A CONTEMPORANEIDADE NO ROMANCE BARBA ENSOPADA DE SANGUE DE DANIEL
GALERA
Andiara Zandoná1
Silvia Niederauer2
RESUMO
Este artigo trata da literatura contemporânea tendo como objetivo geral verificar de que forma a
contemporaneidade pode ser observada no romance Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera. Os
objetivos específicos compreendem estudar as características da literatura contemporânea sob a visão de
diferentes teóricos e críticos e conhecer a produção do escritor Daniel Galera tendo ênfase no estudo da
narrativa Barba ensopada de sangue. O estudo é de cunho bibliográfico e conta com referencial teórico e
crítico a partir do qual é feita a análise. Os resultados apontam que as características da sociedade
contemporânea podem ser observadas tanto na estrutura da narrativa quanto no comportamento dos
personagens.
Palavras-chave: Literatura contemporânea. Daniel Galera. Barba ensopada de sangue.
ABSTRACT
This paper is about contemporary literature and has as main aim verify how the contemporaneity can be
observed in Barba ensopada de sangue, by Daniel Galera. The specific aims comprehend to study the
characters of contemporary literature from the vision of different theoretical and critical, know the Daniel
Galera’s production having emphasis in thestudyofBarba ensopada de sangue. The study is bibliographic
and hás theoretical and critical framework from which the analysisis done. The results show that the
characterístics of contemporary society can be observed both the structure of the narrative as in behavior
of characters.
Keywords: Contemporary literature. Daniel Galera. Barba ensopada de sangue.
Introdução
Atualmente, vive-se em uma sociedade regida pela ansiedade de que as coisas
Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 5, jan./jul. 2014
Página
Mestranda em Letras, Área de concentração em Literatura Comparada na Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Câmpus de Frederico Westphalen. Endereço eletrônico:
[email protected].
2 Professora Doutora, atua como docente no Mestrado em Letras da Universidade Regional Integrada do
Alto Uruguai e das Missões – URI – Câmpus de Frederico Westphalen. Endereço eletrônico:
[email protected].
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aconteçam rapidamente, de que tudo seja ágil, tanto se tratando do desempenho das
pessoas ao realizarem suas tarefas quanto da própria velocidade da informação, que
está o tempo todo se atualizando e trazendo novidades, as quais muitas vezes, nem é
possível acompanhar.
Em meio a esse mundo globalizado, são visíveis as facilidades que promove se
tratando de tecnologia e do acesso à informação. E é nesse contexto que estão surgindo
os novos escritores de literatura brasileira. Muitos deles deixam de lado a necessidade
de publicar um livro impresso e expõem aos leitores sua escrita até mesmo utilizando
blogs. Dentre esses autores está Daniel Galera, cuja ferramenta de início de carreira
como escritor foi a internet e atualmente já teve seu romance Barba ensopada de sangue
vencedor de um prêmio nacional. A respeito do referido escritor, trata-se neste artigo,
tendo como enfoque sua produção, seu estilo de escrever e a opinião crítica, mais
especificamente sobre Barba ensopada de sangue.
Este artigo será dividido em três seções. Na primeira, será abordada a literatura
brasileira contemporânea e suas características tendo como base as definições de
teóricos e críticos, tais como Antonio Candido, ZygmuntBauman e Luciene Azevedo. Na
segunda seção, será abordada a produção do escritor Daniel Galera e, na terceira, a
análise da narrativa Barba ensopada de sangue tendo como enfoque principal os
elementos pertencentes à contemporaneidade que podem ser observados no romance.
A literatura na contemporaneidade
É de comum opinião entre aqueles que se dedicam em estudar literatura, que ela
não é uma arte independente. Sua relação com a sociedade, com o contexto de produção
é assinalada por sociólogos e críticos, dentre eles Antonio Candido, em Literatura e
Sociedade (2000), que defendia a ideia de que os aspectos sociais estão presentes em um
texto literário por sua forma e conteúdo.
Um renomado autor que trás importantes contribuições aos estudos sobre a era
caráter ‘fluido’, ‘líquido’ e ‘escorregadio’ que compõe essa sociedade bem como os
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sujeitos que o habitam. Assim,
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contemporânea é ZygmuntBauman, no livro Modernidade líquida (2001). Ele destaca o
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A sociedade que entra no século XXI não é menos ‘moderna’ que a que entrou
no século XX; o máximo que se pode dizer é que ela é moderna de um modo
diferente. O que a faz tão moderna como era mais ou menos há um século é o
que distingue a modernidade de todas as outras formas históricas do convívio
humano: a compulsiva e obsessiva, contínua, irrefreável e sempre incompleta
modernização [...] (BAUMAN, 2001, p. 36).
A impressão que o comentário do autor provoca é que os indivíduos que fazem
parte da sociedade dessa época não se contentam suficientemente com suas conquistas,
por maiores que sejam. O que, segundo Bauman (2001), provoca uma busca constante
por realização a qual não permite que os sujeitos possam “ficar parados”. O momento de
“auto-congratulação” não permanece. Logo, os objetivos que estão sempre voltados para
o futuro, perdem o sentido no momento em que se realizam, não geram contentamento
duradouro. Alcançar os objetivos significa ter que almejar outras metas. O autor
assevera que “ser moderno significa estar sempre à frente de si mesmo, num Estado de
constante transgressão [...]; também significa ter uma identidade que só pode existir
como projeto não realizado” (BAUMAN, 2001, p. 37).
Em relação ao “mundo” que cerca os sujeitos que estão inseridos na sociedade
contemporânea, Luciene Azevedo, em sua tese de doutorado “Estratégias para enfrentar
o presente: a performance, o segredo e a memória” (2004), capítulo um, seção um,
“Olhares sobre a atualidade”, expõe que o consenso sobre a literatura atual é de que é
composta pela “pluralidade” tanto de nomes quanto de características que estão
presentes na “cena contemporânea”.
