Apresentação O esporte está na ordem do dia em diversas pautas nacionais. O fato de o Brasil sediar os dois maiores eventos esportivos internacionais, a Copa do Mundo de Futebol (2014) e os Jogos Olímpicos de Verão (Rio de Janeiro, 2016), evidenciou ainda mais a importância dessa manifestação cultural, dada a interface do tema com várias esferas da sociedade brasileira. A prática esportiva, bem como outras atividades físicas, como a ginástica, desembarcou em nosso país em meados do século XIX. A princípio, as principais referências/influências eram advindas da Inglaterra e da França. Não surpreende que o mesmo não tenha ocorrido com Portugal, por pelo menos dois motivos: a) o Brasil, em processo de consolidação de sua independência, mantinha uma relação dúbia e por vezes mesmo conflituosa com o antigo colonizador; b) o campo esportivo, em Portugal, ainda dava passos claudicantes, recebendo também a influência de Inglaterra e França. De toda forma, há pontos em comum e pontos de contato nas trajetórias do esporte nos dois países. Basta lembrar que, no Rio de Janeiro do século XIX, uma das pioneiras agremiações a oferecer a ginástica foi de origem portuguesa, o Clube Ginástico Português, que posteriormente passou a dividir as atenções com o Congresso Ginástico Português. Além disso, para não nos estendermos, vale lembrar os diversos clubes de futebol que reforçaram a relação entre os países, cujo exemplo mais notável é o Clube de Regatas Vasco da Gama. Para além dessas ocorrências, é fato que nos dois países o esporte, notadamente o futebol, ocupa espaço de grande importância social (e vale lembrar que jogadores e técnicos brasileiros desempenharam papel protagonista do outro lado do Atlântico). Aliás, Portugal já organizou um grande evento esportivo, a Eurocopa de 2004. Aquela experiência teria algo em comum com o que estamos passando? Haveria algo a aprender com o que vivenciaram os portugueses? 9 Para responder a essas e outras questões, promovemos um encontro entre os pesquisadores brasileiros e portugueses que se debruçam sobre o fenômeno esportivo. Certamente esse diálogo pode contribuir para que pensemos melhor não só nossa história como também os desafios que se apresentam para o futuro no que tange às políticas públicas de esporte. *** Esse livro é um dos resultados do projeto “Seminário Internacional Esporte, Cultura, Nação e Estado – Encontro de Pesquisadores de Brasil e Portugal”, que teve duas etapas. A primeira foi um evento científico realizado nos dias 2 e 3 de setembro de 2013, nas dependências do Instituto de História (Salão Nobre), envolvendo um público médio de 80 pessoas. A segunda constituiu-se de reuniões tendo em vista dar continuidade a um programa de investigação que já existe desde 2007.1 Esse encontro deu sequência a outras iniciativas entabuladas pelos envolvidos, cuja origem foi o projeto “Esporte, Identidade Nacional e Construção da nação: Brasil, Angola e Cabo Verde”, desenvolvido com o apoio do CNPq (Edital CPLP – 2007). Na sequência, foi desenvolvido o projeto “Esporte, Colonialismo e Pós-Colonialismo em países africanos de língua portuguesa” (apoiado pelo Edital CPLP/CNPq/2008). Como desdobramento, foi desenvolvido o projeto “O sport que virou esporte, o sport que virou desporto: as experiências (d)esportivas em países lusófonos” (com recursos do Edital 37/2010/CPLP/CNPq). No âmbito dessas iniciativas, entre outras ações, foram promovidos dois eventos científicos internacionais (Simpósio Internacional “Esporte, Colonialismo e Pós-Colonialismo nos países africanos de língua oficial portuguesa” – Fórum de Ciência e Cultura – UFRJ – Rio de Janeiro – 2010; e II Conferência Internacional sobre o Desporto em África – ISCTE – Lisboa – 2012), organizados grupos de trabalho temático em eventos internacionais (entre outros no 7º Congresso Ibérico de Estudos Africanos – CEA-IUL – Lisboa – 2010) e editados quatro livros (Mais do que um jogo: o esporte e o continente africano. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010; Jogos de identidade: o esporte em Cabo Verde. Rio de Janeiro: Apicuri/CNPq, 2011; Esporte e lazer na África: novos olhares. Rio de Janeiro: 7 Letras/CNPq, 2013; e Desporto em vez de política no São Tomé e Príncipe. Rio de Janeiro: 7 Letras/CNPq, 2013). 1 10 Para mais informações, ver <http://www.sport.ifcs.ufrj.br/projetos/africa/> e <http://www. sport.ifcs.ufrj.br/projetos/lusofonos/>. A realização desse projeto não seria possível sem o auxílio financeiro recebido da Capes, da Faperj e da FCT/Portugal (no quadro do projeto “A formação do poder de Estado em Portugal” – PTDC/HIS-HIS/104166/2008), a quem agradecemos pela possibilidade de dar sequência a tantas ações que tem conformado um grupo de pesquisadores imbuídos da tarefa de melhor compreender as relações entre Brasil e Portugal por meio de um fenômeno tão importante para os dois países: o esporte. 11 Sobre novos e velhos mitos: as relações Brasil-Portugal e a ideia da lusofonia Adriano de Freixo Em 1974, pouco antes da Revolução dos Cravos, o historiador português Joaquim Barradas de Carvalho publicou um pequeno livro intitulado “Rumo de Portugal. A Europa ou o Atlântico?”, onde ele afirmava – dialogando com uma citação do conhecido político conservador brasileiro Carlos Lacerda – que maior do que a ignorância existente no Brasil sobre Portugal, só aquela existente em Portugal sobre o Brasil. Tendo se passado quase quarenta anos, parece-nos que a situação pouco mudou: apesar dos discursos das elites brasileiras e portuguesas exaltando as “relações fraternais” e os “laços históricos e culturais profundos” existentes entre as duas nações (e entre todos os povos de língua portuguesa), este desconhecimento mútuo continua a existir e essa fraternidade parece estar situada muito mais no campo da retórica do que no das realizações práticas. Porém, essa ideia da “Fraternidade Luso-Brasileira” tem sido tão marcante nas relações entre Brasil e Portugal que serviu de