Ano 1 | Nº 6 | Set 2013
ISSN 2316-8102
DANIEL TOLEDO: NO MÍNIMO, O DUPLO SENTIDO
por Tales Frey
Há de existir alguma exceção no trabalho de Daniel Toledo que não contenha uma
reentrante temática nutrida por um inventivo e inquieto argumento que conecte o seu (e o
nosso) próprio corpo às consequentes formas de adorno que o compõe, além da sua (e da
nossa) identidade, onde a brasilidade e o humor estejam sempre presentes. Há mesmo de
existir?
Daniel Toledo, Paisagem #1 a partir da série fotográfica Paisagens Urbanas (2003 e 2004), Caracas, Venezuela
Daniel Toledo, Paisagem #2 a partir da série fotográfica Paisagens Urbanas (2003 e 2004), São Paulo, Brasil
Talvez o seu trabalho Paisagens Urbanas (2003/2004) tenha sido o único a escapar
dessa sua recorrência lógica (a que me conduziu até ele), mas sem desconsiderar o corpo
contemporâneo e sua fatídica conduta rígida sob controle, ou seja, Daniel, (in)diretamente,
aborda o corpo e a identidade atual como tema também nessa sua produção. Vemos paisagens
urbanas que narram sólidas normas a serem seguidas, afinal esta série de fotografias expõe
sinais transmitidos através de placas indicativas para o pedestre (des)respeitar, passagens
abertas ou fechadas, liberadas ou proibidas por sinais (que impossibilitam ou
permitem/facilitam caminhos). A imagem fotográfica da paisagem do centro urbano de uma
grande cidade, em Paisagem #1, é, aparentemente, identificada pelas cores que, no caso,
revelam as da nossa bandeira nacional, as quais estão estampadas justamente na imagem onde
as regras são desregradas. Mas para a nossa surpresa, essa imagem é captada em Caracas, na
Venezuela, e não no Brasil.
A simples rotação na posição da imagem a partir de uma trivial ambientação do centro
de uma cidade enfatiza uma ilícita placa de informação para pedestre a direcioná-lo a uma
caminhada para o alto e não para frente. E o que faz nosso olhar fixar diretamente nesta
imagem da placa é a sagaz inversão da posição da imagem fotográfica, que debocha desse
erro para criticar a furiosa exigência do acerto nas ditas sociedades civilizadas.
Daniel Toledo, Homem Espelho. Performance em Caracas, Venezuela, 2004. Fotografia de PaulaGabriela
Daniel Toledo, Homem Espelho. Performance em Caracas, Venezuela, 2004. Fotografia de PaulaGabriela
Em 2004, Daniel Toledo cria a sua performance intitulada por Homem Espelho,
através da qual vemos o performer a ilustrar, com perspicácia, o sujeito contemporâneo na sua
desenfreada rotina, porém ornado por um indumento extremamente esclarecedor com relação
a nossa atual representação estilhaçada; “a identidade plenamente unificada, completa, segura
e coerente é uma fantasia” [1], afirma Stuart Hall ao refletir sobre a chamada pósmodernidade. Daniel parece compreender perfeitamente essa noção ao expor seu corpo
vestido por fragmentos de espelhos que refletem diferentes imagens que estão ao seu redor e
que são alteradas todo o tempo. Ele constrói uma soma de múltiplas identidades a cada
instante, a qual nunca pode ser esgotada por uma única e rígida identificação. Vemos
claramente a evolução do seu olhar sobre a cidade através da fotografia (que capta o instante)
para a impressão desse registro sobre si, em narrativas mais esmigalhadas e fugidias, o que
demonstra com mais clareza o ritmo do meio urbano em uma metáfora bem mais arrojada.
Aliás, a sofisticação é um crescente no seu percurso, que é mostrado de forma extremamente
coerente; em cada nova criação vemos uma resposta dada ao passo arriscado anteriormente.
Transversalmente, a partir de Homem Espelho, fazemos alusão às criações de Duane
Michals intituladas por Mirrors bem como a obra Alice’s Mirrors, ou ainda, a performance
Fototot (1976) de Ulay, em que o performer posiciona um espelho à frente do seu corpo com
a superfície espelhada voltada para o espectador. Então, mantendo o seu corpo reto, Ulay cai
para frente até espatifar esse espelho no chão, o qual inevitavelmente o lacera. Podemos
ainda, direcionar nosso olhar para a performance Armadillo for Your Show (1999) de Oleg
Kulik, ação em que o artista cola fragmentos quadrados de espelho por todo o seu corpo e
converte-se em uma espécie de globo de discoteca.
