Contexto histórico da obra pictórica de Júlio Pomar Resumo Figura de referência nas artes plásticas da segunda metade do século XX, Júlio Pomar, nascido em 1926 em Lisboa, conta com uma vasta obra desenvolvida ao longo de mais de 60 anos de trabalho. Apesar de dominar outras valências como a escultura, desenho, fresco, gravura, assemblagem, Pomar afirma-se sobretudo no domínio da pintura sobre tela. Começando a pintar a óleo e passando nos meados dos anos 60 para o acrílico, a sua obra caracteriza-se por utilizar uma grande variedade de materiais e processos de execução, onde frequentemente são incorporadas colagens e objectos diversos. Nunca se tendo vinculado a um estilo ou género, “a prática da pintura é para Pomar uma constante interrogação das possibilidades da pintura, um confronto com o entendimento que dela encontra na sua época, sem qualquer submissão aos seus ditames”1. Trabalhando muito com séries temáticas, já que lhe é quase sempre impossível esgotar um só assunto numa só pintura2, os quadros sucedem-se e dão-nos aproximações várias de um ponto de atracção, como são exemplo as fases neo-realista, rugby, banhos turcos, corridas de cavalos, tigres. Tendo ainda o dom da escrita, Júlio Pomar vem acompanhando a sua produção plástica com frequentes textos e livros que ajudam a reforçar a sua mensagem estética. A obra pictórica de Júlio Pomar No atelier faço e refaço por vezes sem sequer me dar ao trabalho de desfazer. Não só para fazer melhor. Mas também por necessidade de destruir, de remastigar uma dada experiencia que não me matou a fome.3 (...) Pinto, recorto, junto, repinto ou raspo, arranho, pulo, aliso. Para depois não fazer mais, talvez do que re-cortar, re-juntar, repintar Outra vez e tudo o resto4 Inicialmente inspirado por Portinari e por grandes muralistas mexicanos como Diego Rivera, Orozco ou Siqueiros, Pomar principia a sua carreira na década de 40, numa altura em que Portugal estava submetido a uma ditadura fascista. Isso viria a marcar profundamente as suas convicções e a sua temática, realizando nessa altura uma arte de intervenção e algumas das pinturas mais representativas do Neo-realismo português. Dessa época fica também marcada a sua passagem pelo Porto, onde Júlio Pomar, entre outras, teve a sua primeira exposição individual e onde ingressou na Escola de Belas Artes do Porto, um ensino reconhecidamente 1 FERNANDES, João – Júlio Pomar e a sua cadeia das relações. In Júlio Pomar – cadeia da relação. Porto: Museu de Arte Contemporânea de Serralves e Civilização Editora, 2008, p. 19. 2 POMAR, Júlio – Júlio Pomar – Então e a Pintura? Lisboa: Publicações D.Quixote, Lda., 2002, p.21. 3 POMAR, JÚLIO - Da Cegueira dos Pintores. [s.l.]: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1986, p.24. 4 Idem, p.24. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 1 Contexto histórico da obra pictórica de Júlio Pomar | Ana Cudell mais estimulante e que na época se caracterizava por uma maior liberdade de interpretação5. A sua primeira pintura – Pintura (1942), executada quando tinha apenas 16 anos e de cariz marcadamente expressionista, revela já uma certa apetência pela matéria. Pomar raspa e joga com o óleo conferindo texturas à superfície. Mas foi em 1945, durante a IX Missão Estética de Férias em Évora, no Alentejo que Pomar pinta Descanso (fig.1), uma das primeiras pinturas neo-realistas6. É uma obra matérica e com texturas, onde o autor incorporou areia ao óleo, tal como no Gadanheiro7 (fig.4), executado nesse mesmo ano e classificado como o quadromanifesto do Neo-realismo8. Figura 1 – Descanso Óleo e areia sobre madeira; 48x80cm; 1945; Figura 2 – Descanso Pormenor da textura da pintura Figura 3 – Descanso Microfotografia da secção transversal por microscopia óptica. Magnificação 100x. Observa-se uma diversidade de materiais (entre outros partículas birrefrigentes), onde poderá estar presente terra e areia. 