Contexto histórico da obra pictórica de Júlio Pomar
Resumo
Figura de referência nas artes plásticas da segunda metade do século XX, Júlio Pomar, nascido
em 1926 em Lisboa, conta com uma vasta obra desenvolvida ao longo de mais de 60 anos
de trabalho. Apesar de dominar outras valências como a escultura, desenho, fresco, gravura,
assemblagem, Pomar afirma-se sobretudo no domínio da pintura sobre tela. Começando a
pintar a óleo e passando nos meados dos anos 60 para o acrílico, a sua obra caracteriza-se por
utilizar uma grande variedade de materiais e processos de execução, onde frequentemente são
incorporadas colagens e objectos diversos. Nunca se tendo vinculado a um estilo ou género,
“a prática da pintura é para Pomar uma constante interrogação das possibilidades da pintura,
um confronto com o entendimento que dela encontra na sua época, sem qualquer submissão
aos seus ditames”1.
Trabalhando muito com séries temáticas, já que lhe é quase sempre impossível esgotar um
só assunto numa só pintura2, os quadros sucedem-se e dão-nos aproximações várias de um
ponto de atracção, como são exemplo as fases neo-realista, rugby, banhos turcos, corridas de
cavalos, tigres. Tendo ainda o dom da escrita, Júlio Pomar vem acompanhando a sua produção
plástica com frequentes textos e livros que ajudam a reforçar a sua mensagem estética.
A obra pictórica de Júlio Pomar
No atelier faço e refaço por vezes sem sequer me dar ao trabalho de desfazer.
Não só para fazer melhor.
Mas também por necessidade de destruir, de remastigar uma dada experiencia que não
me matou a fome.3
(...)
Pinto, recorto, junto, repinto ou raspo, arranho, pulo, aliso.
Para depois não fazer mais, talvez do que re-cortar, re-juntar, repintar
Outra vez e tudo o resto4
Inicialmente inspirado por Portinari e por grandes muralistas mexicanos como Diego Rivera,
Orozco ou Siqueiros, Pomar principia a sua carreira na década de 40, numa altura em que
Portugal estava submetido a uma ditadura fascista. Isso viria a marcar profundamente as suas
convicções e a sua temática, realizando nessa altura uma arte de intervenção e algumas das
pinturas mais representativas do Neo-realismo português. Dessa época fica também marcada
a sua passagem pelo Porto, onde Júlio Pomar, entre outras, teve a sua primeira exposição
individual e onde ingressou na Escola de Belas Artes do Porto, um ensino reconhecidamente
1 FERNANDES, João – Júlio Pomar e a sua cadeia das relações. In Júlio Pomar – cadeia da relação. Porto: Museu de Arte
Contemporânea de Serralves e Civilização Editora, 2008, p. 19.
2 POMAR, Júlio – Júlio Pomar – Então e a Pintura? Lisboa: Publicações D.Quixote, Lda., 2002, p.21.
3 POMAR, JÚLIO - Da Cegueira dos Pintores. [s.l.]: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1986, p.24.
4 Idem, p.24.
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mais estimulante e que na época se caracterizava por uma maior liberdade de interpretação5.
A sua primeira pintura – Pintura (1942), executada quando tinha apenas 16 anos e de cariz
marcadamente expressionista, revela já uma certa apetência pela matéria. Pomar raspa e joga
com o óleo conferindo texturas à superfície. Mas foi em 1945, durante a IX Missão Estética de
Férias em Évora, no Alentejo que Pomar pinta Descanso (fig.1), uma das primeiras pinturas
neo-realistas6. É uma obra matérica e com texturas, onde o autor incorporou areia ao óleo,
tal como no Gadanheiro7 (fig.4), executado nesse mesmo ano e classificado como o quadromanifesto do Neo-realismo8.
