AS FRONTEIRAS DIFUSAS NA CATEGORIZAÇÃO GRAMATICAL. O CASO DAS "PREPOSIÇÕES ACIDENTAIS" NO PORTUGUÊS. Autor: Aline de Almeida Braz Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Helena de Moura Neves e-mail: [email protected] RESUMO Essa pesquisa examina o uso de algumas das chamadas “preposições acidentais” da Língua Portuguesa. A pesquisa é baseada em comparações entre diferentes dicionários do século XX e XXI, gramáticas da Língua Portuguesa e artigos de jornais, com vista a uma compreensão do processo de gramaticalização que evidencie as dificuldades no estabelecimento de fronteiras entre as categorias e o modo em que as gramáticas e os dicionários categorizam as preposições aqui analisadas. Palavras-chave: Nomenclatura Gramatical Brasileira; Preposições acidentais; Gramática Funcional. INTRODUÇÃO Esta pesquisa de Iniciação Científica se liga ao Grupo de pesquisa “Gramática de usos do português” do CNPq (Consolidado), coordenado pela orientadora. O que se tem proposto esse projeto é uma descrição de orientação funcionalista assentada na necessidade de investigações que contemplem a análise das diferentes funções da linguagem predominantemente implicadas, e que considerem os diferentes níveis em que atuam os diferentes itens da língua. A preocupação básica do trabalho é oferecer obras relativas à análise do comportamento dos itens da língua em textos brasileiros contemporâneos (NEVES, 2000). O que se tem evidenciado nesse trabalho é a dificuldade no estabelecimento de fronteiras entre as categorias, o que, entretanto, não é visto como óbice ao sucesso das análises, pelo contrário, reafirma todo o conjunto de princípios funcionalistas que dirigem o estudo. Desse modo, cria-se oportunidade para a busca de uma fundamentação que oriente critérios de categorização nos diversos campos, abrindo caminhos para reflexão sobre os usos da língua e a produção de sentido. Para tanto, fixaram-se os seguintes objetivos específicos: 1. Comparar o modo como alguns dicionários selecionados conduzem sua tarefa de categorização dentro do campo das denominadas “preposições acidentais” pela Nomenclatura Gramatical Brasileira oficial. 2. Em contraponto, examinar, no uso efetivo da língua portuguesa contemporânea do Brasil (artigos de jornais), casos de difusão de fronteiras entre palavras (“preposições acidentais”) que o dicionário registra com categorizações definidas. 3. Avaliar, nesses usos efetivos e em exemplos apresentados nos dicionários, como as preposições se comportam, confrontando seu uso e a categorização registrada. REFERENCIAL TEÓRICO As bases de análise são funcionalistas, sempre dirigidas para a consideração da língua em função. Numa visão geral, o Funcionalismo pode ser visto como uma teoria: a) que se liga, acima de tudo, aos fins a que servem as unidades lingüísticas; b) que se ocupa, exatamente, das funções dos meios lingüísticos de expressão; c) que entende a gramática como uma integração dos componentes sintático, semântico e pragmático (noções desenvolvidas e disponíveis em Neves, 2001 e em Neves, 2006). Acoplam-se a essas bases funcionalistas as propostas da semântica cognitivista (Jackendoff, 1983; Lakoff; Johnson, 2002; Langacker, 1991), que envolvem as noções de compartilhamento de propriedades e de prototipia na tarefa de definição funcional e de categorização das entidades da língua (noções desenvolvidas e disponíveis em Neves 2010 e em Neves no prelo). As preposições selecionadas para exame são analisadas nessa perspectiva funcionalista, especialmente tomando como objeto de análise a proposta segundo a qual esses itens resultam de um processo de gramaticalização que, governado por processos cognitivos, se desenvolve no uso. Adota-se, pois, uma análise funcionalista da língua, voltada para o estudo dos fenômenos da linguagem na situação comunicativa, ou seja, no contexto interacional. Para Neves (2000, p. 3) a “língua não pode ser descrita como um sistema autônomo, já que a gramática não pode ser entendida sem parâmetros como cognição e comunicação, processamento mental, interação social e cultura, mudança e variação, aquisição e evolução”. Assim, a gramática funcional considera o discurso comunicativo num determinado contexto. É nessa perspectiva que se pode observar o processo de gramaticalização, no qual termos de determinadas categorias gramaticais passam a pertencer a outras, como é o caso das preposições acidentais. As palavras abrigadas nessa classe têm origem em outras classes gramaticais, e são os contextos discursivos