5 MATOS, Lúcia Almeida – Júlio Pomar no Porto. In Fundação Júlio Pomar: Primeira Escolha - [s.l.]: Galeria Municipal de Matosinhos, Fundação Júlio Pomar, 2008, p.145. 6 SANTOS, David – O sentido da hora e o amor do mundo – Júlio Pomar e a promessa humanista do neo-realismo. In Júlio Pomar e a experiência neo-realista.[s.l.]: Câmara Municipal de Vila Franca de Xira e Museu do Neo-realismo. 2008, p.24. 7 Júlio Pomar em entrevista a Ana Cudell, 28 de Abril 2008. 8 IDEM. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 2 Contexto histórico da obra pictórica de Júlio Pomar | Ana Cudell Em Gadanheiro Júlio Pomar reconhece que acontece pela primeira vez, aquilo que viria a ser uma constante na sua pintura, que é uma relação entre o que se passa dentro da tela e os limites que o quadro tem9 – “Dir-se-ia que o que se passa dentro do quadro quer rebentar com os limites da superfície (...) a tensão que não se realiza, que não chega a destruir, mas que manifesta essa vontade”10. De facto, essa característica verifica-se frequentemente ao longo da sua obra, mesmo em pinturas recentes, onde são adicionadas várias telas para construir vários formatos. Figura 4 – Gadanheiro Óleo sobre aglomerado; 122 x 83cm; 1945; No entanto, desse mesmo período surgem, também, obras diferentes como Pintura (fig.5), onde “...o recorte surge associado às cores lisas que segmentam o plano e definem as figuras que nele surgem”11. De referir que estes recortes viriam a ser uma característica importante na pintura de Pomar dos anos 70, tendo uma relação directa com a técnica de colagem que depois também viria a praticar. 9 Entrevista de Alexandre de Melo a Júlio Pomar, “Júlio Pomar”, Arte Ibérica (Lisboa), supl., 14 (Maio de 1998), reproduzida in Catálogo Raisonné I, p.15. 10 Júlio Pomar em entrevista a Ana Cudell, 24 de Novembro de 2008. 11 FERNANDES, João – Júlio Pomar e a sua cadeia das relações. In Júlio Pomar – cadeia da relação. Porto: Museu de Arte Contemporânea de Serralves e Civilização Editora, 2008, p. 20. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 3 Contexto histórico da obra pictórica de Júlio Pomar | Ana Cudell Figura 5 – Pintura Óleo sobre tela; Ø 86 cm; 1944; Figura 6 – Pintura Pormenor de empastes e tinta arrancada Rebelde a escolas ou processos de lugar-comum e sem nunca ter frequentado uma aula de pintura em Belas Artes12, a sua pintura de 1948 a 52 é um caminho de pesquisa e de aprendizagem, que até aí ainda não tivera tempo para fazer13. Predominam figuras de mulheres e meninos e alguns tipos populares como Cabouqueiro (fig.7) ou Alcantra (1949), notando-se cada vez mais como a procura de soluções formais se começa a sobrepor ao vigor do conteúdo14 – “a ocupação do quadro é menos tensa, a cor adoça-se”15. Figura 7 – Cabuqueiro Óleo sobre tela; 72x41cm; 1949; 12 Júlio Pomar em entrevista a Ana Cudell, 28 de Abril 2008. 13 POMAR, Alexandre – Júlio Pomar. In Catálogo “Raisonné” I – Pinturas, Ferros e “Assemblages” 1942 - 1968. Paris: S.N.E.L.A. La Différence / Artemágica, 2004, p.18. 14 Idem, p. 19 15 SILVA, Helena Vaz – Com Júlio Pomar. Lisboa: Edições António Ramos, Lda, 1980, p.83. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 4 Contexto histórico da obra pictórica de Júlio Pomar | Ana Cudell Deixando gradualmente o período neo-realista e em busca de novas linguagens pictóricas de carácter mais informal e abstracto, em meados dos anos 50, Júlio Pomar passa a revelar uma atracção sobre o movimento, espectáculos e massas humanas. Em paralelo com pinturas marcantes como Maria da Fonte (1957) ou Cegos da Madrid (fig.8), passam a surgir séries como corridas de cavalos, rugby, catch, batalhas de Uccello, onde “personagens ou multidões se precipitam num mesmo observar do acontecer da imagem, do aparecer da forma e do seu desfazer...”16. Figura 8 – Cegos de Madrid Óleo sobre tela; 81 x 100cm; 1959; Já em Paris, onde o artista passa a viver desde 1963, surge um episódio importante para a materialidade da sua obra. Por fruto do acaso, uma das suas pinturas da serie Metro (fig.9) tem um acidente, caindo do cavalete e sofrendo um rasgão. Tirando partido do incidente e para tapar o buraco, Júlio Pomar incorpora na pintura o resto de um mecanismo de um brinquedo. Este seria um momento marcante, pois é a primeira vez que o artista incorpora um objecto num quadro, algo que irá acontecer recorrentemente na sua pintura posterior e que se relaciona com o trabalho de assemblages que a partir de 1967 Júlio Pomar desenvolve como uma actividade lateral. Considerando essa prática como um “trabalho de verão”, as suas assemblages eram constituídas por objectos diversos, desprovidos de qualquer valor artístico, como fragmentos de bonecos, pedaços de tecido, de madeira e de plástico que, possivelmente tinham sido encontrados em passeios pela praia. Alexandre Pomar afirma que “as assemblages de 1967 são um acontecimento lateral, um “trabalho de verão”, mas com consequências, em 16 POMAR, Alexandre – Júlio Pomar. In Catálogo “Raisonné” I – Pinturas, Ferros e “Assemblages” 1942 - 1968. Paris: S.N.E.L.A. La Différence / Artemágica, 2004, p.22. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 5 Contexto histórico da obra pictórica de Júlio Pomar | Ana Cudell grande medida não imediatas, no curso da pintura de Pomar. O jogo com as coisas encontradas, uso de formas e a sua transformação noutras, não se orienta na direcção de uma reciclagem de sentidos, na pista do “ready-made”, ou num exercício do “non-sens”. Nessa reconfiguração sem destino ou chave oculta, achamento e visão, montagem e desmontagem, estão no princípio e no fim desse uso das coisas, suspenso na prática da sua transformação, antes de serem ícones ou panóplias. Uma prática que não será alheia ao posterior uso heráldico dos corpos fragmentados e às colagens de desenhos recortados.” Figura 9 – Metro Óleo sobre tela, com mecanismo de corda de brinquedo em metal; 50x150 cm; 1964; Figura 10 – Metro Pormenor do objecto utilizado para tapar o rasgão Em meados dos anos 60 o artista larga gradualmente o óleo, para passar a pintar definitivamente com acrílico. Por oposição à captação do movimento e numa radical mudança de processos de execução, a sua pintura sofre uma transformação, passando a haver uma crescente nitidez do recorte das formas em largas zonas de cor plana. Isto seria algo que Pomar já havia realizado em Pintura (fig.5), mas que a partir daí se passa a tornar numa prática corrente. Acerca desta fase de mudança, o pintor escreve como no fim do ciclo das corridas de cavalos sentia a pintura como que a esvair-se e como as influências de Ingres e Matisse o ajudaram a ir contra a corrente. Ambos os mestres o levaram ao arabesco – se com Ingres aprendeu a desenhar “recortando”, já as formas recortadas, realmente feitas à tesoura, chegariam mais tarde pela via de Matisse17. Nessa fase afirmaria ainda “para afastar a minha pintura do caminho evanescente por onde ela se comprometia perigosamente, impus a mim mesmo aquilo a que chamei uma “purga”: o desenho exacto, a forma nítida, os planos de cor lisa e saturada, a execução mais anónima possível”18. 