A IMAGEM PEJORATIVA SOBRE A MULHER EM LETRAS DE MÚSICAS Paula Maria Fernandes (UEPB/CH) Gênero aponta para a noção de que, ao longo da vida, através das mais diversas instituições e práticas sociais, nos constituímos como homens e mulheres, num processo que não é linear, progressivo ou harmônico e que também nunca está finalizado ou completo. (...) como nascemos e vivemos em tempos, lugares e circunstâncias específicos, existem muitas e conflitantes formas de definir e viver a feminilidade e a masculinidade. (MEYER, 2003, p.16-17). Meyer discute o conceito de gênero, que é ressignificado a partir dos movimentos feministas do século passado, onde gênero deixa de ser só um aspecto biológico e passa a complementar também as discussões do social, cultural e lingüístico, diferenciando então homens de mulheres e tornando também possível a percepção do corpo. Isso ocorre devido à “Crise dos paradigmas”, nos anos 60. Utilizando da linha teórica “Nova História Cultural”, que possibilita um novo olhar sobre os temas já estudados pelas escolas históricas anteriores a ela, e uma renovação em temas antes tidos como irrelevantes ou banais. Com essa nova abordagem surgem discussões em torno do gênero e produções da história do corpo, entre outras. Nessa ótica histórica o corpo é tido como transmissor de nossa identidade, pois ao mesmo são atribuídos significados culturais e sociais e é, portanto a partir dele que nos percebemos e nos colocamos perante a sociedade. “Para Foucault, o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera apenas pela ideologia ou pela consciência, mas tem seu começo no corpo.” (GOELLNER, 2003, p.30). 1. A mulher na sociedade brasileira Durante muito tempo não questionamos, não agimos, não exigimos, não nos consideramos capazes porque nos foi incutido que éramos inferiores por não termos as mesmas condições mentais dos homens, sem a mínima capacidade de sobrevivência, se não tivéssemos ao nosso lado o pai, o irmão, o marido, o filho ou qualquer outro elemento do sexo masculino para nos sustentar. Isso é tão forte em nossa sociedade que provavelmente, neste momento se alguma mulher esboçar o desejo de viver só, sempre haverá alguém que lamente esta opção ou questionará como ela irá viver sem o marido ou companheiro para ajudar no seu sustento e de seus filhos? (FERNANDES) Vivemos em uma sociedade culturalmente preconceituosa e machista, onde a mulher esteve por muitos séculos subordinada a princípio a seu pai e posteriormente a seu marido, sendo a responsável por executar as tarefas do lar (lavar, passar, cozinhar, entre outras atividades) e pelos filhos (cuidando desde sua alimentação até sua educação), além terem o dever de serem obedientes e dedicadas a seu marido. Mas devemos ressaltar que historicamente a mulher tem um papel muito importante em nossa sociedade, ao longo dos séculos foi tida como o sexo frágil, incapaz de viver sem a presença de um homem para ampará-la, mas ela desconstroí historicamente essa afirmação, demonstrando sua força e capacidade, a mulher pré-histórica, por exemplo, era a responsável pela coleta dos alimentos, sendo posteriormente a responsável pela “revolução agrícola”. No Brasil colonial verificamos que a mulher é tida muitas vezes pelos homens como propriedade, onde seu casamento era escolhido por seu pai, “casamento esse que era quase um acordo comercial” e depois ela tinha que ser submissa ao seu marido. A partir de 1932 as mulheres conquistam o direito ao voto, tendo em 1935 um grande avanço com uma eleita a parlamentar, a Carlota Queiroz. Outra grande conquista foi o direito ao divórcio chamado por algumas de “carta de alforria”, com esse direito elas poderiam então livrar-se de casamentos mal sucedidos, tornando-se assim senhoras de seus destinos. Em todo processo histórico elas lutaram por direitos tendo alguns conquistados, os quais ajudaram a inseri-las, aos poucos, no meio social não só como integrantes da mesma, mas também como transformadoras dela. No século XX podemos observar que as mulheres ganham destaque em nossa sociedade, conquistando seus direitos enquanto: cidadã, trabalhadora, companheira, mãe e mulher; e também a forte presença e ação dos grupos feministas. 