Daniel Toledo, Série fotográfica Retratos sem rosto, 2006
Essa preocupação com o que diz respeito à identidade atual pode ser vista em outros
trabalhos de Daniel, tais como Retratos sem Rosto (2006) e Máscaras (2005), com os quais
ele comprova a instabilidade do sujeito pós-moderno, submisso aos seus constantes reajustes,
às suas próprias mudanças e contradições.
Daniel Toledo, Troca Troca Polaroide, 2007
Daniel Toledo, Troca Troca, 2008. Fotografias de registro da performance Troca Troca
Em torno dessas instabilidades, o artista cria Troca Troca Polaroide (2007), onde
exibe um homem e uma mulher trajando suas próprias roupas e depois com as roupas
trocadas. Essa obra deu origem a Troca Troca (2008), performance (que gera registros em
vídeo e fotografia como obras), em que oito artistas ladeados despem-se e deixam suas roupas
no chão à frente dos seus corpos, trocam de lugar e vestem o traje deixado no piso pelo outro
performer, sendo o vestuário correspondente ao corpo masculino ou feminino, exibindo
momentaneamente a nudez de todos os corpos ali presentes bem como diferentes
composições, em que corpos masculinos podem estar tomados por trajes tidos por femininos e
vice-versa. O título faz sugestão a uma prática que ocorre principalmente na fase da infância,
período de descoberta dos corpos e das sexualidades.
Num estudo psicológico sobre o indumento, J. C. Flügel avalia que uma minoria dos
investigadores do assunto considera o pudor o motivo principal pela busca da vestimenta,
“pensa que as roupas se originaram do resultado de uma tentativa de inibir a sexualidade” [2],
enquanto outros estudiosos (incluindo o próprio autor) acreditam que “o uso das roupas surgiu
do desejo de realçar os atrativos sexuais” [3]. Daniel, através desses trabalhos, discorre sobre
múltiplas funções do papel da roupa, que não pode ser reduzido a uma única interpretação,
pois destroça das conotações bíblicas – tão redutivas e castas – , ao mesmo tempo que declara
a diversidade, mas também a crise de identidade. Seu argumento ultrapassa a discussão
cerrada em um dos papéis fundamentais do traje: o pudor, o enfeite e a proteção.
Daniel Toledo, Cabeção Interditado, 2009
Interditados em Paris (2007) e Cabeção Interditado (2009) são exemplos claros. Seu
corpo é aval para vestir um corpo despido de trajes literais, pois tudo, antes da sua
interferência, era de pedra, de bronze, de mármore, etc. Tudo é ultra-rígido e homogeneíza o
que seria de carne e de pano, até que Daniel intervém com um material novo, uma fita de
plástico utilizada para impedir passagem, utilizada, nesse caso, para destronar alguns ícones
históricos, como, por exemplo, obras escultóricas clássicas da Escola de Belas Artes de Paris
e um enorme busto de Getúlio Vargas na praça Luís de Camões no Rio de Janeiro. Daniel
veste sua roupa politizada e cheia de vida nesses inanimados monumentos.
Daniel Toledo, Homo Ludens, 2009
Daniel Toledo, Caras, 2011
Em Homo Ludens (2009) – obra interativa de acrílico que expõe fotos de corpos
femininos e masculinos, vestidos e despidos, podemos recombinar as peças e criar novas
identidades a cada interação, mesclando nudez e corpo vestido, bem como gerar corpos
híbridos, andróginos, queers. Em Caras (2011), série de fotos, o artista explora uma
brincadeira similar ao recombinar alguns rostos, fazendo, em cada nova face, a junção de
diferentes pessoas, construindo, então, uma nova identidade. As linhas que indicam corte,
com a ilustração de uma tesoura (tal e qual aqueles moldes de papel para criança recortar para
iniciar uma brincadeira com os retalhos), sugerem mais possibilidades de combinações, não
definindo o que compõe a aparência do sujeito nem mesmo quando ele já está
demasiadamente refeito. Imageticamente, esse último trabalho mencionado pode fazer
conexão com Renais Sense (1972-74) do artista Ulay.
