ENTREVISTA A UM APÁTRIDA.
Entrevista a Mário Soares, quando Ministro dos Negócios Estrangeiros
português.
Mário Soares sobre a descolonização em África.
Do Jornal “Der Spiegel”
“SE NACESSÁRIO O EXÉRCITO ATIRARÁ SOBRE OS COLONOS
BRANCOS”
SP – Sr. Ministro, o Governo Provisório está em vias de conceder a
independência às colónias da Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Há
portugueses que se interrogam se este Governo de Transição, que não foi eleito
pelo povo, mas empossado por um golpe militar, tem legitimidade para tomar
uma decisão tão histórica.
MS – Isso nos perguntámos logo a seguir à revolução de 25 de Abril. Ponderamos
se a descolonização se deveria fazer apenas após eleições regulares. Mas
verificou-se que o problema era candente, que dificuldades e demoras surgiam no
processo. E assim convencemo-nos que precisávamos de nos apressar.
SP – Há portugueses que julgam que o Sr. se tenha apressado demais – como em
tempos os belgas ao se retirarem do Congo.
MS – Estamos há 3 meses no governo, e entretanto fizemos contactos e
progressos, mas não creio que tenhamos sido demasiado apressados. Pelo
contrário. A situação em Angola, que nos últimos tempos se tornou explosiva,
prova que talvez não tivéssemos andado suficientemente depressa.
SP – Sobre as condições de independência o Sr. negoceia exclusivamente com os
movimentos de libertação africanos. Na sua opinião eles são os únicos legítimos
representantes das populações nas colónias?
MS – Bem, se quisermos fazer a paz – e nós queremos sem demora a paz – temos
que falar com os que nos combatem. Isto não implica uma avaliação política ou
ética dos movimentos de libertação, mas resulta da apreciação pragmática de
determinada situação. E quem nos combate na Guiné? O PAIGC. Assim temos de
falar com o PAIGC. Quem nos combate em Moçambique? A Frelimo. Assim
temos de falar com a Frelimo.
SP – E com quem pode o Sr. negociar em Angola onde existem vários
movimentos rivais?
MS – Em Angola há dois movimentos de libertação reconhecidos pela OUA – o
MPLA e a FNLA. Assim temos de negociar com ambos. Para avaliar qual dos dois
é o mais representativo do povo é um problema que os Angolanos e as coligações
que no futuro formarão governo terão de resolver mais tarde.
SP – Acredita que esses movimentos e em particular os ainda discutíveis têm
suficiente autoridade de impor a solução que vai ser negociada.
MS – Esperamos que sim. Mas o processo de descolonização em Portugal, no
formato, não deverá decorrer de modo muito deferente do da Inglaterra e França.
SP – Na Argélia havia um movimento de libertação muito forte, como no Kénia e
sem dúvida também na Guiné-Bissau e Moçambique. Mas e em Angola?
MS – Sim, na verdade em Angola a situação é difícil devido às divisões dentro dos
movimentos. E nós não podemos alterar aí quase nada. Estamos prontos a falar
com cada uma das facções e, dentro das nossas possibilidades, procurar que se
unam. Mas não temos muitas ilusões, as nossas possibilidades de intervir aqui
são muito limitadas.
SP – Se o processo de descolonização português correr como o inglês ou o
francês, na sua opinião qual será a tendência a seguir - como no Kénia que seguiu
a via capitalista, ou como a Zâmbia que tenta uma espécie de socialismo africano?
MS – Eu julgo que é sempre perigosa a transposição de modelos estranhos. Mas,
de momento, parece-me que a evolução em Moçambique será semelhante à da
Zâmbia. Noutras regiões poderá haver outras soluções. Quando falei da
semelhança do nosso processo de descolonização com o inglês ou o francês,
pensei mais nas linhas gerais – que nós, como potência colonial, como os ingleses
e os franceses, devíamos negociar com os movimentos fortes a operar nas
colónias.
SP – E o que virá depois das negociações?
MS – Parece-nos importante que as populações sejam consultadas e que, depois
do domínio português, não lhes seja imposto outro domínio que poderá não ter a
maioria. Gostaríamos que a liberdade da população fosse garantida e assegurada.
Mas temos nós, como antiga potência colonial, autoridade bastante para discutir
isso? A nós parece-nos isso muito problemático. Por outro lado, o PAIGC e a
Frelimo são movimentos de libertação que em anos de luta renhida pela
independência ganharam indiscutível autoridade. Eles têm chefes muito
qualificados e conscientes das responsabilidades. Com quem mais, a não ser com
eles, deveremos negociar?
SP – Sente-se o novo governo português também responsável por aqueles
milhares de africanos que, por motivos diversos, colaboraram com o anterior
regime?
MS – Certamente que nos sentimos responsáveis por essa parte da população e
sobre o seu destino já se falou por diversas vezes nas conversações. No caso
concreto da Guiné, onde o processo está mais avançado, tencionamos, por
exemplo, repatriar para Portugal os ex-combatentes africanos que o queiram por
não se conseguirem integrar na nova República independente.