Entretanto, ela argumenta que essa definição pode ser generalizante e considera
tarefa árdua definir os elementos que “singularizam” a produção ficcional brasileira no
momento atual. Isso se deve ao fato de estar vivendo no momento em que as perguntas
surgem e necessitar arriscar respostas “incertas”. Em outras palavras, significa “arriscarse”, encarar o “caráter provisório” da análise e “[...] respeitar a possível transitoriedade
do objeto de estudo” (AZEVEDO, 2004, p. 6).
objetos de análise, simultaneamente ao momento em que precisam elaborar suas
“ferramentas de trabalho”. Assim, não há um cânone pré-estabelecido, formado por
clássicos. Para formar uma opinião a respeito do que está sendo produzido na literatura
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estar em contato direto com os trabalhos que estão sendo produzidos e serão seus
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Ela acrescenta que o trabalho exige da crítica o “distanciamento reflexivo” para
dos dias atuais, é necessário aventurar-se, “[...] sem qualquer lastro de referência já
estabilizado, incorporando entrevistas e perfis dos autores, resenhas e debates
publicados nos cadernos literários, na internet” (AZEVEDO, 2004, p. 6).
Nesse sentido, ela comenta que é necessário procurar nas próprias narrativas os
critérios que servirão para avaliá-las. Contudo, não só os referidos critérios merecem
destaque, mas sim, o que esta nova literatura provoca no que se refere “às narrativas”, “à
vida”, ou ao “sistema literário”.
A literatura brasileira contemporânea, destaca Luciene Azevedo, tem muito a ver
com a dos anos 70. Em ambas as épocas, a literatura deixa de ser algo formal e o contato
com os textos literários tem início através da “amizade pessoal”, como por exemplo,
quando os novos autores trocam seus originais em lançamentos de livros, ou até mesmo
em bares ou cafés. Outra prática comum dos escritores de literatura contemporânea
descrita pela autora é a de “um autor apresentar o outro”. Isso acontece tanto pela
internet quanto em entrevistas, ou até mesmo em “orelhas de livro” e resenhas.
Sobre a internet, ela comenta que há grande variedade de sites dedicados à
literatura, “[...] verdadeiros salões literários na internet, os quais constituem um
primeiro lugar de pertencimento do jovem autor ao campo literário” (AZEVEDO, 2004, p.
7); não esquecendo que os blogs são um importante recurso para os editores que têm a
intenção de descobrir novos escritores talentosos.
Com o intuito de serem descobertos, esses escritores da contemporaneidade,
segundo as palavras de Luciene Azevedo, precisam ser multifacetados (produtores,
críticos e agitadores culturais), tudo isso para cativar os leitores. Assim, esse escritor
atual,
mérito” foi a criação de uma “mídia própria” para que os novos autores pudessem se
apresentar ao “grande público”. Todavia, há considerações negativas em relação a eles,
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A respeito dessa nova geração de escritores, a autora destaca que o seu “maior
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[...] vai aparecendo aqui e ali, cavando um circuito literário próprio: escreve em
sites e blogs da internet (ClarahAverbuck, Daniel Galera, Marcelino Freire,
Marcelo Moutinho), cria sua própria editora alternativa [...], capricha na
produção gráfica de seus lançamentos independentes custeados por
patrocínios penosamente conquistados, apresenta seus textos para críticos e
jornalistas culturais consagrados (AZEVEDO, 2004, p. 10).
pois “[...] muitos viram nessa agitação um mero factoide literário em que a vida literária
superava a literatura” (AZEVEDO, 2004, p. 11).
Essa mesma posição negativa da crítica varia entre considerar as produções
contemporâneas, em “tom apocalíptico”, como um “vazio improdutivo” ou até mesmo
com “rabugento pessimismo cultural” daqueles que avaliam os textos literários
contemporâneos como “[...] um símbolo da decadência da literatura, agora cooptada pelo
mercado” (AZEVEDO, 2004, p. 11).
Ainda apontando a visão pessimista da crítica, a autora comenta que há muita
cobrança aos novos escritores, por se deixarem seduzir pela mídia, buscando
“visibilidade no mercado”, mas esquecendo a discussão sobre “questões estéticas” e o
“posicionamento político” de alguns autores e suas produções. Ela esclarece que esse
argumento surgiu em uma entrevista da Folha de São Paulo a alguns autores
contemporâneos (B. Carvalho, LuisRuffato, Marçal Aquino e Milton Hatoum).
Complementando as informações fornecidas sobre a literatura contemporânea,
Luciene Azevedo, ainda na tese de doutorado, seção três do capítulo um, considera haver
“duas vertentes” na referida literatura: a do “entrave” e da “delicadeza”. Definindo cada
uma delas, a primeira,
[...] indica um apetite pelo presente que quer barbarizar, quer reeditar a
experiência do choque [...] e caracteriza-se através da exposição cínica de uma
voz que esquadrinha os aspectos mais conflitivos, reificantes e violentos da
realidade (AZEVEDO, 2004, p. 28).
Essa literatura, destaca a autora, se baseia no excesso, ela extravasa “humores”,
“afetos”, “sentidos”. Possui uma linguagem coloquial, utilizando gírias ou até mesmo
sotaques. Dessa forma, “[...] o espetáculo da superexposição da cultura midiática é
simulado na cena do próprio texto que absorve o mundo massificado para performá-lo”
(AZEVEDO, 2004, p 29). A autora explica que essa literatura, que tem como “suporte” a
tela do computador, pode representar uma “estrutura textual linkada”, uma
“devorar” o presente, a literatura da delicadeza “[...] evita o risco dessa dubiedade sem,
no entanto, adotar a tática do confronto direto” (AZEVEDO, 2004, p. 31). Em uma
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A segunda vertente assume posição contrária à primeira. Ao invés de se arriscar,
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fragmentação que pode quebrar a “linearidade narrativa”.
definição mais detalhada: “A força e a intensidade dessas narrativas advêm do resgate
da lentidão, da atenção ao mínimo, do trabalhar o despojamento através da
complexidade” (AZEVEDO, 2004, p. 31-32).
