Marcelo Silvério Minha história começa no dia vinte e sete de abril de 1985, dia em que nasci. Ainda moro na mesma casa, que continua do mesmo jeito e com a mesma cor. De fato moro há vinte anos no mesmo lugar e grande parte de minhas histórias se passaram entre aquelas paredes onde morávamos eu, meu pai, minha mãe e meu irmão seis anos mais velho. Vivíamos com simplicidade, sem luxo, mas tínhamos um certo conforto. Minha mãe, Maria ou Mariazinha, era funcionária da Universidade Federal do Paraná e, na época, trabalhava no Hospital de Clínicas em Curitiba. Meu pai, Adolar, estava desempregado e era marceneiro de profissão. Não lembro muita coisa desta época de crises econômicas e políticas, das filas para comprar leite, do desemprego nem da inflação... Mas lembro do esforço dos meus pais para que não faltasse nada em casa. Meu pai logo arrumou emprego em uma marcenaria e depois em uma grande indústria e as coisas se estabilizaram. Eles ficavam o dia inteiro fora. À noite minha mãe se ocupava dos afazeres domésticos. Eu e meu irmão ficávamos de dia com uma vizinha, que era como uma segunda mãe: a “Tia Margarida”. Até hoje temos muito carinho por ela. Apesar da distância, meus pais sempre se fizeram presentes e o pouco tempo que tinham dedicavam à família. Aprendemos a nos virar desde cedo, tínhamos que ajudar de alguma forma. Eu e meu irmão cuidávamos da casa para reduzir o trabalho da minha mãe. Para mim isso foi muito saudável e me fez dar mais valor ainda ao esforço dela, não que gostasse de lavar louça, mas era necessário. Meus pais sempre valorizaram muito a educação e logo comecei a estudar em jardins de infância. Mais tarde, no primeiro ano, ingressei na Escola Estadual Professor Brandão em um bairro nobre da cidade, próximo ao trabalho de minha mãe. Essa escola era uma das melhores escolas estaduais da cidade e eu só consegui vaga porque meu irmão, Aderlan, já estudava lá. Essa escola tinha excelentes professores e uma boa estrutura para uma escola pública. Estudei oito anos nessa escola, todo o ensino fundamental. Lembro que no começo era muito tímido e nunca queria ir pra aula, tinha medo, mas isso foi passando com o tempo. Quando entrei no primeiro ano já sabia ler e escrever e fazia algumas contas básicas de matemática. Não sentia muita dificuldade nas aulas e minhas notas eram boas, nunca fui o primeiro da sala, mas a cobrança dos meus pais fazia com que eu sempre ficasse entre os primeiros, tinha um exemplo dentro de casa e era quase que obrigado a seguir os passos do meu irmão que sempre foi o primeiro da turma. De fato, ele era muito inteligente e ainda conserva este dom. Nos oito anos que estudei no Brandão fiz muitos amigos e ainda mantenho contato com alguns deles até hoje. Gostava muito daquele colégio e eu acho que ele também gostava de mim. Levava muita sorte com os professores e sempre que minha turma arrumava alguma encrenca eu me safava. Nunca tive muitos problemas com falta de disciplina, foram só algumas poucas brigas que acabaram rápido. Eu era o menor e sempre, na hora do recreio, ficava por último na escolha pro time de futebol. Só me restava o gol. Minha carreira de goleiro não durou muito tempo porque eu sempre me machucava. A bola, a gravidade e o chão pareciam conspirar contra mim, por fim acabei desistindo deste esporte mesmo. Definitivamente eu não nasci pra isso. Quando tinha aproximadamente onze anos de idade minha mãe teve que fazer uma cirurgia na perna e ficou cinco meses e vinte e três dias de cama sem poder se mexer. Ao todo ela ficou quase dois anos em casa se recuperando. Todos cuidávamos dela e o trabalho de todos nós ajudou na sua recuperação. Meu pai trabalhava o dia inteiro e meu irmão estudava de manhã no CEFET e de tarde trabalhava. Eu estudava pela manhã e saia da escola correndo pra casa para fazer almoço e ajudar minha mãe. Passava a maior parte do dia com ela. Eu acho que foi ali que começou uma grande amizade que até hoje existe. Além de mãe ela é uma grande amiga com a qual eu sei que posso confiar sempre e tenho certeza que ela também me vê assim. Eu deixava de brincar com meus amigos para ficar com ela e, apesar das dificuldades daquele tempo, tenho saudades! Tem certas coisas que a gente pensa e sente que não dá pra descrever, são coisas que só a gente sabe como é ou foi. Eu me sentia responsável por ela mesmo sabendo que não podia fazer muita coisa pra resolver aquela situação, mas o pouco que eu podia fazer acabou se tornando muito e foi decisivo, pelo menos pra mim. Oitava série! Eu tinha a difícil tarefa de “seguir os passos do meu irmão” que tinha saído do Brandão e entrado no CEFET. Foi um ano muito difícil, eu sofria a pressão para entrar em um dos “grandes colégios de segundo grau”. O CEFET era o alvo inicial. Afinal meu irmão estudara lá e sempre foi um dos primeiros. Tinha se formado e havia passado no vestibular da UFPR em Filosofia sem fazer cursinho. Eu tinha que passar, não podia decepcionar minha família. Além do CEFET, fiz prova para Escola Técnica da UFPR. Mas como prova de que ninguém é igual, reprovei no CEFET, uma tremenda decepção. Então eu fiz a prova da ETUFPR e passei entre os primeiros. Aí bateu aquele sentimento de tarefa cumprida e satisfação. Não era o CEFET mas era uma boa escola. Nesse ano meu irmão se casou com a Simone e teve seu primeiro filho Vinícius. Eles passaram a morar nos fundos de minha casa. Ele trabalhava na URBS como