Daniel Toledo, Veste Nu, 2010
Daniel Toledo, Veste Nu, 2010
Daniel Toledo, Veste Nu. Performance no Rio de Janeiro, Brasil, 2010
Veste Nu (2010), de Daniel Toledo – em parceria com a artista Ana Hupe –, é uma
obra irônica que veste ao mesmo tempo que sugere o corpo nu, não peca (num âmbito
moralista) por ocultar a verdadeira nudez, mas detona com as normas morais ao estampar essa
nudez sobre a própria vestimenta. O duplo sentido pode ser compreendido no próprio título
desse trabalho. A metáfora da nudez é literal quando surge timbrada no tecido que a oculta e
alude a sua natureza ao mesmo tempo. A obra expõe o corpo pecador, o corpo feminino e o
masculino despidos do “traje divino” e vestidos de sexualidade. Vemos aqui, preceitos
impressos nas palavras de Giorgio Agamben para explicar a nudez e também artistas como
Marcel Duchamp (ao incorporar Rrose Sélavy), ou ainda, Flávio de Carvalho (vestindo seu
‘new look’ para questionar o traje vestido nos países tropicais), Andy Warhol em Altered
Image (fotografado por Christopher Makos), assim como as composições em polaroides de
Ulay intituladas por Teasing (1972), Transformation (1975), S’he (1973) e Hermaphrodite
(1973), ou ainda, Transvestite Action (1967) de Günter Brus, artista que compunha o
acionismo vienense.
Com formação em Licenciatura em Educação Artística – Artes Plásticas na
Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestrado em Linguagens Visuais pela mesma
instituição, Daniel Toledo estabeleceu seu coerente percurso paralelamente ao seu período de
formação acadêmica, explicitando um forte argumento acerca da identidade, o que, inclusive,
pode ser uma das motivações para fazer parte de uma identidade coletiva através do grupo
OPAVIVARÁ!, coletivo de arte carioca criado em 2005.
*
Apesar da linguagem não ser verbal e sim visual, quem melhor para explicitar o
conteúdo de suas obras senão o próprio criador? Essa pergunta me conduziu à seguinte
entrevista, com a qual fecho este estudo:
TALES FREY: A relação humana com o corpo nu, lendo Nudez do Agamben
(comentando Erik Peterson em Theologie des Kleides), é que o corpo antes do pecado original
estava “coberto” por uma espécie de manto sagrado e que, após o pecado original, foi
“descoberto” desse “indumento”. “Antes estava velado e vestido o que agora é desvelado e
despido” [4]. Essa noção de corpo vestido de indumentária, portanto, implica justamente na
ausência de pureza, tornando, então, necessária a ocultação da corporeidade desprovida do
intermédio sagrado, da “veste sagrada”, do “traje divino”, elemento que impediria o olhar
desaprovador para as marcas da sexualidade presentes nos corpos dos seres humanos. A
vergonha do corpo nu é diretamente relacionada à conduta religiosa e, sobretudo, ao medo de
Deus. No Gênesis, encontramos, por exemplo, a seguinte declaração de Adão para Deus
depois do pecado original: “ouvi a tua voz no jardim e, cheio de medo, escondi-me, porque
estou nu (Gn 3, 10)” [5]. Essa relação do sujeito com o pudor é ironizada em parte do seu
trabalho e eu vejo isso claramente na sua performance Veste Nu. Vejo ainda que você acaba
por colocar em xeque a diferenciação de indumentária feminina/masculina apropriada para
cada corpo numa conjugação com seu sexo, pois é somente através da estampa de um corpo
masculino/feminino nu que há tal diferenciação, já que os dois trajes têm a mesma
modelagem. Qual foi ao certo o motivo da criação desse trabalho? E como as pessoas reagiam
a ele enquanto vocês transitavam nas ruas do centro do Rio de Janeiro?
DANIEL TOLEDO: Pra início de conversa, acho importante dizer logo que meu
trabalho fala melhor sobre mim do que o contrário; minhas propostas são o meu discurso, ou
seja, não são apresentações ou representações de ideias e pensamentos. Me jogo no trabalho
pra experimentar certas sensações no meu corpo mesmo.
