Robert Malthus1 1766‑1835 O Primeiro Economista de Cambridge Bacchus — quando é de um inglês chamado Bacchus que se trata — deriva de Bakehouse. Analogamente, era Malthouse a forma ori‑ ginal do curioso e raro nome de família Malthus. A pronúncia dos nomes próprios ingleses mostrou, ao longo dos séculos, mais cons‑ tância do que a sua ortografia, flutuando esta entre influências fo‑ néticas e etimológicas, e podendo ser em geral inferida com certa fiabilidade de um exame das variantes da sua forma escrita. Nos termos de um exame semelhante (Malthus, Mawtus, Malthous, Mal‑ 1 Este esquisso biográfico não pretende coligir o conjunto dos materiais disponíveis para essa biografia definitiva de Malthus, que durante tanto tempo em vão esperamos da pena do Dr. Bonar. Utilizei livremente as autoridades comuns: a Vida, do bispo Otter, que precede o texto da segunda edição (póstuma), em 1836, da Economia Política (Po‑ litical Economy) de Malthus; a recensão de W. Empson da edição de Otter, publicada na Edinburgh Review, em Janeiro de 1837, e a obra do Dr. Bonar, Malthus and his Work (1.ª ed., 1885, precedida pelo esboço “Parson Malthus”, e seguida por uma 2.ª ed., com o capítulo biográfico aumentado de 1924 — sendo a esta edição que as minhas citações subsequentes remetem); e acrescentei outros elementos procedentes de várias leituras, nem sistemáticas nem exaustivas. Também não tentei apresentar um sumário ou juízo completo das contribuições de Malthus para a economia política, o que requereria uma familiaridade maior do que aquela que possuo com os seus contemporâneos. Propus‑me seleccionar as informações que pareciam fornecer mais elementos para um retrato e, em particular, para alargar um pouco a percepção da atmosfera intelectual que presidiu à formação de Malthus, tanto em sua casa como em Cambridge. Malthus.indd 13 8/6/14 12:16 PM 14 John Maynard Keynes thouse, Mauthus, Maltus, Maultous), não parece muito duvidoso que é Maultus, com a primeira vogal como no malt (“malte”) da cerveja, e o h quase omitido, que devemos pronunciar. Não precisamos de traçar a genealogia de Robert Malthus2 recu‑ ando aos seus antepassados anteriores ao reverendo Robert Mal‑ thus, vigário de Northolt sob Cromwell, e que a Restauração depôs. Callamy considera‑o um “teólogo historiador, de poderosa inteli‑ gência e forte nas Escrituras, de grande eloquência e fervor, se bem que de elocução defeituosa”. Mas os seus fregueses tinham‑no por “um ministro inútil e de nulo proveito”, talvez por ser muito estrito na exacção de dízimos, e, numa petição reclamando o seu afasta‑ mento, queixavam‑se de ele ter “proferido expressões injuriosas contra as nossas tropas que se encontravam então na Escócia”, e também de que “o Mr. Malthus é alguém não só dotado de uma voz muito baixa, mas ainda com muito grandes dificuldades de pronún‑ cia”; pelo que parece provável que partilhasse com o seu tetraneto não só o ser designado como reverendo Robert Malthus, mas igual‑ mente uma deformação do palato. O seu filho Daniel foi nomeado boticário do rei Guilherme graças a uma intercessão favorável do célebre Dr. Sydenham, e mais tarde, igualmente, da rainha Ana3, e tornou‑se um homem suficientemente abastado para poder deixar à sua viúva a propriedade de uma carruagem e de cavalos. Sydenham, filho de Daniel, funcionário da Chancelaria e director da South Sea Company, aumentou o património familiar, e seria suficientemente rico para dar à sua filha um dote de 5000 libras, e para ser dono de várias propriedades rústicas nos condados vizinhos de Londres e em Cambridgeshire4. Alcançada a mediocridade dourada de uma próspera família in‑ glesa da classe média, Daniel, filho de Sydenham e pai do nosso 2 Para uma compilação completa do registo de todas as pessoas com o mesmo nome de família, vide J. O. Payne, Collections for a History of the Family of Malthus, edição privada de 110 exemplares impressos, in‑quarto, 1890. Mr. Sraffa possui o exemplar do próprio Payne do seu livro, contendo notas e ilustrações adicionais por ele inseridas. 