em que esses termos se empregam que levam a uma reformulação, no que se refere à classe gramatical de origem, o que configura o processo da gramaticalização. No processo de gramaticalização, que pode envolver qualquer tipo de função gramatical, itens lexicais passam a assumir funções de organização interna das estratégias comunicativas, e itens já gramaticais passam a mais gramaticais, ou seja, mais esquemáticos. Assim, em determinados contextos, certos elementos assumem diferentes funções gramaticais, e por aí passam a uma outra categoria. Hopper (apud Neves, 1997, p. 132) descreveu os princípios que regem a gramaticalização, que são a estratificação, a divergência, a especialização, a persistência e a descategorização, e este último é o que norteia essa pesquisa. Pelo principio da descategorização, ligado ao processo de gramaticalização, ocorre que as formas perdem ou neutralizam marcas morfológicas e assumem características próprias de categorias secundarias como adjetivos, preposições e etc. MÉTODO A proposta institui como objeto de exame dicionários da língua portuguesa, para verificar a categorização que eles apresentam para essas palavras da língua, nas diversas entradas abrigadas. A partir do estudo e discussão das referidas obras, desenvolveram as seguintes etapas de pesquisa e análise: a) Breve estudo sobre a organização, conteúdo e produção da Nomenclatura Gramatical Brasileira. b) Estudo e confronto da categorização das preposições acidentais entre a Nomenclatura Gramatical Brasileira e algumas gramáticas brasileiras anteriores e posteriores a publicação da NGB. c) Estudo da produção e influências socioculturais nos dicionários de língua portuguesa do Brasil. d) Estudo da categorização das preposições acidentais nos seguintes dicionários gerais da língua portuguesa: Dicionário contemporâneo Aulete, edições de 1925 e 1970, dicionário Aurélio, edições de 1968, 1972 e 2004, dicionário Michaelis, edição de 1998, Dicionário de usos do português, edição de 2002 e dicionário Houaiss, edição de 2009. Os dicionários citados foram selecionados devido à sua grande disponibilização em bibliotecas públicas e escolas na cidade de São Paulo. Além disso, foram classificados em dois conjuntos (cinco dicionários correspondentes ao século XX e três dicionários correspondentes ao século XXI). RESULTADOS E DISCUSSÃO O dicionário, assim como a gramática, é um órgão regulador da linguagem. Os dicionários que foram aqui analisados, assim como qualquer outro dicionário, registram, antes de mais nada, a face semântica das palavras. No que se refere às preposições, observa-se que as informações assumidas pelos dicionários não são devidamente especificadas, e também há poucas informações de seu uso. Assim, conforme Faulstich (1998): [...] A adoção da NGB, a publicação de obras que adotaram NGB, principalmente gramáticas, e a edição do Aurélio fixam a utilização de uma norma própria do português do Brasil. É o “standard” do português sulamericano que passará a prevalecer em todos os meios de comunicação – trata-se, portanto de passos definitivos para a normalização da língua portuguesa no Brasil. [...] (FAULSTICH, 1998, p. 255). Porém, existem dicionários, como o Houaiss, que trazem, com exemplos, essas palavras que consideramos “preposições acidentais” abrigadas nas diversas categorias em que elas de fato se inserem, pela verificação do que oferecem as gramáticas e pela verificação do uso. É importante que haja exemplos que possam sustentar as categorizações das preposições acidentais, já que são palavras mais gramaticalizadas e por isso assumem seu valor semântico com bastante dependência do contexto em que são empregadas. SÉCULO XX Diccionario Afora* SÉCULO XXI Dicionário Contemporaneo Contemporâneo Aurélio Aurélio Michaelis/ DUP/ Aurélio / Houaiss Aulete / 1925 Adv. e Prep. Aulete/1970 Adv. e Prep. / 1968 / 1972 1998 2002 2004 Adv. e Adv. e Adv. e Adv. Prep. Prep. Prep. Prep. Conj., Adj., Adj., e Adv. e Conj. Conj. Prep. Adv. Adj. Conforme Adj. e Conj. Adj. e Conj. Conj. Adv. e Adj. Conj. e Adj., Adv. Adj. e Prep. Prep. / 2009 e e Adj., Adj. Consoante Adj. e Loc. Conj Adj. e Prep. Prep. e Adj. Prep. e Adj., Prep. e Conj. Adj. Prep. Prep. e Prep. Conj. Adj. Durante Prep. e Adj. Prep Prep. Prep. Prep. Prep. Prep. ______________________________ *No dicionário Aulete de 1925, a palavra afora é grafada como afóra. A seguir apresenta-se um quadro, com o objetivo de ilustrar as formas como as preposições acidentais aqui analisadas são categorizadas pelos