Figura 1 – Descanso
Óleo e areia sobre madeira; 48x80cm; 1945;
Figura 2 – Descanso
Pormenor da textura da pintura
Figura 3 – Descanso
Microfotografia da secção transversal por microscopia óptica. Magnificação 100x. Observa-se uma
diversidade de materiais (entre outros partículas birrefrigentes), onde poderá estar presente terra e areia.
5 MATOS, Lúcia Almeida – Júlio Pomar no Porto. In Fundação Júlio Pomar: Primeira Escolha - [s.l.]: Galeria Municipal de
Matosinhos, Fundação Júlio Pomar, 2008, p.145.
6 SANTOS, David – O sentido da hora e o amor do mundo – Júlio Pomar e a promessa humanista do neo-realismo. In Júlio
Pomar e a experiência neo-realista.[s.l.]: Câmara Municipal de Vila Franca de Xira e Museu do Neo-realismo. 2008, p.24.
7 Júlio Pomar em entrevista a Ana Cudell, 28 de Abril 2008.
8 IDEM.
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Em Gadanheiro Júlio Pomar reconhece que acontece pela primeira vez, aquilo que viria a ser
uma constante na sua pintura, que é uma relação entre o que se passa dentro da tela e os
limites que o quadro tem9 – “Dir-se-ia que o que se passa dentro do quadro quer rebentar com
os limites da superfície (...) a tensão que não se realiza, que não chega a destruir, mas que
manifesta essa vontade”10. De facto, essa característica verifica-se frequentemente ao longo
da sua obra, mesmo em pinturas recentes, onde são adicionadas várias telas para construir
vários formatos.
Figura 4 – Gadanheiro
Óleo sobre aglomerado; 122 x 83cm; 1945;
No entanto, desse mesmo período surgem, também, obras diferentes como Pintura (fig.5),
onde “...o recorte surge associado às cores lisas que segmentam o plano e definem as figuras
que nele surgem”11. De referir que estes recortes viriam a ser uma característica importante
na pintura de Pomar dos anos 70, tendo uma relação directa com a técnica de colagem que
depois também viria a praticar.
9 Entrevista de Alexandre de Melo a Júlio Pomar, “Júlio Pomar”, Arte Ibérica (Lisboa), supl., 14 (Maio de 1998), reproduzida
in Catálogo Raisonné I, p.15.
10 Júlio Pomar em entrevista a Ana Cudell, 24 de Novembro de 2008.
11 FERNANDES, João – Júlio Pomar e a sua cadeia das relações. In Júlio Pomar – cadeia da relação. Porto: Museu de Arte
Contemporânea de Serralves e Civilização Editora, 2008, p. 20.
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Figura 5 – Pintura
Óleo sobre tela; Ø 86 cm; 1944;
Figura 6 – Pintura
Pormenor de empastes e tinta arrancada
Rebelde a escolas ou processos de lugar-comum e sem nunca ter frequentado uma aula
de pintura em Belas Artes12, a sua pintura de 1948 a 52 é um caminho de pesquisa e de
aprendizagem, que até aí ainda não tivera tempo para fazer13. Predominam figuras de
mulheres e meninos e alguns tipos populares como Cabouqueiro (fig.7) ou Alcantra (1949),
notando-se cada vez mais como a procura de soluções formais se começa a sobrepor ao vigor
do conteúdo14 – “a ocupação do quadro é menos tensa, a cor adoça-se”15.
Figura 7 – Cabuqueiro
Óleo sobre tela; 72x41cm; 1949;
12 Júlio Pomar em entrevista a Ana Cudell, 28 de Abril 2008.
13 POMAR, Alexandre – Júlio Pomar. In Catálogo “Raisonné” I – Pinturas, Ferros e “Assemblages” 1942 - 1968. Paris: S.N.E.L.A.
La Différence / Artemágica, 2004, p.18.