17 POMAR, Júlio – Júlio Pomar – Então e a Pintura?.Lisboa: Publicações D.Quixote, Lda., 2002, p.59. 18 Idem, p.105. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 6 Contexto histórico da obra pictórica de Júlio Pomar | Ana Cudell A sua pintura erotiza-se claramente neste período e a série Banho Turco deu início e contribuiu para essa mudança fundamental, que se reflectiu “num jogo de curvas evidentes, que são de uma simplicidade quase geométrica e que vão delimitando os campos de cor e escrevendo as formas”19, como se verifica em Table de Jeux (fig.11), uma obra com cores fortes e composta por 6 telas. Mas a sensualidade acentua-se mais e na sua pintura passam a surgir fragmentos de corpos e silhuetas com formas de clara inspiração erótica que sugerem falos e seios conforme se pode reconhecer em Belle-Îsle-en-Mer (fig.12). Figura 11 – Table de Jeux Acrílico sobre 6 telas, 162x195cm; 1969/70; Figura 12 – Belle-Isle-en-mer Acrílico sobre tela, 127x172cm; 1976; Noutras pinturas como L’Etreinte (1978) ou Enseigne pour les Jeux (1980), a tela crua ganha por vezes autonomia e surge como um elemento de composição, de fundo ou como um pormenor contra o fundo pintado. Referindo-se especificamente às telas de linho ou algodão, donde recortava as formas, o artista explica como personalizava os materiais que utilizava – “Tenho necessidade de os neutralizar, de criar uma relação deles comigo, de me apossar deles, de agir sobre, de os deixar marcados”20. Tendo efectuado muitas destas pinturas coladas no plano horizontal, pois era mais favorável ao recorte, Pomar voltava sempre ao plano vertical, havendo sempre uma necessidade de verificar tudo à distância para dominar o conjunto todo21. Da década de 70 e por “uma questão de moda” existem ainda uma série de trabalhos deixados por engradar, onde a tela era simplesmente utilizada sem estrutura. Por questões de ordem prática, alguns desses trabalhos seriam posteriormente colados sobre uma nova tela para serem engradados22. De referir, no entanto que este processo de colagens com telas e tecidos vários, alguns previamente pintados 19 Júlio Pomar em conversa com João Fernandes – O que me atrai é a possibilidade de transformação. In Júlio Pomar – cadeia da relação. Porto: Museu de Arte Contemporânea de Serralves e Civilização Editora, 2008, p. 5. 20 SILVA, Helena Vaz – Com Júlio Pomar. Lisboa: Edições António Ramos, Lda, 1980, p. 93. 21 Júlio Pomar em entrevista a Ana Cudell, 28 de Abril 2008. 22 Júlio Pomar em conversa com João Fernandes – O que me atrai é a possibilidade de transformação. In In Júlio Pomar – cadeia da relação. Porto: Museu de Arte Contemporânea de Serralves e Civilização Editora, 2008, p. 12. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 7 Contexto histórico da obra pictórica de Júlio Pomar | Ana Cudell e alisados, quer estes se destinassem a engradar ou não, resultavam num variado jogo de texturas. Para este contraste contribuiu, de igual modo, a incorporação de objectos, como em Le Signe (fig.13), onde o artista incorpora uma malga de faiança partida ao meio, ou Rideau (1978), onde uma bola e uma pega de uma mala se encontram estrategicamente dispostos e possuem uma rara carga de humor23. Figura 13 – Le Signe Acrílico, colagem e objecto sobre tela; 73x116cm; 1978; Figura 14 – Le Signe Pormenor da malga colada à pintura. Segue-se a produção dos anos 80 que se caracteriza por uma intensa actividade plástica. A grande variedade de temas como os tigres, corvos, mitologias, retratos