GRAMATIZAÇÃO E MEMÓRIA: UM ESTUDO DO PORTUGUÊS
BRASILEIRO
Glauce Amanda Pagan
Prof. Drª Mariângela Peccioli Galli Joanilho (Orientadora)
RESUMO
Este estudo objetiva analisar a designação “língua brasileira” comparandoa com as designações que o português europeu recebeu no Brasil, visando
às transformações em que a língua, por meio da fala e do contexto
gramatical, sofreu desde que foi transportada para o território brasileiro. A
questão principal consiste em estabelecer uma compreensão de parte das
regularidades e das diferenças entre ambas as línguas, o que leva à
construção das identidades diferentes para seus falantes. Nesse momento,
estamos trabalhando com um corpus constituído a partir de dados
coletados em jornais brasileiros, datados dos anos 1960 do século XX e de
periódicos atuais, comparando-os com o que se prescreve em gramáticas
de autores brasileiros e portugueses da mesma época, para, em seguida,
compará-los com análises sobre o assunto, produzidas anteriormente.
Assim, a finalidade desta pesquisa é disseminar a ideia de que a língua
brasileira não é um legado de Portugal, isto é, não mantém unidade como
português, pois ao longo de sua historicização em outro espaço,
transformou-se, tanto no âmbito lexical quanto no sintático, as diferenças
ultrapassam o sotaque e a língua cria nova identidade. Esta pesquisa
vincula-se ao projeto “Nação, Ciência e Raça no Brasil”, coordenado pela
Drª Mariângela Peccioli Galli Joanilho.
Palavras chave: língua brasileira; gramatização; política da língua.
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Introdução
Propõe-se com esta pesquisa motivar as discussões acerca da
realidade da designação língua portuguesa, uma vez que esta foi
transportada ao território brasileiro e ao longo de sua historicização
adquiriu outra identidade. Sendo assim, a grande questão concentra-se
em compreender se a língua é a mesma ou se podemos dividi-la em:
português europeu e brasileiro, considerando construções possíveis na
fala e escrita.
Os contextos questionados – fala e escrita – dividem-se; afinal, a
língua permite aos seus falantes construções diferenciadas que fogem aos
padrões formais, isso facilita, de acordo com cada contexto, a criação de
novas identidades através da fala. Entretanto a língua escrita exige certos
padrões, conquanto há inovações que chegam à escrita por meio da fala.
1. Procedimentos metodológicos
A partir da leitura de periódicos atuais, foram observadas as
diferenças mais significativas entre o português europeu e brasileiro, com
o intuito de analisar construções encontradas no quotidiano dos falantes
brasileiros, não comuns ou inexistentes em Portugal. Tais questões foram
levantadas após um estudo diacrônico da língua no Brasil, com a
finalidade de um melhor entendimento histórico da mesma.
Com relação à língua escrita, foram analisados jornais datados
dos
anos
de
1960,
e
atuais,
comparando-os
pudemos
observar
diferenciações produzidas em um curto período de tempo.
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2. Breve histórico do Português brasileiro.
Sabe-se que o Brasil pode ser considerado um país multilíngue,
devido à grande diversidade de sotaques proporcionados pela diversidade
de outras línguas, as quais confundiram-se com a língua portuguesa
recém chegada no país no ano de 1500 e estes fatores propiciaram
mudanças tanto lexicais quanto gramaticais.
Com a chegada dos portugueses no Brasil houve um primeiro
contato desta língua com as línguas indígenas. Importaram, depois, da
África muitos escravos, sendo assim, a base da população brasileira era
constituída do português europeu, do índio e do negro.
Eduardo Guimarães (2005) divide a história da língua portuguesa
no Brasil em quatro períodos: o primeiro inicia-se com o começo da
colonização e estende-se até a saída dos holandeses do Brasil (1654).