14 Idem, p. 19
15 SILVA, Helena Vaz – Com Júlio Pomar. Lisboa: Edições António Ramos, Lda, 1980, p.83.
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Deixando gradualmente o período neo-realista e em busca de novas linguagens pictóricas
de carácter mais informal e abstracto, em meados dos anos 50, Júlio Pomar passa a revelar
uma atracção sobre o movimento, espectáculos e massas humanas. Em paralelo com pinturas
marcantes como Maria da Fonte (1957) ou Cegos da Madrid (fig.8), passam a surgir séries
como corridas de cavalos, rugby, catch, batalhas de Uccello, onde “personagens ou multidões
se precipitam num mesmo observar do acontecer da imagem, do aparecer da forma e do seu
desfazer...”16.
Figura 8 – Cegos de Madrid
Óleo sobre tela; 81 x 100cm; 1959;
Já em Paris, onde o artista passa a viver desde 1963, surge um episódio importante para a
materialidade da sua obra. Por fruto do acaso, uma das suas pinturas da serie Metro (fig.9)
tem um acidente, caindo do cavalete e sofrendo um rasgão. Tirando partido do incidente
e para tapar o buraco, Júlio Pomar incorpora na pintura o resto de um mecanismo de um
brinquedo. Este seria um momento marcante, pois é a primeira vez que o artista incorpora
um objecto num quadro, algo que irá acontecer recorrentemente na sua pintura posterior e
que se relaciona com o trabalho de assemblages que a partir de 1967 Júlio Pomar desenvolve
como uma actividade lateral. Considerando essa prática como um “trabalho de verão”, as suas
assemblages eram constituídas por objectos diversos, desprovidos de qualquer valor artístico,
como fragmentos de bonecos, pedaços de tecido, de madeira e de plástico que, possivelmente
tinham sido encontrados em passeios pela praia. Alexandre Pomar afirma que “as assemblages
de 1967 são um acontecimento lateral, um “trabalho de verão”, mas com consequências, em
16 POMAR, Alexandre – Júlio Pomar. In Catálogo “Raisonné” I – Pinturas, Ferros e “Assemblages” 1942 - 1968. Paris: S.N.E.L.A.
La Différence / Artemágica, 2004, p.22.
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grande medida não imediatas, no curso da pintura de Pomar. O jogo com as coisas encontradas,
uso de formas e a sua transformação noutras, não se orienta na direcção de uma reciclagem
de sentidos, na pista do “ready-made”, ou num exercício do “non-sens”. Nessa reconfiguração
sem destino ou chave oculta, achamento e visão, montagem e desmontagem, estão no
princípio e no fim desse uso das coisas, suspenso na prática da sua transformação, antes de
serem ícones ou panóplias. Uma prática que não será alheia ao posterior uso heráldico dos
corpos fragmentados e às colagens de desenhos recortados.”
Figura 9 – Metro
Óleo sobre tela, com mecanismo de corda de brinquedo em
metal; 50x150 cm; 1964;
Figura 10 – Metro
Pormenor do objecto utilizado para tapar
o rasgão
Em meados dos anos 60 o artista larga gradualmente o óleo, para passar a pintar definitivamente
com acrílico. Por oposição à captação do movimento e numa radical mudança de processos de
execução, a sua pintura sofre uma transformação, passando a haver uma crescente nitidez do
recorte das formas em largas zonas de cor plana. Isto seria algo que Pomar já havia realizado
em Pintura (fig.5), mas que a partir daí se passa a tornar numa prática corrente. Acerca desta
fase de mudança, o pintor escreve como no fim do ciclo das corridas de cavalos sentia a
pintura como que a esvair-se e como as influências de Ingres e Matisse o ajudaram a ir contra
a corrente. Ambos os mestres o levaram ao arabesco – se com Ingres aprendeu a desenhar
“recortando”, já as formas recortadas, realmente feitas à tesoura, chegariam mais tarde
pela via de Matisse17. Nessa fase afirmaria ainda “para afastar a minha pintura do caminho
evanescente por onde ela se comprometia perigosamente, impus a mim mesmo aquilo a que
chamei uma “purga”: o desenho exacto, a forma nítida, os planos de cor lisa e saturada, a
execução mais anónima possível”18.