Essas narrativas, esclarece a autora, buscam cativar os leitores pela estrutura
mais tradicional, a construção das histórias linear, os narradores oniscientes. A
literatura da delicadeza opta “pela memória”, possui um “ritmo narrativo” desacelerado
em relação à literatura do entrave. Ela se apega às minúcias. Em outras palavras, “[...] a
literatura da delicadeza investe na atenção aos detalhes e no abrandamento do ritmo
narrativo pontuando sutilmente as tramas de um segredo” (AZEVEDO, 2004, p. 33).
Entretanto, apesar de mostrar as diferenças entre uma vertente e outra, ela
destaca que a partir da “leitura do presente”, é possível perceber a tentativa da literatura
contemporânea em apresentar “estratégias” com o intuito de “desinibir efeitos
domesticadores”, ou seja, uma busca pela liberdade na escrita sem que os escritores
tenham que seguir um modelo pré-estabelecido na construção de seus textos, tanto se
tratando da literatura do entrave quanto da literatura da delicadeza.
Nesse sentido, é necessário destacar que Barba ensopada de sangue, de Daniel
Galera, não pode ser rotulado como pertencente à literatura do entrave ou da delicadeza.
Mas deve ser considerado um texto que possui uma combinação entre os elementos que
caracterizam cada uma das vertentes abordadas por Luciene Azevedo, tendo em vista
que, na referida narrativa, os diálogos dos personagens possuem tom coloquial, há a
presença de gírias, ao mesmo tempo em que a atenção aos detalhes é uma constante.
Assim, é possível pensar que, justamente por ser um texto contemporâneo, ainda não há
uma vertente de acordo com a qual ele possa ser “etiquetado”, mesmo porque não há
necessidade de etiquetá-lo para poder considerá-lo uma produção de qualidade.
Tendo em vista a qualidade do texto Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera,
na seção seguinte será feito um apanhado geral de sua produção como escritor, desde
seus primeiros textos até Barba ensopada de sangue, que é objeto de análise deste
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trabalho.
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Daniel Galera: a produção do jovem escritor sob a ótica da crítica literária
O escritor Daniel Galera nasceu em São Paulo, em 1979, mas passou muito tempo
de sua vida na capital gaúcha, onde mora até hoje. Além de escritor, é também tradutor
de textos em língua inglesa. Seu primeiro livro publicado foi Dentes guardados (2001).
Depois deste, escreveu Até o dia em que o cão morreu (2003); Cão sem dono; (2007)
Mãos de Cavalo; (2006) Cordilheira (2008); Cachalote; (2010) e, finalmente, Barba
ensopada de sangue (2012).
Há uma boa variedade de opiniões críticas tanto a respeito do escritor, quanto em
relação a cada um de seus trabalhos em particular. Dentre essas opiniões, está o ensaio
de Luciene Azevedo, Doutora em Literatura Comparada, que tem como título “Daniel
Galera. Profissão: escritor”. Nesse trabalho, ela comenta que o público leitor tornou-se
numeroso graças às mídias e especialmente à mídia online. E para os escritores ter tal
atividade como profissão deixou de ser utopia para tornar-se realidade. Entretanto,
destaca que há o perigo de que o escritor deixe-se seduzir pelas “leis do mercado”. Nesse
sentido, ela salienta que o lançamento do livro Barba ensopada de sangue, de Daniel
Galera, teve vasta divulgação:
[...] a ampla cobertura jornalística, dada à publicação do livro, comentado não
apenas por meio das resenhas publicadas nos principais cadernos literários dos
jornais de grande circulação, mas também por inúmeros blogues de leitores na
internet, e o realce dado à própria figura do escritor, convocado a dar seu
depoimento sobre o romance em inúmeras entrevistas (AZEVEDO, 2013, p. 4).
Para a autora, isso poderia ser investigado buscando compreender a “[...]
construção de uma carreira literária” (AZEVEDO, 2013, p. 4). Ou seja, de que forma o
modo com que ele é apresentado ao público pode influenciar sua profissão como
escritor.
Em seguida, Luciene Azevedo explica que abordará, no ensaio, o caminho traçado
Palavra”; depois, o “fanzine” ou “COL – Cardozo Online”.
Outro fato importante destacado pela autora o qual ajudou a impulsionar a
carreira de Daniel Galera foi a criação da editora “Livros do Mal”. Para Azevedo, tanto a
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com as “atividades” na internet já no final da década de 90, primeiro com o site “Proa da
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por Daniel Galera em sua carreira como escritor, sendo que este teve seu marco inicial
circulação na mídia online, quanto a criação da editora mantiveram o escritor no “mundo
cultural”. Além disso, ela revela que Daniel Galera participou, entre os anos de 1999 e
2000, da oficina literária de Luiz Antonio de Assis Brasil, importante escritor, doutor em
letras e pós-doutor em Literatura, cujas oficinas são ministradas na PUCRS, tendo esta
oficina sido descrita pelo próprio jovem escritor como uma “experiência fundamental”,
impulsionando suas aspirações.
Entretanto, Luciene Azevedo esclarece que Galera não trabalhou somente na
criação de textos literários. Ele também foi procurado para fazer tradução, atividade que
ocupava muito do seu tempo, fazendo com que não pudesse se dedicar única e
exclusivamente à tarefa de escrever, mesmo porque, as traduções lhe beneficiavam de
forma mais significativa economicamente.