ou motivos exóticos, é toda trabalhada até à exaustão, revelando novos processos de execução, onde “a lavra da matéria” assume uma crescente importância, que como o artista afirma – “é por e na matéria que a obra começa a viver”24. Alimentando-se daquilo que despedaça e procedendo por destruições sucessivas, o artista passa a acrescentar e a subtrair matéria às pinturas, desenhando, pintando, raspando, recortando, apagando, voltando outra vez a juntar, repintar, desenhar25. Embora o interesse pelo retrato já venha de trás, como testemunham os ciclos de Manuela Jorge ou Almada Negreiros, Pomar dá-lhe uma especial ênfase nesta altura, retratando várias personagens famosas em especial da arte e da literatura como Allan Põe, Charles Baudelaire, Fernando Pessoa, Mário Soares. De forma surpreendente e dentro de uma construção aparentemente solta, onde dominam pinceladas vigorosas e manchas de cor, surgem retratos construídos sobre o risco do uso dos acasos26, trabalhados naquele que pode ser considerado como o “esquema do mínimo reconhecimento”27, ou seja, no mínimo requerido para que o 23 SILVA, Raquel Henriques da – Pomar, dos corpos aos mitos. In Catálogo “Raisonné” II – Pinturas e “Assemblages” 1968 – 1985 De Ingres a Mallarmé. Paris: S.N.E.L.A. La Différence / Artemágica, 2004, p.24. 24 POMAR, Júlio – Júlio Pomar – Então e a Pintura?.Lisboa: Publicações D.Quixote, Lda., 2002, p.59 25 POMAR, Júlio – Júlio Pomar – Então e a Pintura?.Lisboa: Publicações D.Quixote, Lda., 2002, p.24. 26 SILVA, Raquel Henriques da – Pomar, dos corpos aos mitos. In Catálogo “Raisonné” II – Pinturas e “Assemblages” 1968 – 1985 De Ingres a Mallarmé. Paris: S.N.E.L.A. La Différence / Artemágica, 2004, p.22. 27 POMAR / ANOS 80 – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna, 1993. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 8 Contexto histórico da obra pictórica de Júlio Pomar | Ana Cudell retratado possa ser identificado. Um bom exemplo disso é a pintura Lusitânia no Bairro Latino (fig.15), onde figuram três importantes personagens do modernismo português – Mário de Sá-Carneiro, Santa Rita Pintor e Amadeo de Souza Cardoso, que tal como Pomar também passaram alguns anos em Paris. Figura 15 – Lusitânia no Bairro Latino Acrílico sobre tela, 158,5x154cm; 1985; Figura 16 – D.Quixote e os carneiros Acrílico sobre tela, 232x349 cm; obra composta por 4 telas; 1997; Acerca da forma como Pomar faz os retratos este próprio escreve: “Os retratos que faço são um desafio à minha memória. Como suporto cada vez menos a presença de outrem quando trabalho, prefiro recorrer a lembranças, fotografias, vídeos, desenhos rápidos executados independentemente da futura composição. É a memoria que comanda, e é da imprevisível articulação entre o esquecimento e a memoria que o inesperado do retrato deve surgir. O trabalho faz-se por aproximações sucessivas, recuos, visões súbitas, mudanças de rumo, num percurso em que a razão não domina o todo. O que há de vivo no retrato não é nunca o resultado da adição dos sinais característicos do retratado, mas a articulação entre a evidência e a ocultação. Um retrato que não é inesperado é um retrato que não existe como tal”28. Paralelamente à sua produção de retratos, a pintura de Pomar passa ainda por outras séries que nunca se desligam da sua materialidade. Em recente entrevista ao artista, João Fernandes reconhece que a partir do momento em que a colagem e a assemblage irrompem no trabalho de Júlio Pomar, elas não mais o abandonarão. Não sendo processos que apenas estejam confinados a um determinado período cronológico e embora surjam com grande evidência na época de 60 e 70, vão reaparecendo sistematicamente até ao presente29. 