Em decorrência de sucessivas experiências
deste tipo, algumas pessoas se sentem habilitadas a repetir o procedimento consigo mesmas e
multiplicar este saber, ensinando-o a amigos e parentes.
Há cerimônias domésticas que mantêm os moldes tradicionais, sendo oficializadas pelos
dirigentes religiosos. Três chefes religiosos contaram histórias sobre consultas que realizaram em
residências. Em alguns casos, dispuseram-se a prestar socorro espiritual em domicílio, por
entenderem os casos como situações de emergência, que não poderiam esperar até a data da
sessão pública. Um dos dirigentes disse que certa vez atendeu um rapaz que estava possuído em
sua casa, pois a mãe era uma cristã muito fervorosa e se negava a levar o filho ao terreiro;
entretanto, um ritual mais completo foi realizado posteriormente com a presença e atuação da
mãe no espaço sagrado.
Tais religiosos se declararam contrários ao rito doméstico dirigidos por pessoas nãoiniciadas ou mesmo por iniciadas, mas sem a experiência necessária. Alertam quanto aos
possíveis males físicos e mentais para seus praticantes. Suas opiniões indicam que tal prática
205
deveria ser restrita às lideranças, que, – para este caso – acredita-se –, possuem experiência e
legitimação social suficientes para controlar os sugeridos malefícios que poderiam advir da
personalização do ritual. Todavia, há indicativos de que esta prática vem-se ampliando, fato
constatado em conversas que tive com inúmeras pessoas que praticam ou praticaram este tipo de
rito, sem terem freqüentado um templo espírita ou com uma experiência mínima neste campo.
5.2.2 Vovó “Tijucana”: ruptura de laços com uma casa de Umbanda
Conheci a médium que recebia a vovó Catarina numa tenda de umbanda, da qual
participara por longos anos. Depois da divergência, passou somente a visitá-la, fato que lhe
deixava triste, pois, segundo disse, os motivos que a levaram a sair persistiam na casa. Sua vida
profissional e familiar dificultava a adesão a outro lugar e, para que continuasse promovendo a
caridade através da prática religiosa, resolveu receber em sua própria casa aqueles que mais
necessitavam.
Assim, recordou que por divergência de condutas, tanto ritual quanto de pessoas nele
envolvidas, não queria mais tomar parte de nenhum grupo religioso. Respeitava o trabalho de
muitas casas, mas mesmo assim queria “dar um tempo”. Lembrou que para a espiritualidade não
podia dizer simplesmente “olha vovó eu não estou a fim de ficar em lugar nenhum”, mas pediu
um tempo pra si. Assim, não deixou de atender aqueles que buscam sua ajuda.
Explicou que muitas pessoas batem à porta de sua casa lhe pedindo ajuda espiritual. Às
vezes começa com amigos e parentes, e logo o amigo do amigo e por aí vai. Embora não fizesse
nenhuma divulgação de seu trabalho religioso – pelo contrário, evitava esse tipo de exposição
para que não fosse julgada como “feiticeira”, “bruxa”, “macumbeira” ou qualquer coisa do tipo –
sua casa passou a receber muitas visitas. Com restrições, recebeu-me para uma conversa com sua
preta-velha, vovó Catarina.
Seguimos pela cozinha para o quarto de empregada. Neste cômodo da casa começou a
ser preparado o ritual. Rapidamente o pequeno espaço se configurou num terreiro. Copos d’água
e preces, banquinho para a preta-velha se sentar, e mais os seus apetrechos particulares, como o
cachimbo. O marido de minha anfitriã foi o cambono* daquela sessão particular; como exímio
puxador de pontos*, cantou alguns numa seqüência ritual própria, para proteger o lugar, para
206
invocar a entidade, para fazê-la ir embora e depois para manter uma boa energia para a casa. Ali a
entidade se apresentou, ou “desceu”, como se costuma dizer. Conversamos longamente.
Atendimento vip, sem filas de espera ou tempo determinado.
A médium Regina seguiu atendendo dessa maneira por algum tempo. Às vezes, com
mais duas pessoas em situação semelhante à sua, reuniam-se e produziram uma sessão para um
pequeno grupo. Combinaram uma vez no mês, mas depois os encontros se espaçaram. Regina e, é
claro, sua entidade, mudaram-se para o Recreio dos Bandeirantes. Depois de um longo período
sem realizar o tal ofício religioso, encontrou dois médiuns que estavam dispostos a se encontrar
com regularidade em sua casa. Organizaram o seguinte esquema: em fins de semana alternados,
produziriam sessões de estudo e de incorporação.
Sem placas na porta, papel convidando para consulta ou tambores ecoando, o grupo
realizou sua tarefa religiosa. Silencioso. Procurando, dentre suas próprias experiências anteriores,
produzir algo diferente. Contam apenas com suas próprias vivências das casas de umbanda que
freqüentaram e com as múltiplas influências como o Ramatis* e conhecimentos da Maçonaria*,
que, como explicou, permitem outras compreensões sobre a vida espiritual, promovendo usos de
energias mais sutis. A máxima orientação que os conduz são aquelas que chegam através das
entidades, das quais ouvem as explicações e orientações.
5.2.3
Preto-velho em Botafogo: entidade cuidando da casa
Mariana foi criada num ambiente religioso, misto de catolicismo com kardecismo.
Freqüentou a igreja, participando ativamente de grupos de jovens e outros movimentos pastorais,
mas sempre achou que a igreja não tinha explicações suficientes para alguns fenômenos da vida.
Durante nossa conversa, recordou que há muito tempo simpatizava com os pretos-velhos, nem se
lembrava como tudo começou. Achava que eles eram bons espíritos protetores. Gostava da
doutrina kardecista e da umbanda mas, no corre-corre cotidiano, pouco tempo lhe sobrava para
freqüentar algum lugar. Às vezes, quando ia até a casa de sua mãe em Valença, visitava o terreiro
que sua família freqüentava.
Em sua casa mantinha uma imagem de um preto-velho sobre o armário da cozinha,
próximo à porta de entrada. O local era estratégico; assim ele guardava sua casa. Ali, naquele
altar doméstico, de tempos em tempos ela oferecia à entidade uma bebida, café ou cachaça, além
207
de velas que acendia fervorosamente. Na verdade a imagem foi passar um temporada em sua casa
após uma crise familiar. A imagem do “Velho Tomé da Bahia” foi emprestada com a finalidade
de apaziguar os ânimos, mas, como sua fé era grande, mantinha ainda o tal altar. Era através da
imagem que ela tinha um contato maior com a entidade. Às vezes, ao passar, conversava com ela,
contando seu dia, falando sobre as dificuldades e alegrias vividas.
Mariana é uma jovem médica e, devido à sua profissão, quase não fica em casa, pois os
plantões são necessários para manter o padrão econômico da família, em função do qual não
tinha empregadas. Entretanto, com o nascimento do filho, foi obrigada a contratar uma
profissional, pois não podia diminuir os plantões.
Certo dia, no caminho do trabalho para sua casa, começou a ver mentalmente a imagem
de seu preto-velho, que parecia querer dizer alguma coisa a ela. A idéia mais freqüente era para
procurar em suas roupas algumas peças de que gostava. Aquilo parecia pensamento fixo. Ela
ficou intrigada, porque não tinha dado por falta de nada em casa. A sensação ficou muito forte e,
quando chegou em casa, foi direto para o armário. Mesmo tendo muitas roupas, logo identificou
as peças que faltavam. Ela mesma se surpreendeu, porque quase não usava aquelas roupas e
certamente iria demorar a perceber sua falta; e também porque não tinha motivos para desconfiar
do sumiço de nada em sua casa. Procurou manter a calma, indagou sobre o ocorrido à empregada,
que disse não saber de nada. A entidade lhe dizia mentalmente para pedir à empregada que lhe
mostrasse a bolsa, que estava num canto escondido na cozinha. Mariana foi ao local indicado pela
entidade e ficou surpresa ao ver todos os objetos, roupas e alimentos que estavam sendo levados
de sua casa.
Mesmo triste com a perda da empregada, até então considerada boa profissional e uma
pessoa bondosa, Mariana reforçou sua fé e agradeceu à entidade com um caprichado café, vela e
prece. Já faz quase dois anos que a imagem do “Velho Tomé da Bahia” está na casa da jovem
médica; ao que parece, a função original foi cumprida, sua família está unida novamente. Além
disso, conforme disse, o preto-velho se apresentou um excelente protetor.
5.2.4 Outras relações: “jeitinho” e outros paradigmas.
Convencionou-se dizer que o brasileiro é dotado de “jeitinho”, expressão que classifica
o cidadão pelos arranjos sociais de que dispõe, organizado nas relações que estabelece por sua
“cordialidade”. Assim, com “jeitinho” são instituídas relações de compadrio que podem facilitar
208
os trânsitos sociais, promovendo empregos, pagamentos de contas sem juros, retiradas de multas
de trânsito, processos que tramitam com lentidão, e outros atributos da vida social.
As pessoas que acreditam na intervenção intermitente das entidades, protegendo-as e
amparando-as em seu sofrimento, produzem com elas uma relação similar à que praticam no seu
cotidiano, ou seja, procuram empenhar-se em estabelecer relações de reciprocidade para
afiançarem, através desses laços, seus desejos e necessidades. Da mesma forma que procuram
apadrinhar-se de importantes figuras sociais, para que deles possam se beneficiar, manipulam,
igualmente, suas relações espirituais com o “jeitinho” que lhes é peculiar.
O caso da diretora de uma outra escola é exemplar deste tipo de relação. Ela era diretora
de uma escola de período integral conhecida por CIEP, cujo prédio imenso é de fácil
reconhecimento a longa distância. Normalmente, o tempo vago nas escolas tem dupla serventia:
os colegas se encontram e trocam experiências pedagógicas; ou a matéria principal passa a ser a
vida pessoal daqueles que ali estão, ou, melhor, daqueles que ali não estão. Geralmente, diante de
algum problema de relacionamento com a direção, esta se torna o alvo preferencial de todas as
conversas. A ação de quem está no comando é dissipar o debate, evitando, principalmente o
tempo ocioso. Vários são os caminhos adotados para se evitar este tipo de conflito silencioso: da
“espionagem”, que coloca todo mundo em estado de alerta contra seus pares, à ameaça de
“devolução” para o setor administrativo; e, também, como soube, a demanda espiritual.
Martha 2 , diretora de uma escola deste tipo, apelou para a última alternativa. Na verdade
freqüentava há muito tempo um terreiro de confiança. Em seu gabinete mantinha um charuto no
alto da janela, presente de sua entidade de fé para guardar o lugar. Além disso, guardava em seu
peito as guias de proteção. Elas ficavam sob sua roupa, mas, em dia de reunião, quando havia um
problema mais polêmico para ser resolvido, fazia questão de deixá-las aparentes.
Certo dia, em reunião convocada para traçar metas do ano seguinte, apareceu com
várias guias trançadas no peito: percorriam o pescoço e passavam por baixo do braço. Parecia um
importante pajé. Somente esta aparição já foi significativa para o grupo. Todos a temiam, e os
colares provocavam neles a apreensão do terror. Pessoas mais íntimas cutucavam uma à outra, e
ela – com o olhar altivo e imponente – transmitia que estava no comando: com o cargo de
diretora e sua “investidura espiritual”, impressa nos códigos do “charuto” e das “guias”, ela não
2
Essa história foi contada por um professor da unidade escolar da qual Martha (nome fictício) é diretora. Dezembro
de 2005.