2. A imagem da mulher em letras de músicas Filmes, músicas, revistas e livros, imagens, propagandas, são também locais pedagógicos que estão, o tempo todo, a dizer de nós, seja pelo que exibem ou pelo que ocultam. Dizem também de nossos corpos e, por vezes, de forma tão sutil que nem mesmo percebemos o quanto somos capturados/ os e produzidos/ os pelo que lá se diz. (GOELLNER, 2003, p.29). A música sempre esteve presente em nossa vida, independente pela forma pela qual ela é usada em nossa sociedade, seja para expressar a cultura, para distração ou apenas para espantar a solidão. Quem já não teve uma música que marcasse algum momento de sua vida, como um romance, sua infância ou até mesmo um momento triste. Ela está diretamente ligada a nossa relação de aprendizagem com o meio, trazendo muitas vezes discussões do gênero e do corpo para a interação com outro. No final do século XX, na década de 90, percebemos uma vulgarização em torno da sexualidade, uma das conseqüências é a veiculação da imagem da mulher como objeto de intriga, desejo e provocação para com o homem. Essa “tendência” é percebida a priori na mídia, sendo assim absorvida pela maioria da população masculina como um “estilo de vida”. A música popular brasileira a partir dos anos 90 traz uma nova ressignificação da imagem da mulher, onde se deixa de lado sua imagem de amada, dona do lar, entre outras, para a valorização de seus aspectos físicos, “bundudas”, “peitudas”, “cachorras”; e sua ausência de intelectualidade, “a loira não é burra, ela tem preguiça de pensar”. A maior depreciação da mulher na música brasileira começou na década de 90 quando, entre outros fatores, foi iniciado o culto ao bumbum com bem mais ênfase do que havia acontecido na época das chacretes comandadas por Rita Cadilac e a "cantora" Gretchen. A indústria fonográfica percebeu a preferência nacional masculina e apostou todas as suas fichas no novo Midas. Fabricou o Tchan e sua Carla Perez e aí vieram as outras seguidoras do culto a bundofília. Paralelo a isso, a erotização das coreografias das bandas da Bahia, as quais também popularizaram os carnavais fora de época, surgiu uma nova vertente da cultura da massificação. (NELSON,2001) Para ilustrar a nossa discussão, selecionamos duas letras de músicas que trazem imagens sobre a mulher. São elas: DESTRAMBELHADA, composição de Bimba e Deco do cavaco conhecida pela mídia através do grupo Harmonia do Samba; e o HINO DAS LOIRAS, conhecida na voz do cantor Frank Aguiar. (www.letras.terra.com.br) Oferecemos então a letra da música DESTRAMBELHADA cantada pelo grupo Harmonia do Samba: Olha ela aí com seu jeito sensual, Dizem que ela é louca, que nada, È uma tentação, que abala o coração, Neguinho ta de olho nela, mas eu também to de olho nela, Mas não respeita nada, nada, nada, Nada nem ninguém, Primeiro ela cola, deita e rola Depois joga fora, Anda semi-nua pela rua, Vive a provocar, Mas não espante se alguém te chamar, Nega maluca, solteira, tarada. Nesta letra observamos a construção pejorativa da imagem da mulher como instrumento de sedução, onde temos os seguintes termos: seu jeito sensual, dizem que ela é louca, que nada, é uma tentação, não respeita nada, nada nem ninguém, primeiro ela cola, deita e rola, depois joga fora, anda semi-nua, vive a provocar, nega, maluca e tarada. Esses termos nos dão à idéia de que a mulher por ter ela um jeito sensual utiliza desse artifício para seduzir o homem, o usa e depois desfazer se do mesmo, ao mesmo tempo em que mostra uma imagem da mulher desprendida dos valores morais impostos pela sociedade, seria ela uma mulher “moderna”, ao mesmo tempo louca por se desprender desses valores. Veste suas roupas curtas por anda semi-nua, fato esse que provoca os outros, devido a isto ela não deve estranhar se alguém chama-la de nega, palavra usada pejorativamente para referir-se a uma mulher, ressaltando que em algumas hipóteses pode ser um tratamento carinhoso, ela também é maluca e tarada por demonstrar tal posicionamento perante a sociedade. Na composição denominada HINO DAS LOIRAS cantado por Frank Aguiar tem a seguinte letra: A mulher loira é nota dez e preferida carinhosa e definida tem Poder de conquistar Maliciosa tem a força da paixão quando toca um coração, Faz o cabra Se amarrar A mulher loira é linda por natureza Tem um toque de beleza, Igual a ela não há Eu não concordo com esse Dito popular Pois a loira não é burra Tem preguiça de pensar A loira não é burra, (ela não é não) A loira não é burra, (ela não é não) A loira