Dentre seus romances já publicados, a autora destaca Barba ensopada de sangue,
o último livro do autor, publicado em 2012: “[...] Barba ensopada de sangue, parece
constituir um importante divisor de águas para pensarmos as condições de
possibilidade da profissionalização do escritor na cena literária contemporânea”
(AZEVEDO, 2013, p. 8). O divisor de águas referido pela autora, diz respeito à
possibilidade de os jovens escritores, como é o caso de Daniel Galera, poderem manterse sem precisar assumir outros trabalhos paralelos, podendo dedicar-se com
exclusividade ao ofício de escritor.
Ainda sobre Barba ensopada de sangue, ela declara que as “estratégias” utilizadas
para lançar o livro contribuíram para que fossem alcançados os resultados positivos que
o escritor obteve com o romance nas “letras brasileiras”. E quanto à tentativa de
“profissionalizar” o escritor, ela salienta o empenho da editora Companhia das Letras,
que antes mesmo de publicar o livro no Brasil, já tinha disponibilizado os direitos de
publicação deste para editoras estrangeiras.
No mesmo ensaio, ela se refere a uma parte do livro ter feito parte da Revista
Granta, de origem britânica, que lançou, na “Feira Literária Internacional de Paraty
o caso de Daniel Galera, que teve o primeiro capítulo de Barba ensopada desangue
publicado ali. Além disso, merece destaque a informação fornecida por Azevedo de que
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conhecimento do público, narrativas de escritores com menos de quarenta anos como é
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(Flip)”, em 2012, o livro Os melhores jovens escritores brasileiros a qual trazia a
Rodrigo Teixeira - diretor de “efeitos visuais” cuja origem é sul rio-grandense, mas
trabalha nos Estados Unidos -, demonstrou interesse em adaptá-lo ao cinema e também
proporcionou ao escritor ser colunista do jornal O Globo.
Assim, ela finaliza o ensaio considerando que a “ofensiva comercial” em torno do
lançamento do livro, com três opções de capa, assinadas pelo diretor de arte Alceu
Nunes, garantiu seu reconhecimento na literatura brasileira contemporânea e
proporcionou a possibilidade de Daniel Galera ter seu texto traduzido para outras
línguas e adaptado ao cinema. Isso tudo graças à “[...] máquina empresarial de uma
editora e o bom acolhimento do leitor [...]”. Contando com todos os benefícios
mencionados, ela assevera que Daniel Galera possivelmente terá como profissão, a de
escritor.
Não apenas Luciene Azevedo dedica um ensaio a Daniel Galera. Também Mario
Sergio Conti, na Revista Piauí, edição 74, novembro de 2012, publica o artigo “A hora e a
vez do homem sem nome”, título que faz referência ao personagem principal do
romance Barba ensopada de sangue, professor de Educação Física.
Suas considerações iniciais sugerem que o romance engloba “lendas”, “rumores”
e “episódios pitorescos”, numa narrativa que aborda a sociedade atual fragmentada. Ele
considera a introdução do referido texto de Daniel Galera “breve e enigmática”, a qual é
seguida por um diálogo entre pai e filho que para o autor deixa transparecer um grande
domínio da “técnica literária” por parte do escritor. Além disso, Conti destaca a
importância que a cachorra, Beta, teve na história do personagem e compara essa
participação com outro romance, Vidas secas, no qual a cachorra Baleia ocupava lugar de
destaque.
Sobre a escrita do último romance de Galera, o autor informa que o escritor
alugou um apartamento em Garopaba, onde viveu por um ano com o intuito de escrever
o livro. Esse apartamento lhe forneceu inspiração para compor o lugar onde vivia o
personagem sem nome de Barba ensopada de sangue. Conti informa que o escritor
Assim como Luciene Azevedo, Conti faz referência ao fato de Galera ter
participado da oficina literária de Luiz Antonio de Assis Brasil, ressaltando que o
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andar de bicicleta.
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costumava nadar pela manhã em torno de quatro quilômetros. Também gostava de
ambiente universitário proporcionou ao jovem escritor tornar públicos seus trabalhos
iniciais, primeiramente na internet, no Cardoso Online, descrito por Conti como “fanzine
digital” da década de 1990.
Conti salienta que Daniel Galera não é um escritor tradicionalista nem
regionalista, ele é “um jovem intelectual cosmopolita”. Seus escritos não se relacionam à
política. Ele busca “se expressar”.
A busca do personagem principal no romance, segundo Conti, é desvendar os
mistérios da história do avô. Mas a narrativa envolve, também, histórias de crenças dos
habitantes do local, revelando algum misticismo. E, finalizando o artigo, Conti
novamente compara Barba ensopada de sangue a outros títulos de literatura brasileira
contemporânea: Cidade de Deus e Pornopopéia. Todos os três não utilizam “classes
dominantes” compondo personagens nas narrativas. De acordo com o autor, pelo
simples fato de que “talvez” não sejam os sujeitos mais “marcantes” da sociedade
brasileira atual.
Dentre o material que compõe a crítica sobre Daniel Galera e Barba ensopada de
sangue, não há como desconsiderar a resenha crítica escrita por Karl Erik
Schᴓllhammer, na Revista Cult, edição 174, de novembro de 2012. Nessa revista, com a
resenha “Barbas de molho”, o crítico literário apresenta o jovem autor, destacando que
ele tem futuro promissor na literatura brasileira contemporânea. Schᴓllhammer revela
que os trabalhos de Galera foram promissores e enfatiza: no “sentido pleno da palavra”.