17 POMAR, Júlio – Júlio Pomar – Então e a Pintura?.Lisboa: Publicações D.Quixote, Lda., 2002, p.59.
18 Idem, p.105.
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A sua pintura erotiza-se claramente neste período e a série Banho Turco deu início e contribuiu
para essa mudança fundamental, que se reflectiu “num jogo de curvas evidentes, que são de
uma simplicidade quase geométrica e que vão delimitando os campos de cor e escrevendo as
formas”19, como se verifica em Table de Jeux (fig.11), uma obra com cores fortes e composta
por 6 telas. Mas a sensualidade acentua-se mais e na sua pintura passam a surgir fragmentos de
corpos e silhuetas com formas de clara inspiração erótica que sugerem falos e seios conforme
se pode reconhecer em Belle-Îsle-en-Mer (fig.12).
Figura 11 – Table de Jeux
Acrílico sobre 6 telas, 162x195cm; 1969/70;
Figura 12 – Belle-Isle-en-mer
Acrílico sobre tela, 127x172cm; 1976;
Noutras pinturas como L’Etreinte (1978) ou Enseigne pour les Jeux (1980), a tela crua ganha por
vezes autonomia e surge como um elemento de composição, de fundo ou como um pormenor
contra o fundo pintado. Referindo-se especificamente às telas de linho ou algodão, donde
recortava as formas, o artista explica como personalizava os materiais que utilizava – “Tenho
necessidade de os neutralizar, de criar uma relação deles comigo, de me apossar deles, de agir
sobre, de os deixar marcados”20.
Tendo efectuado muitas destas pinturas coladas no plano horizontal, pois era mais favorável
ao recorte, Pomar voltava sempre ao plano vertical, havendo sempre uma necessidade de
verificar tudo à distância para dominar o conjunto todo21. Da década de 70 e por “uma questão
de moda” existem ainda uma série de trabalhos deixados por engradar, onde a tela era
simplesmente utilizada sem estrutura. Por questões de ordem prática, alguns desses trabalhos
seriam posteriormente colados sobre uma nova tela para serem engradados22. De referir, no
entanto que este processo de colagens com telas e tecidos vários, alguns previamente pintados
19 Júlio Pomar em conversa com João Fernandes – O que me atrai é a possibilidade de transformação. In Júlio Pomar – cadeia
da relação. Porto: Museu de Arte Contemporânea de Serralves e Civilização Editora, 2008, p. 5.
20 SILVA, Helena Vaz – Com Júlio Pomar. Lisboa: Edições António Ramos, Lda, 1980, p. 93.
21 Júlio Pomar em entrevista a Ana Cudell, 28 de Abril 2008.
22 Júlio Pomar em conversa com João Fernandes – O que me atrai é a possibilidade de transformação. In In Júlio Pomar –
cadeia da relação. Porto: Museu de Arte Contemporânea de Serralves e Civilização Editora, 2008, p. 12.
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e alisados, quer estes se destinassem a engradar ou não, resultavam num variado jogo de
texturas. Para este contraste contribuiu, de igual modo, a incorporação de objectos, como em
Le Signe (fig.13), onde o artista incorpora uma malga de faiança partida ao meio, ou Rideau
(1978), onde uma bola e uma pega de uma mala se encontram estrategicamente dispostos e
possuem uma rara carga de humor23.
Figura 13 – Le Signe
Acrílico, colagem e objecto sobre tela;
73x116cm; 1978;
Figura 14 – Le Signe
Pormenor da malga colada à pintura.