argumento para justificar, por exemplo, o apoio brasileiro ao colonialismo português até a década de 70 do século passado ou para a concessão de asilo político no Brasil aos próceres do regime salazarista, após a Revolução dos Cravos. Deve ser ressaltado também que nos momentos de comemorações como as do quinto centenário da chegada dos portugueses ao Brasil, ocorridas no ano 2000 ou, mais recentemente, as dos duzentos anos do estabelecimento da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, essa ideia atinge um público ainda mais amplo, devido ao destaque que tais efemérides obtêm nos principais meios de comunicação de massa. Já no campo esportivo, o discurso da fraternidade permeia as inúmeras agremiações de origem luso-brasileira, cujo exemplo mais notável é o Clube de Regatas Vasco da Gama, que no hino composto por Lamartine Babo é definido como “um traço de união Brasil-Portugal” e em cuja identidade clubística ressoam ecos do lusotropicalismo de Gilberto Freyre. No entanto, apesar de tudo isto, mesmo segmentos mais esclarecidos das sociedades brasileira e portuguesa dificilmente conseguem ver além de estereótipos construídos e consolidados ao longo de dezenas de anos. Podemos 13 exemplificar bem esta situação com o fato de a História de Portugal, após 1822, praticamente não aparecer nos livros didáticos brasileiros de Educação Básica. Alguns poucos dentre estes ainda fazem breves menções à ditadura salazarista ou à Revolução dos Cravos, mas, no geral, é como se Portugal tivesse deixado de ter importância para o Brasil após o rompimento dos vínculos políticos entre a ex-colônia e a sua antiga metrópole. Assim, não é difícil observar que o pouco que se produz e se discute, no Brasil, sobre Portugal e demais países de língua portuguesa dificilmente foge dos tais estereótipos do senso comum, apesar de, ao longo da nossa História, as relações com a África Lusófona e, principalmente, as relações com Portugal terem desempenhado um papel bastante importante. A constituição oficial da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP, em 1996, deu a impressão que iria se abrir uma nova página nas relações entre os seus Estados-Membros. No entanto, até agora, essa Comunidade apresentou poucos resultados concretos em seu objetivo de aproximar os povos de língua portuguesa e, de acordo com a sua Declaração Constitutiva, “consolidar a realidade cultural nacional e plurinacional que confere identidade própria aos Países de Língua Portuguesa, refletindo o relacionamento especial existente entre eles e a experiência acumulada em anos de profícua concertação e cooperação”. Assim, se, por um lado, a ideia do compartilhamento de uma língua comum – traço fundamental das comunidades e espaços linguísticos – serviu de elemento catalisador para a construção dessa organização internacional, por outro, as trajetórias históricas e as escolhas distintas de seus atores, muitas vezes, bloquearam uma maior aproximação entre eles. No caso português, após um período de turbulências, a Revolução dos Cravos conduziu o país à estabilidade democrática e ao que parecia ser uma bem-sucedida integração à Europa, pelo menos até a recente crise que assola o velho continente e ameaça a própria continuidade da UE. Porém, nas décadas de 1980 e 90, com a integração à UE concretizada e com o “sonho europeu” no seu auge, Portugal ensaiou uma nova política atlântica com o “retorno à África”, através do discurso da “lusofonia”, enfatizando a cooperação e a ideia da herança cultural comum. Foi esta política que esteve por trás dos esforços portugueses para a criação da CPLP. Já as suas ex-colônias africanas vivenciaram momentos bastante complicados nas últimas décadas. Assim, seja por conta de prolongadas guerras civis, como nos casos de Angola e Moçambique, ou devido a turbulências e instabilidades políticas, como na Guiné-Bissau ou em São Tomé e Príncipe, a África 14 Lusófona ainda está longe de superar seus problemas estruturais e de cicatrizar as feridas deixadas pelo colonialismo e por suas divisões internas, apesar do notável crescimento econômico de alguns dos PALOP nos últimos anos. O Brasil, depois de ter abandonado sua política africana durante a década de 1990, quando, sob a égide do paradigma neoliberal, a nossa diplomacia passou a priorizar as relações com os países centrais, retomou-a durante o governo Lula da Silva (2003-2008). Assim, a presença brasileira aumentou consideravelmente naquele continente na última década, seja através de órgãos direta ou indiretamente ligados ao Estado Brasileiro, como o SEBRAE, a EMBRAPA e a FIOCRUZ, em políticas de cooperação internacional, ou através da atuação de empresas privadas brasileiras, aproveitando as possibilidades de investimento proporcionadas pelo “despertar econômico da África”. Da mesma forma, a CPLP que havia sido relegada a um segundo plano no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), apesar da retórica em contrário, e era até então um projeto essencialmente português, passa a receber mais atenção por parte do Brasil, o que contribuiu para diminuir um pouco o seu esvaziamento. É claro que a consolidação do espaço comunitário passa pelo fortalecimento dos laços políticos entre os Estados-membros e – e nisto hoje o Brasil tende a desempenhar um papel central assumindo, caso queira, a liderança efetiva da Comunidade – pela ajuda econômica, pelos investimentos e pela cooperação para o desenvolvimento com os PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), cujo principal interesse é o estabelecimento de parcerias internacionais que lhes permitam superar o atraso econômico e buscar a resolução de seus graves problemas sociais. No entanto, cremos que a CPLP tem que ser consolidada também no plano simbólico e isto passa necessariamente pela construção de uma “mitologia cultural compartilhada” (FREIXO, 2009), sem evocações tardias do lusotropicalismo – como ainda se percebe em certo discurso cultural português – que