NEAL STEPHENSON
LIVRO 3º DO CICLO BARROCO
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© 2003, Neal Stephenson
Título original: Odalisque
Autor: Neal Stephenson
Tradução: Raquel Mouta
Revisão: Tinta­‑da­‑china
Mapas: Nick Springer
Capa e Composição: Vera Tavares
1.ª edição: Março de 2008
isbn 978­‑972­‑8955­‑53‑3
Depósito Legal n.º 272681/08
Tradução de
Raquel Mouta
lisboa:
tinta­‑da­‑china
MMVIII
nota à edição portuguesa
No texto original do Ciclo Barroco (de que O Rei dos Vagabundos é o
segundo volume, tendo o primeiro — Argento­‑vivo — sido publicado pela
tinta­‑da­‑china em 2007), Neal Stephenson cria uma experiência de inte‑
gração em épocas passadas, recorrendo a termos e expressões, bem como
a características ortográficas dos períodos históricos em questão. Assim,
na presente tradução, está­‑se perante o desafio de recriar para os leitores
uma experiência que parta dos mesmos princípios, mas que terá de assen‑
tar numa base diferente, tão diferente quanto as origens e toda a história
de uma língua conseguem proporcionar.
Os leitores desta obra encontrarão várias formas ortográficas que
não são actuais nem uniformes, bem como alguns vocábulos que já quase
caíram em desuso na nossa língua. Tentou­‑se assim recriar aquilo a que
os leitores de Stephenson em língua inglesa tiveram acesso: um texto de
leitura fluida, mas com marcas que remetem para os períodos históricos
que servem de cenário à acção.
m todos os tempos, os reis e as pessoas dotadas de autoridade soberana,
por causa da sua independência, vivem em constante rivalidade e na
situação e atitude dos gladiadores; com as armas apontadas, cada um de
olhos fixos no outro; isto é, com fortes, guarnições e canhões nas frontei‑
ras dos seus reinos, e constantemente com espiões no território dos vizinhos,
o que constitui uma atitude de guerra.
—Hobbes, Leviatã
Palácio
de
Whitehall
Fevereiro de 1685
Tal um cavaleiro refreando um garanhão arisco que o levou a atra‑
vessar, quer ele quisesse quer não, vários condados; ou o capitão de
um navio que, depois de navegar de vento em popa, por toda uma
noite de tempestade, iça as velas e se mete novamente ao caminho,
por mares desconhecidos — assim estava o Dr. Daniel Waterhouse,
no ano da graça de 1685, ao ver El­‑Rei D. Carlos II morrer no Palá‑
cio de Whitehall.
Muito se havia passado nos doze anos anteriores, mas nada es‑
tava realmente diferente. Até ali, o mundo de Daniel fora como um
bocado de caoutchouc, que se esticava mas não rompia, e cuja verda‑
deira forma nunca mudava. Depois de fazer o Doutoramento, nada
mais houve para ele em Cambridge a não ser dar palestras para sa‑
las vazias, dar lições particulares a filhos enfadonhos de cortesãos e
ver Isaac a embrenhar­‑se cada vez mais nas trevas, prosseguindo na
busca do Mercúrio Philosófico e nos estudos ocultos do Livro do
Apocalipse e do Templo de Salomão. Assim, Daniel mudara­‑se para
Londres, onde os acontecimentos passavam por ele que nem balas
de mosquete.
Na época, a ruína de John Comstock, o facto de se ver obrigado
a sair de sua casa e de se ter afastado da presidência da Real Socie‑
dade pareciam ter sido marcantes. No entanto, passadas algumas
semanas, Thomas More Anglesey não só fora eleito para Presiden‑
te da Real Sociedade, como também comprara e se mudara para a
casa de Comstock — a melhor casa de Londres, contando com os
palácios reais. O Arquianglicano recto e conservador fora substitu‑
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odalisca
d a n i e l n a s e s c a d a s p r i va d a s
ído por um Papista vistoso, mas nada mudara realmente — assim
aprendeu Daniel que o mundo estava cheio de homens poderosos,
mas, desde que desempenhassem os mesmos papéis, esses homens
eram tão substituíveis como actores de segunda, que diziam as mes‑
mas falas, no mesmo teatro, mas em noites diferentes.