Segue-se a produção dos anos 80 que se caracteriza por uma intensa actividade plástica. A
grande variedade de temas como os tigres, corvos, mitologias, retratos ou motivos exóticos,
é toda trabalhada até à exaustão, revelando novos processos de execução, onde “a lavra
da matéria” assume uma crescente importância, que como o artista afirma – “é por e na
matéria que a obra começa a viver”24. Alimentando-se daquilo que despedaça e procedendo
por destruições sucessivas, o artista passa a acrescentar e a subtrair matéria às pinturas,
desenhando, pintando, raspando, recortando, apagando, voltando outra vez a juntar, repintar,
desenhar25.
Embora o interesse pelo retrato já venha de trás, como testemunham os ciclos de Manuela
Jorge ou Almada Negreiros, Pomar dá-lhe uma especial ênfase nesta altura, retratando várias
personagens famosas em especial da arte e da literatura como Allan Põe, Charles Baudelaire,
Fernando Pessoa, Mário Soares. De forma surpreendente e dentro de uma construção
aparentemente solta, onde dominam pinceladas vigorosas e manchas de cor, surgem retratos
construídos sobre o risco do uso dos acasos26, trabalhados naquele que pode ser considerado
como o “esquema do mínimo reconhecimento”27, ou seja, no mínimo requerido para que o
23 SILVA, Raquel Henriques da – Pomar, dos corpos aos mitos. In Catálogo “Raisonné” II – Pinturas e “Assemblages” 1968 –
1985 De Ingres a Mallarmé. Paris: S.N.E.L.A. La Différence / Artemágica, 2004, p.24.
24 POMAR, Júlio – Júlio Pomar – Então e a Pintura?.Lisboa: Publicações D.Quixote, Lda., 2002, p.59
25 POMAR, Júlio – Júlio Pomar – Então e a Pintura?.Lisboa: Publicações D.Quixote, Lda., 2002, p.24.
26 SILVA, Raquel Henriques da – Pomar, dos corpos aos mitos. In Catálogo “Raisonné” II – Pinturas e “Assemblages” 1968 –
1985 De Ingres a Mallarmé. Paris: S.N.E.L.A. La Différence / Artemágica, 2004, p.22.
27 POMAR / ANOS 80 – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna, 1993.
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retratado possa ser identificado. Um bom exemplo disso é a pintura Lusitânia no Bairro Latino
(fig.15), onde figuram três importantes personagens do modernismo português – Mário de
Sá-Carneiro, Santa Rita Pintor e Amadeo de Souza Cardoso, que tal como Pomar também
passaram alguns anos em Paris.
Figura 15 – Lusitânia no Bairro Latino
Acrílico sobre tela, 158,5x154cm; 1985;
Figura 16 – D.Quixote e os carneiros
Acrílico sobre tela, 232x349 cm;
obra composta por 4 telas; 1997;
Acerca da forma como Pomar faz os retratos este próprio escreve: “Os retratos que faço são
um desafio à minha memória. Como suporto cada vez menos a presença de outrem quando
trabalho, prefiro recorrer a lembranças, fotografias, vídeos, desenhos rápidos executados
independentemente da futura composição. É a memoria que comanda, e é da imprevisível
articulação entre o esquecimento e a memoria que o inesperado do retrato deve surgir. O
trabalho faz-se por aproximações sucessivas, recuos, visões súbitas, mudanças de rumo, num
percurso em que a razão não domina o todo. O que há de vivo no retrato não é nunca o
resultado da adição dos sinais característicos do retratado, mas a articulação entre a evidência
e a ocultação. Um retrato que não é inesperado é um retrato que não existe como tal”28.
Paralelamente à sua produção de retratos, a pintura de Pomar passa ainda por outras séries
que nunca se desligam da sua materialidade. Em recente entrevista ao artista, João Fernandes
reconhece que a partir do momento em que a colagem e a assemblage irrompem no trabalho
de Júlio Pomar, elas não mais o abandonarão. Não sendo processos que apenas estejam
confinados a um determinado período cronológico e embora surjam com grande evidência na
época de 60 e 70, vão reaparecendo sistematicamente até ao presente29.