28 POMAR, Júlio – Júlio Pomar – Então e a Pintura?.Lisboa: Publicações D.Quixote, Lda., 2002, p.98. 29 Júlio Pomar em conversa com João Fernandes – O que me atrai é a possibilidade de transformação. In Júlio Pomar – cadeia da relação. Porto: Museu de Arte Contemporânea de Serralves e Civilização Editora, 2008, p.11. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 9 Contexto histórico da obra pictórica de Júlio Pomar | Ana Cudell De forma recorrente e em paralelo com a colagem de objectos nos quadros, a certa altura Pomar passa também a juntar várias telas de diferentes dimensões, construindo formatos novos e obras de grandes dimensões. Tal é o caso de D.Quixote e os carneiros (fig.16), uma obra dos anos 90 composta por 4 telas ou então Portrait (double) de l’artiste en Goliath (fig.17), um duplo auto-retrato do artista constituído por doze telas, uma tábua de madeira e quatro objectos – dois escaravelhos de plástico, um guarda chuva e uma pega de couro. Figura 17 – Portrait (double) de l’artiste en Goliath Acrílico sobre tela, 159,5x420cm; obra composta por tábua de madeira e 12 telas, com colagem de objectos; 2004. Figura 18 – Portrait (double) de l’artiste en Goliath Pormenor da mosca de plástico Figura 19 – Portrait (double) de l’artiste en Goliath Pormenor da camada cromática raspada Em relação ao formato e à maneira com estas pinturas surgem, Júlio Pomar afirma que elas vão nascendo tal como se vão registando acontecimentos. Determinado pelo que de disponível existe no atelier, vai adicionando vários quadros com formas pré existentes de forma a conceber uma só obra. Relativamente à superfície destas obras, observa-se que o artista tanto assume as telas individualmente como tem uma necessidade de tapar as juntas entre elas, de Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 10 Contexto histórico da obra pictórica de Júlio Pomar | Ana Cudell forma a dar continuidade e uniformizar toda a camada pictórica. Fazendo uma comparação com o Gadanheiro (fig.4), onde existe uma tensão da figura contra os rebordos do quadro, Pomar verifica que nas pinturas constituídas por várias telas os limites são premeditadamente ultrapassados, precisamente através desse sucessivo acrescento (não programado) de telas às obras30. Quanto aos objectos, que o artista poderá incorporar ou não nas suas pinturas, Júlio Pomar reconhece que começou por ser atraído por objectos soltos da função original para a qual foram criados, utilizando muitas vezes fragmentos e mesmo objectos usados31. Também é vulgar incluir brinquedos, “bonecada” e bichos de plástico, que lhe são oferecidos ou que então o pintor gosta de comprar em lojas chinesas e de carnaval32. Considerando que a presença dos objectos nas suas pinturas são quase como um excerto da realidade, Júlio Pomar reconhece que estes surgem mais pela necessidade de um excesso33. Em contraste com a tridimensionalidade conferida à pintura pela inclusão desses objectos, a maior parte das vezes, as camadas pictóricas são extremamente lisas. Normalmente caracterizam-se pela sobreposição de diversas camadas de tinta que vão formando escorrimentos e manchas de cor que ganham formas através de desenhos que o artista completa com pastel. Outra das particularidades da pintura recente de Pomar é a sucessiva raspagem de tinta que permite “destapar” camadas e fazer um jogo de cores com as camadas subjacentes. Conclusão Como se verifica, a obra de Júlio Pomar caracteriza-se por linguagens pictóricas muito diversificadas, que constantemente questionam as possibilidades da sua