Vitor Sardinha (texto), Rui Camacho (fotos) Roberto Moniz (processamento de transcrições musicais) Hoje há Viola! «As canções da Ilha do Porto Santo são consideravelmente mais interessantes do que as da sua vizinha Ilha da madeira. Além de serem, melodicamente mais variadas e musicais, são instrumentalmente, muitíssimo mais ricas, oferecendo exemplos notáveis da intervenção dos instrumentos nos seus prelúdios, interlúdios e finais.» Maestro Francisco Lacerda, notas pessoais da recolha musical desenvolvida na Ilha do Porto Santo em 1933. O Baile da Meia Volta, é uma das mais antigas referências culturais do Porto Santo. A sua principal característica é ser um baile com mandador. Mas, seria um erro colossal compará-lo, apenas por essa evidência, com os demais bailes existentes tanto em Portugal continental como nos Açores. Único no seu todo, combinando uma parte instrumental e uma dança, que destoam pela originalidade, com tudo o que se conhece e pratica na vizinha Madeira, o Baile da Meia Volta, tem a própria magia do Porto Santo, a essência de um sentir e estar fruto de seculares heranças. São os portossantenses, mais antigos, que o recordam como um momento especial. «Hoje há Viola», seria a frase chave, para reunir os Tocadores, os Bailadores, os Cantadores e o Mandador. Este momento musical durava muito tempo. Por vezes mais de uma hora. Embora o nosso propósito neste artigo, não seja a dança, mas sim a música, podemos referir que era através da participação na coreografia colectiva, reinventada pelo Mandador, que a maioria dos presentes convivia numa qualquer festa da ilha, repetindo os gestos e os passos, comendo e bebendo, mesmo durante a execução das voltas e meias voltas. Um verdadeiro momento de socialização e inclusão pela dança: um ritual. Porém é na componente musical, que se alicerça toda esta manifestação tradicional. Cabe aos músicos, com destaque para a rabeca, o renovar do tema melódico. Ao longo da actuação, a rabeca interage com as vozes feminina e masculina, acompanhandoas, em uníssono ou contracanto, desenvolvendo por vezes fragmentos do tema principal, com outras ‘’notas de simpatia’’, naquilo que nos parece ser uma improvisação. A própria melodia, evolui num ‘’Modo’’ e não numa ‘’Escala’’, querendo dizer com isto que, ao contrário da maioria das canções tradicionais madeirenses, o Baile da Meia Volta não se encontra na Escala Maior, mas também não é menor... Adelaide Drumond Nas várias recolhas ao longo dos anos, e posterior estudo, é sugerido o Modo Frígio Trovadoresco, o célebre Modo de Mi, mediterrânico e ibérico. Mas nem todos os investigadores do passado quiseram afirmar, com total certeza tal facto, deixando essa Ano de 2003 23 Domingos à tarde. Algures no porto Santo, com mais incidência nos sítios da Serra de Fora, Camacha, Campo de Baixo e Ponta, estes bailes reuniam velhos e novos, ricos e pobres, rapazes e raparigas, portossantenses e visitantes. Um convívio, um passatempo, mas também um momento sério, onde a poesia improvisada, a música e as vozes feminina e masculina, entrelaçadas nas ordens do Mandador, teciam este quadro de cultura único, para quem participava ou assistia. A pretexto do Baile da Meia António “peixe verde” questão em aberto. Quisemos reunir também neste artigo, várias e diferentes partituras musicais, resultantes das recolhas feitas ao longo de anos, orientadas por personalidades como o maestro Francisco Lacerda (anos 30),Carlos M. Santos(anos 30), Eduardo C. N. Pereira 1957, Visconde do Porto da Cruz em 1959, Artur Andrade e António Aragão em 1972 (transcrição musical de Juvenal Aveiro, anos 80), Jorge Torres/ Xarabanda em 1984(com transcrição musical de Virgílio Caldeira). É possível verificar em cada partitura, a versão ou ‘’interpretação’’ dos diferentes rabequistas, e as variantes do próprio baile em si, explicando desse modo a evolução ao longo do tempo, da música tradicional, enquanto organismo vivo do património sonoro. Esta evolui, reorganiza-se, dá e recebe influências, acima de tudo não é um produto acabado, ao contrário da arte de autor. POR DENTRO DA MEIA VOLTA O Baile da Meia Volta estava presente nas festas particulares, casamentos, recepções oficiais, havendo também ‘’meias voltas’’organizados, como acontecimento recreativo e social, aos