Schᴓllhammer (2012), assim como outros autores citados neste trabalho, destaca
que Galera faz parte de um grupo de escritores porto-alegrenses que começou a publicar
seus textos na internet. Quanto ao estilo do escritor, o crítico ressalta que desde seus
primeiros textos, era perceptível o seu talento. Para ele, o jovem escritor demonstra
“capacidade artesanal” na construção de narrativas, além de “bons enredos” e “estilo
fluente”, apesar de estar “fechado” em um estilo jovem do qual não aparenta manter
muita distância.
escritor, destacando que o livro cativa o leitor desde as primeiras páginas, pois não
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revela o segredo que a trama envolve conforme o deslindar da narrativa. Além disso,
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O crítico julga Barba ensopada de sangue a produção mais “ambiciosa” do
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considera a leitura tranquila sem ser entediante. Para o crítico, Galera mantém a
“densidade”, seduzindo o leitor.
Ele também elogia o artifício do escritor ter usado a patologia (prosopagnosia) do
personagem principal, sua dificuldade de lembrar os rostos, até mesmo o seu, para
contrastar com a riqueza de detalhes que utiliza para descrever os ambientes.
Quanto às inspirações de Galera para a construção desse personagem, o crítico
cita alguns autores da literatura contemporânea em língua inglesa, ou até mesmo em
algumas versões em português, argumentando que em romances como o de Paul Auster
e Haruki Murakami, é possível identificar características semelhantes ao seu professor
sem nome de Barba ensopada de sangue, sujeito da sociedade contemporânea atual.
Merece destaque, também, a opinião de Schᴓllhammer, quanto à capacidade de
Daniel Galera de retratar a “realidade brasileira” sem retomar uma “literatura histórica”
ou “cultural”, sem “tentações pitorescas e exóticas”. Ele considera a trama do escritor
“convincente” e, de modo geral, “uma boa história e um excelente romance”.
Todas as informações colhidas até aqui sobre o autor são de suma importância
para que se possa construir um conceito a respeito do autor Daniel Galera e,
principalmente de sua narrativa Barba ensopada de sangue, objeto deste estudo.
Todavia, sabendo que o criador desse livro é jovem e pode, ele mesmo, contribuir com
este conceito, por que não transpor as suas palavras a este texto?
Eis que Daniel Galera concedeu várias entrevistas sobre seu trabalho. Uma delas
foi concedida a Alexandre Lucchese, no Segundo Caderno do jornal Zero Hora, publicado
dia trinta de novembro de 2013, com o título “Barba, cabelo e bigode”. É sobre Barba
ensopada de sangue. O parágrafo introdutório da entrevista traz as seguintes
A primeira pergunta dessa entrevista foi a respeito de como o escritor havia se
sentido ao receber o prêmio. Ele comenta que foi seu editor que o recebeu em seu lugar
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Com direitos autorais vendidos para mais de 10 países, Barba ensopada de
sangue acumulou mais um feito. O romance, que conta a história de um professor
que busca refúgio em Garopaba depois da morte do pai, fez de seu autor, Daniel
Galera, o vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura. [...] Apesar da crescente
repercussão de seus títulos, ele busca longe dos holofotes as melhores condições
para exercer a liberdade criativa (LUCCHESE, 2013, p. 1).
121
informações:
e que, na verdade, não tinha muitas esperanças de ganhar por seus concorrentes terem
livros fortes. Então, considera uma surpresa. E, em resposta à pergunta do jornalista
sobre a importância de receber o prêmio, ele assevera que quando escreve um livro, sua
preocupação principal não é a premiação, considera haver coisas mais importantes no
ato de escrever.
Quando o jornalista pergunta a Galera se o seu livro foi escrito pensando nas
expectativas do mercado editorial, buscando atingir grande número de vendas, ele
argumenta que apesar de Barba ensopada de sangue ter sido o seu livro mais vendido até
o momento, enquanto escrevia, temia que ocorresse justamente o oposto, que o livro
afastasse os leitores por ter um significado muito pessoal.
Em relação ao seu processo criativo, ele afirma que seus livros surgem da sua
visão de mundo juntamente com sua imaginação. E que isso não envolve atender as
expectativas do mercado. Caso tivesse que trabalhar assim, seria uma tentativa
frustrada, pois não teria aptidão para essa tarefa.
O entrevistador Lucchese pergunta ao escritor quais são suas expectativas para o
futuro tendo em vista que agora ele já é bastante conhecido pelo público. Sua resposta é
de que o escritor, quando se torna conhecido do público, não pode deixar o status lhe
tomar o foco principal, que deve estar sempre voltado ao trabalho, tendo em vista que
depois de ser conhecido pelo público, há ainda mais responsabilidade em lançar um
próximo trabalho.
Quanto à pergunta sobre a avaliação do escritor a respeito de sua carreira no
momento, ele responde ser o melhor que já viveu para continuar seu trabalho, pois em
vista de ter um público leitor, pode se dedicar a escrever sem precisar fazer outros
trabalhos paralelos.
Já em outra entrevista, desta vez concedida a Diogo Guedes, para o caderno de
cultura do Jornal do Comércio, em janeiro de 2013, o escritor comenta a respeito de seu
personagem principal, destacando que ele representa a crença de uma visão
E no que diz respeito à narração, explica que sua intenção era de haver um
narrador em terceira pessoa, mas que esse narrador tivesse uma visão “colada” com a do
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são responsáveis por elas.
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determinista, de que apesar de as pessoas não terem o direito de escolha, mesmo assim
protagonista. Ele revela que isso causa uma sensação de que a ação ocorre “em tempo
real”. Para o autor, esta escolha tem relação com o problema enfrentado pelo
personagem principal que tinha dificuldades em lembrar os rostos das pessoas assim
como do seu próprio rosto. Ele explica que as notas de rodapé servem para “acolher” os
flashbacks e demonstrar as opiniões externas ao personagem.