209
pedia opiniões, comunicava o que seria feito. Tratava de comunicar que quem não estivesse
satisfeito poderia ir embora. Agia como dona do espaço, de um espaço público. Parecia não
duvidar que suas decisões não seriam questionadas. Além disso, sua atitude demonstrava
tamanha convicção, que não dava margens a outras possibilidades. Uma das professoras
comentou que: “Ela tinha todos na palma da mão”.
Assim como no caso da pomba-gira narrado no primeiro capítulo, todos tinham medo
dela. O grupo acreditava que Marta conseguiria o que queria, pois estava amparada por forças
sobrenaturais. Conseqüentemente, se ela tinha “forças”, não adiantaria “falar nada”, pois a
entidade e a pessoa “Martha” estão misturadas, e o temor de uma é o da outra também.
O caso de Valéria ilustra os benefícios de manter sua própria entidade. Certa vez,
passou mal em seu trabalho, teve que ser removida imediatamente para um hospital. Contou que
o auxílio lhe chegou numa medida certa às suas crenças, pois entendia que o mal-estar era um
aviso de suas faltas espirituais. Como diretora de uma escola, vivia imersa neste universo e não
tinha tempo suficiente para dedicar-se à espiritualidade. A princípio o médico detectou estresse,
mas Valéria, seguindo sua intuição, procurou sua mãe-de-santo para realizar alguns “trabalhos”
espirituais que estavam pendentes. Em meio ao tratamento espiritual, foi acometida novamente
por uma grave crise, sendo novamente encaminhada a uma unidade hospitalar. Era um domingo e
ela foi atendida sem muita demora. Quando começou a descrever seu estado, o médico lhe disse:
“Doutor é de segunda a sexta-feira. Agora eu sou Pai Joaquim de Angola”. Ela olhou assustada.
E o médico, naquele momento preto-velho, atendeu-a de forma bastante fraternal, acolhendo sua
história, conversando e aconselhando. Ela saiu mais leve. Depois ficou um pouco arrependida por
não ter perguntado várias outras coisas que queria saber sobre sua vida pessoal. Afinal, como
esperar ser atendida por uma entidade naquele lugar?
Passado o primeiro momento, compreendeu que não deveria abandonar a sua
espiritualidade, pois sua vida demonstrava o quanto era amparada pelas “forças” divinas. Como
um quebra-cabeça, relatou a forte ligação com os pretos-velhos. Há muito tempo era Pai Joaquim
e vovó Cabinda que cuidavam de suas dores e a ajudavam na resolução de muitos problemas. Em
verdade, atribuía à dupla de pretos-velhos a responsabilidade pelo seu nascimento. Contou que no
momento de seu nascimento não havia médico presente; sua mãe, então, pediu socorro aos céus
e, em seguida, ela deu à luz sozinha. Depois de um tempo, numa sessão de terreiro ficou
confirmada que a ajuda recebida era obra dos pretos-velhos. O cargo que ocupava na hierarquia
210
da escola também foi atribuído à ajuda das entidades. Contou que seria graças a elas que
administrava a escola, porque sabia que não tinha conhecimento suficiente para isso e, em
diversas situações de conflito, as idéias que lhe chegavam pela intuição é que a ajudavam. Deste
modo, acreditava que suas entidades estavam sempre presentes e sabia que podia contar com elas.
A relação de intimidade exposta não ficou restrita à pessoa e sua entidade, ao contrário,
cumpria a função de ajustar as relações naquele ambiente de trabalho. Para mostrar “quem”
estava no comando, era necessário mostrar “quais” eram os padrinhos espirituais que a
protegiam. Do mesmo modo que a frase “você sabe com quem está falando” tem um alcance
social, indicando que o locutor deve ser alguém importante dentro do cenário social, frases como
“meu santo é forte” levam a uma compreensão religiosa do termo em que se imagina quais são
as relações espirituais que mantém, de modo que se possa saber exatamente se pode “mexer” ou
não com ele.
A exemplo dos moldes de relação cordial, que em passo acelerado transformam um
recém-conhecido em amigo e compadre, nos ritos domésticos o guia espiritual pode rapidamente
ser concebido como membro da família ou antepassado. Há casos em que se compreende este
tipo de manifestação como encontro com a própria “porção divina” que, nesta concepção,
habitaria todos os seres. Neste sentido, portanto, encontrar-se espiritualmente é pensado como um
encontro consigo mesmo, descobrindo uma identidade eterna e até então encoberta.
Neste “encontro”, o sujeito operacionaliza sua conecção com as entidades e (re)constrói
as significações religiosas, modelando suas experimentações a partir de signos socialmente
reconhecidos, que em tal particularização, sofrem ajustes. Os espíritos que – na maioria das casas
tradicionais são concebidos por seus nomes, como “Pai Joaquim” ou “vovó Maria Conga” –
podem ser chamados de “guia”, “mentor”, “mestre”, “energia” ou “força”. Esta relação é
permeada por laços de afinidade e solidariedade, sentimento este firmado constantemente por
trocas mútuas de benefícios alcançados e ações de agradecimentos – preces, velas e diferentes
formas de oferendas.
A pesquisa tem revelado que relações de culto doméstico com os pretos-velhos são
mantidas também como forma de obter as qualidades que foram a eles atribuídas, como seu
predicado de “humildade” ou “paciência”, visto que se acredita que tais entidades
podem
promover o apaziguamento de relações conflituosas. Sua presença nos lares pode ser atribuída à
sua fama de “protetores”. Deste modo, seu perfil, associado à bondade e à conciliação, contribui
211
para a representação de pacifismo e cordialidade, que os devotos julgam atrair para si e para seus
familiares.
Lembro que, comumente, as brigas familiares, amorosas e no trabalho são motivações
concorridas na fila de espera dos consulentes dos pretos-velhos nos terreiros. Ali também ouvi
inúmeros comentários sobre sua capacidade de cuidar dos lares. Comentavam que tal entidade
podia ajudar a família, mas não fazia nenhum tipo de magia que aproximasse casais que não se
amavam e nem tampouco separavam os amantes.
O perfil de “bondade”, “paciência” e
“humildade” é significativo na construção de sua representação como “ancestral”. Classificados
como “espíritos protetores”, podiam acompanhar uma mesma família por gerações. Lembrando
que sua máxima representação é de “escravo”, pensado como ancestre, pode-se compreender que
vigora a idéia de que ainda se pode possuir um escravo fiel, religioso e amoroso, tal qual aqueles
que protegiam seus senhores num recente passado escravista. Deste modo, a manutenção dos
pretos-velhos como guia pode ser associada à imagem tradicionalmente veiculada pelas estruturas
sócio-religiosas, que refletem a imagem de escravos gentis, amorosos, pacíficos e conciliatórios.
O perfil “cordial” colabora para que o trânsito dos pretos-velhos seja inter-religioso, ou
mesmo supra-religioso: “espiritual”. Embora o culto doméstico não seja exclusivo da
contemporaneidade – ao contrário, é fundante de inúmeras modalidades religiosas e secularmente
apreciado na figura das benzedeiras – pode ser significativo o fato de se manter numa época em
que pesquisas indicam uma destradicionalização da prática religiosa no Rio de Janeiro,
considerado pelo IBGE como o menos católico da Federação (50%) e com um alto índice dos que
se acusaram “sem religião”.
Inevitavelmente, uma destradicionalização influencia na visão religiosa que essas
pessoas constroem para si. Através dos depoimentos e das observações, percebi que o
afastamento das práticas religiosas mais tradicionais indica uma mudança de prática religiosa,
atualmente voltada mais para as escolhas individuais, superando o modelo antigo em que se
mantinham as religiões advindas da vida familiar. A experiência de Marcos demonstra a decisão
de não ter vínculos, mas sim crenças. Indica também que, mesmo não praticando uma religião
espírita nos moldes prescritos, isso não significou sua não-adesão a alguns princípios
doutrinários, ao contrário, modelou alguns conhecimentos em acordo com suas necessidades.
Essas propriedades das crenças (re)criadas a partir de antigos códigos religiosos ainda
não são mencionadas em registros oficiais, de modo que os “sem religião” podem ser
212
considerados como possíveis praticantes de cultos domésticos que se baseiam, sobretudo, em
crenças ecléticas para compor o seu rito. O trânsito no campo espírita favorece a composição
deste tipo de manifestação religiosa. Tal circulação, em alguns casos, permite a organização de
cultos domésticos, às vezes compartilhados por amigos e parentes escolhidos para tal
experimentação. Há casos de pessoas que mantêm as duas práticas: um vínculo com uma religião
tradicional e, em separado, promove cerimônias particulares.
Remontam-se pequenas estratégias cotidianas 3 de filiação expressas nos ditos: “Eu sou
de Deus”, “Sou do Santo!”, “Tenho Santo forte!”, “Cuidado com fulana, ela tem uma entidade
muito forte”. Pequenas estratégias que podem levar a produzir um diferencial em relação ao
outro: “Eu sou!”. Este poder conferido a si procura, através dos laços de compadrio com
entidades ou com religiões, promover-se, trazer e/ou manter benefícios.
Entende-se que as condutas religiosas particulares podem ter ou não vínculos com
estruturas religiosas tradicionais. Percebi que as estruturas tradicionais do campo espírita de certa
forma são reproduzidas neste culto doméstico e, neste particularismo, pode-se domesticar as
entidades, tornando-as quase-parentes, o que de certa forma contribui para fortalecer socialmente
esta pessoa. Marcos utilizou sua relação com os pretos-velhos para o autoconhecimento; Valéria
atribui seu nascimento e a realização profissional aos cuidados dos pretos-velhos; e Martha
arroga o respeito de seus colegas de trabalho, impondo-lhes uma relação hierárquica em que eles
são tratados como seus subalternos.
Todos os exemplos refletem uma forma de estabelecer as relações a partir de uma
linguagem religiosa, baseada no poder de intervenção destas “forças” na vida cotidiana”. Poder
que expressa os modos como são estabelecidas as configurações sociais no Brasil. Coação,
respeito, temor e obediência estão implícitos nessa relação de poder, que impera sobre as
entidades, sobre seu “aparelho”, pois depende dele para se comunicar, e dos usuários destas
“forças” sobre aqueles com quem compartilham o cotidiano. Em todos estes níveis, impera a
correlação de forças, que implica integração a este modo de ver e viver o mundo.
3
Focault (1985) explica que o poder não é imposto exclusivamente por um grupo, que subjuga o outro, mas
apresenta-se nas relações difusas através dos comportamentos e atos, numa arquitetura microfísica das relações. A
dualidade moral/ideologia, contida na definição de “indivíduo” foi pensada a partir da reflexão de Ricoeur (1987).
Outra importante contribuição para o pensamento contemporâneo sobre indivíduo adveio da análise de Dumond
(1992), que tomou como referência o estudo de castas. DaMatta (2000) analisou o indiviualismo junto ao conceito de
liminaridade, contribuindo para pensar os ritos particulares e seu estado liminar.