SP – Quantas pessoas são essas?
MS – Sabemos de cerca de 30 antigos comandos que aos olhos do PAIGC
representam um certo perigo. Para estas pessoas temos de encontrar uma solução
qualquer – talvez integrá-los nas forças armadas portuguesas ou coisa
semelhante.
SP – Acredita que do lado dos movimentos de libertação exista a boa vontade de
não exercer represálias contra os colaboradores africanos do antigo regime?
MS – Sim, isso foi-me espontaneamente assegurado, mesmo antes de nós termos
levantado o problema. Também nos deram certas garantias, os movimentos de
libertação não são racistas. Eles estão conscientes dos imensos problemas que
terão de enfrentar e não querem comprometer já a sua vida política com
crueldades e actos de vingança.
SP – No entanto, a “Voz da Frelimo” emissora do movimento para Moçambique
tem, nas passadas semanas, por diversas vezes apelado aos soldados pretos para
desertarem das tropas portuguesas, sob pena de ajuste de contas após a
independência.
MS – Uma guerra, infelizmente não é um jogo de cavalheiros nem um concurso
hípico com regras éticas fixas. Tais excessos verbais e ameaças são lamentáveis,
mas também muito naturais. Na verdade, não sei se essas ameaças foram feitas,
mas considero-as possíveis. Mas até agora tivemos na Guiné e em Moçambique –
em Angola ainda não – uma impressionante onda de confraternização e tudo tem
corrido muito melhor do que seria de esperar depois de 13 anos de guerra.
SP – Muitos brancos nas colónias portuguesas sentem-se traídos por Lisboa. Com
razão?
MS – Se acreditou nos slogans do antigo regime – que Angola é nossa e sê-lo-á
para sempre, e que não são colónias mas simplesmente províncias ultramarinas –
então terá razão em sentir-se traído. Mas, na realidade, a traição é do regime de
Salazar e Caetano que quiseram fazer esta gente acreditar que seria possível
oferecer resistência ao mundo inteiro e à justiça.
SP – Qual será o futuro destes brancos desiludidos, se, apesar de tudo, quiserem
permanecer em África?
MS – Se forem leais para com os novos Estados independentes na cooperação e
respeitarem as suas leis, não têm nada a temer. Na Guiné, por exemplo, o próprio
movimento de libertação exortou-nos a deixar os nossos técnicos, médicos,
engenheiros e agrónomos, porque precisavam deles. É cómico: a extrema
esquerda portuguesa exigia a nossa saída imediata, total e sem condições, mas os
próprios movimentos de libertação não exigiram nada disso.
SP – O que será dos brancos que não querem ficar em África? Em Moçambique já
se iniciou entre os brancos um grande movimento de fuga.
MS – É verdade. Mas estou certo que dois anos após a independência e quando as
instituições do País funcionarem razoavelmente, haverá mais portugueses, em
Moçambique, que hoje. Isto é, aliás, um fenómeno geral. O Presidente Kaunda da
Zâmbia disse-me, quando estive em Lusaka: ” Saiba que temos aqui na Zâmbia o
dobro dos ingleses que tínhamos antes da independência”.
SP – E o Sr. acredita que isso também acontecerá em Moçambique?
MS – Sim. Primeiro virão muitos para Portugal, porque têm medo, mas depois
regressarão.
SP – E em Angola?
MS – Ali ainda não há muitos que abandonaram o País. Ali generaliza-se entre os
brancos uma atitude perigosa. Precisamos de convencer os brancos, no seu
próprio interesse, que fiquem, mas já não como patrões, como até agora.
SP – Apesar disso Portugal tem de contar com o regresso de muitos. Como irão
resolver o caso?
MS – Isto é para nós um problema económico muito sério, pois não é apenas o
regresso dos colonos brancos mas também os soldados – cerca de 150.000 a
200.000 homens que regressam duma assentada. Acrescem ainda os imigrantes
que querem regressar desde que Portugal é livre. O assunto está a ser estudado
pelo Ministério da Economia e Finanças. Temos de criar novos postos de
trabalho, mas isso significa igualmente a reestruturação da totalidade da
economia portuguesa, que vai precisar de se adaptar às sociedades industriais
modernas.
SP – Não existem portanto planos concretos para absorver os retornados?
MS – Há investigações adiantadas.
SP – Entre os brancos que não querem regressar a Portugal, tenta-se criar um
exército de mercenários para se opor aos movimentos de libertação. Em Angola,
nos últimos tempos, radicais brancos de direita provocaram confrontos raciais
sangrentos. Pode Lisboa impedir que tais brancos, especialmente em Angola,
tomem o poder?
MS – Eu penso que sim.
SP – Como?