Essa coisa de indumentária feminina e masculina acaba servindo pra disfarçar o fato
de que roupa é roupa: pano sobre pele que cobre nossos corpos. O que nos difere e mantém
semelhança como indivíduos (mulheres e homens) são nossos corpos, nossos nus. Por isso
escolhi usar um macacão branco, nem masculino nem feminino, apenas roupa, uniforme. Mas
claro em nossa cultura a roupa tornou-se pele e, com isso, as pessoas acabam por construir
suas personalidades, identidades com suas vestimentas. É a moda. E sobre isso Agamben nos
diz que:
[...] É provável que, como sugerem os Teólogos, isso dependa do fato de que a moda,
pelo menos em nossa cultura, é uma signatura teológica do vestido que deriva da
circunstância de que a primeira peça de vestuário foi confeccionada por Adão e Eva
depois do pecado original, na forma de um pano entrelaçado com folhas de figueira.
(As peças que vestimos derivam não desse pano vegetal, mas das: “tunicaepellicae”,
dos vestidos feitos com peles de animais que Deus, segundo Genesis 3,21, faz com
que nossos progenitores vistam, como símbolo tangível do pecado e da morte, no
momento em que os expulsa do paraíso). [6]
Tem um trabalho do Duane Michals que eu gosto muito e que ilustra, às avessas, essa
passagem descrita por Agamben, em Paradise Regained. Uma sequência de imagens mostra
um homem e uma mulher perdendo suas roupas e retornando ao estado original em que Adão
e Eva andavam nus, uma retomada do ancestral atávico. O nu é a única coisa que temos em
comum e nos leva diretamente para nossa origem, nosso jeito de ser humano.
Hoje, a roupa é a pele, os corpos são cerceados de sua originalidade e têm de estar
cobertos quase o tempo todo. Em Veste Nu, performance que realizo em parceria com Ana
Hupe, o corpo só é restituído de sua nudez graças às roupas impressas com as imagens dos
próprios corpos nus que vestem esta pele de imagem.
Quando o português chegou
Debaixo de bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português
(Andrade, Oswald de. “Erro de Português”)
O português quer vestir o índio, o índio despir o português, mas o que fica não é uma
coisa nem outra e sim outros! Daí o paradoxo de se vestir o nu.
Humor e ironia são fundamentais, gosto muito de usar isso nas minhas propostas,
andar nas ruas com Veste Nu sempre provoca uma euforia nas pessoas e diversos comentários
dos transeuntes, muitos bem humorados, mas sempre tem os reprovadores e o que me lembro
foi de ouvir, certa vez, que era pra vestirmos uma roupa. Uma importante referência é Flávio
de Carvalho e seu “Traje New Look” (Experiência Número 3), em que sua passarela era a rua,
o mundo. Desde 1944, pesquisava a vestimenta como componente importante da arte e
acompanhava seu desenvolvimento nos trópicos, constatando com isso que a roupa não
representava uma necessidade básica para a humanidade, já que ela viveu por milhares de
anos despida. Para ele, “os povos necessitam da roupa para sua estabilidade mental.” [7]
TALES FREY: O título da sua videoperformance Troca Troca faz sugestão a uma
prática que ocorre normalmente num período de descoberta dos corpos e das sexualidades. Na
obra, além dos trajes correspondentes para cada caso, homens se vestem com roupas
consideradas femininas e mulheres com trajes tidos por masculinos. Lambe Lambe Troca
Troca foi um desdobramento desse mesmo trabalho, mas que gerou uma outra obra, a qual é
apresentada de forma autônoma, não? Como você avalia a recepção do mesmo assunto
abordado nos dois trabalhos em dois diferentes suportes? Aliás, o ponto de partida foi uma
série em polaroides, havendo, então, mais esse outro suporte que vale ser comentado também.
DANIEL TOLEDO: Os corpos e as sexualidades estão sempre sendo descobertos,
assim, eu penso e sinto. Em Troca Troca, o mais importante pra mim era a diversidade de
pessoas, homens ou mulheres, todos amigos que aceitaram meu convite para participar desse
jogo, mas, na hora em que organizei as pessoas na fila, acabei intercalando homens e
mulheres, talvez devesse ter organizado de outra maneira para que a questão homem X
mulher não ficasse tão polarizada. Ou seja, me importava mais experimentar as diversas
possibilidades de roupas do que apenas usar uma roupa de homem ou de mulher. Lembro aqui
da Rrose Sélavy, Duchamp dizia: “Não foi para trocar minha identidade, mas para ter duas
identidades.” [8] Então, acho que Troca Troca não foi pra trocar minha identidade (homem X
mulher), mas foi pra experimentar várias identidades!