213
Este modelo de relacionamento particular e, portanto, direto entre a pessoa e sua
entidade ou “força”, eliminando os intermediários, denota um caráter de individuação das
relações religiosas; contudo, no rito de consulta predominam as relações clássicas dos moldes
religiosos, pois representam, sobretudo, a possibilidade de dar visibilidade às pessoas e aos seus
problemas, permitindo que sejam cuidadas. Quando existe a relação direta com suas próprias
entidades, elimina-se uma etapa, o que, para algumas pessoas, traz um certo constrangimento,
pois comunicam suas falhas e paixões. As entidades, porém, são percebidas como alguém que já
passou por problemas semelhantes, e isso favorece a um ambiente propício para uma
aproximação mais fraternal. Assim, as duas formas de relação com as entidades revelam
diferentes facetas do seu uso particular, pois, em ambos os casos, compreende-se que cada pessoa
é assistida em sua necessidade. Entretanto, acredita-se que se pode sentir mais protegido quem
mantém em si sua entidade.
Essas histórias relatadas demonstram que o conforto espiritual é garantido através da
crença na onipresença dos seres sobrenaturais no cotidiano pessoal. A experiência espiritual não
está exclusivamente ligada aos ritos religiosos, mas pode por eles ser intermediada. A afinidade
produzida por identificações, como ocorre nas histórias que ilustram o sofrimento dos pretosvelhos-escravos, pode estar situada em locais e formas distintas. Assim como sua “força” pode
ajudar nos problemas, também a crença de que possui certa experiência de vida os torna
habilitado para tal. Nas expressões dos consulentes em espera para a consulta ou da diretora que
possui suas próprias entidades, configura-se uma relação personalizada, em que a entidade pode
literalmente ser travestida em “socorrista de plantão”. Em épocas nas quais as pessoas procuram
um profissional especial para manter sua boa forma, outro para cuidar de sua casa e, ainda, um
terceiro para personalizar o uso de suas roupas e gestos, as práticas religiosas parecem
acompanhar esta modernização das relações e, assim, cria-se o personal espiritual.
5.3 O Rito da Arca da Montanha Azul
Acompanhei alguns rituais de um grupo denominado arca que, assim como a barquinha,
utiliza o Daime como bebida sagrada em seus ritos. A razão deste rito não estar junto àqueles que
descrevi no segundo capítulo deve-se ao fato de apresentar uma peculiaridade em relação aos
demais. É rito coletivo e religioso, entretanto sua ênfase não está nesta relação comunitária; ao
214
contrário, o rito é preparado para desenvolver a relação íntima com Deuses e Deusas, de modo
que cada um, individualmente, encontre uma forma de expressar sua relação espiritual. Diz-se
que o grupo é necessário para somar “forças”, mas não é imprescindível. Ao contrário dos
religiosos tradicionais, que alertam para o perigo das relações individuais com as entidades, aqui
elas são estimuladas.
Como disse, a proposta desta comunidade é unir as crenças e ampliar “forças”, gerando
uma composição que possa agregar qualquer pessoa que se interesse em promover o
autoconhecimento e que, através dele, seja capaz de se encontrar com o sagrado. Nestes termos,
compreende-se o “sagrado” como parte que compõe todo o ser humano. O grupo é diversificado:
alguns membros praticantes exclusivos da casa; outros, cuja freqüência oscila, como os daimistas
de diferentes procedências – da UDV (União dos Vegetais), da barquinha e demais correntes da
linhagem do Mestre Irineu; além disso, é comum encontrarmos umbandistas, hare khrisnas,
yôgues, católicos e kardecistas.
O rito da arca ocorre semanalmente numa casa entre Laranjeiras e Santa Tereza (Rio de
Janeiro). Através do portão de garagem, chega-se à entrada principal, que se abre por um dos
membros da casa, devidamente vestido de branco, assim como todos aqueles que esperavam
numa espécie de ante-sala. A pequena saleta tinha as paredes cobertas de murais com avisos
esotéricos sobre encontros de yoga, cartões de visita anunciando massagem ayurvédica e
propaganda de comida natural. Havia também algumas imagens de divindades indianas. O rapaz
responsável pela recepção convidou a assinar o livro de presença, no qual, junto à assinatura,
havia um espaço para subscrever uma quantia como oferta para a casa; os valores variavam de R$
30,00 a R$ 5,00 reais. O dinheiro é utilizado para a manutenção do espaço e para a aquisição do
Daime, que, por vezes, vem do Acre. Quem faz parte do grupo logo desce para o salão principal,
a fim de organizar os preparativos, enquanto os visitantes, mesmo os mais freqüentes, aguardam
o chamado da liderança da casa. Há orientação para que as pessoas que nunca tomaram o Daime
cheguem cedo para uma conversa em que se explica parte da história da ayhuasca e do grupo;
fala-se sobre os possíveis efeitos do chá e as formas de proceder em situações inesperadas, em
decorrência da bebida.
Saímos da saleta descendo por uma escada caracol de ferro até um pequeno hall. Neste
local, todos deixam os sapatos e descem mais um lance de escada, que nos leva até o salão
principal, onde ocorrem os ritos. O salão é grande, aproximadamente 10X20m. Ao lado direito,
215
encontra-se uma porta que leva ao cômodo destinado ao dirigente, que funciona como escritório e
área de descanso. No recanto da direita há uma pequena cozinha com balcão voltado para o salão.
Próximo à porta de entrada para o escritório, ao lado direito, está um móvel com imagens de Frei
Daniel, Mestre Irineu, Cristo, pretos-velhos, budas, entidades de umbanda e divindades hindus.
Ao lado estão dispostas algumas representações de Buda e, abaixo, são guardados os
instrumentos usados no ritual: atabaques, bongô e uma flauta transversa. Do outro lado, a parede
é coberta com um banner com a figura do Mestre Gabriel (UDV); próximo fica uma mesa, sobre
a qual uma imagem em mosaico da divindade hindu Jagannātha, “Senhor do Universo”, e alguns
aromatizadores em spray que, ao longo do ritual, podem ser usados para intensificar ou diminuir
as sensações experimentadas, como “tranqüilidade”, “confiança” e “amor” – nomes impressos
nos rótulos dos tais frascos. Ao lado desta mesa, uma porta leva a uma saleta: a sala de cura.
Notei que havia pessoas que se sentiam mal, gritavam e se debatiam, sendo atendidas por um
grupo naquele local; a tal atendimento privado, dá-se o nome de “cura”. Nesta situação, somente
os membros mais antigos da casa ou o próprio dirigente têm acesso ao local. No canto extremo da
sala, corredores levam aos dois banheiros, para homens e para mulheres.
No salão principal, por uma grande porta de vidro se chega a uma varanda com árvores
e plantas, onde está o cruzeiro das almas, um quadrado azulejado com uma grande cruz erguida e
iluminada, destinado à realização de orações em intenção das almas. Antes ou no decorrer do
ritual, algumas pessoas procuram o cruzeiro para fazer preces; algumas acendem velas. Próximo
à cruz, fica uma bacia com uma mistura de ervas maceradas em água e essências que serve para
fazer a “purificação” e para a “proteção” espiritual. Assim, quem sentir necessidade de fazer um
“descarrego” pode ir até a cruz e passar um pouco d’água pelo corpo, conduta explicada pelo
dirigente em sua palestra inicial. Nesta área externa, ficam dispostos baldes para o caso de ser
necessário outro tipo de limpeza: o vômito. Como disse anteriormente, este pode ser um dos
efeitos espirituais do chá.
Complementando o ambiente, almofadas, cadeiras, bancos, sofás e colchonetes são
espalhados por toda a área do salão, para que cada pessoa possa ficar onde se sinta mais à
vontade. Algumas pessoas permanecem parte do ritual deitadas, outras sentadas; e há também
aquelas que ficam circulando pelo salão, embora o rito tenha etapas que, a princípio, deveriam ser
cumpridas por todos, como a meditação com cânticos e o bailado. Procurando oferecer as mais
variadas possibilidades para que a pessoa “se encontre” ou se encontre com o seu “eu divino”, há
216
um espaço reservado - uma mesa com cestos de giz-de-cera, lápis-de-cor, hidrocor e papéis para que se possam expressar sentimentos ou transmitir mensagens recebidas mediunicamente.
O contato inicial com o dirigente da casa se torna importante para esclarecer dúvidas
sobre o rito e o chá. As perguntas mais freqüentes são sobre seus efeitos psicoativos. Como disse,
nesta conversa a liderança narra o histórico do lugar, localizando-o junto a outras igrejas
daimistas. Fala sobre seu propósito de agregar diferentes concepções religiosas procurando
comungar o que acredita que todas têm em comum: “a busca pela paz e a vivência do amor”.
Explica que o ritual não segue etapas previamente definidas, mas, ao contrário, vai acontecendo
conforme a “energia que sente” e a direção determinada pelas entidades presentes na casa. Ele e
os demais membros da casa selecionam os hinos, determinando o encaminhamento das “obras de
caridade” que são feitas, porque é através das músicas que se cumpre a finalidade de cura, de
atração e repulsão dos espíritos, podendo, a partir da sensibilidade de cada um, o rumo do rito ser
alterado. Deste modo, a imprevisibilidade pode ser notada no hinário seguido: do Padrinho
Sebastião, do Mestre Irineu, da Madrinha Francisca Gabriel; ou, ainda, mantras, cantigas
católicas ou pontos de umbanda.
Embora trate o culto como “imprevisível”, três momentos são “fixos: o de concentração,
com cantigas (que variam conforme indique o “momento”); o bailado, quando todos dançam em
louvor às suas divindades ou incorporados com suas entidades; e o último, em que o líder lê um
texto, que pode ser uma mensagem da bíblia, um texto védico ou qualquer outro que tenha
alguma doutrinação sobre a relação do homem com a divindade. Neste momento é aberto um
diálogo com os participantes.
Diante das observações e conversas que tive com os freqüentadores, compreendo que a
arca oferece a possibilidade de uma experiência singular da prática espiritual. O líder faz questão
de deixar claro que não deseja fundir ensinamentos e dogmas e que, portanto, não se trata de uma
religião “híbrida”, mas que procura aproximar crenças e práticas. Junto a esta prática agregadora
de crenças, o grupo permite que a adesão religiosa ocorra instituindo um perfil diferenciado de
seus praticantes. A jovem hare khrisna foi repreendida por seu grupo religioso de origem, por
estar freqüentando paralelamente a arca e tomando o Daime; obrigada a escolher, ela preferiu
manter-se na arca, até encontrar outro lugar que não fosse tão fechado a ponto de não perceber
que “Deus está em todos os lugares”. Outra mulher, também hare khrisna, comunicou ao seu
guru que estava tomando o Daime na arca; este guru, porém, aprovou, orientando-a para que
217
continuasse levando Khrisna a outros ambientes. Estes dois casos são significativos para a
compreensão do modelo religioso estabelecido pela arca, que representa um padrão de
experimentação religiosa da atualidade.
