O que é entendimento? Tiago Ferreira Entendimento é um estado disposicional que envolve a conexão entre as partes de uma certa realidade, bem como a ligação destas partes com o todo. Em níveis menos complexos, apenas disposições comportamentais são observadas, enquanto em níveis mais complexos, elementos dos três níveis (comportamental, fenomênico e cognitivo) fazem parte deste estado disposicional. Assim como em Sosa atribui-‐se ao conhecimento propriedades complexas que podem distingui-‐lo entre conhecimento animal e conhecimento reflexivo, a partir da atual concepção do entendimento, parece necessário também realizar uma operação de discriminação semelhante: poderíamos falar de entendimento animal e reflexivo. O entendimento reflexivo possui por propriedade de distinção o envolvimento da capacidade metacognitiva acerca do entendimento, exigindo, portanto, o conhecimento proposicional que se enquadra em enunciados como “eu sei que entendo x”. Veja o seguinte exemplo: Daniel San, depois de sofrer bullying de colegas da escola, é treinado pelo senhor Miyagi nas artes do Karatê. No entanto, suponha que Daniel não sabe que, quando o Senhor Myiagi o ordena a pintar a cerca, encerar o carro e limpar o assoalho, está, na verdade, ensinando-‐o a lutar Karatê. Imagine que Daniel nem imagina que o Senhor Myiagi entende Karatê. Estenda o exemplo não apenas para os golpes básicos, mas suponha que o Senhor Myiagi foi muito bem sucedido em seus ensinos. Depois disso, Daniel está andando sozinho na rua e três dos seus colegas o atacam. Daniel se defende usando as habilidades que aprendeu e sai assustado deixando os colegas derrotados ao chão. Suponha que isto aconteceu mais algumas vezes até que os colegas desistiram de importuna-‐lo. Em um certo grau, Daniel entende Karatê. Ele não apenas sabe como dar um ou outro golpe, mas imagine que ele consegue interligar os golpes em um todo coerente, se defendendo na hora certa e atacando, também na hora certa. Em um certo grau, é possível dizer que Daniel Entende Karatê. Mas ao ser perguntado sobre isto, ele mesmo vai dizer que não entende Karatê. Certamente, se alguém pedir que ele faça algum movimento típico do Karatê, ele certamente vai dizer que não é capaz de faze-‐lo. O ponto em questão é que há, em Daniel, um nível de entendimento, mas sem reflexividade -‐ assim como o Menino Selvagem de Truffault também entende a estrutura da caça, sem reflexividade. Acaso Daniel seja ensinado que a sua forma de defender-‐se é parte da arte marcial em questão, ele poderá estudar mais sobre Karatê, aprimorar suas habilidades, pensar sobre isto. Para além disso, sua responsabilidade, enquanto agência epistêmica, também aumentará. Este é um nível de entendimento reflexivo. Entendimento é, portanto, uma categoria mais ampla do que o conhecimento. Em determinados níveis há a exigência de conhecimento proposicional, mas em outros, apenas elementos disposicionais não proposicionais. A concepção de entendimento de Zagzebski, então, precisa de um re-‐formulação no iten (3). Não poderíamos afirmar que “understanding is the state of comprehension of nonpropositional structures of reality”, mas seria mais adequado afirmar que o iten (3) poderia ser assim descrito: (1) Entendimento é o estado de compreensão que envolve, em um nível mais baixo de complexidade, estruturas não proposicionais de realidade e em um nível mais alto de complexidade, a compreensão tanto de estruturas não-‐proposicionais quanto de estruturas proposicionais. Para além desta conceituação básica, é importante ressaltar que, embora possamos negar “that the proposition is the only form in which reality can be made intelligible to the human mind”(Zagzebski, 2001, p. 242), para a epistemologia e para o Ensino de Ciências (EC), há um interesse especial no tipo de entendimento que podemos chamar reflexivo. O objetivo do EC claramente se refere a um entendimento reflexivo em que o aluno não apenas desenvolva a competência de agir de maneira bem