Todas as coisas que foram semeadas em 1672 e em 1673 passa‑
ram os doze anos seguintes a crescer, transformando­‑se em árvores:
algumas eram nobres e bem constituídas, outras apresentavam no‑
dosidades curiosas e havia outras ainda que foram fulminadas por
um raio. Knott Bolstrood morrera no exílio. Gomer, seu filho, vi‑
via agora na Holanda. Outros Bolstroods haviam feito a travessia
do mar rumo a Nova Inglaterra. Tudo assim se passara pois Knott
tentara acusar Nell Gwyn de prostituição em 1679, o que parece
sensacionalista n’aquela época. Quanto mais Carlos II envelhecia,
mais Londres receava o regresso do Papismo, quando o seu irmão,
Jaime, subisse ao trono, e mais El­‑Rei necessitava ter por perto um
Protestante desagradável e sombrio — um Bolstrood — a fim de
tranquilizar os inquietos. Mas quanto mais poder Bolstrood adqui‑
ria, mais capacidade tinha para incitar pessoas contra o Duque de
York e o Papismo. Em finais de 1678, o incitamento era tal que se
começara a enforcar Católicos por terem participado numa supos‑
ta Conspiração Papista. Quando os Católicos começaram a rarear,
enforcaram­‑se os Protestantes que duvidaram da existência de uma
tal Conspiração.
Por essa altura, os filhos de Anglesey, Louis, Conde de Upnor,
e Philip, Conde Sheerness, já haviam gasto a maioria do capital da
família no jogo e pouco mais tinham a perder do que os seus cre‑
dores, por isso fugiram para França. Roger Comstock — que fora
enobrecido e era agora Marquês de Ravenscar — comprara a Casa
de Anglesey (antiga Casa de Comstock). Em vez de se mudar para
lá, mandara demoli­‑la, fizera desaparecer os seus jardins debaixo de
pedra, começando a transformar o espaço na «praça mais requinta‑
da da Europa». Mas limitou­‑se a fazer outra Praça Waterhouse, só
que maior e melhor. Raleigh morreu em 1678, mas Sterling ocupou­
‑lhe o lugar com a mesma facilidade com que Anglesey ocupara o de
John Comstock, e Sterling e o Marquês de Ravenscar continuaram
a fazer as mesmas coisas de sempre, só que com mais capital e me‑
nos erros.
El­‑Rei dissolvera o Parlamento, de modo que não lhe pudessem
assassinar mais amigos católicos, e recambiara Jaime para os Países
Baixos Espanhóis, com base no princípio «longe da vista, longe do
coração», e, jogando pelo seguro, casara a filha de Jaime com o De‑
fensor dos Protestantes em pessoa: Guilherme d’Orange. E, caso
nada disso surtisse o efeito pretendido, encorajara­‑se o Duque de
Monmouth (que era Protestante) a pavonear­‑se pelo país, atormen‑
tando Inglaterra com a possibilidade de vir a ser desbastardado por
algum passe de mágica, passando assim a herdeiro do trono.
Por outras palavras, El­‑Rei D. Carlos II ainda conseguia des‑
lumbrar, divertir e confundir. Mas as investigações alquímicas que
realizara por baixo da Galeria Privada não haviam dado em nada;
não conseguia transformar chumbo em ouro. E não conseguia arre‑
cadar impostos sem Parlamento. Os ourives que ainda existiam em
Threadneedle Street, e Sir Richard Apthorp com o seu novo Ban‑
co, não estiveram na disposição de lhe fazer empréstimos. Luís XIV
dera muito ouro a Carlos, mas o Rei Sol revelara não ser diferente
de um qualquer parente por afinidade, rico e exasperado: começara
a arranjar formas de fazer com que Carlos sofresse, em vez de pa‑
gar juros. Assim, El­‑Rei vira­‑se obrigado a convocar o Parlamento.
Quando o fez, descobriu que o mesmo era controlado pela aliança
zona comercial de Londres / amigos de Bolstrood (Inimigos do Go‑
verno Arbitrário, como se haviam baptizado) e que a primeira coisa
que tinham na sua lista de prioridades era não aumentar os impos‑
tos, mas mais exactamente excluir Jaime (e todo e qualquer Católi‑
co) da sucessão ao trono. Aquele Parlamento rapidamente se torna‑
ra tão impopular junto de quem amava El­‑Rei que a assembleia em
peso (com perucas, almofadas e tudo o resto) teve de se mudar para
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o m a r q u ê s d e r av e n s c a r
Oxford a fim de estar a salvo das multidões londrinas incitadas por
Sir Roger L’Estrange — que deixara de tentar acabar com os libelos
de outras pessoas e começara a imprimir os seus próprios. A salvo
em Oxford (ou assim imaginavam), aqueles Aperucados, ou Whigs
(como L’Estrange os apelidara em libelo) haviam votado a favor da
Exclusão de Jaime e aplaudiram Knott Bolstrood quando este de‑
clarara publicamente que Nellie era uma meretriz.