Retornando ao rito: o ambiente possibilita a vivência religiosa individual, embora o
momento de concentração seja dedicado à promoção de uma corrente de energia comum; não há
impedimentos para que alguém se levante e vá até o cruzeiro ou se sente à mesa para desenhar
algo. Entre uma canção e outra, é comum alguém sugerir ou iniciar uma cantiga; presenciei
também pessoas que interromperam a música para lerem suas mensagens, hinos ou descreverem
suas experiências. Na palestra inicial, o dirigente explica que, se alguém sentir vontade de
dormir, pode escolher um canto e descansar, pois a espiritualidade vai estar agindo da mesma
forma. A orientação é ficar atento ao próprio sentimento, para poder entrar em contato com o
divino que está “dentro de si”. Nas convicções expressas pela liderança, as religiões aproximam
os homens de Deus, mas a disputa pela legitimidade de uma religião em detrimento de outra pode
afastar os elos que unem os homens. Foi através de uma “miração”, em que os grandes líderes
espirituais – Cristo, Khrisna, Buda, Ghandi, entre outros – apareciam de mãos dadas, que o
dirigente se sentiu estimulado para inaugurar esta forma de trabalho espiritual. Em sua
explicação, disse que seu objetivo final seria a “comutabilidade”, ou seja, “o compartilhamento
de ensinamentos e práticas”.
O bailado expressa este sentido de “comutabilidade”. Todos os participantes em roda
dançam para suas divindades, invocando-as para tomar parte do rito. Os corpos expressam a
variedade de crenças. Umbandistas dançam à moda e os hare khrisna idem; os daimistas da
doutrina do mestre Irineu também apresentam as peculiaridades de sua doutrina, numa dança com
menos movimento – alguns acompanham as músicas com o maracá, instrumento típico de seu
grupo de origem. Algumas pessoas entram em transe com suas entidades e percorrem o salão
dançando ou com as mãos impostas, numa postura de promoção da cura. O salão se enche de
caboclos e pretos-velhos, mas não há espaço para o rito da consulta, pois a idéia é que cada um
possa entrar em contato com seus guias espirituais. Além disso, a função de cura que predomina
na busca pela consulta se desfaz, pois se acredita que a cura ocorre através da ingestão da bebida
e das entidades que se encontram no ambiente, levando a “energia da cura”. Deste modo, quem
incorpora suas entidades, assim o faz para ajudar quem precisa naquelas circunstâncias, ou em
benefício do médium. O contato entre entidade e os visitantes só acontece se houver um pedido
218
de ajuda. Observei algumas situações em que isso ocorreu, mas era entre pessoas amigas, o que,
aparentemente, demonstrava um encontro com o pedido particular de “benção”, “passe” ou
“aconselhamento”. Isso significa que as visitas não procuraram o lugar para se aconselhar com
entidades, mas para um encontro com elas mesmas e com sua “força”.
Há casos de ajuda mais direcionada, sobretudo, nos casos de “desobsessão” que, como
disse anteriormente, pode ser feito com o dirigente no quarto de cura. Noutros casos, a “força” do
chá pode levar a pessoa a ter sentimentos de dor, medo ou angústia; nestas situações, quem é
médium experiente procura ficar próximo, na tentativa de ajudá-la, mantendo-se numa postura de
prece e com as mãos erguidas voltadas para ela.
A dança, como já se viu, é de fundamental importância no rito, pois o bailado tem a
função de aproximar as entidades, e o Daime funciona como um agente transmissor destes seres,
ou como potencializador das funções mediúnicas. Acredita-se que o corpo serve para o louvor às
entidades e, além disso, permite a circulação da energia: a roda cumpre a finalidade de formar
uma espécie de núcleo energético, onde é gerada a concentração de “forças”. As músicas
ritmadas pelo atabaque permitem evoluções corporais diferentes – alguns usam, como na
barquinha, a marcha: dois passos à frente, interrompidos por uma meia parada, como se fosse dar
um passo atrás. Outros, como no candomblé: cadência de uma marcação para um lado e depois
para o outro. Algumas mulheres com saias rodadas giravam pelo salão, outras dançavam fazendo
delicados movimentos com as mãos, como danças de origem indiana. De vez em quando, alguém
dançava incorporado com seu caboclo, em posição clássica de índio: mão no peito e outra nas
costas. Como disse, os pretos-velhos também se apresentam em suaves manifestações, com o
corpo semi-arqueado. Algumas pessoas ficam por um longo tempo incorporadas e andam pelo
salão, vão para fora e, em alguns casos, fazem elaborados movimentos com o corpo,
principalmente com as mãos, indicando seu trabalho espiritual: as mãos tremem passando pelo
corpo do médium, depois voltam-se em direção de outros devotos e percorrem o ambiente.
Todas as manifestações individuais são respeitadas e “bem-vindas”. Disse mais acima que
o grupo tem um dirigente, mas ressalto que há um grupo fixo, cujos membros se responsabilizam
pela cerimônia: tocam instrumentos, levam textos, atendem os visitantes e distribuem o chá. A
proposta de fazer um ritual integrado, com a participação dos membros mais antigos junto àqueles
que chegam pela primeira vez na casa, permite que cada um se sinta colaborador deste processo
ritual, cuidando de si, do espaço e do outro, cantando ou tocando instrumentos que ficam
219
disponibilizados para quem quiser usar. O dirigente, com sua esposa ao lado – literalmente, pois
permanece durante quase todo o rito sentada junto dele – organiza e conduz a cerimônia.
Para explicar o grupo, o dirigente fez questão de afirmar que não eram “híbridos” e, a
exemplo disso, disse que a arca poderia ser simbolizada como uma esfera sextavada, que, ao
girar, se apoiaria num ponto, mas não se fixaria nele. Esta representação parece ser significativa
se pensarmos nos freqüentadores do lugar. O núcleo fixo é pequeno em relação à fluidez daqueles
que o visitam. Para estes visitantes, o lugar expressa a possibilidade de se encontrar com a
espiritualidade numa experimentação física do que até então a maioria ouvira falar. Costuma-se
dizer que o que se ouve pode ser esquecido, mas o que o corpo sente é memória inalienável. Essa
escolha representa uma forma de conduta contemporânea que se afasta da “raiz”, mas que
procura uma forma de agregar, sem sentimento de “culpa” ou medo de “pecar”, sentimentos
marcantes nas religiões de cunho “católico”/ “protestante”. Por tal motivo, a jovem hare khrisna,
embora estivesse sofrendo, pois não estava mais cuidando de suas entidades no altar de seu
templo, não admitia a possibilidade de alguém intervir no seu sentimento religioso.
Neste local os pretos-velhos são pensados como uma entidade proveniente da umbanda,
que representam uma “força” ou uma “energia”; alguns os pensam como “escravos”. Esta
representação está consonante com a proposta do dirigente e a prática dos visitantes, indicando
que, quanto mais próximo se está da “raiz”, mais predominam certas práticas e significações.
Aqui, novas modelações são feitas e, conseqüentemente, os aspectos propagados das entidades
são resignificados.
5.4 Em busca de um lugar dentro de si.
Na contemporaneidade, estariam sumindo as tradicionais raízes religiosas? A mudança
de antigos paradigmas religiosos promove a possibilidade de repensar a sociedade brasileira? Os
diferentes ritos que abordei podem ser demonstrativos do fortalecimento dos laços sociais ou
indicam a promoção da alteração dos estágios atuais? Nos ritos domésticos, até que ponto a
interestrutura, que mantém afastados os sujeitos de sua vida cotidiana, tal qual mencionou Turner
(1974), pode ser localizada? De que forma os pretos-velhos, através dessa natureza ritualística,
fornecem elementos para a compreensão da estrutura social?
A circulação dos usuários por diferentes locais de culto, à procura daquele que seja “o
seu”, indica a busca frenética pela solução emergencial para um incômodo localizado, se possível
220
sem criar um compromisso: sem raiz. Este “descompromisso” favorece a circulação de certas
representações e práticas religiosas e, particularmente, aquele que nos interessa: os pretos-velhos.
É um símbolo que representa a unidade e a continuidade do coletivo, expressando seus valores e
desejos. Sua multivocalidade suscita interpretações e usos diversificados e complexos, aqui
apresentados através de relatos das experiências de informantes e das observações dos rituais.
As narrativas que aqui foram expostas descrevem um cenário urbano, com marcas
próprias a este espaço contemporâneo. Ambas delineiam um quadro de expressão de
religiosidade que, embora não cumpra os clássicos ritos das doutrinas religiosas, representam sua
prática individual. Os aspectos até então circunscritos ao espaço religioso e, de certo modo
privado – ou seja, dominado por um grupo que compartilha códigos comuns -, são evidenciados
sob o prisma da experiência particular, mas sem que isso signifique exatamente manter-se
resguardado neste fórum pessoal.
A internação de Marcos relatada no início do capítulo é significativa em seu processo de
iniciação na espiritualidade: rapaz, na ocasião com 23 anos, experimentava a vida neste enfoque
geracional, freqüentando bares, boates e esculpindo o corpo em academias; vivia ainda um
período bem sucedido econômica e profissionalmente, ocupando um cargo que lhe dava prazer,
pois abandonara a carreira como biólogo para dedicar-se ao designer. Estava feliz afetivamente,
namorando uma mulher bonita e inteligente. Sua ida para o hospital e a morte da namorada
pareciam convidá-lo a pensar sobre o espírito: afinal, ela morrera durante a prática de exercícios
numa academia e ele ficara gravemente doente por causa do enfeite que colocara na orelha. A
crise em sua vida o aproximou dos tradicionais rituais que lidam com a aflição e o mundo dos
espíritos, mas, como disse, “achou estranha aquela performance”. Mesmo assim, passou a
entender que a saída de seus conflitos estava na via espiritual. Aos poucos foi compreendendo
que seu corpo, para além de uma existência material, cuidado em academias e enfeitado à moda,
como a colocação de peircing, experimentava sensações fora dos seus padrões de compreensão
costumeiros e, por tal motivo, sentia dificuldade em nomear sentimentos e os seres que passaram
a acompanhá-lo.
Os ritos que propiciaram a aproximação dos espíritos e a manutenção do vínculo
ocorreram em espaços bem diferentes do que se costuma observar. Sua espiritualidade foi
acompanhada por um “guru” ou “mestre”, como referiu Marcos. Este mestre estava habilitado a
fazer tratamentos não-convencionais, através da manipulação das “energias” das cores, dos
221
cristais e de mantras, que se acredita serem capazes de possibilitar o alcance do plano imaterial
através da repetição de sons ou nomes e sinais. Em seu consultório em Ipanema, zona sul carioca,
ele experimentou as mais intensas sensações espirituais. Posteriormente, ele próprio procurou sua
iniciação no reiki, para usá-lo em amigos e parentes. Além disso, passou a praticar com
freqüência a meditação, sozinho ou em grupos que se reuniam em workshop nos finais de
semana. Aos poucos sua vida foi mudando, principalmente no quesito “valores”; já não estava
mais tão preocupado com sua aparência, ainda que mantivesse certos ritos corporais, mas agora
de outra espécie, pois a prática física devia acompanhar a alma. A prática da espiritualidade não
se encaixava em nenhum exemplo existente, disse que “não se via” naqueles lugares. Sua
trajetória não é exatamente a única neste campo religioso, o “não lugar” não lhe fez falta, ao
contrário, permitiu que construísse um espaço peculiar de crença, que, atualmente, tornou-se um
modelo para muitos devotos, num indicativo de mudanças nos padrões sociais.