Nesse momento o português convive com as línguas indígenas diversas,
com o Tupi (falado pela maioria dos habitantes) e com o holandês. O
segundo período tem início com a saída dos holandeses do Brasil – a partir
deste momento a relação passa a ser entre o português, as línguas
indígenas e as africanas. O terceiro, inicia-se com a vinda da família real
(1808), nesse período chega ao Rio de Janeiro 15 mil portugueses, há
ainda a criação da imprensa no Brasil e fundação da biblioteca nacional. O
quarto período começa em 1826. Nesse ano foi decidido que os diplomas
dos médicos deveriam ser redigidos em “linguagem brasileira”, ainda no
quarto período, no qual o português já estava definido como língua oficial
do país, inicia-se o processo de imigração, com a vinda de alemães
(1818), este processo se concretiza nos fins do século XIX e inicio do
século XX (1880-1930), quando entram no país falantes de italiano,
japonês, coreano, holandês, inglês, alemão.
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Todos estes fatores aliados ao fato de que os portugueses que
aqui chegaram, vieram de todas as partes de Portugal e, segundo
Guimarães (idem), trouxeram consigo dialetos diferentes, contribuíram
para que a língua aqui falada se tornasse diferente da falada em Portugal.
A esse respeito, Orlandi (2005) questiona: “falamos língua portuguesa ou
língua brasileira?”.
3. Português Europeu e Brasileiro: principais diferenças.
A
língua
portuguesa
brasileira
distingue-se
da
europeia
inicialmente pelo fator fonológico. Há alguns indicadores, segundo Pagotto
(2005), para isto: a realização das vogais pré-tônicas (em Portugal a
tendência consiste em reduzir as vogais pré-tônicas, no Brasil a pronúncia
delas é clara); a realização de /t/, /d/ diante de [i] (em grande parte do
Brasil há a realização africada [tt], o que não ocorre em Portugal); a
realização da consoante fricativa /s/ em final de sílaba (em alguns lugares
do Brasil há a palatalização de /s/); a realização de /l/ em final de silaba
(consiste na pronuncia do [l] velarizado, quando no fim de palavras, isso
ocorre em Portugal, no Brasil a pronuncia ocorre como uma semivogal
[w]).
Entretanto, as diferenças ultrapassam o nível de fonologia, assim
a língua brasileira apresenta variações também sintáticas, sendo algumas
delas ditas por Guimarães (2005) citando Galves, de cunho pronominal, já
que os pronomes átonos (me, te, se, lhe, o, a, etc.) para a linguagem
brasileira encontram-se em colocações proclíticas, de forma que não é
possível encontrar este tipo de construção em Portugal, como se segue no
exemplo: Maria se levantou, muito comum no Brasil.
Galves (2002) diferencia a construção brasileira da portuguesa, uma vez
que, segundo a autora, a principal característica sintática do português
brasileiro é que trata-se de uma língua de “tópicos”, diferentemente de
Portugal.
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A
característica
consiste
em
uma
retomada
em
algumas
construções que muda o sintagma da frase: no Brasil há SN[SN V (SN),
em Portugal há, SN[ V (SN). Há na construção brasileira o seguinte
método: José, ele esteve em casa; na portuguesa: José esteve em casa.
Houve na primeira frase a introdução do sujeito por meio da
nomeação, em seguida o pronome ele (substituindo o sujeito) que retoma
José, nesta frase observa-se a construção através de tópico, uma vez que
José é o tópico e sobre isso se vai dizer algo.
A característica de linguagem através de tópicos pode ser
explicada, segundo Guimarães (idem), por meio de alguns aspectos
próprios da língua: a) uso do pronome ele como objeto (em Portugal essa
construção é inexistente); b) ele como sujeito; c) ele como objeto de
preposição. Para Guimarães este funcionamento ocorre no Brasil devido a
predominância
de
relativas
que
retomam
a
um
nome
principal.
Contrapondo-se a este fato, em Portugal a forma mais utilizada pode ser
observada nos seguintes exemplos: O André, de quem eu gosto é mais
bonito.