O entrevistador Diogo Guedes comenta com o escritor que há, no livro, várias
semelhanças entre ele e esse personagem sem nome e indaga a respeito do caráter
biográfico do livro perguntando ao autor se esta é uma “obsessão” da literatura
contemporânea.
Como resposta, Daniel Galera ressalta que essa não é uma obsessão da literatura
contemporânea, mas sim do leitor contemporâneo. Ele acredita que na literatura isso é
comum e inevitável. Entretanto, destaca que em seu romance tanto o gosto pela natação
quanto a ambientação do romance em Garopaba, são pessoais, mas o enredo e os
personagens fazem parte de sua imaginação.
As opiniões manifestadas acima, tanto do próprio escritor, Daniel Galera, quanto
daqueles que comentam a respeito de seu livro, contribuem para que se possa ter
conhecimento a respeito do que está sendo escrito a respeito dele, de sua produção
como escritor e, mais precisamente, a respeito da repercussão que teve o romance
Barba ensopada de sangue, objeto deste estudo. Sobre este livro se desenvolverá a seção
a seguir. Ter-se-á como objetivo principal mostrar como a contemporaneidade,
abordada na seção um deste artigo, pode ser notada na narrativa de Galera.
Representação da vida contemporânea em Barba ensopada de sangue, de Daniel
Galera
Nas
seções
anteriores
foram
descritas
características
da
sociedade
Recapitulando, ele é um autor que teve seus primeiros textos publicados em formato
digital, em consonância com a sociedade contemporânea que vive a era da internet e de
tudo o que essa mídia online possa lhe oferecer.
Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 5, jan./jul. 2014
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Galera e do livro que é objeto de análise neste trabalho: Barba ensopada de sangue.
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contemporânea bem como da literatura brasileira contemporânea, do autor Daniel
A publicação mais recente de Daniel Galera é Barba ensopada de sangue, lançado
em 2012 pela Companhia das Letras. O livro conta com diversos comentários na internet
que vão desde postagens em blogs até resenhas críticas.
A narrativa tem início com uma conversa quando um personagem sem nome, que
é professor de Educação Física vai visitar o pai, na cidade de Porto Alegre: “É início de
fevereiro e, independente do que alegam os termômetros, a sensação térmica em Porto
Alegre e arredores está acima dos quarenta graus” (GALERA, 2012, p. 14)3.
Durante essa conversa, o pai, que já está cansado e sem ânimo para viver, conta
ao filho sobre seu desejo de acabar com a própria vida ao mesmo tempo em que
relembra a história de seu pai, Gaudério, da qual o filho não tinha conhecimento.
A partir daqui a história é meio nebulosa e boa parte dela eu fiquei sabendo de
segunda mão. Não sei bem o que aconteceu, e talvez não tenha acontecido nada
específico pra motivar isso, mas cerca de um ano depois da minha vinda pra
cidade o teu vô foi embora da chácara. Só tomei conhecimento porque recebi
um telefonema dele (p. 22).
Analisando o fragmento, é possível perceber que apesar de a narrativa seguir
uma ordem cronológica, há presença de flashbacks, como nesse momento, em que o pai
lembra-se e transmite ao filho uma história que guarda há anos.
Posteriormente ao trágico falecimento do pai, ele decide mudar-se de cidade e vai
para Garopaba, Santa Catarina, com a intenção de investigar o passado do avô Gaudério.
E é ali que a narrativa acontece, num espaço onde o personagem principal considera
carregado de informações sobre a história do seu antepassado.
Na cidade litorânea ele faz amizades, tanto com algumas meninas, como Dália e
Jasmim, quanto com alguns rapazes, como Bonobo e Altair. Contudo, suas amizades não
são mais importantes do que seu objetivo de questionar os moradores sobre Gaudério.
O que chama a atenção do leitor já nas páginas iniciais do livro é a sua
dinamicidade. Os diálogos são rápidos, sem travessão. A linguagem utiliza gírias e
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GALERA, Daniel. Barba ensopada de sangue. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Todas as citações serão
retiradas desta edição, passando- se, então, a indicar apenas a página.
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reconhecidas no seguinte fragmento:
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expressões coloquiais, por vezes, até palavrões, características que podem ser
Tá bom.
Caralho.
Tá bom, desculpa.
Quer uma ceva?
Se tu for beber também.
Eu vou beber (p. 16).
É possível perceber, no trecho acima, que a linguagem dos diálogos não é
rebuscada, o que é perceptível pelas palavras “caralho”, que é um palavrão, o uso de “tá”,
ao invés de ‘está’, dando o tom coloquial à conversa e a gíria muito falada “ceva” para
designar cerveja. A rapidez dos diálogos ilustra a pressa que toma conta da vida dos
indivíduos na sociedade do século XXI.
Outra característica importantíssima do contexto atual, que aparece no texto de
Daniel Galera, é a menção à internet, mais precisamente às redes sociais. Em
determinado momento da narrativa, o personagem principal vai até uma lanhouse e
acessa seu perfil no facebook. Ali ele encontra quatro mensagens deixadas por Dália,
menina com quem ele estava saindo:
*(1) eu quero que vc se masturbe todo dia pensando em mim. promete! [...] (2)
tentei apagar a mensagem anterior, desculpa, que vergonha. [...] (3) olha o clipe
da música que a gente ouviu ontem e tu gostou, do carinha do red hot [...] (p.
150-151).
Essas mensagens precedem outra, que causa mais impacto no personagem. É de
sua ex-namorada, agora esposa de seu irmão. Ela lhe enviou logo após o enterro do pai
dele.