Através das narrativas, pode-se ver outra forma de manipulação das entidades,
especialmente dos pretos-velhos. No primeiro capítulo referi-me à possibilidade de arranjos
religiosos que levam médiuns a praticar sua espiritualidade em suas casas; entretanto, em que
esses exemplos diferem dos anteriores? O caso de Marcos narrado neste capítulo, sobretudo, é
um indicativo de uma representação de entidade bastante diferente daquelas que até aqui foram
apresentadas, pois diz respeito a intercâmbios multirreferenciais que esculpiram o perfil de sua
entidade, tornando-a “mestre”. O rapaz, amante do rock, praticante do snow-board e das curas
terapêuticas, estabeleceu uma relação particular com seu preto-velho. Ao contrário do caso da
“vovó tijucana” 4 , em que a médium desenvolve um trabalho em sua casa, repetindo padrões
umbandistas, a ausência de referências religiosas tradicionais modelou outra expressão de
religiosidade no caso de Marcos.
No meio religioso se costuma dizer que as manifestações fora do rito podem representar
um perigo, principalmente para o médium. Além disso, acredita-se que os estados de transe neste
contexto podem ser um indicativo de despreparo do médium, que não consegue manter o controle
sobre seu corpo; no entanto, histórias semelhantes a esta são comentadas com certa freqüência,
indicando que os casos deste tipo não representam uma exceção à regra, ao contrário, fazem parte
da estrutura da prática religiosa do campo espírita.
4
Conferir o capítulo 1.
222
Os casos narrados expressam uma relação personalizada com as entidades, revelando,
sobretudo a intimidade que se estabelece em seu uso cotidiano, a partir da aquisição de benefícios
pessoais. Concomitante a esta idéia, acredita-se que a entidade, principalmente o preto-velho,
pode produzir o efeito de terno e eterno acompanhante, capaz de ser solicitado para resolver os
problemas imediatos.
As resoluções das aflições são guiadas pela “crença” no poder de intervenção dos
espíritos na vida ordinária. Entende-se que uma dor física pode ser resolvida através da medicina
tradicional ou de inúmeras escolhas alternativas, como os florais, a homeopatia, o uso dos
cristais, das cores, da acupuntura. Se o problema for considerado parte de distúrbios mentais,
pode-se escolher psicoterapia, psicanálise, terapia do grito primal, terapia de vidas passadas, entre
outras. Se a dificuldade for no campo espiritual, as opções são igualmente diversificadas:
energização, mantras, descarrego, ebó, prece ou passe. Em quase todas as opções predomina a
figura do mediador, do médico, do terapeuta ou da liderança deste processo. Conduto, através dos
ritos íntimos, baseados na crença de que a maior parte dos problemas advém da “espiritualidade”,
é produzida uma garantia imediata que soluciona a maior parte das dificuldades.
Marcos, cujo caso relatei no início do capítulo, encontrou uma forma diferente das
configurações religiosas tradicionais para praticar sua espiritualidade; além do reiki transformouse numa espécie de mestre em aconselhamentos. Quando é procurado por alguém, orienta e
invoca mentalmente sua entidade para auxiliá-lo. Seu preto-velho é “sentido” como um homem
de grande porte e forte, pois é assim que se sente com sua presença. O seu mestre-terapeuta, que
viu sua entidade, disse-lhe que tinha traços de escravo, mas para Marcos essa identidade não
importava, aquele ente representava o seu guru pessoal, que o levava ao autoconhecimento e o
ensinava a viver, sentindo-o, assim, como espírito sábio e de muita luz.
5.6 Diálogos finais.
Tradicionalmente chamavam de “centro” os locais destinados às cerimônias “espíritas”,
igualmente tratado de modo genérico, visto que abrigam inúmeras manifestações do campo
religioso. O “centro”, nos casos descritos, é o abrigo do devoto e de suas divindades, ambos
encerrados num mesmo espaço: a própria pessoa. Em casa o rito se pessoaliza e, no culto aos
pretos-velhos, se livra dos apadrinhamentos dos mediadores para basear-se em trocas afetivas,
223
visto que os guias são convencional e convenientemente intitulados “familiares”. As crises são
resolvidas em casa e em família.
Na esfera pública, os médiuns através da incorporação transformam-se em personagens
de seus guias 5 , sendo identificados com eles e relacionando-se com os consulentes. Na esfera
privada, a entidade pode se manifestar nesta personificação, cumprindo com a exegese da
entidade, dando consultas ou ministrando passes, como no caso de Marcos com seu
cromoterapeuta, mas, predominantemente, proporciona uma satisfação psicológica para seu
protegido, confortando-lhe com a certeza de que é seu companheiro, sem necessariamente tomarlhe o corpo.
Os ritos privados acompanham algumas técnicas dos rituais públicos, como a
manutenção de certos objetos como a vela, a água e algum tipo de bebida em oferenda à entidade,
para que seja mantido o seu caráter sagrado. Além disso, o símbolo é responsável pela instituição
da cerimônia em ritual. A tradição da cerimônia e do símbolo são mecanismos que articulam o
paradoxo do rito privado. O culto íntimo indica a possibilidade de manipulação da estrutura
social de modo personalizado, garantindo as inversões necessárias à sobrevivência cotidiana.
Entretanto, diante da possibilidade de manipular magicamente as ordenações pré-existentes,
recriando outras esferas de relação, encontramos o predomínio da manutenção das estruturas
sociais. É espaço próprio para a transformação da ordem estabelecida; em sua ambigüidade,
porém, a sustenta.
Procura-se no culto aos pretos-velhos um sentimento de proteção que transita entre o
colo da mãe e os olhos de Deus. Confiando na possibilidade de que a entidade não abandona,
impera a certeza de que “nada estará contra” ou “nada dará errado”. Neste sentido, a entidade
é “parceira de todas as horas”, sendo solicitada a auxiliar em questões imediatas como: “Que
rumo seguir?”, “Que carreira escolher?” ou “O que faço com o marido que me traiu?”.
As relações contemporâneas, em que as entidades podem ser concebidas como “forças”,
podendo cada um invocar as suas próprias para se proteger, indicam outro rumo da vivência
espiritual. Os ritos domésticos e o ritual da arca refletem esta mudança, pois demonstram a busca
e a prática por uma experiência espiritual que não se restrinja exclusivamente a uma ação
coadjuvante no rito, batendo palmas à espera da consulta, mas que possibilite a participação ativa,
5
Conferir a pesquisa de Maria Laura Viveiro de Castro (1986) sobre a noção de pessoa no espiritismo, que influencia
a cosmologia da umbanda e, por conseguinte, os ritos particulares.
224
se possível, de modo que se possam garantir relações mais próximas das entidades de sua
devoção. Se até há alguns anos a busca pelas experimentações era restrita às andanças pelos
terreiros, atualmente se procura vivenciar as concepções espirituais. “Correr macumbas”, como
costumeiramente se diz, ainda é prática no campo religioso; contudo, experimentar fazer a
magia, adquirindo produtos próprios para ritos particulares, pode ser uma outra alternativa. Além
disso, há templos que oferecem consultas com as entidades, com direito a mapa astral, reiki,
tratamento com cristais e cromoterapia, tornando mais atraente a experiência religiosa.
O culto e a prática ritual com os pretos-velhos ocorrem tanto nos grupos
institucionalizados quanto fora deles. Evidentemente, este modo de operacionalizar a crença não
deve ser considerado como aspecto particular da devoção aos pretos-velhos; entretanto,
particularmente neste segmento, encontrei elementos que congregam diferentes valores e
profissões de fé. Esta junção é significativa, pois o símbolo evoca significados que possibilitam
tal ordenação, e, por tal motivo, sua afecção e representação são combinações de elementos
afetivos e ideológicos que possibilitam uma circulação que, de certa forma, produz interações. A
própria nomeação dos pretos-velhos como “pai”, “tios” e “avós” revela familiaridade. Esta
proximidade nominal é um bom exemplo para compreender os elos de parentesco que são
desenvolvidos em sua devoção e que contribuem para uma aproximação que dispensa os fóruns
clássicos de mediação espiritual.
Sua performance como “sábio” é também um dos atributos que facilitam sua circulação
fora de cerimônias públicas. Ainda que esta difusa circulação ocasione modificações no aspecto
ideológico do símbolo, diminuindo sua primazia de “escravo”, permanece outra significação
similar, como os valores atribuídos a tal significado, como a “humildade”, a “paciência” e o
“amor”. Fora do rito institucionalizado, porém, a metonímia de escravo ainda permanece como
principal traço de reconhecimento. Encontrar uma pessoa que se diz incorporada com um pretovelho, falando de modo esclarecido e sem se curvar, parece causar um certo estranhamento.
Diante das operações rituais domésticas, o rito institucionalizado não desaparece, mas
está em sintonia com uma vivência espiritual mais íntima. Inúmeros dirigentes de casas espíritas
comentaram que as pessoas atualmente não querem manter vínculos ou “compromisso”, como se
costuma dizer; ao contrário, desejam ser atendidos imediatamente em sua aflição e, resolvido o
problema, não querem “perder tempo” participando de cerimônias.
225
As representações dos pretos-velhos instituíram os termos de sua identificação e prática
ritual, percebendo como continum religioso a que se mantém um modo de operar o símbolo
(Cândido Procópio, 1961). Neste continum, o pólo mais afastado das religiões afro-brasileiras é
representado como mais próximo do kardecismo, que parece corresponder a esta prática
particularizada. Neste sentido, os pretos-velhos são representados como “mais gentis e mais
carinhosos”; costuma-se dizer que “em certos lugares” ou “antigamente” eles falavam “mais
engrolado” ou que eram considerados “africanos” e, por este motivo, considerados mais temidos.
Neste contexto, as representações das entidades vêm sendo ressignificadas. Os pretosvelhos, no culto íntimo, afastaram-se de sua significação “escrava” para se tornarem “força” ou
“energia”. Ritos particulares ou semelhantes aos que observei na arca facilitam este estreito
intercâmbio entre estas almas divinizadas e seus devotos, pois, através deles, compreende-se que
é necessário promover a própria capacitação espiritual, já que, por princípio, todos teriam a sua
própria “força”.
No rito coletivo também encontrei referência a este estímulo de pessoalização da
crença. Lembro ao leitor que um dos pretos-velhos, com os quais conversei no Centro Espírita
Servidores de Jesus, orientava seus consulentes a procurarem “dentro de si” as respostas para
suas dúvidas sobre o amor ou a vida profissional, e que confiassem em si mesmos.
O rito da arca oferece a possibilidade de entender o novo paradigma que se reflete no
culto aos pretos-velhos na contemporaneidade. Philippe, dirigente da arca, procura estimular a
concepção religiosa individual de cada participante, orientando, assim, a cerimônia para atender a
cada pessoa, assistindo suas necessidades ao longo do rito. O ambiente favorece as escolhas
individuais e, embora cada pessoa se encontre com a sua expressão religiosa de forma íntima, o
rito contribui para a coletivização daquele sentimento. Por isso, a arca ilustra essa concepção de
escolhas individuais na contemporaneidade, pois oferece satisfação pessoal e o sentimento de
pertencimento grupal.