agente de Trânsito e ela cuidava da casa. A Escola Técnica da UFPR foi um capítulo a parte em minha vida. Ali passei os melhores três anos de minha vida escolar. Pela primeira vez me sentia completamente inserido e realmente importante. Eu era o mesmo, mas o mundo a minha volta tinha mudado. Outras pessoas, outras cabeças. Era uma escola pequena e por carregar o nome da UFPR nos sentíamos privilegiados. Realmente era uma boa escola. Tive e ainda tenho excelentes amigos que fiz ali. Logo me envolvi com o Centro Acadêmico, tínhamos uma proposta revolucionária. Éramos um bom grupo, mas com o tempo as idéias foram se perdendo e me desanimei. Os professores eram bons com a exceção do professor de Física que me fez desaprender o pouco que eu sabia desta matéria. Eu quase zerei em física posteriormente no vestibular graças a essa figura que não vale a pena nem citar. No ano de 2001 meu irmão teve mais uma filha, a Beatriz. Terceiro ano: de novo o fantasma do vestibular e a sombra do meu irmão. Não se tratava de uma competição ou idealismo de ser igual a ele da minha parte, mas aquilo mexia comigo. Novamente a pressão, mas decidi não levar isso tão a sério e de início nem queria fazer vestibular, queria trabalhar, fazer outras coisas. Nunca fui um gênio na escola, mas nunca tinha reprovado, sempre estudei em escola pública e não podia fazer um cursinho. Que chances eu tinha de passar no vestibular? Eu mesmo me desacreditava, via todos os meus amigos fazendo cursinho, se preparando, estudando e achava que não tinha a menor chance. Então por teimosia de minha família acabei fazendo vestibular para Agronomia. Por que Agronomia? Nem eu sei por que escolhi este caminho, mas dentre os cursos que eu vi, foi o que mais me agradou, não era tão concorrido e a média para passar não era tão alta. O fato de meus pais serem originários do campo também contribuiu para minha escolha. Tínhamos um sítio em Bocaiúva do Sul. Eu adorava aquele lugar, me sentia em casa lá e fazia pequenos serviços. Não era um trabalho árduo pra mim, mas um prazer. O engraçado é que eu demorei pra perceber e só depois que fiz o vestibular é que descobri que tinha nascido mesmo pra isso, para trabalhar com a natureza e com a terra, com a simplicidade das pessoas do campo. Nada mais natural que eu fizesse Agronomia. Tensão no vestibular!? Até que não, fiz o vestibular sem a menor preocupação, não me sentia na obrigação de passar, afinal não era um gênio e nem tinha feito cursinho. Esse desprendimento da obrigação de passar me acalmou e de repente tudo surgiu em minha cabeça, as provas pareciam que tinham sido feitas por mim. O resultado foi o melhor possível, passei na Universidade Federal do Paraná e no curso que queria fazer, Agronomia. Isso tudo no meu primeiro vestibular aos 17 anos. Foi a maior festa lá em casa! Minha mãe estava em Porto Alegre no Fórum Social Mundial (2003) e ficou sabendo pelo telefone. Ela gritava de felicidade. Fiquei muito feliz por mim, mas triste por meus amigos que se prepararam o ano todo para entrar na universidade e não tiveram sucesso. As coisas tinham mudado não só em minha vida acadêmica, mas no meu mundo como um todo. No início de 2003, ano em que entrei na universidade, meus pais se separaram. Meu pai saiu da empresa que trabalhava há vários anos e foi morar no sítio, sozinho. Foi um choque para toda a família. Minha mãe ainda trabalhava na UFPR, na CASAIII (um ambulatório para estudantes e funcionários da universidade). Ela ficou muito abatida com tudo, assim como eu, mas tinha que segurar a onda por mim e por ela. Passamos a viver só eu e ela naquela casa que, de repente, ficou enorme para nós dois. Meus sobrinhos passaram a ser ainda mais importantes para nós ajudando a esquecer os nossos problemas. Sentia muita falta do meu pai, mas com o tempo nos adequamos a nossa nova realidade e sempre que podia eu ia visitá-lo. Minha mãe seguiu sua vida e eu me dediquei ainda mais à universidade. Meu irmão teve mais uma filha, a Carina que se somou a coleção de coisas boas. Em setembro de 2004 minha mãe recebeu uma proposta para ir trabalhar em Palotina. Ela já estava namorando um antigo amigo que também trabalhava na Universidade, o seu Elias. Eles resolveram se mudar para lá e morar juntos. Um pouco antes de ir eles foram assaltados e seqüestrados. Deu o maior rolo, mas ninguém se machucou, só tivemos um grande prejuízo material, mas nada que não consigamos recuperar. Meu primo veio morar comigo e nós dividíamos as despesas e as tarefas, sentia muita falta da minha mãe, mas sempre mantemos contato e sempre que posso vou visitá-la ou ela vem me ver. Ela me ajuda muito. Meu pai também começou a namorar uma mulher que morava no mesmo bairro que eu. Eles não deram certo e em pouco tempo, no inicio deste ano, 2005, meu pai voltou a morar em casa comigo. Posteriormente meu primo saiu de casa e atualmente estamos morando eu e meu pai na mesma casa de vinte anos atrás. É incrível como essa vida pode dar voltas e como as pessoas se movimentam atrás de algo que lhes falta. Todo mundo tomou um rumo e um destino. Eu fui o único que permaneceu este tempo todo entre aquelas paredes. É impossível concluir o que ainda não está concluído. Ainda estou em busca de acertos mesmo que erre por muitas vezes. Tenho projetos para realizar e para isso trabalho caminhando pra frente, sempre dando uma olhada para traz pra não cometer os mesmos erros novamente.