Daniel ouvira aquelas notícias da boca de um pregoeiro que
ia subindo Piccadilly, encontrando­‑se ele e Robert Hooke no lo‑
cal onde já fora o salão de baile de Comstock, depois de Anglesey,
e n’aquele momento era um campo de pedregulhos, de mármore
italiano, aberto para um belo céu azul de Outubro. Como mesa de
trabalho, usavam o capitel de uma coluna coríntia que caíra por ter‑
ra quando fora arrancada de debaixo dele pelos alegres demolidores
irlandeses de Ravenscar. O capitel ficara meio enterrado no solo e
encontrava­‑se agora num ângulo conveniente; Hooke e Waterhou‑
se desenrolaram folhas de grande dimensão e prenderam­‑lhes os
cantos com pedaços de mármore: pontas de asas de anjos e cacos
de folhas de acanto. Eram as plantas com o projecto de Ravenscar
para embutir alguns blocos quadrados de racionalidade cartesiana
na bola de raízes, presa num vaso, que era o sistema de ruas londri‑
nas. Topógrafos e seus aprendizes haviam esticado cordas e enfiado
estacas na terra, desenhando os eixos de três ruas curtas e paralelas,
as quais, na opinião de Roger, viriam a ostentar as melhores lojas de
Londres: uma recebera o nome de Anglesey, outra o de Comstock,
e a terceira o de Ravenscar. Mas, n’aquela tarde, Roger aparecera ar‑
mado com uma pena carregada de tinta, riscara esses nomes e, por
cima, escrevera Northumbria, Richmond** e St. Alban’s***.
Um mês depois, já não havia Parlamento nem Bolstroods na
Grã­‑Bretanha. Jaime voltara do exílio, Monmouth deixara de estar
ao serviço d’El­‑Rei e a Inglaterra passara efectivamente a ser um
departamento de França, com El­‑Rei D. Carlos a aceitar aberta‑
mente cem mil libras por ano, e a maioria dos políticos londrinos
— tanto Whigs como Tories — também a receber subornos do Rei
Sol. Muitos Católicos que haviam sido enfiados na Torre de Lon‑
dres por suposto envolvimento na Conspiração Papista foram en‑
tretanto libertados, dando lugar a outros tantos Protestantes por
suposto envolvimento na Conspiração da Rye House, que tinha
por objectivo pôr Monmouth no trono. Como acontecera a muitos
Conspiradores Papistas, os novos conspiradores começaram pron‑
tamente a «suicidar­‑se» na Torre. Um deles conseguiu até realizar o
feito heróico de cortar a própria goela até às vértebras!
Assim, o trabalho de Wilkins ficara por fazer, pelo menos du‑
rante algum tempo. Houve mil e trezentos Quakers, Barkers e outros
tipos de Dissidentes que foram enfiados na prisão. Foi por isso que
Daniel passou alguns meses em locais malcheirosos, onde ouvia ho‑
mens irados entoar os mesmos hinos que Drake lhe ensinara em
pequeno.
Aquilo fora — por outras palavras — um reinado. O reinado
de Carlos II. Ele era o soberano, um soberano que adorava França,
e detestava Puritanos, e tinha sempre carradas de amantes, e nunca
tinha dinheiro, e nunca havia nada que mudasse realmente.
O Duque de Northumbria era filho ilegítimo de Carlos II e da sua amante Barbara
Palmer, que tinha Villiers por apelido de solteira e era Duquesa de Castlemaine. (N.
do A.)
** O Duque de Richmond era filho ilegítimo de Carlos II e da sua amante Louise de
Kéroualle, Duquesa de Portsmouth. (N. do A.)
*** O Duque de St. Alban’s era filho ilegítimo de Carlos II e da sua amante Nell Gwyn, a
casadoira comediante e vendedeira de maçãs. (N. do A.)
N’aquele momento, o Dr. Waterhouse estava sentado nas Esca‑
das Privadas d’El­‑Rei: uma plataforma tosca de madeira agarrada
a uma muralha íngreme de blocos de calcário que mergulhava di‑
rectamente no Tamisa. Todos os aedifícios do Palácio que estavam
virados para o rio tinham aquela construção, por isso ao olhar para
jusante, à espera do barco em que vinham os sirurgiões, deu por si
a observar uma muralha longa, contínua, ainda que algo matizada,
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o m a r q u ê s d e r av e n s c a r
interrompida aqui e ali por alguma janela ou algum falso baluarte.