Sábados à noite ou 24 Ano de 2003 João Gregório Melim volta, juntava-se muita gente, e o local mais apropriado para a dança acontecer era a eira, que se afigurava perfeita à coreografia dos bailadores, a disposição em roda. Nas festa de casamento dançava-se dentro de casa, no pátio ou no terreiro. Era natural também nestas cerimónias, evoluir musicalmente a partir do Baile da Meia Volta, para outros bailes da tradição do Porto Santo, como por exemplo o «Baile do Ladrão», o «Baile Sério», a «Padeirinha», ou a «Ciranda». Para finalizar a festa tocava-se a «Retirada», equivalente ao despique (forma de bailhinho), comum na ilha da Madeira. Os últimos convidados, já de madrugada e com algum «grão na asa», lançavam quadras improvisadas sobre a noite ou situação do momento. Os informantes por nós contactados, têm idade superior a 65 anos. Segundo eles, o Baile da Meia Volta é apenas conhecido pelos mais velhos, não se dançando em Porto Santo pela população, de modo espontâneo, há pelo menos 20 anos. «Era de novo que se aprendia, vendo os passos e conhecendo a música», confessou-nos ‘’Zé de Henrique’’ antigo Mandador. Nesta manifestação tridimensional, onde o canto improvisado, a dança e a melodia/acompanhamento musical se fundem, havia lugar para um desempenho específico, que fosse natural a cada um dos participantes. Assim o jeito para executar uma das diferentes partes, levava cada participante a desenvolver pelo menos uma das vertentes. Havia também papéis únicos a representar, nomeadamente a voz de mulher, que deveria ser «cristalina» sabendo ao mesmo tempo soltar quadras de improviso; o Mandador reconhecido por todos como o melhor dos presentes, na altura do baile, e por fim o rabequista, que teria de ser «seguro» na melodia e no contracanto com as vozes. O Mandador era sempre homem, desconhecendo os nossos informantes se alguma vez existiu mulher que «desse as vozes». A rabeca iniciava a melodia, a viola de arame (geralmente tocada pelo Mandador) e o rajão, marcavam o ritmo sendo um precioso auxílio para os Bailadores acertarem os passos. Os acordes rasgados na viola de arame e a voz como orientadora do ritmo, por vezes com os vocábulos « Ei, Ei, Ei...»ou «Ah, Ah, Ah...», serviam ao Mandador para reforçar a pulsação, podendo ainda cantar algumas quadras ou executar a coreografia dos Bailadores, andando na roda. O Mandador tinha a perspicácia suficiente para acabar o baile no seu auge. O objectivo era não cansar os Bailadores, nem tornar monótona a dança, embora esta tenha como característica um tempo lento, o que lhe confere uma certa elegância nos passos. Quando toda a gente parecia estar a divertir-se, com muitos sorrisos e olhares entre rapazes e raparigas, «cortava-se o mal pela raiz». Ficava assim no ar o desejo de após o intervalo para comer, beber e conversar, voltar a dançar a Meia Volta. Segundo os informantes, a rabeca é dos três instrumentos utilizados, aquele que não pode faltar. Não se pode fazer o Baile da Meia Volta sem a rabeca. Alguns dos entrevistados referiram o facto de terem participado em bailes sem o rajão ou viola de arame. Embora mais pobre, lá se fazia o baile. Mas, seria impossível executá-lo sem a rabeca, «o instrumento que faz a música». A rabeca servia não só a componente melódica, como o seu timbre e tessitura conferiam-lhe presença, uniformizando o canto e o acompanhamento dos cordofones. Luís Rodrigues, Manuel Dias, Manuel Vasconcelos, Filipe Dias José de Vasconcelos Melim “Zé de Henrique” Na representação do Baile da Meia Volta, as amarguras do dia a dia, as divergências, a diferença de estrato social, não existiam. Todos assumiam o seu papel. Este era o momento sério. Só ao Mandador cabia a direcção do baile, desde o começo até ao fim. O conceito de “Harmonia’’ ou “Acorde’’, parece não estar presente no fundo sonoro produzido pelos cordofones. Ficamos com a sensação, quando ouvimos os tocadores do Porto Santo, que aquilo que consideramos harmonia, com regras de função objectivas, não se aplica ao Baile da Meia Volta. O facto da melodia ser construída num Modo (sendo esta também a nossa convicção), tem uma grande influência Ano de 2003 25 é o caso aqui tratado. O trágico uso de harmonia baseada na escala Maior e Menor; o canto em terceiras paralelas, transformando