dicionários estudados. Desse modo, apresentam-se algumas observações gerais do quadro apresentado: e Prep. e a) Apenas um elemento é categorizado como preposição em todos os dicionários: consoante. b) Apenas nos dicionários Aurélio de 1968 e 1972 a palavra afora é caracterizada somente como advérbio, embora existam palavras como exceto e salvo (palavras essas que em nenhum momento deixam de ser apontadas como preposição) funcionando como sinônimos de afora. c) Em todos os dicionários analisados, a palavra afora é caracterizada como advérbio. d) A palavra durante é vista como adjetivo no dicionário Aulete de 1925 e no Houaiss, que a considera sinônimo de perdurante. A seguir se explicita o modo de tratamento desses elementos recebem nos dicionários, assim como se faz um cotejo dessa apresentação com o que se encontrou na consulta aos textos jornalísticos examinados. Afora A palavra afora, tanto no Aurélio de 1968 como no de 1972, é categorizada somente como advérbio invocando-se como ideia principal o viés de exterioridade mesmo sendo mencionada a palavra “exclusão” como um dos sinônimos de afora. Verifica-se que na Moderna Gramática Portuguesa (Bechara, 1976) já considera a palavra afora como uma preposição acidental, diferentemente de Cunha & Cintra (1985) que não registra a existência da categoria preposição acidental. O dicionário Aurélio de 2004 caracteriza o termo como advérbio e preposição. O dicionário Aulete, desde a sua versão mais antiga, aponta a palavra afora como advérbio e como preposição, registrando-a da seguinte forma: “Afora: Advérbio que serve de preposição: alem de, á excepção de.(sem exemplos).” É importante ressaltar que, quando o dicionário Aulete classifica a entrada afora como um advérbio que exerce função prepositiva, demonstra que já em 1925 há alguma preocupação em retratar o comportamento da língua com base no uso. Essa ideia também ressalta no texto introdutório titulado de “Plano”, no qual o autor Caldas Aulete faz uma reflexão a cerca do “estado em que se acham os estudos da sciencia lexicologica”. Nela o autor reflete acerca de erros cometidos por outros dicionários, no que se refere à nomenclatura, visto que os “diccionarios portuguezes geralmente adotados no uso e no ensino são machinalmente copiados uns dos outros”. Ainda nessa reflexão o autor afirma que o Aulete é “um diccionario exclusivamente classico”, que se limita aos “vocabulos abonados pelos mestres da lingua”, aponta também “os neologismos sanccionados pelo uso e pela necessidade, e os termos technicos, que, com o desenvolvimento da instrucção publica, tem passado para a litteratura e para a linguagem da conversação”. (p. 1) Mesmo nos anos de 1968 e 1972, afora era usada como preposição, ao contrario do que registram os dicionários Aurélio. Verifica-se que a palavra afora é frequentemente utilizada nos artigos de jornais tanto como advérbio quanto como preposição: “A reunião teve, afora a propria materia tratada, aspectos de fato importantes” (12/12/1968- Primeiro caderno-p.2) “Afora isso, possui ainda parque infantil e area arborizada.” (22/09/1972- Caderno Turismo- P.7) Conforme Desde o Aulete de 1925 ao Aurélio de 1972 o verbete conforme é caracterizado como adjetivo e conjunção, enquanto no Michaelis ele é apontado como adjetivo, advérbio e preposição. Isso significa que o processo de gramaticalização fica evidenciado. Fazendo um comparativo entre as três edições analisadas do dicionário Aurélio, verifica-se que em 2004 há o registro de advérbio como uma das categorias de conforme, que era apontada somente como adjetivo e conjunção nas edições de 1968 e 1972. Seja nas versões antigas seja na recente, a entrada conforme vem apontada como conjunção, sem nenhuma subclassificação, apenas com indicação de acepções e exemplos: - Conj. 6. segundo as circunstâncias; 7. como, segundo; 8. à medida que. à proporção que; 9. Bras. logo que: Conforme chegou, foi tratando do assunto. O DUP e o Houaiss são os únicos que apontam conforme como preposição e como conjunção. Verifica-se que ambos apontam esse verbete também como adjetivo e não a mencionam como advérbio: DUP: Convidam os católicos a colaborar com eles, no campo chamado humanitário e caritativo, procurando, por vezes, coisas em tudo até conformes ao espírito cristão e à doutrina da Igreja. Houaiss: A situação está conforme com a crise de 1929; Opiniões conforme; A certidão está conforme; Uma reação conforme ao estímulo recebido; Um presente conforme ao fundador; Estar conforme com uma