Ainda que na Arca da Montanha Azul circulem umbandistas, candomblecistas,
kardecistas e daimistas – que identificam os pretos-velhos com espíritos de escravos -
a
representação de “força” predomina em detrimento do “cativo”. As práticas modernizadas, de
novos tempos e templos, se mesclam e produzem outras significações que podem ser arrogadas
para instituírem as relações de poder, que, como vimos, podem ser baseadas na cordialidade e no
jeitinho: signos da identidade brasilis dos pretos-velhos.
226
CONCLUSÕES:
Os pretos-velhos mudaram, ou mudamos os pretos-velhos?
Procurei desconstruir as representações de pretos-velhos, observando-os em ritos
tradicionais, em casas de umbanda e até em grupos religiosos com um histórico mais recente,
como a barquinha. Busquei também compreender os significados atribuídos aos pretos-velhos
fora do ambiente religioso, investigando o entendimento que lhes atribuíam estudantes de
diferentes níveis de escolaridade. Freqüentei casas religiosas, casas dos religiosos e de
esporádicos freqüentadores das casas espíritas, procurando compreender os significados mais
improváveis que podiam ser atribuídos aos pretos-velhos. Ouvi diversas idéias, mas, entre as
explicações de que os pretos-velhos eram “espíritos de luz”, “espíritos de médicos” ou “espíritos
de soldados”, predominou a representação de “espírito de escravo”.
A caracterização dos pretos-velhos como “escravo” quase sempre vinha acompanhada
de uma reflexão sobre a situação do negro nos dias atuais. Este pensamento era apresentado como
um discurso político que correlacionava a escravidão ao preconceito vivido pelos negros hoje. A
visão de escravidão que levou a tal entendimento é fruto da cristalização da interpretação de
sociedade bipolar, dividida entre escravos e senhores, que é reatualizada nos rituais analisados.
O culto aos pretos-velhos-escravos serve para instituir sentimentos que permitem ao
devoto identificar os sofrimentos do passado com suas mazelas cotidianas. Como descrevi, suas
histórias pessoais são pouco conhecidas nos cultos, predominando a interpretação generalizada da
vida no cativeiro, um dos principais atrativos de sua clientela e devotos. A identificação dos
devotos com o sofrimento infligido pelo cativeiro é um dos elementos deste símbolo religioso,
mas não o único.
No início da tese citei uma descrição de Birman (1985:67-8) na qual religiosos
referiam-se aos caboclos como primeiros habitantes do Brasil, dos quais teríamos herdado o seu
sangue, enquanto os pretos-velhos representariam aqueles que construíram materialmente o país.
A atribuição da herança, que foi geradora do povo brasileiro, de sua gente e de seus costumes, é
questão atual e movimenta calorosos debates.
Acompanhando ritos públicos e privados, percebi que aos pretos-velhos são atribuídos
significados de parentesco, pois a referência a “pais”, “tios”, “avô”, “tias” e “avós” anuncia uma
227
relação íntima e freqüente, em que os devotos são seus “filhos”. Neste sentido, a herança de
brasilidade da qual os pretos-velhos são signatários pode ser compreendida como pertencente a
toda a população brasileira que sente por eles tal afinidade parental.
Através deste estudo, verifiquei que a suposta herança indígena proclamada pelos
religiosos, a que Birman se referia, vem sendo suplantada pela presença dos pretos-velhos nos
rituais e assim por uma suposta herança africana. Os laços de afinidades e parentesco dos pretosvelhos são pressupostos desta “herança”, que se afirma nos ritos. Freqüentemente o termo afrobrasileiro é mencionado nas cerimônias pelos dirigentes e médiuns. Através das descrições que
são feitas sobre os pretos-velhos, concluiu-se que são nossos ancestrais comuns, ou seja, todos os
brasileiros seriam descendentes dos escravos.
Neste sentido, o culto aos pretos-velhos vem apresentando um quadro de significação
das relações “raciais” brasileiras. As representações que encontrei no culto ora descrevem uma
sociedade na qual os elementos formadores compõem um panteão mestiço; ora representam a
mesma sociedade num modelo bipartido, sendo necessária a
reparação aos “negros” pelos
“brancos”, por danos causados pela escravidão.
Conforme demonstrei, acredita-se que todo morto que passou pelas devidas etapas do
pós-morte poderia, através de invocações específicas, manifestar-se para trazer benefícios. Na
classificação das almas que podem ou não prestar ajuda, os pretos-velhos ficaram de fora da
listagem oficial dos kardecistas, mas são cultuados pela umbanda como se fossem heróis, objeto
de culto público e privado, conforme demonstrou Brown (1986) e pode ser visto nos relatos aqui
apresentados.
Se os mortos podem trazer benefícios e malefícios, por que eleger a figura dos pretosvelhos para dotá-la de poder e sacralizá-la? Não encontramos cultos de almas de soldados, padres
ou freiras, empresários, artistas ou jogadores de futebol, mas sim “escravos”. E o que isso
propriamente tem a nos informar sobre a sociedade brasileira?
Os pretos-velhos foram compreendidos a partir de duas classificações globalizadoras:
escravos e ancestrais. Como escravos, sua presença nos ritos que observei reforçaram a idéia
originalmente referida por outros autores, especialmente Maggie (2001), a respeito da inversão
que sua figura ambígua possibilita realizar. Neste culto à periferia que o cativeiro e o escravo
representam, não se deseja uma ruptura da relação em questão nem há uma apreensão em
subverter uma ordem social. Ao contrário, prevalece uma aceitação de tal ordem, pois o rito
228
permite que os superiores se subordinem aos oprimidos e assim os “fracos”, que naquela situação
gozam de dons especiais, sentem-se plenamente satisfeitos e eliminam suas agruras.
Os ritos observados reforçam a representação dos pretos-velhos como ancestrais, que
aparecem domesticados na umbanda, segundo Brown (1986:74): “pele negra e alma branca”.
Esta domesticação seria a alma branca da sociedade brasileira? A cordialidade que os pretosvelhos representam seria também resultado de sua domesticação? A busca por esta cordialidade
através de mandigas para acalmar, amansar e ter paciência, seria um indicativo de um
comportamento que o brasileiro quer garantir como sua propriedade e identidade?
As representações que devotos e lideranças fazem dos pretos-velhos é de que são
“ancestrais”. Geralmente não discriminam se “ancestral do povo negro” ou “ancestral do povo
brasileiro”, simplesmente “ancestral”. Os ancestrais normalmente cumprem a função de guardar a
moralidade dos costumes de seu povo. Pensar os pretos-velhos a partir dessa representação
permitiu compreender que os laços de parentesco cumprem esta função: guardar a moralidade. A
qual moralidade se referem? Aos valores compartilhados socialmente de manutenção de uma
estrutura familiar e de relações estabelecidas a partir de certos códigos de conduta. Estas
entidades são pensadas como entes que oferecem proteção, aproximando casais em conflito e
ajudando as crianças nas dificuldades escolares e nos problemas de saúde. Os valores sociais são
mantidos por uma entidade que se apresenta como membro da família e, como diz o ditado
popular, “o problema se resolve em casa”. Assim, o aspecto “familiar” se perpetua e, com ele, se
estabelecem as ditas compreensões de laços de parentesco e consangüinidade, que reforçam a
compreensão de herança do cativeiro que aqui está em voga.
Em parte a denominação parental dessas entidades, somada a toda narrativa que as torna
representantes da “bondade”, contribui para a popularização dos pretos-velhos, possibilitando o
seu culto particular. Junto a este perfil, compreendo que as representações do cativeiro que
evocam garantem sua identidade coletiva, “cativa” e servem para que parte da população se olhe
e olhe através da lente da exclusão que os retos-velhos representam. Sendo os pretos-velhos
vistos como membros das classes inferiores, as relações que o rito estabelece, como disse, não
são o confronto entre classes, mas o apaziguamento delas. No rito, os pretos-velhos perdem o seu
caráter de símbolo da submissão e dependência, manifestando a independência e a esperança.
Este modelo de consolação e esperança é absorvido pelo rito doméstico. Isto significa dizer que
229
seu estado liminar provoca o reconhecimento de um vínculo social generalizado, que é evocado
no rito, mas não exclusivamente nele.
Nos ritos particulares os pretos-velhos temporariamente deixam de ser “escravos” para
tornarem-se “energias”. Ainda que percam sua forma primitivamente modelada pela umbanda e
se aproximem mais da doutrina kardecista, alguns princípios religiosos do culto
institucionalizado dos pretos-velhos pela umbanda são apropriados pelos ritos íntimos. Nos
rituais a consulta é o auge; nos cultos domésticos simplificam-se todas as etapas iniciais para que
o devoto realize o momento de acordo com suas aspirações. O culto doméstico propicia
pessoalização dos desejos particulares, tornando a entidade um patrimônio privado, do qual a
pessoa dispõe a seu bel-prazer. Entretanto, embora possa dispor livremente de sua entidade e
tenha o livre-arbítrio de criar um relacionamento diferenciado, procura-se em matrizes religiosas
convencionais a base para cultuar o espírito que assiste a ela.
Se a contemporaneidade apresenta transformações que levam as religiões tradicionais a
passarem por um momento de crise, encontrei nos ritos íntimos elementos vinculados à umbanda,
como a presença de cantigas, velas, incensos, água, transe e consultas. Ainda que os bens
religiosos possam ser manipulados sem o intermédio dos agentes tradicionais, estes ainda são
referência na instauração de novos modelos de culto, haja vista o rito da arca, que propõe inovar
o padrão religioso reunindo elementos de diferentes modalidades religiosas tradicionais. A
barquinha de Madrinha Chica, com a sede em Rio Branco, no Acre, com quinze anos de
funcionamento, após a ruptura, optou por continuar um trabalho religioso que se mantém sobre
dois pilares religiosos, a umbanda e o catolicismo.
A umbanda, religião que abrigou o culto aos pretos-velhos e, como demonstrei no
decorrer dos capítulos, está em franca expansão, foi considerada como religião das classes médias
urbanas (Fry, 1982), fato que ainda pude conferir, mas que vem sofrendo alterações, como no
caso da barquinha da madrinha Chica do Bairro de Vila Ivonete, no subúrbio de Rio Branco. A
religião umbandista – que foi analisada por alguns pesquisadores como prática degenerada de
tradições africanas e pensada como sincrética – vem servindo como base para diversas
modalidades religiosas se instituírem. Se na primeira metade do século XX a umbanda foi
pensada como religião que encampou inúmeras práticas religiosas, pois procurava através de sua
aproximação com o kardecismo ser aceita socialmente, atualmente ela oferece a legitimidade
social já garantida para que outros cultos se desenvolvam.
230
A expansão da umbanda e de práticas religiosas similares, que constatei em campo,
indica que os praticantes religiosos não encontram problemas em assimilar crenças diferentes,
pois acredita-se que não existe nenhuma contradição entre elas. Ouvi algumas vezes de meus
informantes – quando perguntados sobre essa composição religiosa – que: “o povo brasileiro é
assim mesmo, mistura tudo”. Tal expressão indica um modo de pensar o brasileiro, que se
considera misturado e, por isso, mistura tudo.
