A rádio haitiana de ciência
que funciona no Brasil
FELIPE MAIA
DA VICE
18/06/2015 02h00
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Há seis meses os haitianos Jacssone Alerte, de 31 anos, e Ludger
Jean Louis, 30, têm comparecido menos às missas e ao
futebolzinho de domingo no Rio de Janeiro. Moradores da
capital carioca há mais de cinco anos, a dupla tem usado o dia
das rezas e dos gols para gravar, dentro de um pequeno estúdio
no bairro da Glória, um programa online de rádio sobre ciência
e tecnologia voltado a seus conterrâneos –o Infotech. "Jogar
bola e ir à missa são fundamentais para unir as pessoas", diz
Jacssone, em bom e pausado português. "Mas nosso projeto tem
missão parecida: ajudar os haitianos a se integrar à sociedade
brasileira."
Nas transmissões semanais, os imigrantes falam de assuntos
que vão da história da inteligência artificial à reciclagem do
plástico. Os dois também recebem convidados para tratar de
temas atuais como energia renovável e internet das coisas. O
importante é descomplicar tópicos relevantes do mundo
científico para o povo haitiano. "Se for pra falar de medicina, a
gente fala de coisas como cólera", conta Jacssone. A doença
assombra o país caribenho desde o começo da década –segundo
a ONU, são oito mil pessoas infectadas desde 2011.
O Infotech roda no haitiaqui.com, projeto da ONG Viva Rio
dedicado a ajudar imigrantes haitianos pela internet. A página
da dupla é uma das dez mais visitadas do site desde a estreia. Os
acessos vêm de países que contam com grande número de
haitianos, como Brasil, Estados Unidos e Argentina, além, é
claro, do próprio Haiti. O programa, divido em blocos sobre
história e atualidades e quadros com notícias e tutoriais, rola
todo em crioulo –o idioma oficial do Haiti ao lado do francês.
Dicas de tecnologia e hacks caseiros são os trechos mais
populares, afirmam os apresentadores. Em um dos programas,
eles ensinam os ouvintes a recuperar celulares que caíram na
água. A dica é simples: colocá-los por uns dias num recipiente
com arroz. "Teve alguém que relatou pra gente que o celular
tinha caído na água, mas voltou a funcionar", disse Jacssone.
O Haiti, segundo a Unicef, tem cerca de um celular a cada dois
habitantes e pouco mais de metade da sua população vive
abaixo da linha da pobreza. De acordo com Ludger, o aparelho
telefônico é a principal maneira pela qual os haitianos se
comunicam e os ouvem. "No Haiti, lan house é coisa de rico",
complementou Jacssone. "Meia hora custa cinco reais!".
Segundo Ludger, um notebook básico custa entre US$ 450 e
US$ 500, um valor alto para a maior parte da população.
Amaury Alve
Para eles não foi muito difícil aprender a usar o equipamento da rádio
Quando não estão envolvidos com o programa, Jacssone e
Ludger se dedicam aos estudos na Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). O primeiro está no último ano de
engenharia civil, o segundo estuda ciência da computação.Os
dois são bolsistas no Programa de Estudantes-Convênio de
Graduação (PEC-G). "É a vida de estudante: simples, dura e
cada centavo gasto tem que ser bem pensado", disse Jacssone.
Ele chegou no Brasil em 2010, dias antes do terremoto que
assolou seu país em 12 de janeiro. Ludger veio poucos meses
depois. "Eu estava em processo de vir ao Brasil, mas depois do
terremoto, acelerei", contou. Suas famílias sobreviveram à
catástrofe. Eles seguiram por aqui e, naquele ano, se
conheceram nos corredores da universidade. "O Jacssone foi
um grande parceiro", disse Ludger. "Tem que ajudar os
conterrâneos, né!"
Na terra natal, os dois tinham bastante contato com tecnologia cada um à sua maneira. Jacssone vivia no interior, a alguns
quilômetros da capital Porto Príncipe. Os equipamentos eletroeletrônicos que tinha à disposição eram poucos e primitivos.
"Uma criança que tinha 15 anos no final da década de 2000 não
tinha muita coisa desenvolvida no Haiti", contou. Ainda assim,
a curiosidade falava alto. "Já quebrei muitas televisões, muitos
rádios porque eu queria saber o que tinha lá dentro."
Vivendo na capital, Ludger aprendeu a mexer com tecnologia
por necessidade. Ele era moleque quando precisou arrumar seu
primeiro computador quebrado. Recorreu a um amigo que
cobrou caríssimo pelos serviços. "Na verdade, nem era meu
amigo, porque ele me cobrou muito dinheiro para consertar o
computador!", disse, rindo. Sem grana, o jovem fuçou o
aparelho e o arrumou. Não parou mais dali em diante. Além de
fazer manutenção, ele também dava aulas gratuitas de
informática no seu bairro em Porto Príncipe e mantinha sua
própria lan house. "Eu consertava celulares, computadores,
fazia manutenção", falou.
Os dois haitianos-cariocas acreditam que o Infotech é uma
maneira de ajudar seus conterrâneos, mesmo que à distância.
Ambos creem que o conhecimento é uma arma fundamental
contra a discriminação a que alguns haitianos estão sujeitos. "O
preconceito existe há muito tempo e o haitiano que está aí fora
tem de estar preparado para o tratamento que vai receber",
disse Jacssone. "Quem não está bem preparado, acaba
marginalizado."
O futuro engenheiro sabe que a luta contra o preconceito gerado
até pelomedo irracional do ebola não depende só dele e de seus
compatriotas. Durante nossa conversa, Jacssone lembrou do
vídeo que pintou esses dias no Facebook e no YouTube em que
um homem de roupas militares dispara ofensas xenófobas a um
frentista haitiano em um posto de gasolina no Paraná. "Ele é um
homem que fala antes de pensar", disse Jacssone. "O Brasil deve
estar indignado com esse cara!"
Se depender da dupla que se descobriu radialista, a conexão
Brasil-Haiti-Mundo continua firme de domingo a domingo.
Para eles, coisas simples como um celular recuperado ou temas
rebuscados como inteligência artificial podem ajudar um jovem
haitiano em qualquer lugar do mundo, no dia-a-dia ou nas
provas finais. Embora tenham batizado o programa de rádio
como Infotech, Jacssone e Ludger botam fé no saber que se
espalha. "Se alguém sabe algo e não compartilha isso, é
informação; se compartilha, é conhecimento", disse Jacssone.
Foi nesse espírito que o haitiano arrematou nossa conversa.
"Acho que o Infotech vai longe, muito longe, e você vai ter a
honra de dizer: eu fui o primeiro jornalista a falar sobre o
programa."
Só me restou, além de desejar boa sorte nesse projeto
inspirador, agradecê-los. Muito obrigado, falei. Ou como eles
me ensinaram depois: "méssi anpil"!
Link: http://www1.folha.uol.com.br/vice/2015/06/1644333-a-radio-haitiana-de-ciencia-quefunciona-no-brasil.shtml
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