pintura. Tendo seguido um caminho muito próprio, onde todos os períodos são marcantes e todos se encadeiam e se relacionam uns com os outros, existe sempre um fio condutor que confere uma enorme coerência à sua obra. Fortemente atraído pelo acaso e seduzido pela possibilidade de transformação, as obras vão surgindo e vão-se construindo por sucessivos avanços e arrecuos. Pomar insiste até se deparar com os achados acidentais e parcelares das imagens que até aí considerava falhadas. Essa possibilidade de transformação, algo de muito intrínseco neste pintor, é determinante para as suas obras e também demonstra bem o enorme prazer que Júlio Pomar tem em conjugar os diferentes materiais, seja em adicionar quadros às pinturas, incluir objectos, colar tecidos ou papeis ou mesmo raspar e escavar as camadas pictóricas. Este fascínio que Pomar tem pela matéria, constatado tanto nas suas obras actuais como nas de períodos anteriores, demonstra 30 Júlio Pomar em entrevista a Ana Cudell, 28 de Abril 2008. 31 Júlio Pomar em conversa com João Fernandes – O que me atrai é a possibilidade de transformação. In Júlio Pomar – cadeia da relação. Porto: Museu de Arte Contemporânea de Serralves e Civilização Editora, 2008, p. 5. 32 Júlio Pomar em entrevista a Ana Cudell, 28 de Abril 2008. 33 Idem. Materiais e Técnicas de Pintores do Norte de Portugal – Processo nº 3-6-15-6-1199 (QREN) 11 Contexto histórico da obra pictórica de Júlio Pomar | Ana Cudell bem como a relação da experiência visual com a experiência táctil nunca é ignorada. E é novamente esse jogo com a matéria que confere tacteabilidade à sua pintura. Como o pintor tão bem afirma nos seus escritos que acompanham a sua obra: Postas de parte as atracções específicas que caracterizam cada período do meu trabalho, sempre uma imagem deu origem a outras imagens, e sempre o meu quadro se fez – ou se desfez! - de sucessivos encaixes ou desencaixes. e muitas vezes se faz à medida que as imagens se desfazem34. Referências CLAUDIO, Mário – Júlio Pomar. Lisboa: Editorial Caminho, [s.d.]. POMAR, Alexandre, coord. – Catálogo “Raisonné” I – Pinturas, Ferros e “Assemblages” 1942 1968. “La Différence / Artemágica “. Paris: S.N.E.L.A. , 2004. POMAR, Alexandre, coord. – Catálogo “Raisonné” II – Pinturas e “Assemblages” 1968 – 1985 De Ingres a Mallarmé. “La Différence / Artemágica “. Paris: S.N.E.L.A. , 2004. POMAR, Júlio – Júlio Pomar – Então e a Pintura? Lisboa: Publicações D.Quixote, Lda., 2002. POMAR, Júlio - Da Cegueira dos Pintores. Versão portuguesa de Pedro Tamen. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1986, SILVA, Helena Vaz – Com Júlio Pomar. Lisboa: Edições António Ramos, Lda, 1980. BATALHA PELO CONTEÚDO: Exposição documental, movimento neo-realista português. [s.l.]: Museu do Neo-Realismo, [s.d.]. CADEIA DA RELAÇÃO – Porto: Museu de Arte Contemporânea de Serralves e Civilização Editora, 2008. FUNDAÇÃO JÚLIO POMAR: PRIMEIRA ESCOLHA - [s.l.]: Galeria Municipal de Matosinhos, Fundação Júlio Pomar, 2008. JÚLIO POMAR – AUTOBIOGRAFIA - [s.d.]: Assírio & Alvim s Sintra Museu de Arte Moderna – Colecção Berardo, 2004. JÚLIO POMAR E A EXPERIENCIA NEO-REALISTA - [s.l.]: Câmara Municipal de Vila Franca de Xira e Museu do Neo-realismo, 2008. POMAR / ANOS 80 – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna, 1993. UMA ARTE DO POVO PELO POVO E PARA O POVO: NEO-REALISMO E ARTES PLÁSTICAS - [s.l.]: Câmara Municipal de Vila Franca de Xira e Museu do Neo-Realismo, 2007. 34 POMAR, Júlio - Da Cegueira dos Pintores, versão portuguesa de Pedro Tamen. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1986 desenvolvido por co-financiamento