todas as melodias do Cancioneiro Português, por vezes deturpando; a proliferação de ranchos, com traje, bandeira e sede social, liquidaram verdadeiros espólios, de populações isoladas, como poderia ser este baile aqui em estudo. Se um pouco por todo o país, existiram múltiplos exemplos de grupos de folclore que adulteraram as práticas musicais, nomeadamente usando outros instrumentos, que não os originais ou os mais antigos do seu passado geográfico e histórico, outros houve, como é o caso do Grupo Folclórico do Porto Santo, que mantiveram viva uma realidade, assumindo Manuel Felício Dias José Inácio Rodrigues na estrutura e natureza do acompanhamento em acordes. Por desconhecerem tais factos, os tocadores do Porto Santo usam na viola de arame e no rajão, os acordes mais simples e conhecidos, aplicados noutros bailes da tradição da ilha, criados estes na Escala Maior, que como se sabe abrange uma grande parte das melodias e repertório da Música Tradicional Portuguesa. O acompanhamento é pois uma adaptação dos tocadores, havendo por isso momentos de simpatia, entre a linha melódica e o fundo sonoro, mas por vezes não! Segundo os Tocadores do Grupo Folclórico do Porto Santo, o rajão toca 4 acordes: LA, RE, SOL, RE7, voltando ao Princípio. A viola de arame faz basicamente 3 acordes... LA, RE, SOL, descendo melodicamente a partir do acorde de Sol (cordas soltas), na primeira corda, pelas notas FA#, MI, RE, fechando então no segundo traste, com o primeiro dedo, tapando todas as cordas e obtendo o acorde de La. A TRADIÇÃO E O FOLCLORE Os falsos contextos do folclore patrocinado pelo Estado Novo, associados a palavras como «típico», «regional» ou «folclórico», passaram como elefante em loja de loiças, por cima de formas genuínas, como 26 Ano de 2003 desde logo a sua preservação e divulgação. No Porto Santo, a prática do Baile da Meia Volta existe graças à actividade deste grupo. Uma menção especial para Luís Rodrigues, director e responsável pela colectividade, ele próprio herdeiro das ricas tradições musicais da ilha, vividas através dos pais e demais família, agora também como projecto com a dinâmica possível. Foi através do Grupo Folclórico do Porto Santo que se reuniram as consciências e as práticas desta forma de Canto e Dança, mantendo-se por enquanto a tradição. O Baile da Meia Volta, integra o repertório de espectáculo e animação, assumindo o grupo a sua versão deste baile na aproximação mais fiel da tradição vivida e herdada. Embora louvável e positivo, não acreditamos que só por esta via, se possa preservar a memória, uma vez que a apresentação/representação deste, e doutros bailes da ilha, por serem feitos no palco, distanciam-se como é óbvio, do sentir do povo, perdendo-se com o tempo. O importante seria dar visibilidade aos Tocadores, Mandadores, Cantadores e Bailadores populares, trazendo-os a espaços próprios, onde a sua presença e actuação pudesse ser vivida e experimentada, pela população do Porto Santo, e sobretudo pelos mais novos. O QUE SE ESCREVEU... SOBRE O BAILE DA MEIA VOLTA «É o baile de todas as festas domésticas, em casa de pobres e ricos, fazendo as honras de música regional, nos Paços do Concelho, em recepções oficiais.» Eduardo C.N. Pereira, Ilhas de Zargo, volume II, Manuel Camacho 4ª Edição, 1989, pag. 633. «Na sua estrutura musical, este baile é modal. As melodias e as harmonias são modais tal como muitas tradições do Norte de África.» Jorge Castro Ribeiro, Porto Santo e a sua Música Tradicional, Booklet do CD do Grupo folclórico do Porto Santo, edição Bis-Bis Gestão de Cultura,1997. Lisboa, n.º 65, jun. 1985, p. 58-65. FESTIVAL ANUAL DA MEIA VOLTA da preservação ao turismo cultural O Porto Santo, enquanto terra portuguesa, faz a fronteira natural no Atlântico, com o mundo árabe e com essa cultura que o influenciou de sobremaneira, ao longo de séculos, da arquitectura à gastronomia, passando pelos costumes e tradições. Se em relação ao padrão da Música Tradicional Portuguesa, o Baile da Meia Volta, representa um afastamento, por ser único, causando por vezes o embaraço aos musicólogos mais experientes, quanto à sua classificação, também é verdade que a sua originalidade, não passa pela comparação simplista com outras músicas e danças produzidas fora do espaço português. O