causa desconforto em boa parte das elites políticas e intelectuais africanas, por conta das feridas recentes do colonialismo. Nesta perspectiva, compartilhamos das ideias expostas por Eduardo Lourenço, notadamente em diversos dos artigos presentes em seu livro A nau de Ícaro (2001), onde ele reitera seguidamente que o sonho comunitário tem sido um sonho essencialmente português e que a “mitologia lusófona” – e a própria lusofonia – sobre a qual se alicerçou a CPLP também é uma mitologia, acima de tudo, lusitana. Isto ocorre porque, sob a ótica portuguesa, a ideia de lusofonia estaria intimamente ligada ao processo das grandes navegações, em 15 que Portugal “abre as portas do mundo” para a Europa, ao mesmo tempo em que espalha sua língua e sua cultura pelas terras onde aporta. Desta forma, tal ideia localiza o espaço da lusofonia “em todos os portos tocados pelos portugueses, nos quais a língua foi disseminada (...). Nestes, os sujeitos são identitários de uma cultura ibérica que, em maior ou menor grau, formou a cidadania do Estado-nação” (FAULSTICH, 2001, p. 118). Sob essa perspectiva, a construção de um “imaginário lusófono” passa necessariamente pela ênfase na identidade existente entre Portugal e as suas ex-colônias; identidade esta que “dar-se-ia num plano quase que ‘inatingível’ para aqueles que dela não participassem: aquele do ‘espírito’ e das experiências subjetivas” (THOMAZ, 2002, p. 41). É a partir destas questões que procuraremos refletir, ao longo deste artigo, sobre como a ideia da lusofonia ou a construção da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP são percebidas de maneiras bastante distintas em Portugal e no Brasil. Assim, se para setores significativos da opinião pública portuguesa elas desempenham um papel relevante e são levadas em conta na formulação de políticas de Estado, do lado de cá do atlântico tais questões passam despercebidas pela grande maioria da sociedade. a lusofonia e a mitologia cultural portuguesa Para Mircea Eliade, o mito é uma narrativa que “conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio” e que, portanto, constitui-se em um relato sobre “como, graças às façanhas dos entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir”. Desta maneira, ele acaba sendo sempre “a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente” (1972, p. 11). Neste sentido, o mito deve ser entendido como uma narrativa explicativa – que é parte integrante da cultura de um povo e que utiliza elementos simbólicos para explicar o mundo e dar sentido à vida humana – sobre a origem de algo, incluindo-se aí os costumes e as instituições sociais. Mas Eliade afirma também que “a partir de um certo momento, a origem não se encontra mais apenas num passado mítico, mas também num futuro fabuloso” (idem, p. 52). Isto é o que ele chama de “mobilidade da origem”, fonte de todas as crenças que proclamam uma nova “Idade do Ouro” projetada no futuro, das quais as escatologias medievais, como a de Joaquim de Fiore, são bons exemplos. Essa projeção do passado no futuro é recorrente no imaginário político português, o que se reflete na ressignificação constante desses mitos 16 fundadores em diferentes conjunturas, como, por exemplo, toda a mitologia em torno do “Quinto Império” e do “Desejado” ou a crença no “destino imperial” português, que teria começado a se manifestar nas Grandes Navegações e na descoberta de novos mundos. Estas crenças se inserem dentro de uma questão mais ampla que é a percepção que os portugueses têm de si mesmos como o novo “povo eleito”, presente desde o milagre de Ourique, o grande mito fundador da nação portuguesa. Ele relata que Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal, antes de uma batalha contra os mouros – a célebre Batalha de Ourique (1139) – teria tido uma visão do próprio Jesus Cristo que lhe anunciou a vitória iminente. Lá o Estado português teria sido fundado, com Afonso Henriques sendo aclamado rei no próprio campo de Batalha. Tal percepção, segundo Eduardo Lourenço, acabou fazendo com que “o singular no povo português” seja “viver-se enquanto povo como existência miraculosa, objeto de uma particular predileção divina” (1999, p. 92). Tal crença numa “predileção divina” por Portugal ou no “destino messiânico” da nação portuguesa manifesta-se também em outro mito-fundador luso: o Sebastianismo e a crença no advento do “Quinto Império”, que tem sua origem na morte precoce, em 1578, de D. Sebastião, último rei da Dinastia de Avis, na lendária batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, lutando contra os mouros. Como decorrência desta tragédia, Portugal perdeu a sua independência e passou a integrar o Império de Felipe II, da Espanha, com a concretização da chamada “União Ibérica” (1580-1640). A partir daí se constrói a crença – que repercute tanto nas classes populares quanto entre a elite letrada – no retorno do rei desaparecido que iria restaurar a independência e a grandeza de Portugal. A sacralização das origens ou a crença em um futuro brilhante traçado pela divina providência não são absolutamente raros na mitologia política de diversas nações, e mesmo esse mito que é essencialmente português, o Sebastianismo, se insere dentro da lógica um mito político bastante recorrente em diversas culturas que é do Salvador, “alguém capaz de reverter a situação vigente, tida como má, e instaurar uma nova era de paz e prosperidade. Ou melhor: não instaurar, mas conduzir o grupo – via de regra, a nação – ao futuro glorioso que de antemão lhe estava reservado” (Miguel, 1998). No entanto, como afirma Eduardo Lourenço, “deve ser raro que algum povo tenha tomado tão à letra como Portugal essa inscrição, não apenas mítica, mas filial e já messiânica do seu destino (...)” (1999, p. 91-92). Todo esse universo simbólico estava presente e foi hierarquizado pela ideologia nacionalista portuguesa que se reinventou no século XIX, após a 17 Independência do Brasil (1822), com os esforços para a estruturação