28 POMAR, Júlio – Júlio Pomar – Então e a Pintura?.Lisboa: Publicações D.Quixote, Lda., 2002, p.98.
29 Júlio Pomar em conversa com João Fernandes – O que me atrai é a possibilidade de transformação. In Júlio Pomar – cadeia
da relação. Porto: Museu de Arte Contemporânea de Serralves e Civilização Editora, 2008, p.11.
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De forma recorrente e em paralelo com a colagem de objectos nos quadros, a certa altura
Pomar passa também a juntar várias telas de diferentes dimensões, construindo formatos
novos e obras de grandes dimensões. Tal é o caso de D.Quixote e os carneiros (fig.16), uma
obra dos anos 90 composta por 4 telas ou então Portrait (double) de l’artiste en Goliath (fig.17),
um duplo auto-retrato do artista constituído por doze telas, uma tábua de madeira e quatro
objectos – dois escaravelhos de plástico, um guarda chuva e uma pega de couro.
Figura 17 – Portrait (double) de l’artiste en Goliath
Acrílico sobre tela, 159,5x420cm;
obra composta por tábua de madeira e 12 telas, com colagem de objectos; 2004.
Figura 18 – Portrait (double) de l’artiste en Goliath
Pormenor da mosca de plástico
Figura 19 – Portrait (double) de l’artiste en Goliath
Pormenor da camada cromática raspada
Em relação ao formato e à maneira com estas pinturas surgem, Júlio Pomar afirma que elas vão
nascendo tal como se vão registando acontecimentos. Determinado pelo que de disponível
existe no atelier, vai adicionando vários quadros com formas pré existentes de forma a
conceber uma só obra. Relativamente à superfície destas obras, observa-se que o artista tanto
assume as telas individualmente como tem uma necessidade de tapar as juntas entre elas, de
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forma a dar continuidade e uniformizar toda a camada pictórica. Fazendo uma comparação
com o Gadanheiro (fig.4), onde existe uma tensão da figura contra os rebordos do quadro,
Pomar verifica que nas pinturas constituídas por várias telas os limites são premeditadamente
ultrapassados, precisamente através desse sucessivo acrescento (não programado) de telas às
obras30.
Quanto aos objectos, que o artista poderá incorporar ou não nas suas pinturas, Júlio Pomar
reconhece que começou por ser atraído por objectos soltos da função original para a qual
foram criados, utilizando muitas vezes fragmentos e mesmo objectos usados31. Também é
vulgar incluir brinquedos, “bonecada” e bichos de plástico, que lhe são oferecidos ou que então
o pintor gosta de comprar em lojas chinesas e de carnaval32. Considerando que a presença dos
objectos nas suas pinturas são quase como um excerto da realidade, Júlio Pomar reconhece
que estes surgem mais pela necessidade de um excesso33.
Em contraste com a tridimensionalidade conferida à pintura pela inclusão desses objectos,
a maior parte das vezes, as camadas pictóricas são extremamente lisas. Normalmente
caracterizam-se pela sobreposição de diversas camadas de tinta que vão formando
escorrimentos e manchas de cor que ganham formas através de desenhos que o artista
completa com pastel. Outra das particularidades da pintura recente de Pomar é a sucessiva
raspagem de tinta que permite “destapar” camadas e fazer um jogo de cores com as camadas
subjacentes.
Conclusão
Como se verifica, a obra de Júlio Pomar caracteriza-se por linguagens pictóricas muito
diversificadas, que constantemente questionam as possibilidades da sua pintura. Tendo seguido
um caminho muito próprio, onde todos os períodos são marcantes e todos se encadeiam e
se relacionam uns com os outros, existe sempre um fio condutor que confere uma enorme
coerência à sua obra.