Pensar então em trocas de roupas, como no caso de Troca Troca é propor a construção
contínua de identidades através da produção de diferentes autorretratos, colocando em prática
o pensamento de se desfazer dos padrões e se pensar nas relações, nos lugares-espaços e
tempos diferentes, com pessoas diferentes. Ou seja, a construção de uma auto-identidade que
também é coletiva, na qual um é formado e influenciado pelas diferentes relações que
estabelece, e onde o lugar também interfere. Trocar e se ver nos outros, somar os outros,
comer os outros, se vestir como os outros. Como o seu olhar contamina o outro, como se pode
deglutir o outro retratando-o em si mesmo. Ou, como diria Rimbaud, “Je est un autre”.
A origem desse trabalho está mesmo nas polaroides, que foi uma pequena coleção que
comecei a fazer com casais de amigos que eu pedia pra trocarem de roupa, mas lembro que
começou a ficar difícil comprar polaroides e acabei interrompendo a coleção. Mas, quando fiz
o vídeo, foi a convite do Paulo Venâncio Filho para realizar um trabalho pra exposição “Nova
Arte Nova”, que ele estava fazendo a curadoria no CCBB-RJ. Nessa ocasião, eu realizei a
performance num estúdio para a câmera, o desejo era fazer a ação se tornar imagem, o vídeo
vira uma projeção em tamanho real (escala humana). Quando fiz a filmagem, aproveitei e
fotografei a ação, gerando uma série gigante de fotografias, o que me possibilitou fazer uma
seleção de uma imagem para cada momento da performance. Usei essa seleção de fotografias
para uma exposição que realizei na Galeria Marcantônio Vilaça no Espaço Cultural Sérgio
Porto. O que foi interessante ali, é que o espaço me permitiu realizar um painel contínuo de
40 metros lineares usando a sequência de fotografias, ocupando todas as paredes da galeria.
Não seria possível fazer essa montagem em qualquer lugar. Acho ótimo que Troca Troca
tenha essa possibilidade de experimentar tantos suportes, a ação ao vivo, a projeção, as
fotografias, a instalação e mesmo uma versão do vídeo que está disponível no youtoube
(http://youtu.be/qwvgiKrSFBs).
TALES FREY: Caras, Homo Ludens e Homem Espelho são obras que abordam o
típico sujeito contemporâneo, quando você retrata um sujeito fragmentado, estilhaçado,
confirmando que não há nenhuma identidade que corresponda a algo inerte e permanente que
possa caber dentro de uma moldura e lá ficar, pois isso não representaria bem o espelho
despedaçado que vemos à nossa frente. A identidade é uma abordagem bem recorrente no que
você se empenha em fazer como arte. Máscaras e Retratos sem Rosto também enfatizam essa
sua escolha, assim como as suas intervenções de (re)vestir com fita plástica algumas
esculturas em Paris e, também, um enorme monumento do Getúlio Vargas no Rio, que fica
oculto por debaixo do adorno que você cria. E no OPAVIVARÁ! como você percebe essas
ocorrências que são frequentes no seu trabalho individual?
DANIEL TOLEDO: Todos os meus trabalhos podem ser pensados como
autorretratos. Em obras, como Homem Espelho ou Troca-Troca, o problema da autoimagem e
da identidade individual é questionado mais diretamente, colocado como sendo um processo
de construção coletiva. Mas, mesmo em trabalhos da série Interditados, nos quais o
autorretrato não é tão óbvio, a supressão de ícones, como esculturas clássicas da Escola de
Belas Artes de Paris ou de personagens históricos como Getúlio Vargas, chama atenção para
as formas autoritárias de construção de uma identidade coletiva através de uma História
oficial. Já em trabalhos como Um retrato público da ilustração da arte da série Máscaras,
Retratos sem Rosto e ainda em Caras, o retrato e o rosto são utilizados como uma
possibilidade de construir e desconstruir a imagem da minha identidade. Roupa, corpo, rosto,
imagem, superfície compõem esses autorretratos que simultaneamente dialogam e questionam
as nossas crenças sobre o que nos define e identifica como indivíduos hoje. Não somos,
estamos. Em movimento o tempo todo.