do Terceiro Império, na África, que só se consolidaria de fato após diversos reveses, durante os anos do Estado Novo. Como assinala Valentim Alexandre, neste projeto colonial, aos mitos-fundadores da nacionalidade, somaram-se dois novos mitos que povoaram o imaginário político português ao longo do século XIX e deram sustentação a esse projeto: o Mito do Eldorado, ou seja, a crença inabalável na existência de imensas riquezas nos territórios africanos que deveriam ser exploradas pelo povo português, e o Mito da Herança Sagrada, que trabalhava com a ideia de que a manutenção dos territórios ultramarinos era um imperativo histórico, já que os mesmos eram o testemunho da grandeza da nação e a sua perda significaria a perda da própria essência da nacionalidade (ALEXANDRE, 2000, p. 220). O Estado Novo, sob a liderança de António de Oliveira Salazar, retomou com bastante eficiência essa mitologia e soube utilizar a ideia do destino imperial português para legitimar-se e para explorar as suas colônias ultramarinas, construindo assim o discurso da nação plurirracial e pluricontinental articulada em torno da crença em um Portugal uno e indivisível do Minho ao Timor. Todo este conjunto de mitos está presente, implícita ou implicitamente, na construção da ideia da “lusofonia”, que ganhou força entre inúmeros setores das elites políticas e culturais portuguesas nas duas últimas décadas do século passado: É neste momento que se concretiza a CPLP: num processo de reconhecer uma história que, evidentemente percorre outros territórios e continentes, mas, sobretudo, num processo marcado pelo esquecimento (como aquele da construção das nações) e pelo ressurgimento de um conjunto de mitos que procuram aferir uma singularidade lusitana nos trópicos marcada pela ausência de racismo, pela generosidade, pela assimilação e pela “identidade” entre os portugueses e aqueles que foram objeto da expansão colonial (THOMAZ, 2002, p. 57). É esta combinação de elementos do lusotropicalismo freyriano – e sua defesa da especificidade do “modo português de estar no mundo” – com alguns dos principais mitos políticos portugueses que ecoa nos discursos dos articuladores e/ou defensores da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e que tanto incomoda a alguns dos demais Estados-membros desse espaço comunitário, como registrou a historiadora angolana Maria da Conceição Neto: Durante todo o período que antecedeu a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP (“inocentemente” chamada por várias vezes Comunidade lusófona, lusofonia ou, pelos saudosistas do império, Comunidade 18 lusíada), a par de posições mais esclarecidas, foram inúmeras as declarações que explícita ou camufladamente ressuscitaram o lusotropicalismo, aparentemente sem sequer se darem conta do choque provocado em alguns de seus parceiros africanos (1997, p. 329). Isto também não passa despercebido para alguns dos poucos críticos portugueses, à época, do discurso da lusofonia, como Alfredo Margarido que em seu livro A Lusofonia e os Lusófonos: novos mitos portugueses (2000) procura denunciar o que, segundo ele, seriam os “novos mitos portugueses” que manteriam Portugal preso à ideia de um passado idílico, construído principalmente durante os anos do Estado Novo e que tem na crença no “destino imperial” e na “vocação atlântica” de Portugal os seus elementos essenciais. Nesta perspectiva, a lusofonia teria surgido, então, no contexto pós-colonial, como um novo mecanismo ideológico para retomar a antiga “política atlântica” tentando, através do discurso da “língua comum”, apagar as marcas do passado colonial e as relações traumáticas com as ex-colônias decorrentes dele. Sendo assim, ele a denuncia – e ao consenso nacional que se forma em torno dela – como a revitalização de uma nostalgia do império, resultante do vazio ideológico decorrente do processo de descolonização e da amputação do componente imperial da nação portuguesa. outros mitos: a lusofonia do lado de cá do atlântico Se em Portugal a ideia da lusofonia chegou a empolgar alguns setores da sociedade e a mobilizar, em maior ou menor grau, parte da opinião pública, não se pode dizer que tenha ocorrido o mesmo no Brasil. Apesar do brasileiro José Aparecido de Oliveira ter sido o grande artífice da CPLP – tanto durante a sua passagem pelo Ministério da Cultura, no governo José Sarney (1985-1990), quanto durante sua estadia em Lisboa como Embaixador do Brasil em Portugal, no governo Itamar franco (1992-1995) – e de Gilberto Freyre ser apontado como um dos “pais-fundadores” do ideal comunitário, nem a lusofonia e nem a Comunidade chegaram a despertar grande comoção ou mobilização em nosso país. Dentro do próprio Itamaraty, a constituição da CPLP era vista como algo absolutamente secundário, tendo sido a sua articulação muito mais o resultado dos esforços pessoais de José Aparecido – avalizados pelos presidentes José Sarney e Itamar Franco – do que uma iniciativa institucional. Cabe ressaltar que, no momento de constituição da Comunidade, durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), a África – ou a “dimensão atlântica da política externa brasileira”, como assinala Sombra Saraiva (1996) – estava 19 longe de ser uma das prioridades da diplomacia brasileira, bem como a formulação e a implementação de uma política externa cultural. Assim, a lusofonia e o investimento na construção de um espaço comunitário articulado em torno de uma identidade linguística e cultural não conseguiram empolgar a sociedade brasileira que, majoritariamente, mantém-se alheia a esta discussão e nem mesmo entre as elites culturais e políticas tais questões têm encontrado muito eco. Isto possui uma estreita relação com aquilo que já assinalamos anteriormente: o fato de a mitologia cultural lusitana, que serviu de base para a construção e a consolidação da ideia da lusofonia em Portugal, não ter tanto sentido no Brasil, visto que este, ao longo de sua história, construiu os seus