proposta; Estar já conforme o peso dos anos; A palavra conforme, embora seja considerada como preposição, somente no Michaelis, em 1998, ela já havia sido caracterizada como preposição em 1925, quando era classificada no dicionário Aulete como adjetivo e conjunção. Verifique-se um trecho de artigo da mesma data da publicação do dicionário Aulete: “Não foi difícil chegar a este resultado, conforme as analyses de cada um dos livros estudados.” (11/03/1925-Caderno Único-p.5) Consoante No DUP, esse verbete é apresentado somente como preposição. Em todos os outros dicionários há variações entre conjunção e preposição, mas todos sempre a apontam como adjetivo. O Aulete de 1925 registra esse verbete como adjetivo e locução conjuntiva: “Locução conjuntiva: conforme, segundo: Á míngua de ovelhas, convem um burro vadio ou dois, consoante a necessidade (Camillo).” Apesar de ter sido referida como locução conjuntiva no Aulete de 1925, só é novamente categorizada como conjunção nos dicionários em que a entrada é apontada como conjunção e não como locução: Houaiss: Aja consoante manda a sua verdade. Nos registros da palavra consoante, verifica-se que, em 99% dos casos, ela é mencionada como preposição: “A federação, consoante Montezuma, pressupunha a segregação prévia de unidades livres com vistas à autodefesa.” (28/09/2002- Caderno Mais- p. 93) “O competidor era o iPod. Não queríamos reproduzir isso de forma alguma. Eliminamos todas essas letras. Zune soa como tune [tom], é rápido, pequeno, um nome muito musical. Tem apenas quatro letras, uma boa construção --consoante, vogal, consoante, vogal. Fizemos pesquisas ao redor do mundo e o nome foi bem recebido pelos consumidores. “ (29/12/2008- Caderno Informática- p. 70) Durante Em todos os dicionários o verbete durante é categorizado como preposição, mas no Aulete de 1925, o mais antigo da pesquisa, e no Houaiss de 2009, o mais recente da pesquisa, a palavra também vem caracterizada como adjetivo. Embora os dicionários Aulete de 1925 e Houaiss de 2009 a considerem também como adjetivo, não foram encontrados registros da utilização dessa palavra como adjetivo (assim como a categoriza o dicionário Houaiss: “que dura, perdurante”). Observe-se o trecho do artigo de jornal: “Durante todo o dia de hoje as pesquizas se succederam initerruptamente, de sorte que o Dr. Achilles não teve tempo de apparecer na delegacia.” (19/02/1925- Caderno Únicop.3) CONCLUSÃO Ao longo desta pesquisa, buscou-se apresentar os aspectos mais relevantes das informações que a NGB apresentam sobre as preposições acidentais, e como os dicionários assumem essa informação. Analisou-se, na pesquisa, o funcionamento dos itens estudados em ocorrências reais, em trechos de artigos de um jornal de grande circulação em São Paulo, já que a linguagem jornalística é bastante viva e diversificada. No levantamento e análise, verificou-se que há dificuldades no estabelecimento das fronteiras categoriais e do registro de uso de preposições acidentais, pois são palavras que, por serem gramaticalizadas, assumem mais de uma categoria gramatical, estatuto verificável nos contextos em que elas estão inseridas. O processo de gramaticalização foi o parâmetro utilizado para explicar o fato de que as preposições não formam uma classe homogênea, e funcionam em uma zona em que se manifesta claramente a variação lingüística. Verificou-se ainda que, em diversos casos, os dicionários analisados ainda não apresentam com precisão e exemplos suficientes o comportamento da língua com base no uso. REFERÊNCIAS NEVES, M.H.M. Gramática de usos do português. São Paulo: UNESP, 2000. _________. A gramática funcional. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. LAKOFF, G. & JOHNSON, M. Metáforas da vida cotidiana. Coordenação de tradução: Mara Sophia Zanotto. São Paulo: Mercado das Letras, 2002. FAULSTICH, E. Planificação lingüística e problemas de normalização. Revista Alfa, São Paulo, 42, p. 247 – 268, 1998. BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa: cursos de 1º e 2º graus. 2ª ed. São Paulo: Nacional. 1976. CUNHA, C. & CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. DIVERSOS AUTORES. Cadernos: Único, Dinheiro, Ilustrada, Uma seção, Primeiro caderno, Turismo, Brasil, Mais e Informática. Jornal Folha de S.Paulo,São Paulo, de 1925 a 2008. BORBA, F.S. S. Dicionário de usos do português do Brasil. São Paulo: Ática, 2009. CALDAS AULETE, J. F. Diccionario Contemporâneo da Lingua Portugueza. 2. ed. Lisboa: Typographia da parceria Antonio Maria Pereira, 1925.