Em relação ao OPAVIVARÁ!, o que posso dizer é que se trata de um “indivíduo
coletivo” e não de um coletivo de indivíduos. É uma identidade composta por uma
multiplicidade de identidades, que somadas, criam esse monstro que é o grupo. Tem um
posicionamento político e poético em estar em grupo e fazer parte do OPAVIVARÁ!. E a
poética do coletivo é a própria coletividade, o que é comum, público, compartilhado. Além
disso, em todas as ações, acabamos nos diluindo no público, que, por sua vez, se torna
também artista e autor, criando e construindo o trabalho juntos.
Nas palavras do próprio OPAVIVARÁ!:
O BONDE CORRE NA CONTRA-MÃO QUANDO A COISA SE FAZ
NA AÇÃO!
MAS PRA NÓS TALVEZ SEJA MAIS A VOZ QUE A FALA!
E MUITAS FALAS PODEM SE UNIR NUMA ÚNICA VOZ!
COSTUMAMOS CHAMAR DE MONSTRO, ESSE CORPO QUE
MONTAMOS SEMPRE EM MONTAGEM!
MAS QUEM FALA?
MUITAS VEZES, NÓS NÃO SABEMOS!
E NÓS JÁ NÃO SOMOS MAS AQUILO!
O OUTRO!
OS OUTROVIVARÁS!
NÃO HÁ APENAS UM ACORDO, SÃO VÁRIOS ACORDOS,
DESACORDOS, IMPASSES, CERTEZAS, DÚVIDAS, CONTRADIÇÕES,
TAPAS, BEIJOS, CHEIROS, SARROS, ABRAÇOS, EMBARAÇOS, AMASSOS!
HÁ
UMA
ESPÉCIE
DE
AUTONOMIANÁRQUICA
QUE
COMPARTILHAMOS… MAS PRA ISSO TEM QUE ROLAR UMA SINTONIA,
UMA QUÍMICA, AMORDESEJO PELA COISA! INTENSA CONVIVÊNCIA!
OPAVIVARÁ! PODE SER UM E MIL – É UM INDIVÍDUO COLETIVO, É O
TAL MONSTRO! NÃO SE TRATA DE AGENCIAMENTO DE CARREIRAS
INDIVIDUAIS. VIVA DEVIR COLETIVO! NA NOSSA TRIBO TODOS
SOMOS LÍDERES E COMPARSAS UNS DOS OUTROS! MOTINS SÃO
CONSTANTES! TRATA-SE DE UMA PROPOSIÇÃO DE VIDA, ESTÉTICA
GENERALIZADA TOTAL! NÃO TEMOS REGRAS NEM ESTATUTOS, MAS
ESTAMOS SEMPRE PROPONDO PARÂMETROS E CONTRATOS QUE SÃO
CONSTANTEMENTE SUBVERTIDOS E REAVALIADOS, ESTAMOS O
TEMPO TODO NUMA D.R. CRIATIVA! PLÁ!
(Trecho da conversa entre OPAVIVARÁ! e Alexandre Sá – 2013)
Notas
[1] HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, p.13.
[2] FLÜGEL, J.C. A Psicologia das roupas, p. 20.
[3] idem.
[4] PETERSON, Erik. apud. AGAMBEN, Giorgio. Nudez, p. 75
[5] BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução do Centro Bíblico dos Capuchinhos. 5. ed. rev.
Fátima: Ed. Difusora Bíblica, 2008. p. 288.
[6] AGAMBEN, Giorgio. Nudez, p. 67.
[7] COSTA, Cacilda Teixeira da. Roupa de Artista: O Vestuário na Obra de Arte, p. 72-73.
[8] DUCHAMP, Marcel in TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia, p. 256.
Bibliografia
AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D`Água, 2009.
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução do Centro Bíblico dos Capuchinhos. 5. ed. rev. Fátima:
Ed. Difusora Bíblica, 2008.
COSTA, Cacilda Teixeira da. Roupa de Artista: O Vestuário na Obra de Arte. São Paulo: Imprensa
Oficial do estado de São Paulo – EDUSP, 2009.
FLÜGEL, J. C. A psicologia das roupas. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1966.
HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. 7ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. Trad. de Maria Teresa de Resende Costa. São Paulo:
Cosac Naify, 2004.
© 2013 eRevista Performatus e o autor
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