próprios mitos culturais. Estes mitos tornaram-se bastante distintos dos da antiga metrópole e, dentre eles, destacamos aquele que podemos chamar de mito edênico. Tal mito teve como documento-fundador a carta de Pero Vaz de Caminha – alçada pela historiografia do oitocentos e do início do novecentos à condição de “certidão de nascimento” do Brasil – que, mesmo tendo sido publicada somente em 1817, teve um forte impacto na construção do imaginário social brasileiro. A partir dela, começou a ser estruturada a visão – que se consolidaria nos séculos seguintes através de outras narrativas de diversos estrangeiros que chegavam ao Brasil – da nova terra como o local dos Jardins do Éden como, por exemplo, na afirmativa de Américo Vespúcio, em uma carta endereçada a Lorenzo de Médici, em 1503: “Eu acredito que se um paraíso terrestre existisse em algum lugar, este certamente não existiria longe dessas terras” (apud CARVALHO, 2003, p. 402). Esta visão edênica aparece inclusive na imagem idílica que se construiu, no Brasil, do encontro entre portugueses e índios, a partir do relato de Caminha (“a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto à vergonha”), que serviu para “apagar” da memória nacional, o imenso genocídio perpetrado contra as populações nativas. Esta imagem que os brasileiros construíram de seu país tornou-se tão arraigada que, como assinala Eduardo Lourenço, mesmo que a história insista em desmenti-la, nada consegue anular esta primeira visão do paraíso construída pelos que aqui chegaram e, por isto, o “discurso cultural brasileiro não pode abandonar as margens da hagiografia e do mito” (2001, p. 57). Uma das nuanças desta visão relaciona-se à imensidão territorial do Brasil e às suas enormes riquezas, que fazem com que os brasileiros sofram uma espécie de “complexo de grandeza”, de onde advém a crença – reinterpretada politicamente em momentos diversos – de que o Brasil está destinado 20 a tornar-se um poderoso império e de que é o país do futuro (CARVALHO, 2003, p. 406-408). Embora esses mitos nacionais brasileiros tenham, indubitavelmente, raízes portuguesas – do Milagre de Ourique ao Quinto Império –, eles contribuíram, paradoxalmente, para um parricídio permanente do Brasil em relação a Portugal, com a invenção de uma origem irreal e a-histórica, onde o tempo colonial é esquecido, e que faz com que os brasileiros vivam e comportemse como filhos de si mesmos (LOURENÇO, 2001, 135-145), transformando a matriz cultural lusa em uma memória esmaecida e diluída. Neste sentido, a mitologia cultural brasileira acaba adquirindo profundas distinções em relação à portuguesa da qual ela é caudatária e tais distinções acabam fazendo com que o discurso da lusofonia soe como algo irrelevante ou mesmo exótico aos ouvidos dos habitantes do lado de cá do Atlântico. Mas de qualquer forma, existe uma importante contribuição brasileira para a construção da ideia da lusofonia: como assinalado anteriormente, o lusotropicalismo do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre é uma referência recorrente na formulação do discurso lusófono. Para ele, “o mundo que o português criou” – e que engloba vastos territórios nos cinco continentes – constituir-se-ia em uma unidade de sentimentos e cultura, onde a miscigenação seria o símbolo de uma forte tendência à democratização racial e social. Assim, as relações sentimentais estabelecidas entre os portugueses, as “mulheres de cor” e os filhos delas provenientes pairariam acima dos preconceitos de cor, de raça e de classe. Isto teria dado à mestiçagem, ocorrida nas áreas de colonização portuguesa, um caráter mais humano e mais cristão, permitindo assim uma intensa mobilidade e contribuindo para abrandar as durezas do sistema de trabalho escravo. Tendo se tornado, a partir da década de 1950, a ideologia oficial do colonialismo português, o lusotropicalismo começou a ser violentamente questionado não só pelas elites políticas africanas, mas também por intelectuais brasileiros e europeus, a partir da intensificação da luta pela libertação dessas colônias. Dessa forma, o pensamento freyriano, como um todo, passou a ser criticado e, por que não dizer, marginalizado nos círculos acadêmicos como socialmente conservador e defensor da manutenção de privilégios. No entanto, a partir, principalmente, da década de 1990, o pensamento de Gilberto Freyre e seu efetivo papel no desenvolvimento das Ciências Sociais começaram a ser resgatados. No Brasil, mesmo antigos críticos, notadamente aqueles ligados à “escola paulista”, como Fernando Henrique Cardoso e Carlos Guilherme Motta, passaram a reconhecer e valorizar a 21 contribuição freyriana ao pensamento social brasileiro. As ideias de Freyre são vistas, hoje, como precursoras da “História das Mentalidades” e as suas análises sobre o mundo lusófono sofrem, a cada dia, novas releituras, tanto aqui quanto em Portugal. O interessante é que lá tal resgate tem sido feito não somente por intelectuais e homens de Estado de orientação política conservadora, como o historiador Joaquim Veríssimo Serrão que afirma textualmente que “se chegamos ao fim do século XX com uma visão histórica e científica correta sobre a presença do homem português no Brasil, na África e no Oriente, decerto que o ficamos a dever às inovadoras teses sobre o lusotropicalismo de Gilberto Freyre” (2000), mas também por muitas figuras públicas identificadas com posições políticas à esquerda e com a oposição ao salazarismo, como o ex-presidente português Mário Soares: Essa teoria foi mal aproveitada no tempo do antigo regime, mas, justamente eu quis demonstrar que a obra de Gilberto Freyre era admirada por Portugal, não só por aqueles que eram partidários do colonialismo, como pelo Portugal livre, moderno e democrático que eu represento (apud CASTELO, 1999, p. 14). É importante lembrar também que, na década de 1990, o discurso da lusofonia e a ideia da articulação do mundo de língua portuguesa também chegaram a angariar