3 A mãe de Robert Malthus era neta de Thomas Graham, boticário de Jorge I e de Jorge II. 4 Sydenham Malthus comprou pelo preço de 2000 libras uma propriedade em Little Shelford, nas proximidades de Cambridge. Os registos mostram que o seu filho seria dono de uma série de quintas nas redondezas mais imediatas de Cambridge — em Haux‑ ton, Newton e Harston. Malthus.indd 14 8/6/14 12:16 PM Robert Malthus — O Primeiro Economista de Cambridge 15 herói, descobriu‑se nessa posição que é conhecida em Inglaterra como “independência”, e decidiu tirar dela vantagem. Foi educado no Queen's College, em Oxford, mas sem obter qualquer diploma, “viajou muito pela Europa e por todas as partes desta ilha”, estabe‑ leceu residência num arrabalde agradável, levou a vida de um pe‑ queno membro da nobreza rural inglesa, cultivou gostos e amizades intelectuais, escreveu umas quantas obras anónimas5, e consentiu que as suas reticências dominassem a sua ambição. Ficou escrito que “possuía as maneiras mais agradáveis, a par do coração mais bondoso, como puderam comprovar todos os pobres do lugar onde viveu”6. Por ocasião da sua morte, o Gentleman’s Magazine (Feve‑ reiro de 1800, p. 177) podia dar notícia de que o defunto era “de um carácter excêntrico no sentido mais estrito do termo”. Em 1759, Daniel Malthus comprara uma “pequena casa elegan‑ te” perto de Dorking, “conhecida pelo nome de Chert‑gate Farm, e aproveitando as suas belezas, terreno acidentado, cursos de água e arvoredos para os mostrar na sua simplicidade nua, transformou‑a na residência de um cavalheiro, dando‑lhe o nome de The Rookery”7. Foi aí que, a 13 de Fevereiro de 1766, nasceu Thomas Robert Malthus, seu segundo filho, o autor do Ensaio sobre o Prin‑ cípio de População. Quando o recém‑nascido tinha três semanas, no 5 Traduziu o Ensaio sobre a Paisagem de Gerardin, que Dodsey publicaria em 1783. T. R. M. escreveu ao Monthly Magazine de 19 de Fevereiro de 1800 uma carta indignada, na qual protestava que o seu pai nunca publicara quaisquer traduções (vide Otter, Life, op. cit., p. 21). A referência anterior provém, todavia, de uma nota escrita num exemplar do livro em questão, pertencente à própria biblioteca de Malthus. 6 Manning e Bray, History of Surrey. (Bray era genro de Daniel Malthus.) Uma en‑ cantadora composição a pastel, representando um rapaz vestido de azul, e que se pode ver hoje em casa de Mr. Robert Malthus, em Albury, é tida pela tradição familiar como sendo um retrato de Daniel Malthus. 7 Manning e Bray, op. cit. Em 1768, Daniel Malthus vendeu The Rookery e a família mudou‑se para uma propriedade mais pequena, em Albury, não longe de Guildford. Uma gravura antiga representando The Rookery acompanha o exemplar do livro de Mr. Payne pertencente a Mr. Sraffa (vide supra): a casa continua de pé, ainda que tenha sofrido algumas modificações. Era uma considerável e dispendiosa experiência “góti‑ ca”, constituindo mais um testemunho das influências intelectuais contemporâneas pelas quais Daniel Malthus se interessou. A casa de Albury (Albury House), que não deve ser confundida com o Parque de Albury do duque de Northumberland, nem com alguma das duas casas que a família Malthus possuiu em Albury (Dalton Hill e The Cottage), já não existe. Uma gravura que se supõe representá‑la acompanha o exemplar que Mr. Sraffa possui do livro de Mr. Payne. Malthus.indd 15 8/6/14 12:16 PM 16 John Maynard Keynes dia 9 de Março de 1766, duas dadas madrinhas, Jean‑Jacques Rousseau e David Hume, acorreram juntas a The Rookery, e é de supor que, com um beijo, tenham concedido à criança diversos dons intelectuais. Porque Daniel Malthus era não só amigo de Hume8, mas também um dedicado, para não dizer apaixonado, admirador de Rousseau. Quando Rousseau chegou pela primeira vez a Inglaterra, Hume tentou instalá‑lo no Surrey, na vizinhança próxima de Daniel Mal‑ thus, que, “desejoso de lhe prestar toda a espécie de serviço”, seria uma agradável companhia para Rousseau, olhando por ele com benevolência9. Como quase todos os bons propósitos de Hume rela‑ tivos ao difícil visitante, o projecto falhou. O cottage, nas proximi‑ dades de Leith Hill, que seria posteriormente mostrado a Fanny Burney como l’asile de Jean‑Jacques10, nunca chegou a ser ocupado por este, mas era, sem dúvida, o refúgio que Daniel Malthus esco‑ lhera como mais adequado para esse efeito, tendo sido visitado por Jean‑Jacques no dia 8 de Março de 176611, e por ele rejeitado em seguida. Uma quinzena mais tarde, Rousseau iniciara a sua desas‑ trosa estadia em Wotton12 no Peak of Derbyshire, onde, friorento, 8 Ver as cartas de Hume datadas de 2 de Março e 27 de Março de 1766, n.os 309 e 315 na edição do Dr. Greig (op. cit.). O Dr. Bonar refere (op. cit., 2.ª ed., p. 402) uma tradição familiar, atestada pelo malogrado coronel Sydenham Malthus, segundo a qual Daniel Malthus se teria também correspondido com Voltaire, mas sucedendo que “uma senhora em cujas mãos as cartas caíram as deitou ao lume”. A correspondência com Rousseau mostra que D. M. mantinha igualmente relações com Wilkes, que o visitava em The Rookery, e de cuja boca ele ouviria pela primeira vez um relato da querela que opôs Rousseau e Hume. 9 Uma excelente descrição do episódio é a que se pode encontrar em Courtois, Le Séjour de Jean‑Jacques Rousseau en Angleterre (1911). 