não é burra, Tem preguiça de pensar A loira não é burra, A loira não é burra A loira não é burra, Tem preguiça de pensar A mulher loira, comparando com a morena, Onde chega rouba a cena, é Difícil segurar Por mais que a loira sem querer dê um vacilo, mas não foge Do estilo tem Direito de errar A mulher loira é gostosa até demais Em tudo leva vantagem, Até no jeito de andar E as morenas, vendo que não têm apelo Estão pintando o cabelo pra loira também ficar O Hino das Loiras faz referência à mulher loira passando uma imagem que ela seria a musa, o ideal de mulher, utilizando dos termos: a mulher loira é nota dez, preferida, definida, linda por natureza, igual a ela não há. Verificamos também um foco preconceituoso nessa música quando ela diz: a mulher loira é linda por natureza, a mulher loira comparada a morena, onde chega rouba acena, em tudo leva vantagem, até no jeito de andar e as morenas, vendo que não tem apelo estão pintando o cabelo pra loira também ficar, temos nesse trecho a supervalorização da mulher loira (branca), impondo a sociedade um “embraquecimento”, pois o tipo de mulher fatal seria a loira, ela é que possui uma beleza natural, enquanto as outras, chamadas na música por “morenas” teriam inveja dessa mulher fatal e por este fato utilizam de artifícios como pintar o cabelo pra se assemelharem a ela, o fato de pintar o cabelo não é por simples desejo de mudança visual, mas por inveja dessa “mulher ideal”. Ao mesmo tempo em que a música desconstroí o dito popular que ela seja burra a coloca como preguiçosa, na seguinte frase, eu não concordo com esse dito popular, pois a loira não é burra tem preguiça de pensar, ou seja, a mulher loira pode até ser inteligente, porém é preguiçosa por isso não pensa. Considerações finais As mulheres em alguns momentos em nosso processo histórico estiveram submissas aos homens presentes em suas vidas, a princípio ao seu pai e depois ao seu marido, hoje verificamos as mais diversas formas pejorativas de tratamento para com as mesmas, sendo alvos de atitudes preconceituosas, machistas, discriminatórias, entre outras. No século XVIII começa a se notar uma mudança no público leitor, há uma afinidade desse novo público com a história das maneiras e costumes e da história da sociedade. Isso se deve a crescente feminização do público e a sua preferência por autoras e textos com protagonistas femininas. As mulheres lutaram e obtiveram algumas conquistas, no campo do trabalho conquistaram a criação de leis de proteção e incentivo ao trabalho da mulher, contudo ao ingressar nesse mercado de trabalho enfrentaram atitudes discriminatórias e muita dificuldade devido a forte exigência de qualificação técnica e beleza, uma vez que nos anúncios de emprego está transcrito a exigência de boa aparência. Mesmo assim observamos a sua persistência para inserir-se nessa sociedade, temos então a chamada por Portela de “revolução silenciosa”, onde temos forte predominância feminina nos cursos superiores, sejam estes de graduação, mestrado ou doutorado. Referências: ANDRADE, Sandra dos Santos. Mídia impressa e educação de corpos femininos. In: LOURO, Guacira Lopes; NECKEL, Jane Felipe; GOELLNER, Silvana Vilodre (orgs.). Corpo, gênero e sexualidade. Um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003. BOSI, Ecléia. Cultura de massa e cultura popular: leituras de operárias. 8ed. Petrópolis: Vozes, 1981. BURKE, Peter. O que é História Cultural? Tradução: Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. COSTA, Neusa Meirelles. Disponível em: www.samba-choro.com.br DESTRANBELHADA. Disponível em: www.letras.terra.com.br 2007. Acesso em:13 de julho de FERNANDES, Miriam Munhoz. O papel da mulher na sociedade brasileira: da sociedade colonial aos dias atuais. Disponível em: www.monteirolobato.com.br GOELLNER, Silvana Vilodre. A produção cultural do corpo. In: LOURO, Guacira Lopes; NECKEL, Jane Felipe; GOELLNER, Silvana Vilodre (orgs.). Corpo, gênero e sexualidade. Um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003. MEYER, Dagmar Estermann. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira Lopes; NECKEL, Jane Felipe; GOELLNER, Silvana Vilodre (orgs.). Corpo, gênero e sexualidade. Um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003. NELSON, Augusto. Amélias, loiras burras e popozudas. 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