simpatias entre setores nacionalistas brasileiros – para quem Gilberto Freyre, com sua visão essencialista e a sua ideia da existência de uma espécie de anima brasilis, também é uma referência teórica importante – que viam na formação da CPLP um aspecto fundamental da nossa política externa, seja dentro da perspectiva de uma política estratégica de segurança no Atlântico Sul, área natural de projeção geopolítica brasileira ou mesmo na constituição da ideia daquele que seria o “destino manifesto” brasileiro: Se há um princípio que sintetiza toda a concepção de estratégia nacional do Brasil, é a ideia de hoje o Brasil ser o único artesão possível da verdadeira mundialização, resultado da nossa colonização e da imigração portuguesa. Este é o destino manifesto do Brasil, algo que decorre naturalmente do povo brasileiro ser o descendente direto daqueles que iniciaram este processo, os portugueses, e o único provido das mágicas necessárias a fazer o movimento de construção de uma única pátria humana (COSTA, 2010, p. 86). Entretanto, conforme já assinalamos, tais ideias não tiveram grande repercussão junto à opinião pública, naquela que foi a década do neoliberalismo e do “pensamento único” e em que as opções preferenciais da política externa brasileira foram a aproximação com os países do chamado “Primeiro 22 Mundo” e os esforços pela integração latino-americana, através da criação do Mercosul, como estratégia de inserção do país no “mundo globalizado”. considerações finais A existência de uma mitologia cultural compartilhada por seus integrantes é um dos elementos primordiais para a construção da “comunidade imaginada” chamada “nação”, onde, como assinala Benedict Anderson, seus membros jamais conhecerão ou ouvirão falar de todos os seus compatriotas, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão (2008). Para consolidar essa comunidade nacional, o imaginário social adquire fundamental importância, como assinala José Murilo de Carvalho: A elaboração de um imaginário é parte integrante da legitimação de qualquer regime político. É por meio do imaginário que se podem atingir não só a cabeça mas, de modo especial, o coração, isto é, as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. É nele que as sociedades definem suas identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu passado, presente e futuro (1990, p. 10). Partindo dessas ideias para tentar compreender uma comunidade transnacional como é a CPLP, entendemos que o discurso lusófono tem sido, até agora, um discurso essencialmente português, pois foi construído fundamentalmente a partir de elementos presentes no imaginário político da nação lusitana e não, necessariamente, no dos demais povos de língua portuguesa. Portanto, percebemos a lusofonia e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa como projetos políticos, acima de tudo, portugueses, e com a forte marca do nacionalismo lusitano. Logo, isto acaba sendo mais um empecilho para a consolidação desse espaço comunitário, que pressupõe, por sua própria natureza, a existência da igualdade plena entre seus membros. Assim, nos parece ser difícil pensar em uma “identidade lusófona” efetivamente existente entre os povos que adotam a língua portuguesa como o seu idioma oficial (ou como um dos seus idiomas oficiais). Na prática, o discurso lusófono nada mais tem sido do que uma projeção do “modo português de estar no mundo”, que se, por um lado, satisfaz o nacionalismo luso, por outro, quase não ressoa em sociedades como a brasileira e as africanas, essencialmente multiculturais, onde a contribuição portuguesa é mais uma – e em alguns casos, nem é a mais importante – entre muitas contribuições para a formação das identidades culturais locais. Mesmo o argumento de que “os falantes das 43 línguas nativas de Moçambique ou das 41 de Angola, por exemplo, dispõem do português como seu grande instrumento de comunicação interna 23 e externa”, a partir do reconhecimento de que o “português não chega a ser o idioma majoritário em vários países da Comunidade” (MOREIRA, 2010, p. 59), parece perder força – apesar dos esforços estatais em alguns países da CPLP como Angola e Timor para difundir a língua portuguesa através da educação escolar – quando se percebe a aproximação econômica e política de Estadosmembros da Comunidade com países de outras esferas linguísticas – como, por exemplo, Moçambique em relação ao mundo anglófono ou Guiné-Bissau e Cabo Verde com o francófono – e a consequente penetração dessas outras línguas no “espaço lusófono”: No sul de Moçambique, por exemplo, o inglês exerce uma forte atração. Na Guiné-Bissau, o francês ganha terreno graças à televisão. Na terceira cimeira da francofonia em Dacar (1989) a Guiné-Bissau decidiu fazer do francês a sua segunda língua oficial, enquanto Angola, de que uma parte do escol exilado no Zaire fez os seus estudos nessa língua, seguia os debates (ENDERS, 1997, p. 129). Portanto, a crença em uma identidade lusófona baseada na projeção de uma matriz cultural, a lusa, ou – como mais comumente aparece no discurso – na língua portuguesa e que serviria de alicerce para uma organização internacional como a CPLP, tende a ser uma construção extremamente frágil. Neste momento de transformações globais, um espaço político baseado somente em uma (não muito sólida) identidade linguística não parece ter condições de se sustentar, visto que em outros aspectos fundamentais para a sua consolidação – o político e, notadamente, o econômico – a Comunidade, desde a sua criação há quase duas décadas, tem caminhado a passos muito lentos. E hoje, com Portugal sentindo de maneira intensa os efeitos da crise econômica que atinge a Europa, com a China exercendo uma forte influência econômica sobre boa parte dos PALOP e com o Brasil não parecendo estar muito disposto a exercer um efetivo papel de liderança e, consequentemente de “paymaster” da Comunidade, a CPLP ainda está bastante distante de se tornar uma organização internacional de efetiva importância. referências bibliográficas Valentim. Velho Brasil, novas Áfricas: Portugal e o Império (1808-1975). Porto: Edições Afrontamento, 2000. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CARVALHO, Joaquim Barradas de. Rumo de Portugal: A Europa ou o Atlântico? Lisboa: Livros Horizonte, 1974. ALEXANDRE, 24 CARVALHO, José Murilo de. NOVAES, Adauto (org.). “Nação Imaginária: Memória, Mitos e Heróis”. In: A crise do Estado-Nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. ______. A formação das almas: O imaginário da República no Brasil. 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Não podemos deixar de sympathisar com tão nobre sentimento que eleva o individuo à comunhão social e o faz por isso, identificar perante os seus compatriotas, como um ente útil à sociedade, congraçando a grande família portuguesa em um só princípio – o amor à pátria.2 Observa o jornalista que, entre tantas, algumas dessas associações são “dedicadas ao cultivo da musica, gymnastica, etc.”. Para ele, os lusitanos “procuram um passatempo útil e agradável ao mesmo tempo, demonstrando o espirito de união de que é dotada a mocidade portuguesa”. Para entender melhor esse impulso associativista dos portugueses, de um lado devemos considerar que essa era uma ocorrência comum no Segundo Império, observável em várias esferas, com os mais distintos intuitos. Para Vitor Fonseca (2008), as agremiações eram espaços de sociabilidade que atendiam a necessidades específicas de certos grupos, ligadas a um exercício possível da cidadania, que tinha em conta os limites do jogo político da ocasião. Isso é, o crescimento do número de associações não seria somente a expressão de um maior exercício de direitos sociais, como também da construção de novas posturas políticas, que materializavam certa visão de mobilização, indícios de uma ideia de cidadania em construção. 1 A pesquisa que dá origem a esse artigo é apoiada pela Capes, Faperj e CNPq. O capítulo é um extrato do livro A gymnastica no tempo do Império (Editora 7 Letras, 2014). 2 Gazeta Lusitana, 22 dez. 1883, p. 1. 26 De outro lado, é importante ter em conta que, de fato, entre os estrangeiros era bastante distinta a situação dos lusitanos que no país se estabeleceram. Mesmo com a independência, seguiu intenso o fluxo migratório de Portugal para o Brasil. Nesse cenário, “o Rio, Corte Imperial e capital da República, teve preferência como uma espécie de continuação do sonho lotérico do século XVIII de fazer fortuna nas Geraes” (LESSA, 2002, p. 27). Em 1890, quando a cidade possuía cerca de 500.000 habitantes, cerca de 100.000 eram portugueses; 20% da população, portanto. Era o grupo majoritário de imigrantes. Nesse contexto, diversas eram as disputas e tensões. Devemos lembrar que, no Brasil do século XIX, muitos portugueses gozavam de grande prestígio, relacionado a suas posições e seu sucesso no comércio e na indústria (FREITAS FILHO, 2002). De outro lado, entre os populares foram muitas as manifestações de contestação aos lusitanos, mais ou menos violentas, origens de uma ironia que vai se perpetuar até os dias de hoje. Eram considerados interesseiros e exploradores, criticados por privilegiarem os que vinham de Portugal em detrimento dos brasileiros (RIBEIRO, 2002; ROWLAND, 2007). A presença de portugueses em um cenário em que o país pretendia se afirmar como ente independente era mesmo algo um tanto ambíguo. A criação de agremiações, assim, pode ser entendida como uma estratégia de afirmação e conformação da comunidade lusitana. Atendia tanto à necessidade de auto-organização, para melhor encarar os problemas enfrentados no Brasil e para celebrar a relação com a pátria distante, quanto ao desejo de demonstrar à sociedade brasileira o valor da colônia. Entre tantas associações fundadas por lusitanos, podemos destacar o Gabinete Português de Leitura (criado em 1837), a Sociedade Portuguesa de Beneficência (1840), a Caixa de Socorros D. Pedro V (1863), o Liceu Literário Português (1868) e, nosso objeto de estudo, duas sociedades ginásticas: o Clube Ginástico Português (1868) e o Congresso Ginástico Português (1874). Por que foram criadas duas agremiações ginásticas de portugueses na sociedade da Corte? Sinal de que era grande a colônia ou de que havia fissuras na sua conformação, dimensões que podem mesmo estar articuladas? Esse artigo tem por objetivo analisar a trajetória do Clube Ginástico Português e do Congresso Ginástico Português, procurando discutir tanto sua articulação com o cenário político do Segundo Império quanto os conflitos e tensões existentes entre lusitanos que no Rio de Janeiro se estabeleceram. 27 clube ginástico português O Clube Ginástico Português foi fundado em 1868, antes, portanto, da pioneira sociedade ginástica criada em Portugal, o Ginásio Clube Português (1875). Há uma polêmica acerca do grupo majoritário envolvido com a criação da agremiação. Uns argumentam que se tratou de indivíduos com profissões mais modestas. As fontes, todavia, nos apresentam a possibilidade de terem sido membros das elites. De toda forma, era gente ligada ao comércio. Essa referência aparece em vários momentos. Em novembro de 1870, por exemplo, um jornalista, que elogia os avanços que a agremiação “tem feito no curto espaço de tempo que consta de existência”,3 observa que “um bom numero de empregados do commercio encontra ali noctunarmente algumas horas de salutar e divertido exercício e a confraternização da classe”. Alguns anos mais tarde, quando foi inaugurada uma nova sede, ao celebrar a conquista, uma vez mais a diretoria lembra do grupo social majoritariamente representado: É uma gloria para todos os srs. socios, é um triumpho dizer-se que uma sociedade recreativa, composta, na máxima parte, da mocidade empregada no commercio, pudesse levar a efeito a construção deste edifício que é, podemos dizer, o único de seu gênero no Brazil.4 Em sua trajetória, o Clube Ginástico sempre procurou se equilibrar entre