Noventa metros a jusante, havia uma doca que se projectava para
dentro do rio, e vários barqueiros intrépidos andavam de trás para
a frente com o passo de joelhos presos de quem tenta evitar morrer
de frio. Os barcos estavam atracados ao longo da margem, à espera
de passageiros, mas a hora era tardia, o tempo estava frio, El­‑Rei
estava às portas da morte e não havia Londrinos que estivessem a
servir­‑se da antiga passagem pública que atravessava o Palácio.
Depois d’aquela doca, o rio desenhava lentamente uma curva
para a direita, em direcção à Ponte de Londres. Quando a penum‑
bra do meio­‑dia deu lugar a uma tarde cinzenta, Daniel avistou um
barco a zarpar da Old Swan: uma taberna que ficava no lado norte
da ponte e que tinha por clientela quem não gostava de arriscar a
vida penetrando em arcos turbulentos. Desde então o barco fora
subindo o rio a custo e já se encontrava agora a uma distância em
que Daniel podia observá­‑lo com a ajuda do óculo que tinha no bol‑
so: só trazia dois passageiros.
Daniel recordava­‑se d’aquela noite de 1670, em que viera até
Whitehall no coche de Pepys e andara a deambular pelo Jardim Pri‑
vado, tentando agir com naturalidade. Na altura, achou que estava
a ser atrevido e romântico, mas, agora, ao lembrar­‑se de como con‑
seguira ser fátuo àquele ponto, até rangeu os dentes e deu graças a
Deus por aquele momento ter tido como única testemunha a cabe‑
ça decapitada de Cromwell.
Ultimamente, Daniel havia passado muito tempo Whitehall.
El­‑Rei decidira relaxar ligeiramente a sua mão de ferro e começara
a deixar sair da prisão uns poucos de Barkers e Quakers, tendo de‑
cidido nomear Daniel para o cargo de secretário oficioso de todos
os assuntos relacionados com Puritanos loucos: ou seja, para suces‑
sor de Knott Bolstrood, com todos os encargos que isso implicava,
mas com mui menos poder. Dos dois mil e tal quartos de Whitehall,
Daniel já devia ter entrado em algumas centenas — era quanto bas‑
tava para saber que o palácio era uma grande salgalhada, era sujo e
mofento, semelhante a um mapa do interior da cabeça de um corte‑
são, uma espelunca em todos os aspectos excepto no nome. Havia
secções inteiras do palácio que haviam sido ocupadas pela matilha
de spaniels semi­‑selvagens d’El­‑Rei, uma matilha em que reinava a
consanguinidade (mesmo por comparação com a realeza) e, logo, a
desmiolice (mesmo por comparação com outros spaniels). O Palácio
de Whitehall era, ao fim e ao cabo, uma Casa: a casa de uma Fa‑
mília. Uma família antiga e mui estranha. Fazia uma semana que
Daniel passara, de certo modo, a conhecer melhor aquela família
do que qualquer pessoa no seu perfeito juízo havia de querer conhe‑
cer. E, agora, encontrava­‑se nas Escadas Privadas, à espera, o que era
apenas uma desculpa para sair da Câmara Real — não, de junto do
próprio leito real — e respirar algum ar que não cheirasse aos fluidos
corporais de Sua Alteza.
Passado algum tempo, o Marquês de Ravenscar juntou­‑se a
ele. Roger Comstock — o homem menos promissor, e até então
o mais bem­‑sucedido, com quem Daniel frequentara Cambridge
— encontrava­‑se no Norte quando El­‑Rei ficara doente, na segunda­
‑feira anterior. Inspeccionava a construção da sua mansão, que Da‑
niel desenhara para ele. A notícia deve ter levado um ou dois dias a
lá chegar, e ele deve ter­‑se posto ao caminho imediatamente: era a
noite de quinta­‑feira. Roger ainda trajava as roupas de viagem, com
o ar mais monótono que Daniel já lhe vira — parecia quasi Purita‑
no.
— Meu caro senhor.
— Dr. Waterhouse.
Pela expressão do rosto de Roger, Daniel percebeu que ele pas‑
sara primeiro pelo quarto d’El­‑Rei. Caso houvesse dúvidas quanto a
isso, Roger pôs para trás as longas abas do seu casaco, caiu sobre os
joelhos de modo desajeitado, inclinou­‑se para a frente e começou a
vomitar para o Tamisa.
— Peço­‑lhe que me desculpe.
— Até parece que voltámos ao nosso tempo de estudantes.
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