ID: 55781337
19-09-2014 | Ípsilon
A voz que nos
canta o vento
Bouchra Ouizguen chega de Marrocos
para apresentar Ha! no Festival Materiais
Diversos. Viagem à intimidade de
quatro mulheres cuja história se escreve
todos os dias.
HERVÉ VÉRONÈSE
À
s vezes um movimento
começa muito antes de
chegar ao corpo que o
dança. Para a coreógrafa
marroquina Bouchra
Ouizguen, esse
movimento é uma história que
começa de madrugada, quando as
suas bailarinas se levantam e saem
das suas aldeias do interior de
Marrocos para virem até ao
estúdio, em Marraquexe. As
quatro horas que passam juntas
nunca são suficientes. Mas são
quanto basta para que desse
encontro que há oito anos
repetidamente acontece possa
nascer um movimento que é mais
do que uma passagem dentro de
uma coreografia.
Em palco, na peça que amanhã
chega ao Teatro Virgínia, em
Torres Novas, estão quatro
mulheres — entre elas a
coreógrafa — cuja vida era dançar
nos cabarés das aldeias
marroquinas ou, às vezes, cantar
em funerais a pedido das famílias.
Era uma vida modesta e continua
a sê-lo, mesmo que seja já pouco o
tempo que têm para ir cantar para
os outros. Os seus corpos
mostram-se agora, em todo o seu
esplendor e em toda a sua
integridade, nos palcos mais
diversos. Em Ha!, que marca o
regresso da coreógrafa
marroquina a Portugal depois de
Madame Plaza, apresentado há
dois anos em Lisboa no Alkantara
Festival, voltamos a encontrar o
prazer da exposição de corpos
Tiragem: 37998
Pág: 21
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Semanal
Área: 20,66 x 30,95 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 1
que desafiam a realidade, em
movimentos que parecem surgir
do interior das intérpretes. No
Festival Materiais Diversos, será
tempo de nos perdermos numa
coreografia construída a partir de
um desejo intenso de comunhão.
Para Bouchra Ouizguen, a dança
é uma escolha. É um modo de
contar uma história, de inventar
um percurso, de partilhar uma
vida com as vidas de Kabboura Aït
Ben Hmad, Naïma Sahmoud e
Fatéma el-Hanna, cantoras da
tradição aïta, que aqui se
entregam aos poemas escritos
pelo poeta sufi Jalal ad-Din
Rumi, normalmente cantados em
rituais exclusivamente
masculinos.
Bouchra Ouizguen fala-nos a
partir de Marraquexe, num fim de
tarde que ainda é soalheiro, sobre
esse encontro que é, afinal, o
princípio e o fim das razões que a
levam a querer ser coreógrafa:
“Foi isso que descobri quando as
encontrei. Encontramo-nos.
Falamos a mesma língua.
Escolhemo-nos mutuamente. Foi
também assim que aprendi a
dançar. Na maneira como penso,
escrevo e coreógrafo está o olhar
delas. Aquilo que se vive é a
construção de um gesto que nos é
comum.” Continua: “Tudo o que
dançamos existe ainda. Está nas
nossas mãos, nos nossos
pescoços, nos nossos cabelos, nos
“Não há um antes
e um depois
do espectáculo,
porque já não
havia um antes
e um depois do
ensaio. Faz tudo
parte do mesmo
movimento de
se estar vivo,
de se estar com
os outros, de
construir, a cada
dia, uma vida em
comunidade”
Bouchra Ouizguen
nossos gestos, nas nossas frases,
naquilo que dizemos e no modo
como vivemos.”
A invenção de um ritual
Do dia-a-dia marroquino para a
abstracção da caixa negra dos
palcos, Bouchra desenha, através
das suas coreografias, um espaço
e um tempo que recusa a
necessidade de se justificar
permanentemente. “Não sou uma
coreógrafa das imagens, sou
alguém que procura aquilo que
desaparece no interior dessas
imagens sempre exteriores e
impostas”, diz, referindo-se à
insistência em inscrever o seu
trabalho numa etnografia exótica.
“Ao contrário do que acontece em
Portugal ou Espanha, onde há
uma memória e uma história
comum que pertence a todos, em
França, por exemplo, sei que
tenho que defender
constantemente o meu trabalho
daquilo que ele não é: a
representação de uma história
com uma componente política.”
O seu trabalho, argumenta, é
mais do que isso. Propõe “uma
invenção de um ritual, como se
quisesse encontrar no gesto actual
o que nele há de mais ancestral”.
É aqui que Bouchra se distingue
de Nacera Beleza, coreógrafa
argelina que já vimos várias vezes
em Lisboa: nesse modo de olhar
para o movimento como uma
passagem para um estado de
transe que se aproxima de uma
relação mística com o corpo. No
caso da coreógrafa marroquina, os
corpos são o princípio e o fim de
“uma loucura que é mística, que é
mal-sã, que é ambiciosa, mas que
é extremamente atenta ao que a
envolve”.
Não é uma dança da abstracção
ou do desaparecimento, é uma
dança que procura portas de
entrada para as entranhas do
inconsciente. “Não quero uma
dança que se prenda ao corpo.
Quero partir da liberdade delas e
dar-lhes uma outra amplitude”,
conta, descrevendo um processo
que se revelou, ao longo dos anos,
um modo de “habitar um desejo
pelo movimento”. “Há uma
vontade de construir um
movimento, e tanta excitação,
tanta alegria ao fazê-lo que a cada
espectáculo, a cada apresentação,
ganha em intensidade e matéria.”
O que vemos em palco, como se
fôssemos convidados a entrar na
intimidade de um ritual, é essa
forma de olhar para o corpo como
lugar de encontro, sem
necessidade de acrescentar
palavras à intensidade dos
silêncios. Por isso Ha! Nada tem de
exótico, de ritualizado. Conclui
Bouchra: “Não há um antes e um
depois do movimento, como não
há um antes e um depois do
espectáculo, porque já não havia
um antes e um depois do ensaio.
Faz tudo parte do mesmo
movimento de se estar vivo, de se
estar com os outros, de construir,
a cada dia, uma vida em
comunidade.” T.B.C.
Download

A voz que nos canta o vento