Fortemente atraído pelo acaso e seduzido pela possibilidade de transformação, as obras vão
surgindo e vão-se construindo por sucessivos avanços e arrecuos. Pomar insiste até se deparar
com os achados acidentais e parcelares das imagens que até aí considerava falhadas. Essa
possibilidade de transformação, algo de muito intrínseco neste pintor, é determinante para as
suas obras e também demonstra bem o enorme prazer que Júlio Pomar tem em conjugar os
diferentes materiais, seja em adicionar quadros às pinturas, incluir objectos, colar tecidos ou
papeis ou mesmo raspar e escavar as camadas pictóricas. Este fascínio que Pomar tem pela
matéria, constatado tanto nas suas obras actuais como nas de períodos anteriores, demonstra
30 Júlio Pomar em entrevista a Ana Cudell, 28 de Abril 2008.
31 Júlio Pomar em conversa com João Fernandes – O que me atrai é a possibilidade de transformação. In Júlio Pomar – cadeia
da relação. Porto: Museu de Arte Contemporânea de Serralves e Civilização Editora, 2008, p. 5.
32 Júlio Pomar em entrevista a Ana Cudell, 28 de Abril 2008.
33 Idem.
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bem como a relação da experiência visual com a experiência táctil nunca é ignorada. E é
novamente esse jogo com a matéria que confere tacteabilidade à sua pintura. Como o pintor
tão bem afirma nos seus escritos que acompanham a sua obra:
Postas de parte as atracções específicas
que caracterizam cada período do meu trabalho,
sempre uma imagem deu origem a outras imagens,
e sempre o meu quadro se fez – ou se desfez!
- de sucessivos encaixes ou desencaixes.
e muitas vezes se faz à medida que as imagens se desfazem34.
Referências
CLAUDIO, Mário – Júlio Pomar. Lisboa: Editorial Caminho, [s.d.].
POMAR, Alexandre, coord. – Catálogo “Raisonné” I – Pinturas, Ferros e “Assemblages” 1942 1968. “La Différence / Artemágica “. Paris: S.N.E.L.A. , 2004.
POMAR, Alexandre, coord. – Catálogo “Raisonné” II – Pinturas e “Assemblages” 1968 – 1985
De Ingres a Mallarmé. “La Différence / Artemágica “. Paris: S.N.E.L.A. , 2004.
POMAR, Júlio – Júlio Pomar – Então e a Pintura? Lisboa: Publicações D.Quixote, Lda., 2002.
POMAR, Júlio - Da Cegueira dos Pintores. Versão portuguesa de Pedro Tamen. Lisboa: Imprensa
Nacional / Casa da Moeda, 1986,
SILVA, Helena Vaz – Com Júlio Pomar. Lisboa: Edições António Ramos, Lda, 1980.
BATALHA PELO CONTEÚDO: Exposição documental, movimento neo-realista português. [s.l.]:
Museu do Neo-Realismo, [s.d.].
CADEIA DA RELAÇÃO – Porto: Museu de Arte Contemporânea de Serralves e Civilização Editora,
2008.
FUNDAÇÃO JÚLIO POMAR: PRIMEIRA ESCOLHA - [s.l.]: Galeria Municipal de Matosinhos,
Fundação Júlio Pomar, 2008.
JÚLIO POMAR – AUTOBIOGRAFIA - [s.d.]: Assírio & Alvim s Sintra Museu de Arte Moderna –
Colecção Berardo, 2004.
JÚLIO POMAR E A EXPERIENCIA NEO-REALISTA - [s.l.]: Câmara Municipal de Vila Franca de Xira
e Museu do Neo-realismo, 2008.
POMAR / ANOS 80 – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna, 1993.
UMA ARTE DO POVO PELO POVO E PARA O POVO: NEO-REALISMO E ARTES PLÁSTICAS - [s.l.]:
Câmara Municipal de Vila Franca de Xira e Museu do Neo-Realismo, 2007.
34 POMAR, Júlio - Da Cegueira dos Pintores, versão portuguesa de Pedro Tamen. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda,
1986
desenvolvido por
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