A produção da identidade brasileira pensada através do culto aos pretos-velhos é
contextualizada a partir deste modelo de umbandização, em expansão dentro e fora do território
nacional. O culto aos pretos-velhos demonstra este teor de “brasilidade”, pois os pretos-velhos
são concebidos como o homem da senzala e não como descendente africano. Como homem da
senzala, vem sendo cultuado nos congares públicos e privados, sendo concebido como ancestre
da população brasileira, sem invocar o clássico paradigma de aculturação, visto que atualmente
todos os brasileiros parecem sentir-se herdeiros da senzala. Mudaram os pretos-velhos porque a
sociedade assim quis, recriando novos paradigmas para pensar a si mesma.
Como foi possível para nossa sociedade, que constitui essa representação tão estrutural
de nossa brasilidade, estar atualmente sendo pensada como uma sociedade dividida em negros e
brancos?
Talvez essa representação da escravidão brasileira, conforme atualizada nos terreiros e
rituais analisados, seja fruto da reinterpretação da idade que, agora, vê a escravidão não com as
lentes da “bondade” e “humildade”, mas através da reparação e da revanche.
Os pretos-velhos, entretanto, continuam a reinar nos terreiros.
.
231
ANEXO 1: GLOSSÁRIO
Abiã – Processo inicial da construção da pessoa religiosa no Candomblé. Essa iniciação
normalmente é feita a partir de uma limpeza espiritual denominada ebó, seguida de uma espécie
de retiro espiritual, onde a pessoa passa três dias em ritos iniciatórios formado de cantigas,
alimentação ritual, matança de alguns animais de pena e contrição silenciosa com seu Orixá.
Hierarquicamente é considerada inferior aos demais filhos-de-santo de uma casa, por ser
considerada como alguém que ainda não nasceu efetivamente para o santo, o que ocorre somente
com a feitura.
Água fluidificada – água utilizada em rituais kardecistas, que, acredita-se promove bem-estar e,
em certos casos, cura dos males.
Aparelho – Termo usado para designar o médium, que é visto como “aparelho” das energias
espirituais, alcançando as “ondas” que emitem para poder transmiti-las em forma de mensagens.
Arriar – O termo é uma referência ao processo extático, em que o médium faz contato com o
sobrenatural. Advém do verbo “arrear”, que significa aparelhar, pôr arreios. Assim compreendese que a entidade “arreia” ou “baixa” em alguém, como se este fosse seu equipamento.
Arruda – Planta usada ritualmente para descarregar as más energias dos consulentes. Ela é usada
especificamente pelos pretos-velhos. Em algumas situações, ensinam banhos com esta erva, que
devem ser feitos em casa. Coloca-se a arruda macerada num balde com água, mentaliza-se a
limpeza espiritual e se despeja esta água do pescoço para baixo. Acima da cabeça não deve ser
usada, pois é considerada uma erva quente, e o alto da cabeça pertence a Oxalá, devendo ser
lavada somente com ervas e outros alimentos considerados “frios”.
Astral – Nome que designa um plano invisível, morada dos deuses e de todos os seres por eles
criados.
239
Assentamento – No candomblé e em algumas casas de umbanda mais próxima do Candomblé,
são feitos os assentamentos dos orixás ou santos, como se costuma dizer. Cada divindade possui
uma representação modelada em ferro, alguns assentamentos são feitos de barro e búzios,
levando também em sua composição sangue animal. Outros são representados também com uma
conjunto de louça: vasilhames, pratos, quartinhas e alguidares.Há muitas outras substâncias
colocadas nos assentamentos, variando de casa para casa e de acordo com a “qualidade” do
Orixá. Estes assentamentos são sagrados, pois representam a morada do Orixá. O pai-de-santo
cuida, junto com seu filho-de-santo, dos seus assentamentos, mantendo-os limpos, alimentando
freqüentemente e iluminados de acordo com os preceitos de cada um.
Assistência - Este termo é usado tanto para definir o espaço físico da sala, quanto as pessoas que
assistem a cerimônia.
Barracão – É o nome dado ao local onde ocorrem os xirès. Pode também ser usado para todo o
espaço físico, incluindo as casas que guardam os assentamentos dos santos, as camarinhas, a
cozinha e os quartos que abrigam os filhos-da-casa e o pai-de-santo ou zelador-de-santo.
Benfeitores – É a denominação para entidades que auxiliam os homens em suas dificuldades
terrenas.
Caboclo – Entidade cultuada na umbanda, que representa o espírito dos indígenas brasileiros.
Junto com os pretos-velhos é responsável pelas sessões de cura.
Casa-de-santo – Termo geralmente usado para designar uma casa de candomblé ou o local em
que nesta casa se guardam os instrumentos e principais elementos que os identificam, conhecidos
como “assentamentos”.
Carregada – Normalmente se emprega o termo para referir-se a uma pessoa que traz consigo
entidades ou “energias” que lhe fazem mal.
240
Catimbó – Significa feitiço, “coisa feita” ou prática da feitiçaria. Diz-se que é um culto europeu
ancestral que se misturou às práticas indígenas e negras africanas. Não há uma liturgia ou dogmas
centrais. Através de suas raízes indígenas, mantém algumas práticas da pajelança, sendo o
cachimbo o elemento principal de seu ritual. Há catimbó com um profundo envolvimento com o
catolicismo.
Consultas – Momento do ritual em que o visitante se encontra com a entidade para uma
conversa, fazendo-lhe pedidos e relatando sua vida.
Daime – Chá originalmente amazônico, conhecido também como ayhuasca ou hoasca, feito de
forma combinatória de dois tipos de plantas - o cipó jagube (Banisteriopsis caapi) e o arbusto
chacrona (Psychotria viridis); a “ayahuasca” representa, na tradição indígena, uma forma de
ligação com o mundo espiritual. A palavra ayhuasca pertence à língua quéchua, “aya” quer dizer
“pessoa morta, alma, espírito” e “wasca” significa “corda, liana, cipó”. Também: “soga de
muerto”, isto é “corda de morto”. Mais de 70 tribos na Amazônia têm a bebida - de cor escura,
próxima ao ocre - como o centro de sua cosmogonia. “Santo Daime” é referência ao culto do
mesmo nome, fundado por Mestre Irineu, no Estado do Acre. Daime, no sentido usado pelo
mestre, tinha a função de “dar”: dai-me amor, dai-me paz... É também denominado como “Santa
Luz”.
Possui um gosto forte, meio amargo. Sua ingestão pode provocar vômitos e disenteria, reações
entendidas como “limpeza espiritual”.
Desobsessão – rito próprio para retirar espíritos malfazejos, conhecido também por “limpeza
espiritual”. Cada terreiro segue sua forma de realizar tal cerimônia.
Ebó – Limpeza espiritual feita no candomblé em que o pai-de-santo passa pelo corpo comidas
cuja função é limpar o corpo espiritual. Em alguns casos, fazem uso também de uma ave.
Espírito obsessor- São identificados como espíritos que ainda não tiveram uma doutrinação
espiritual. Muitas vezes os reconhecem como energias apegadas ao plano material; assim,
aproximam-se com certa facilidade dos homens, provocando desequilíbrios energéticos que
causam doenças físicas e materiais.
241
Encruzilhada/encruza – As ruas são consideradas moradias de certas entidades. Aquelas ruas
que se encontram formando um X são consideradas encruzilhadas “macho”, e em formato de Y,
fêmea. Dizem que as oferendas destinadas aos exus fêmeas devem ser colocadas em
encruzilhadas Y; e aquelas para os exus masculinos, naquelas que formam um X. De acordo com
a magia a ser feita, colocam-se oferendas em 1, 3, 7 ou 21 encruzilhadas.
Energias – Algumas casas interpretam as entidades e as pessoas como se elas fossem energias. O
pensamento seria o promotor e o motor dessas energia. O rito seria o responsável pela
canalização de certos tipos de energia, para que possa promover a mudança necessária naquela
que o consulente traz consigo, promovendo curas ou levando certas energias maléficas para quem
se deseja o mal.
Entidade-chefe – São as entidades que orientam o trabalho espiritual da casa, indicando ritos e
mobilizando outras entidades do Astral para o fortalecimento do trabalho da casa que assiste.
Erê – São conhecidos como espírito de crianças e são chamadas por nomes no diminutivo:
Manelzinho, Mariazinha, Juquinha, etc. Acredita-se que as crianças representem um estágio
emocional ou espiritual, o primeiro estágio. Diz-se também que sua energia serve para a limpeza
espiritual do ambiente. Então, quando o dirigente sente que há necessidade canta para os erês,
que descem e promovem o equilíbrio do local.
Ekedi – Função ritual de uma filha-de-santo de uma casa de Candomblé. Ela é responsável por
parte do ritual junto ao pai-de-santo e a mãe-pequena da casa. Ela nunca incorpora um Orixá,
apesar de ter o seu (cada um tem seu Orixá, como diz a música: “Toda menina baiana têm um
santo que Deus dá”) e ter passado por um processo de iniciação.
Falange – Acredita-se que o espírito seja um composto de energia que produz atração e repulsão
conforme as afinidades. Uma falange significa, dentro dessa compreensão, um agrupamento de
energias similares que são atraídas para a terra através de rituais ou pela ação do pensamento.
Cada falange seria responsável por um tipo específico de trabalho espiritual. São conhecidas
242
também como “Fraternidades do Espaço”. Acredita-se que cada grupo é dirigido por uma
liderança, como, por exemplo, a “Fraternidade dos Humildes”, dirigida pelo espírito do Dr.
Bezerra de Menezes, que atuaria na cura, e a “Fraternidade Rosa Mística”, dirigida por Maria de
Nazaré.
Fardados – Esta é uma referência aos praticantes que assumem um compromisso com a religião,
implicando maior dedicação à vida espiritual. O processo de fardamento é feito no Acre, com o
iniciado participando integralmente de uma romaria e, em alguns casos, da produção do Daime,
desde seu processo inicial de colheita até a feitura do chá. A madrinha Chica é responsável
também pelo processo de fortalecimento das entidades pessoais que acompanham o neófito,
aproximando-as do futuro membro-fardado, através de suas intervenções mágicas. A farda é um
símbolo deste pertencimento, relembrando o uniforme do Mestre fundador, Mestre Daniel, e a
missão no Astral, onde são identificados, por tal vestimenta, como pertencente ao exército do
Mestre.
Filhos-de-santo – Esta expressão é mais usada pelos adeptos do candomblé para designar seu
pertencimento a uma casa. Filho-de-santo “raspado” é aquele que passou por um processo de
iniciação ritual, a feitura, em que sai de um estado liminar denominado abiã, que cumpriu
apenas uma parte do rito iniciatório, para ter sua cabeça produzida nos fundamentos de seu orixá
de cabeça. Na maior parte das casas-de-santo esse rito é feito no decorrer de 28 dias. Na
Umbanda é mais comum usar a expressão “filho-de-fé”, denominando aquele que freqüenta a
casa, participando mais assiduamente de seu ritual.
Firmeza – Significa a manutenção de uma pessoa ou de um grupo religioso com a proteção de
seus guias. Aproximam-se os guias para que estes lhe dêem a firmeza necessária para a realização
dos trabalhos espirituais ou para o andamento da vida cotidiana.