10 Vide Diary and Letters of Mme. D’Arblay (edição de Dobson), vol. V, p. 145. Miss Burney refere D. M. como “Mr. Malthouse”. 11 Rousseau escreve a Malthus no dia 2 de Janeiro de 1767: “Je pense souvent avec plaisir à la ferme solitaire que nous avons vue ensemble et à l’avantage d’y être votre voisin; mais ceci sont plutôt des souhaits vagues que des projets d’une prochaine exécution” [“Penso amiúde com prazer na quinta solitária que juntos vimos e nas vantagens de nela ser vosso vizinho; mas tais são mais vagos desejos do que projectos de próxima execução”]. 12 Propriedade cedida por empréstimo por Mr. Richard Davenport. Foi aqui que Rous‑ seau começou a escrever as Confissões. Um dos refúgios quase seleccionados por Rous‑ seau por ocasião da sua visita a Malthus ficava noutro Wotton, o Wotton de Evelyn, no Surrey, muito perto de Albury (ver a carta de Daniel Malthus de 12 de Março de 1766, na qual este explica que abordou Sir John Evelyn sobre o assunto). Malthus.indd 16 8/6/14 12:16 PM Robert Malthus — O Primeiro Economista de Cambridge 17 cansado e solitário, cozinharia passadas poucas semanas a sua ex‑ traordinária querela com Hume13. Esta cause literária, famosa entre todas, poderia, creio eu, nunca ter tido lugar, se Jean‑Jacques tivesse simplesmente acedido ao mui‑ to insistente convite de Daniel Malthus. Pois que, nesse caso, ter‑se ‑ia visto rodeado de afecto, e ter‑se‑ia divertido e gozado de compa‑ nhia. As apaixonadas declarações de Daniel Malthus de dedicação a Jean‑Jacques marcam, provavelmente, a única ocasião da sua vi‑ da em que o primeiro abandonou por completo as suas reservas14. Penso que se terão encontrado somente três vezes: quando Malthus visitou como turista Môtiers, na Primavera de 1764; quando Hume levou Rousseau a The Rookery, em Março de 1766, e quando Mal‑ thus, em Junho do mesmo ano, viajou até Wotton para o ver. Mas a julgar pelas treze cartas de Malthus a Rousseau, que foram preser‑ vadas, e por uma de Rousseau a Malthus15, esses encontros foram 13 Rousseau, evidentemente, não tinha razão. Mas, em todo o caso, Hume poderia ter mostrado maior serenidade de espírito, observando o conselho de Adam Smith de “não pensar em tornar tudo público”. Depois do soberbo esquisso do carácter do seu hóspede que escreveu para o Dr. Blair a 21 de Março de 1766 (Greig, n.º 314), mostrando a que ponto o penetrara em profundidade, as suas cartas posteriores (do mesmo modo que o Concise and Genuine Account publicado em 1766, por fascinante que o escrito seja em si mesmo) são obra não de um coração compreensivo, mas da extrema ansiedade com que Hume quer evitar um escândalo que os seus amigos de Paris poderiam interpretar mal. 14 Quando Rousseau deixa sem resposta uma carta sua, Daniel Malthus (4 de Dezembro de 1767) explode: “Est‑il possible, Monsieur, que vous ayez reçu ma lettre, et que vous me refusiez les deux mots que je vous demandois? Je ne veux pas le croire. Je ne donne pas une fausse importance à mon amitié. Ne me respectez pas mais respectez‑vous vous ‑même. Vous laissez dans le cœur d’un être semblable au votre une idée affligeante que vous pouvez ôter, le cœur qui vous aime si tendrement ne sait pas vous accuser” [“É possível, Senhor, que tenhais recebido a minha carta, e que me recuseis as duas palavras que eu vos pedia? Não quero crê‑lo. Não dou uma falsa importância à minha amizade. Não me respeiteis mas respeitai‑vos a vós mesmo. Deixais no coração de um ser seme‑ lhante ao vosso uma ideia aflitiva que podeis desfazer, o coração que tão ternamente vos ama não pode acusar‑vos”]. 15 As cartas de Malthus foram publicadas por Courtois, op. cit., e são as n.os 2908, 2915, 2939, 2940, 2941, 2952, 2953 (a Mlle. le Vasseur), 2970, 2979, 3073, 3182, 3440 da Correspondance générale de Rousseau, devendo acrescentar‑se‑lhes cartas de 14 de Dezembro de 1767 e de 24 de Janeiro de 1768 [n.os 3547 e 3578 do vol. 18, 1932]. A carta de Rousseau é a n.º 3211, e representa uma descoberta por M. Courtois, uma vez que editores anteriores a tinham erroneamente considerado como dirigida a um outro correspondente. Ao que parece, a correspondência de ambos terá sido reatada em 1770, após o que os contactos se terão mantido. Mas M. Courtois não conseguiu descobrir as Malthus.indd 17 8/6/14 12:16 PM