Segundo Tarallo (1996) tais diferenças instalaram-se no Brasil
desde 1880 e aprofundaram-se a partir dessa data. Há ainda outro fator
considerado por Galves presente no português do Brasil: o funcionamento
do pronome se, para a autora nesta língua o pronome pode não aparecer
em frases com o verbo nas formas finitas (tempo) contrapondo-se ao
português europeu. Por exemplo: esta calça lava facilmente, José não
matriculou ainda; em Portugal seria. Esta calça lava-se facilmente, José
não se matriculou ainda.
Estes exemplos mostram que as diferenças entre as línguas são
maiores do que imaginamos, uma vez que a estrutura transformou-se,
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enunciados não comuns ou inexistentes em Portugal são comuns no uso
brasileiro.
4. Influências Indígena e Africana
A nação brasileira, devido à diversidade de outras culturas postas
em contato, transformou a língua portuguesa, sendo as mais significativas
para tal transformação, as línguas indígenas (Tupi) e africanas.
É do Tupi que provêm palavras como: capim, cupim, mingau,
guri, caatinga, curumim, cunha, moqueca, entre outras. Com relação à
flora destacam-se: abacaxi, buriti, carnaúba, mandacaru, mandioca, sapé,
taquara; nomes de frutas: pitanga, maracujá, jabuticaba, caju, etc.
Quanto à fauna tem-se: capivara, quati, tatu, sagui, sucuri, etc.
O vocabulário africano acrescenta à língua brasileira palavras
como: vatapá, abará, acará, acarajé, caçula, moleque, cafuné, molambo,
etc.
A partir destes exemplos, é possível observar o quanto a
linguagem
brasileira
acrescentou
novas
palavras
ao
vocabulário
português, e mais uma vez contribuiu para todos aqueles que constroem
suas identidades com base nesta língua.
5. Análise de Dados
Para analisarmos a língua que integra os dois países em questão,
é necessário avaliar, além da fala, as construções com as quais os falantes
dessas línguas convivem enquanto linguagem escrita. Com o objetivo que
verificar se houve uma evolução, ou não com relação as construções da
língua brasileira em um curto espaço de tempo (1960-2010). Para isso
foram feitas algumas análises em jornais editados nos dois períodos:
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“O texto de Fernando Worm, como é obvio, despertou a atenção de todos
quantos o leram. “Freud de Joelhos”, com sua atualidade deverá ser o
centro de apaixonados debates nos círculos intelectuais. Sabe-se que a
peça do autor gaúcho já divide as opiniões: uns amplamente favoráveis à
sua encenação, enquanto outros advertem para o escândalo que o
espetáculo causará nos meios religiosos.
De qualquer forma, o certo é que, “Freud de Joelhos” está sendo
estudado, com interesse, por um grupo teatral local. Única dificuldade
maior para uma encenação imediata: o número de atores requerido pelo
texto. Por outro lado, um conhecido empresário local viajará, na próxima
semana para Guanabara e São Paulo, levando um exemplar do texto, a
fim de consultar diversos diretores teatrais, sobre a possibilidade de
iniciar, de imediato, os ensaios da peça Worm”.
(Jornal, O Correio do Povo, caderno de sábado, 30 de setembro de 1967).
A notícia acima, retirada do jornal “O Correio do Povo”, editado
em 1967 nos mostra poucas diferenças em relação ao português europeu,
uma vez que nesse contexto havia a necessidade de uma escrita mais
clássica voltada para esse meios de comunicação visto que as primeiras
transformações se deram por meio da fala. Em uma análise é possível
observar que nesse período as construções ainda se aproximam da
européia, por exemplo, “despertou a atenção de todos quanto o leram”. A
terminação nesta frase contrapõem-se às construções citadas no início
deste artigo com relação ao pronome ele, como também se observa neste
outro exemplo: “ Porém sua mãe, que enviuvara em 1827” (Correio do
Povo, 1867). Aqui é possível observar uso do pretérito mais que prefeito
(enviuvara), pouquíssimo utilizado atualmente, já que é encontrado em
textos com linguagem mais clássica.