que realmente interessa não é encontrar reminiscências desta forma, seja no norte de África, sul de Espanha ou Canárias, mas sim tomar em atenção a prática deste baile, no contexto da Ilha do Porto Santo, legitimando-o como uma manifestação portuguesa, que terá de ser preservada e divulgada. O nosso desafio passa por sugerir à Câmara Municipal do Porto Santo a realização de um festival anual que permitisse, devolver à ilha esta forma mais «A Canção e Dança da Meia Volta constitui um estranho problema, difícil ou impossível de resolver no que diz respeito à modalidade em que é executada. Algumas vagas afinidades com certas canções espanholas e das Canárias, não explicam, ainda assim, a sua singularidade como canção portuguesa.» Maestro Francisco Lacerda, Folclore da Madeira e Porto Santo, Edições Colibri 1993. «Ainda que o acompanhamento seja harmónico, podemos denotar a influência oriental, pelo seu carácter modal e pela dinâmica no desenvolvimento melódico.» «Dança de carácter musculado, de uma beleza deslumbrante, representa uma tradição verdadeiramente portossantense.» «O Baile Da Meia Volta e o Baile do Ladrão, tinham essencialmente funções festivas. Marcavam as grandes festas do calendário profano e religioso.» Anne Caufriez, Introdution à la Musique traditionnelle de L’île de Porto Santo, Colóquio Artes Maria Amélia Ano de 2003 27 antiga da sua expressão musical e cultural, transformando tal visibilidade pública em cartaz turístico, envolvendo a população e os visitantes. Pela sua natureza, este festival serviria várias causas e áreas temáticas: a História do Porto Santo; a Animação Sócio Cultural; a Educação/Ensino, da música e da dança; a Investigação de âmbito internacional (universidades europeias) nas vertentes canto improvisado, música tradicional e dança; os Media, nomeadamente os canais de televisão temáticos; o intercâmbio de culturas, etc. O festival poderia reunir expressões semelhantes, de outras regiões como sul de Espanha, Algarve, Minho, Açores, e outras zonas do globo como é o caso da América Latina, onde os bailes com Mandador têm uma forte presença. Regiões de turismo como Palma de Maiorca ou Malta, apoiam-se neste tipo de eventos para reencontrar tradições e costumes, partilhando-os com os turistas, mas também atendendo à identidade colectiva, envolvem dessa forma o pelouro da educação, do básico ao superior, do artístico ao tecnológico. Estamos certos que esta realização, seria tão importante e participada, como outras manifestações recentes na vida colectiva do Porto Santo, como por exemplo os Santos Populares, o Carnaval ou o Festival Colombo. O respeito pela tradição e memória, exige um balancear do desenvolvimento económico, que está no terreno e leva avanço, com a preservação da mais antiga música e dança desta ilha. Que a globalização não roube a alma do Porto Santo e Haja Viola! DISCOGRAFIA 1- GRUPO DE FOLCLORE DO PORTO SANTO (MADEIRA) “Danças e Cantares da Ilha Dourada” Editora: Bis-Bis, 1995 BB 9503-1CD 2 -PORTO SANTO - “MÚSICA TRADICIONAL DA MADEIRA” Editora: Bis-Bis, 1998, BB9812- 1 CD Recolhas de: António Aragão e Artur Andrade, 1972 Textos de: Jorge Castro Ribeiro Pág. 1,3. e 5 3 - GRUPO FOLCLÓRICO DA CASA DO POVO DA CAMACHA Título: Data: Edição: BIBLIOGRAFIA - que contém transcrições musicais do Baile da Meia Volta, Porto Santo 1 - Visconde do Porto da Cruz (Alfredo António de Castro Teles de Menezes de Freitas Branco) 1959, “As danças e as músicas madeirenses” Aveiro, edição de autor, separata N º 20, “Signo” Pág. 5,6 2 - Pereira, Eduardo C. N. 1957, “Ilhas de Zargo, Volume II, pág. 630 a 636 Edição da CMF 3 - Torres, Jorge Morais 1994, “Grupo de Folclore do Porto Santo Edição Xarabanda - Revista, Nº 6 Pág. 56 a 59, transcrição musical de Virgílio Caldeira 4 - Lacerda, Francisco 1932, “ As canções da Ilha do Porto Santo” In: Folclore da Madeira e Porto Santo Edição: Colibri de 1993 5 - Santos, Carlos Maria 1937, Tocares e Cantares da Ilha - Estudo do folclore da Madeira Funchal, edição de autor Pág. 117, 118 NOTA: Trabalho de campo realizado no Porto Santo nos dias 6 a 10 de Junho de 2003. Teodoro Gomes Sousa “o arrais português” 28 Ano de 2003 Ano de 2003 29 30 Ano de 2003 Ano de 2003 31 32 Ano de 2003 Ano de 2003 33 34 Ano de 2003 Ano de 2003 35 36 Ano de 2003