MS – O exército em Moçambique e em Angola é completamente leal para com os
que fizeram a Revolução de 25 de Abril. E o exército não permitirá que
mercenários brancos ou grupos semelhantes se levantem contra o exército.
Tentativas haverá. Em Moçambique já as houve.
SP – E em Angola onde vivem mais do dobro dos brancos e um terço menos de
pretos que em Moçambique?
MS – Em Angola haverá certamente uma série de situações mais ou menos
desesperadas e tensões perigosas entre as raças. Apesar disso, julgo que por ora o
exército pode e fará manter a ordem – a ordem democrática.
SP – Portanto, se necessário, o exército português fará fogo sobre portugueses
brancos?
MS – Ele não hesitará e não pode hesitar. O exército já mostrou que tem mão
forte e quer manter a ordem a todo o custo
SP – Apesar do exército, não se pode excluir a hipótese de os brancos se
declararem independentes, como na Rodésia. Pelo menos Angola podia tentar
mesmo economicamente uma tal solução.
MS – De princípio, nos primeiros momentos da Revolução tive muito receio que
tal pudesse acontecer. Mas quanto mais o tempo passa, mais difícil se tornará
uma tal tentativa.
SP – Suponhamos, no entanto, que tal venha a acontecer – reagiria Lisboa como
Londres, na altura, tentando impor um bloqueio económico?
MS – Não creio que em Angola exista uma solução rodesiana, mas se tal
acontecesse combatê-la-íamos com todas as nossas forças, pois uma tal solução
seria para África e para o Mundo uma aventura inaceitável.
SP – Também se pensou isso no caso da Rodésia e, no entanto, não se pôde
evitar.
MS – Para nós tal solução é improvável a não ser que tivéssemos um golpe de
direita aqui em Portugal. Nós – este governo democrático – não permitirá que tal
solução rodesiana aconteça em Angola ou Moçambique. Eu repito! Nós combatêla-emos com todos os meios ao nosso dispor.
SP - Porquê?
MS – Porque isso poria em causa todo o nosso processo de descolonização, a
nossa credibilidade, e a nossa boa vontade. E porque com uma tal solução até o
regresso do fascismo poderia ser encaminhado em Portugal.
SP – Do ponto de vista económico a perda da Guiné e de Moçambique são um
alívio para Portugal. Angola, no entanto, com os seus diamantes, petróleo, café
trouxe para Portugal as tão necessárias divisas. Pode Portugal dar-se ao luxo de
perder essa fonte de divisas?
MS – Todas estas receitas não compensavam os custos de guerra. Nós
gastávamos cerca de 2 biliões de marcos por ano com a guerra. O que pouparmos
com o fim da guerra compensa plenamente a perda dessas divisas, que de
qualquer modo, acabavam na maior parte nos bolsos dos americanos, alemães e
ingleses.
SP – Lisboa irá ajudar no futuro as suas antigas colónias? Concretamente: -Se
Moçambique independente resolvesse impedir o trânsito de mercadorias da
Rodésia para Lourenço Marques ou Beira para exercer pressão política sobre o
regime branco de Salisbury, estaria Portugal disposto a compensar Moçambique
pela perda de divisas que tal operação acarretaria?
MS – Os nossos meios são escassos, temos de ter em atenção a nossa muito tensa
situação económica. Mas, dentro das nossas possibilidades, ajudaríamos, numa
tal situação.
SP – No seu livro “Portugal e o Futuro”, o general Spínola propunha uma espécie
de comunidade portuguesa como forma de cooperação futura entre Lisboa e
África. Os movimentos de libertação não deram qualquer importância à ideia.
Como serão as futuras relações entre Lisboa e África?
MS – O discurso pragmático proferido pelo general Spínola em 27 de Julho sobre
o futuro das colónias está muito distante da concepção do seu livro. Se, algum
dia, uma espécie de comunidade dos países lusófonos se verificar, só na condição
de todos os países serem realmente independentes. E seriam então os países
africanos a dizer até que ponto tal associação poderia ir.
SP – Sr. Ministro, muito obrigado pela entrevista.
in: “Der Spiegel” - Nº 34/1974.
Não é passado muito tempo que Hans Magnus Enzensberger editor, autor, poeta
e filósofo do “Der Spiegel”, em conversa sobre este deslumbrado apátrida disse o
seguinte:
"Trata-se de um homem com pouca cultura, desconhecimento total sobre
política e o ódio contra os portugueses foi visível, tivesse o custo que tivesse
pretendia a saída de todos os brancos das colónias portuguesas e tinha
deliberadamente decidido matá-los caso não saíssem, ficou-nos a ideia de um
homem ambicioso, pouco claro e disposto a tudo para atingir os seus objectivos, a
história de Portugal para ele era qualquer coisa sem importância".
Em 2009, Hans Magnus Enzensberger recebeu o especial reconhecimento e
confiança pela sua longa carreira e pelo seu excelente livro "The Griffin Poetry".
Cristina da Nóbrega
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