as referências ao Brasil e a Portugal, concedendo especial atenção aos símbolos do país ibérico. Normalmente abria suas cerimônias, pelo menos até a proclamação da República, com a execução dos hinos brasileiro e português, exemplo explícito da sua dupla vinculação. Constantemente comemoravam-se as datas importantes das duas coroas, ainda mais festivamente as da portuguesa. Bastante simbólica, nesse sentido, foi a cerimônia em que se comemorou, em 1876, a concessão ao clube, por parte da Coroa portuguesa, do título de “Real”, pelos serviços prestados à cultura e à colônia lusitana. Presentes estavam Mathias de Carvalho (ministro de Portugal no Brasil), o barão de Wildik (cônsul-geral), além de representantes do Liceu Literário, da Caixa de Socorros de D. Pedro V e da Beneficência Portuguesa. Tratou-se de uma completa celebração portuguesa em terras brasileiras.5 3 Diário de Notícias, 3 nov. 1870, p. 2. 4 A Instrucção Pública, 22 dez. 1872, p. 332. 5 28 Diário do Rio de Janeiro, 8 jan. 1877, p. 2. Muitos foram os representantes do corpo diplomático e as personalidades importantes da colônia portuguesa no Brasil, ou de Portugal que estavam no Brasil, que estiveram na agremiação, por vezes até mesmo se tornando sócios. Não poucas vezes receberam fartos agradecimentos e reconhecimento pela ajuda dada ao seu funcionamento. Os diplomatas também tinham a agradecer aos clubes portugueses, já que esses os auxiliavam na execução de suas tarefas. Nessa interface entre ser brasileiro e português, o clube foi ganhando notabilidade e respeitabilidade. Vejamos como um jornalista ressaltou a importância da ginástica e as contribuições da agremiação por ocasião da inauguração da sede da rua do Hospício: Embora geralmente sadia e forte, a mocidade portuguesa não pôde eximir-se da influencia de sua raça e por isso os sócios do Club Gymnastico souberam não manter-se exclusivamente no terreno simples do exercício corpóreo.6 Para o jornalista de O Mosquito, “nunca sociedade alguma fez tanto em tão poucos annos”.7 Sua grande contribuição seria o “desenvolvimento physico do sexo forte, que apezar de forte está ficando rachitico e enfezado como um sybarita”. Nesse sentido, elogia a nova sede pela “singeleza architectonica que faz recordar, ainda que vagamente, a austera majestade dos antigos amphiteatros”. Para o cronista, teria mais a feição de “um templo do que a de um recinto de divertimentos”. É digna de destaque a representação construída. Pelo menos no âmbito do discurso, vinculava-se o clube a algo mais do que o puro entretenimento. Considerada como uma das grandes sociedades da ocasião, integrava com honras o mundo fashionable da Corte. Se comparado com as outras sociedades ginásticas estrangeiras anteriormente fundadas,8 desde os primeiros momentos o Clube Ginástico sempre promoveu um número maior de atividades: aulas de ginástica, esgrima e música; saraus e bailes; reuniões cotidianas na sede; passeios campestres. O clube, mais do que os outros, buscava se exibir publicamente nas mais diferentes ocasiões. Um interessante exemplo foi a cerimônia de benção de seu estandarte, realizada solenemente na Igreja do Senhor Bom Jesus do Calvário. O pavilhão, aliás, foi produzido por Venancio Ignacio da Costa, 6 Diário de Notícias, 3 nov. 1872, p. 1. 7 O Mosquito, 9 nov. 1872, p. 3. 8 A Sociedade Alemã de Ginástica, fundada em 1859, e a Sociedade Francesa de Ginástica, criada em 1863. 29 importante artista, e exibido na Notre Dame de Paris, um dos maiores e mais prestigiosos magazines da cidade, situado à rua do Ouvidor.9 Outra atividade que aumentava sua visibilidade era a promoção de festas de caridade, tendo em conta as mais distintas causas, nacionais e internacionais, de grupos específicos ou da colônia, sob a forma de quermesse, apresentação ou bando precatório (um desfile público no qual se recolhiam donativos para alguma causa). O clube também procurava colaborar com as iniciativas de outras agremiações assistenciais, especialmente com as da Sociedade de Beneficência Portuguesa, com a qual mantinha estreitas relações (por tais contribuições, recebeu o título de sócio benemérito dessa instituição). Esses eventos eram sempre muito louvados pelos periódicos. Nessas ocasiões, não poucas vezes o clube explicitou sua dupla vinculação. Por exemplo, em março de 1871, os recursos obtidos com uma festividade beneficente foram divididos entre a Caixa de Socorros de D. Pedro V, uma instituição de cariz lusitano, e o Asilo dos Inválidos da Pátria, entidade nacional que atuava com os que lutaram na Guerra do Paraguai.10 Pelos jornais, muitos foram os elogios a essa iniciativa. L. Guimarães Junior, na coluna Revista de Domingo, o folhetim do Diário do Rio de Janeiro, exaltou: “Das associações formadas há pouco tempo entre nós, há uma que merece a maior atenção e agasalho, não só pelo fim útil a que se dirigem os associados, como pelas provas de generosidade e caridade que tem posto em prática.”11 Com tamanha presença social, o Clube Ginástico passou a ser muito procurado para a realização de reuniões de diferentes grupos – recreativos, religiosos, esportivos, beneficentes, muitos deles agremiações portuguesas. Essa prática se tornou comum no decorrer dos anos: as sociedades mais estruturadas cediam suas instalações para algumas congêneres, sinal da fraternidade que entre elas existia. O clube sediou muitos encontros de natureza política. Alguns dos assuntos candentes no Segundo Império de alguma forma passaram por seus salões. Por exemplo, em março de 1879, por lá se reuniram oficiais da Armada e do Exército, nomeando uma comissão que se encarregou de defender os interesses dos militares.12 Já em maio de 1881, a reunião foi destinada a discutir a participação da categoria no pleito eleitoral, situando-se o debate entre os que 9 Diário de Notícias, 14 dez. 1870, p. 1. 10 Diário de Notícias, 12 mar. 1871, p. 1. 11 Diário do Rio de Janeiro, 2 abr. 1871, p. 1. 12 O Repórter, 15 mar. 1879, p. 1. 30