*Oi. Pensei muito antes de te escrever porque aquela última vez que te liguei ao
saber do teu pai tu me deixou bem claro que preferia não ter mais notícias
nossas. [...] Desde que o pai de vocês morreu o Dante tá meio mal. Acho que
agora tu faz mais falta do que nunca pra ele. Ele nunca vai te admitir isso. Ele
nunca quis te fazer mal e sofreu tanto quanto nós [...] (p. 151).
identificadas com o asterisco. No entanto, não apenas as mensagens aparecem como
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notas. Outro exemplo é a descrição de um sonho que a mãe de Dália teve com o rapaz:
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Essas mensagens de facebook aparecem como notas de rodapé, sempre
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*Eu surgia num corredor, imobilizada e suspensa no ar, e não conseguia sentir o
meu próprio corpo. [...] Era noite e eu te vi sentado de costas pra mim, de calça
e camisa preta, cabelo cortado e barba feita. Tu olhava pra trás como se sentisse
a minha presença mas sem me ver.” (p. 99).
Há, também, uma nota de rodapé que relata uma mensagem deixada pela mãe do
personagem: “Nunca vi teu irmão desse jeito, parecia apavorado. Tava com medo de te
ver, é claro.” (GALERA, 2012, p. 53). Nessa, a mãe fala ao filho sobre o irmão com quem
ele rompera por causa de Viviane, a ex-namorada. Lembra, também, do comportamento
dos filhos no velório do pai.
Ainda enumerando as notas, outra delas é escrita com as palavras de uma garota
que trabalhava em uma boate. Ela conta que o levou para ver o mural onde cada uma das
meninas expõe um objeto ou uma foto que lhes motiva a fazer aquele tipo de trabalho:
[...] Tem fotos dos filhos, um chaveiro de Nova York, um bilhete de loteria. A
Márcia que quer ser comissária de bordo botou uma foto do avião. [...] Falei pra
ele que olhar no mural todo dia ajuda a gente a se sentir um pouco melhor. Aí
ele perguntou qual era a minha lembrança no mural e fiquei morrendo de
vergonha porque tinha esquecido que eu não tinha nada no mural.” (p. 239).
O que é perceptível nessas notas de rodapé é que elas dizem respeito à
mensagens deixadas para o personagem principal ou em situações em que as pessoas
falam alguma coisa a respeito dele, por vezes assumindo função de flashback na
narrativa. Além disso, é importante destacar que elas são escritas com linguagem
coloquial, aproximando-se ainda mais das características de mensagens online ou da fala
das pessoas.
Vale ainda lembrar outra característica dos sujeitos que vivem na sociedade
contemporânea: a dificuldade de ficar sozinhos para refletir, para encontrar-se consigo
mesmos. Contudo, o personagem principal de Barba ensopada de sangue sentiu a
necessidade de ficar sozinho. Decidiu mudar de cidade, deixar o grande centro onde
vivia. Com esse intuito, ele inicia sua busca por um lugar para morar na cidade litorânea
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À tarde começa a procurar uma casa. Visita três imobiliárias e consegue apenas
um contato. Os corretores negam haver oferta de locação anual na cidade. Um
deles chega a parecer irritado com a ideia o povo aqui não aluga por ano, só por
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de Garopaba:
feriado ou temporada. Estamos tentando mudar essa cultura. Garopaba vai
crescer muito nos próximos anos (p. 41).
Ele anda pela cidade em busca de um lugar para morar, até que, finalmente
encontra um apartamento, mas não foi nada fácil conseguir convencer a dona que ele
queria “simplesmente” morar na praia. Ela acaba alugando, mas pede uma grande
quantia em dinheiro em troca. Ele concorda, pois fica perto do mar. E,
na manhã seguinte estaciona o Fiesta ao relento na vaga situada no topo do
prédio, ao lado do portão, e carrega seus pertences escadinha abaixo numa
longa operação que se estende quase até o meio-dia. Os degraus são muito
estreitos e o corrimão baixo é um convite à queda (p. 61).
É nesse apartamento que ele decide morar em Garopaba. Tendo apenas a
companhia de Beta, a cachorra do pai que ficara sob seus cuidados, e de alguns poucos
amigos que fizera com o tempo. Teve também envolvimentos amorosos, primeiro com
uma garçonete, Dália. Depois com a moça que trabalhava na agência de turismo, Jasmim.
Ele se sente particularmente encantado por ela,
tenta pensar em outra coisa mas não consegue. Mulheres com flores no nome e
cabelos crespos. [...] Algo de vulnerável nos olhos grandes fixos na leitura. [...] Já
não lembra do rosto dela mas sabe que a achará bela de novo amanhã. Lembra
dos ombros abertos, o encaixe da cintura nos quadris, a postura empertigada na
cadeira. Nunca viu alguém sentar de maneira tão bonita. Está apaixonado pela
postura dela. É culta demais para aguentá-lo por muito tempo. O melhor seria
nem começar (p. 244).
O fragmento ilustra o envolvimento dele com Jasmim de forma mais intensa do
que com Dália. Contudo, uma superstição atrapalha que o romance tenha continuidade.
Essa superstição diz respeito à crença de que os jesuítas tivessem deixado um tesouro
enterrado em Garopaba, mas esse tesouro era amaldiçoado. Caso a pessoa sonhasse com
o tesouro três vezes e desenterrasse estaria condenada à morte. Só poderia se salvar se
outra pessoa cavasse e encontrasse o tesouro.
um vizinho idoso que queria a todo custo encontrar o tesouro.