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Confrontando estes modelos de construção presente em jornais
de 1960, é possível citar os jornais atuais, os quais apresentam linguagem
mais informal que tornam a leitura mais leve, que aproxima-se do modelo
falado. Por exemplo:
““ O melhor filme atual” diz em off a voz de
Jean Luc Godard no final do trailer de
“Acossado”.”
(Jornal Folha de São Paulo, sábado, 26 de
junho de 2010).
No enunciado acima é possível observar alguns traços presente
na linguagem brasileira que a afasta da européia:
“diz em Off” – utiliza uma terminação
estrangeira para se referir que a pessoa
descrita disse algo fora da entrevista, usando
mais o estrangeirismo.
“no final do Trailer” – “no final” poderia ser
substituído por “ao final” para uma linguagem
mais clássica. Mais uma vez aparece uma
palavra estrangeira “trailer”
A evolução da língua portuguesa no Brasil se faz presente nos
jornais descritos acima. Em um curto espaço de tempo (1960 – 2010) é
possível observar que a língua dos meios de comunicação aproximou-se
do leitor brasileiro. Vale ressaltar que a sociedade leitora para qual a
informação
está
direcionada
também
se
expandiu,
devido
ao
reconhecimento da importância da leitura para a evolução social e
individual.
Enquanto nos anos de 1960 a linguagem presente era mais
“clássica”, mais próxima de construções européias portuguesas, e,
portanto, voltadas para pessoas que, na época, teriam maiores condições
para o estudo. Atualmente ela se encaixa numa linguagem mais cotidiana
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e até certo ponto comercial, voltada para vendas afim de que todos os
brasileiros tenham acesso.
Considerações Finais
A partir dos dados coletados neste início de pesquisa, foi possível
observar que as línguas brasileira e português europeu enquanto línguas
escritas têm, na maioria das construções, a mesma base estrutural. Há
diferenças no caso, por exemplo, do uso do pronome se: João se levantou
(português brasileiro); João levantou-se (português europeu), a primeira
construção não existe em Portugal. Entretanto, com relação à escrita, tais
diferenças não são tamanhas a ponto de se considerar línguas distintas.
Mesmo assim, foi possível observar uma diferença: com relação à
escrita, houve uma evolução voltada para os meios de comunicação que,
atualmente, prezam por uma escrita que se aproxime de seus leitores,
assim se distanciam da linguagem clássica portuguesa muito comum em
jornais antigos.
Confrontando com este fato há a língua falada, com pronúncias
diferentes, discursos diferentes e até palavras com as quais o português
europeu não mantém contato como é o caso daquelas nomeadas através
de línguas indígenas e/ou africanas. Sobre esta questão é possível
observar que a população brasileira criou nova identidade para esta língua
e com esta língua, as transformações ocorridas, o contato com outras
línguas, todos estes fatores proporcionaram para a língua portuguesa
novo aspecto e no caso da fala, nova estrutura (linguagem através de
tópicos, por exemplo.)
A pesquisa nos permitiu verificar portanto que as designações
língua brasileira e língua portuguesa podem ser utilizadas ao tratarmos da
linguagem enquanto fala; que não são, por um lado, um legado de
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Portugal, visto que, adquiriram ao longo do tempo, em territórios
diferentes, discursos que ultrapassaram a dimensão sotaque. Contudo, as
duas
línguas
fazem
parte
do
mesmo
contexto
estrutural
quando
relacionado com a escrita pelo fato desta ainda exigir unidade portuguesa.
Referências
GALVES, Charlotte: Ensaio Sobre as Gramáticas do Português. Campinas,
Editora da Unicamp, 2001.
GUIMARÃES, Eduardo (org.); PAGOTTO, Emílio Gozze; ORLANDI, Eni P.;
Línguas do Brasil. São Paulo: SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência). 2005.
TARALLO, Fernando: Diagnosticando uma Gramática Brasileira: o
Português d’aquém e d’além mar ao final do século XIX. Campinas,
Pontes,1996.
TESSYER, Paul; trad. Celso Cunha: História da Língua Portuguesa. Editora.
Livraria Sá da Costa. Lisboa. 1994.
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Gramatização e memória: um estudo do português brasileiro