Gongá – É o altar sagrado da umbanda, que guarda as imagens de suas entidades, dos orixás e de
santos católicos. Em alguns terreiros o congá é fechado com uma cortina quando tocam para os
exus, limitando os espaços das diferentes correntes espirituais.
243
Guias – Colar de contas usado para proteção espiritual. As cores variam conforme a entidade de
proteção. No candomblé há um ritual específico para o cuidado da guia ou fio-de-conta, como se
costuma dizer. Neste dia é oferecida comida ritual para o dono espiritual da guia. Na umbanda a
limpeza das contas é feita de modo particular, às vezes com água e orações.
Hinário: Hinário é um conjunto de hinos mediúnicos. Diz-se que são ensinados pelas entidades,
tanto sua letra quanto a entonação. Há um predomínio da valsa como estilo musical.
Iaô – Iniciante no culto dos orixás.
Incorporação – Segundo me contaram, a incorporação não significa perder o corpo físico para
uma entidade espiritual. Existem variadas formas de incorporação, da consciência total à perda
dela. Com a consciência total ou parcial, o médium estabelece um contato com sensações
espirituais, ouvindo-as ou sentindo-as movimentar o seu corpo; neste sentido, há uma perda
parcial dos movimentos, que são comandados pela entidade. Ouvi dizer que há poucos médiuns
que perdem por completo sua consciência, o “médium inconsciente”. Um dirigente de uma casa
explicou que muitos médiuns se dizem inconscientes para gerar maior confiança para os
consulentes. É comum a utilização do termo “receber” ou “baixar” santos ou guias.
Irradiação – A irradiação é o desprendimento da energia do corpo humano e das entidades.
Acredita-se que o corpo pode desprender energias de modo que, através da mentalização, pode-se
enviá-las direcionando-as para o seu receptor.
Limpeza espiritual – Conferir “desobsessão”.
Maçonaria – Doutrina sincrética e monista, que trata da consciência divina. Compreende-se
como uma Fraternidade Universal. Prepara o homem para o autoconhecimento, visto que ele
próprio é parte da criação divina e este conhecimento o leva a Deus.
Malandro – Entidade da umbanda que é associado à figura de exu.
244
Médium/mediunidade/ médium de incorporação – Termo usado para as possibilidades de
comunicação com o plano espiritual. O médium é a pessoa que se comunica e a mediunidade é a
capacidade de se comunicar. Diz-se que existem diferentes tipos de mediunidades: a de ouvir, a
de ver e a de possibilitar um espírito utilizar o corpo, sendo porta-voz da entidade.
Miração - A "miração" é um termo que foi cunhado na tradição do Santo Daime pelo Mestre
Irineu para designar o estado visionário que a bebida produz. O verbo "mirar" corresponde a
olhar, contemplar.
Omolocô – É termo que se refere ao candomblé que cultua os orixás e os ancestrais. Por vezes
algumas casas de candomblé fazem ritos separados de umbanda.
Passagem - “Passagem” é um termo que faz referência à morte. Esta expressão é bastante usada
pelas entidades. Para alguns grupos aywasqueiros, “passagem” está relacionada a um
enfrentamento difícil sob efeito da bebida, que se acredita trazer benefícios posteriormente. Em
alguns casos, este efeito é similar a um sentimento de quase-morte, um rito que permite renascer
depois de enfrentado.
Passe - Ato de impor as mãos sobre determinados pontos do corpo, procurando transmitir
energias espiritual. Ou seja, diante de alguém que se considera estar em desequilíbrio, o médium
utiliza as energias de seu corpo e de seus guias espirituais para equilibrar o outro.
Plasma/plasmar – Este termo, em seu sentido religioso, está relacionado a uma substância do
“corpo espiritual’ da qual religiosos e entidades se utilizam para materializar objetos ou formas
humanas, ou seja “plasmar”.
Pemba - A pemba é uma espécie de giz de cores diferenciadas, usado para traçar símbolos rituais
no chão, em diversos objetos ou no corpo.
Pontos – são formas de se conectar com o mundo espiritual. Podem ser em forma de cantigas:
“Pontos cantados”, que são músicas usadas com intuito de realizar um contato com as entidades,
245
como se fossem um convite para chegar ou ir embora. Cada entidade ou um agrupamento possui
cantigas próprias. Os “Pontos riscados” são feitos em forma de símbolos e seu uso está
relacionado a manutenção da entidade em terra e à manipulação de energias cósmicas para a
produção da magia. Ambos remetem a um sentido: comunicação.
Pretos-velhos de tronqueira - Entidades que podem circular por diferentes reinos no astral,
sendo, por vezes, confundidos com exus.
Quimbanda – A quimbanda é muito parecida com a umbanda, com o diferencial de que
declaram fazer ritos para os exus, invocando-os para benefícios e malefícios. Em alguns terreiros
de umbanda, após a sessão pública um pequeno grupo continua os afazeres religiosos tocando
quibanda ou trabalhando com a “esquerda”, como costumam dizer.
Ramatis – Divulga-se que Ramatis foi um líder espiritual que viveu na Indochina no século X.
Os grupo vinculados à sua doutrina têm organização semelhante aos kardecistas, fazendo
trabalhos espirituais de “magnetismo” e trabalhando com as falanges médicas do Astral;
trabalham ainda com a evangelização de almas. Sua influência na umbanda aponta para o uso de
entidades de “mestres orientais”.
Romaria – Reunião de pessoas em peregrinação a um centro religioso em devoção a algum santo
católico. Geralmente nessa cerimônia há procissão e festa com bolo e doces. Na barquinha a
romaria em devoção ao santo padroeiro é feita em várias sessões, culminado num dia festivo em
sua homenagem.
Roupagem espiritual – Acredita-se que os espíritos sejam pura energia, mas que, ao se
apresentarem escolhem a forma como querem aparecer. As formas de caboclos, pretos-velhos,
marinheiros, boiadeiros ou ciganas seriam espécie de roupagem espiritual para uma relação com
o mundo dos viventes.
Rosário – É uma corrente de preces com 200 ave-marias e 20 pai-nossos, intercalados pela
rememoração de passagens bíblicas.
246
Sacudimento – É uma prática ritual, que serve como tratamento espiritual, tendo o mesmo efeito
da desobsessão.
Santos - No meio religioso pode ser uma referência aos orixás ou aos santos católicos.
Sessão – Nomeiam-se “sessão”, “gira” ou “trabalho as cerimônias de umbanda.
Simpatias – Práticas mágicas geralmente voltadas para alcançar benefícios pessoais, como a
restituição da saúde ou a conquista de um casamento. A prática religiosa popular divulga
inúmeras simpatias para serem feitas em dias específicos, como o dia de Santo Antônio, e outras
para serem feitas no dia-a-dia.
Terço – Espécie de cordão com pequenas bolinhas que são agrupadas de dez em dez, sendo
intercalada por outra maior. Somadas todas as bolinhas, temos o total de 50 pequenas e cinco
maiores. Nas pequenas, rezam-se aves-marias, e nas maiores o pai-nosso, um credo e um glória
ao Pai. Na extremidade do cordão, há um crucifixo em que iniciam as orações, com pai-nosso; ao
final circular do terço, há uma imagem de Nossa Senhora, onde se reza uma Salve-rainha.Todas
são orações católicas, bem como o próprio uso do terço.
Trabalho/trabalhar – Termo usado para designar a ação mágica da entidade. O trabalho pode
ser entendido como uma consulta, porque dizem que naquele momento há um agrupamento de
entidades realizando a transformação da doença em cura, por exemplo. Diz-se que é através desse
trabalho espiritual que as entidades evoluem espiritualmente.
Kardecista – Nomeiam-se como kardecistas pessoas ou grupos que seguem a doutrina propagada
pelo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, que, no século XIX, sistematizou idéias sobre a
comunicação entre os mortos e os vivos.
Xirè – Comumente usado para referir-se ao rito festivo em homenagem aos orixás do candomblé.
Fala-se também em gira. É um termo especificamente do candomblé.
247
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238
ANEXO 2: Hino da Umbanda
Refletiu a Luz Divina,
Com todo seu esplendor,
Vem do Reino de Oxalá,
Onde há paz e amor,
Luz que refletiu na Terra,
Luz que refletiu no Mar,
Luz que veio de Aruanda,
Para os filhos iluminar,
A Umbanda é paz e amor,
É um mundo cheio de Luz,
É força que nos da vida,
E a grandeza nos conduz,
Avante Filhos de fé,
Com a nossa Lei não há,
Levando ao mundo inteiro,
A Bandeira de Oxalá. (bis)
253
ANEXO 3: Imagens do “trabalho”.
Após centenas de “clicks” foi necessária a escolha das imagens que fossem
significativas, ou seja, que produzissem um efeito explicativo. Assim, as consultas e a emoção
do encontro com as entidades divinizadas estão aqui congeladas como registro daquele instante
em que lá estive.
O ritual foi instantaneamente flagrado. Aqui tal registro foi manuseado como referência,
que lembra a vida daqueles que repetem tal performance reforçando suas crenças.
Os pontos riscados, a que me referi no quarto capítulo, acendem a expectativa dos
médiuns de realizarem seus trabalhos espirituais junto àquela força que o nome de sua entidade
representa.
Preta-velha riscando pontos na
barquinha
Médiuns riscando pontos de pretosvelhos na Tenda Nossa Senhora da
Piedade
As imagens dos pretos-velhos nos terreiros ficam no gongá, junto às demais entidades do
panteão umbandista e aos Orixás. Diversidade que reflete as escolhas religiosas do grupo.
Gongá do Centro Espiritualista Filho
de Jesus
Um dos altares da Arca
249
Nas consultas, conforme descrevi no segundo capítulo, a relação predominante é de afeto.
O mesmo ocorre nas relações de devoção pessoal.
Consulta na Barquinha
Consulta no Centro
Espiritualista Filho de Jesus
Nos rituais comemorativos de pretos-velhos geralmente há dança e comida. Os devotos
se divertem numa comemoração em que procuram relembrar o “tempo da escravidão”.
Dança comemorativa ao dia 13 de maio.
Quilombo São José – Vassouras/ RJ.
Festa no Centro Espiritualista
Filho de Jesus
250
Na umbanda os médiuns dançam para a entidades e com elas. Na barquinha médiuns e
visitantes bailam com as entidades.
Bailado na Barquinha em
Niterói.
Médiuns dançando no Centro
Espiritualista Filhos de Jesus.
Em algumas casas, as cerimônias de grande importância, como por exemplo, a limpeza
dos “filhos-da-casa” são feitas pelos pretos-velhos.
Pretos-velhos: padrinhos de batismo na
Tenda Nossa Senhora da Piedade.
251
Como descrevi no quinto capítulo, há casos de devoção particular. A emoção fica
resguardada. Há quem prefira a visita a locais públicos, mas sem a mediação institucional, como
praças e museus.
Meninas rezam para
Vovó Cambinda numa
praça em Campo Grande
Há muitas outras imagens que contam as histórias dos pretos-velhos. Estes são apenas
alguns traços do percurso desta pesquisa. A adoração aos escravos bondosos está livre neste
circuito religioso de templos e lares, aberta a outros olhares.
252
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