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com o tesouro e comentara com algumas pessoas. Então passou a ser incomodada por
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Jasmim contou tudo isso a ele, acrescentando que já havia sonhado duas vezes
Então ela sonhou uma terceira vez, desenterrou o tesouro, ficou muito apavorada
com o que encontrara e decidiu jogar aquilo tudo do alto de um morro tentando se livrar
da maldição. Ele acompanhou tudo, exceto o momento em que ela decidiu se livrar dos
objetos e partir de Garopaba. Ele fica muito preocupado por não ter notícia dela, a ponto
de registrar queixa na polícia:
No sétimo dia Jasmim manda um torpedo dizendo que está em Porto Alegre,
que precisa pensar e que vai ligar assim que voltar, o que deve acontecer nos
próximos dias. Ele manda um torpedo perguntando se pode ligar mas ela não
responde. Tenta ligar mesmo assim mas ninguém atende. Liga cinco vezes
seguidas até que ela desligue o aparelho. Vai até a delegacia e retira a queixa (p.
295).
Os relacionamentos do personagem não são duradouros na trama, ilustrando na
narrativa uma característica da sociedade dos finais do século XX e início do século XXI.
As pessoas se conhecem, se apaixonam, por vezes até vivem juntas por algum tempo,
mas geralmente é fugaz, é a era do “não se apegar”, não firmar compromisso, poder
conhecer quantas pessoas mais, melhor, como se assumir um compromisso com alguém
significasse abrir mão de algo muito valioso: a liberdade.
Essa fugacidade dos relacionamentos na era contemporânea é abordada por
ZygmuntBauman no livro Amor líquido (2004). No referido texto, o autor explica aos
leitores de que forma o modo de viver atual interfere de forma direta nos
relacionamentos. Já nas primeiras páginas ele comenta sobre como ocorrem as
interações nas “redes”, defendendo a ideia de que o contato entre pessoas pela internet
não lhes assusta com o perigo de perderem a liberdade, pois podem assumir ou desfazer
compromissos com mais facilidade.
Entretanto, assumir compromisso mais sério do que o “virtual”, assusta. Dessa
O fragmento acima pode ser comparado ao comportamento apresentado pelo
personagem de Barba ensopada de sangue, cujas relações não eram duradouras nem
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O compromisso com outra pessoa ou com outras pessoas, em particular o
compromisso incondicional e certamente aquele do tipo ‘até que a morte nos
separe’, na alegria e na tristeza, na riqueza ou na pobreza, parece cada vez mais
uma armadilha que se deve evitar a todo custo (BAUMAN, 2004, p. 52).
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forma, Bauman pondera que:
profundas. Mas não representa somente aquele jovem professor de educação física,
revela a forma de pensar de toda uma massa de sujeitos que vive em um contexto social
em que o individualismo impera sobre doar-se a outra pessoa.
No caso do personagem de Daniel Galera, mudou-se para Garopaba para ficar
sozinho, assim poderia refletir e encontrar formas de alcançar seu objetivo maior, que
era desvendar a história do avô. Ele só procura auxílio de forma discreta, coletando
informações com os habitantes do lugar, mas mesmo nos momentos de mais dificuldade,
não pede ajuda.
Assim, a individualidade, a necessidade de estar a sós, a dificuldade ou relutância
em se envolver amorosamente com alguém, são elementos que tornam verossímil a
narrativa Barba ensopada de sangue quando relacionada à realidade. Há, no romance, a
ansiedade de uma geração que tem pressa, representada pelo dinamismo dos diálogos,
dispensando travessões, imitando uma conversa sem muitos rodeios.
Ainda estabelecendo paralelos entre realidade e ficção, o personagem principal,
assim como os indivíduos pertencentes ao “mundo real”, não tem uma noção acabada de
si mesmo e o objetivo de saber quem foi e o que aconteceu com o avô Gaudério
representa não apenas sanar uma curiosidade, ou realizar uma vontade que fora do pai
no passado. Ele precisa saber quem foi Gaudério para saber quem ele mesmo é, tendo a
certeza de que, seja o qual for sua descoberta, ainda assim não terá uma identidade
acabada, pronta, mas estará em constante formação.
E é sobre a identidade desse professor de Educação Física, personagem sem
nome, que se tratará o capítulo três deste trabalho. Será feita a análise da narrativa
Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera, tendo como intuito desvendar a possível
relação entre memória, esquecimento e identidade.
A partir das ideias expostas, é possível inferir que Barba ensopada de sangue
Página
apresenta elementos representativos do contexto contemporâneo atual. Um exemplo
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Considerações finais
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disso é a menção às redes sociais na narrativa, bem como à própria internet como
auxiliar na comunicação entre os personagens.
Outro exemplo que pode ser observado diz respeito à forma como a narrativa é
construída. Há dinamicidade nos diálogos, a fala dos personagens é coloquial e há uso de
gírias o que reforça o grau de desprendimento do autor dos modelos de escrita
utilizados no passado.
Ainda é necessário destacar os relacionamentos do personagem principal. O
professor de Educação Física, depois de uma decepção amorosa com sua ex-namorada,
que agora é esposa do irmão, está receoso por envolver-se novamente com alguém, o
que também pode ser comparado ao contexto social atual, no qual os relacionamentos
não são duradouros e há dificuldade para os sujeitos conseguirem viver uma vida a dois.
O personagem principal não tem nome, o que lhe confere um grau de anonimato,
que parece ser o que ele busca no decorrer do romance. Ele parte para Garopaba
tentando descobrir o que aconteceu com seu avô que desapareceu sem deixar vestígios.
E ao mesmo tempo que quer descobrir esse passado, quer ficar só, pois apesar de em
determinado dia acessar a internet em uma lanhousepara ver suas mensagens no
facebook, não tinha o costume de estar conectado à rede social. Ele se comportava como
se precisasse se desligar do mundo em que vivia para poder sentir-se centrado no seu
principal objetivo, que era juntar o quebra-cabeças da história de Gaudério e assim,
possivelmente, sua história teria mais sentido e ele poderia se compreender melhor.
REFERÊNCIAS
Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 5, jan./jul. 2014
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Artigo aceito em jul./2014
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A Contemporaneidade no Romance Barba Ensopada de