sucedida em estruturas não-‐proposicionais, mas que também possa refletir sobre o processo, se tornando ainda mais responsável pelo entendimento que adquiriu. No entanto, talvez um elemento ainda mais forte precise ser inserido nesta definição. Mesmo quando envolve conhecimento proposicional, o entendimento ainda se distingue por uma disposição inteligente que é não-‐proposicional, qual seja a conexão entre as diversas proposições que são conhecidas. Alguém pode ter conhecimento de diversas coisas e ainda assim não ter entendimento, já que este se refere não as proposições, mas a conexão entre elas. Entender por que a minha casa pegou fogo pode envolver, e tipicamente envolve, o conhecimento de diversos fatos (eg. Saber que determinadas substâncias são comburentes; saber que a fiação elétrica defeituosa pode gerar faíscas, etc), mas o entendimento se refere primordialmente a relação entre tais proposições e não as proposições em si mesmas. A relação entre as proposições é um objeto diferente das próprias proposições, embora as envolva como condição necessária para ocorrência. Esta relação pode ser, em certos casos, descrita proposicionalmente, mas tipicamente não é. Isto quer dizer que, mesmo quando envolve conhecimento proposicional, o entendimento não necessariamente é proposicional. Um músico comumente possui conhecimento de vários elementos musicais, mas o seu entendimento de composição transcende as regras que ele conhece envolvendo a relação entre ritmo, notas, combinações de notas em acordes, etc. Em relação ao objetivo do EC, parece claro que o professor não deseja apenas que o seu aluno conheça coisas. Um professor de ciências certamente não deseja que o seu aluno seja um novo “Funes o Memorioso”, mas que consiga interligar seus conhecimentos em um todo coerente, sendo capaz também de agir de maneira bem sucedida em estruturas proposicionais e não proposicionais. Em uma palavra, que o aluno entenda. 1. Verdade e Entendimento Goldman (1999) afirma que o conhecimento, no sentido fraco de crença verdadeira, é o objetivo do EC. Mais do que isto, afirma que o entendimento é instrumental para aquisição da verdade. Vamos analisar estas assertivas do ponto de vista aqui discutido. O entendimento não necessariamente envolve a verdade, embora sempre envolva um caráter de facticidade. Isto quer dizer que o entendimento de Karatê, que Daniel San possui, não necessariamente se adequa a uma classificação como “verdadeiro ou falso”, mas certamente somos capazes de avaliar a facticidade de seu entendimento a partir do sucesso das manifestações das disposições em questão. Ao tratar de Entendimento Reflexivo, sempre envolvemos critérios de verdade, mas não o reduzimos a verdade. Neste ponto, a verdade pode ser considerada instrumental para a aquisição de entendimento, mas não o inverso. Ademais, a verdade é instrumental mas não suficiente, já que podemos conhecer e não entender uma certa realidade. O aluno bem sucedido de ciências é alguém que possui entendimento de estruturas proposicionais (que, portanto envolvem verdade) e não proposicionais de uma certa realidade (que envolvem apenas critérios de sucesso). Na educação científica, prezamos pelo Entendimento Reflexivo e consideramo-‐lo virtuoso, mas isto não implica em dizer que o objetivo do EC é a verdade. Apesar dos argumentos citados, este ainda é um tratamento muito abrangente acerca do entendimento. Faz-‐se necessário um recorte maior para a circunscrição de que tipo lógico nos referimos quando argumentamos nestes termos. Kvanvig (2003, p. 189) cita várias formas possíveis de enunciados que contenham o entendimento, como por exemplo: “He understands quantum theory.” “She understands that Gore might have been president.” “They understand why Germany invaded Poland.” “We understand where you are coming from.” “You understand what it takes to be a marine” Certamente um tratamento adequado acerca do entendimento deve, ao menos, especificar de maneira mais clara sobre qual o objeto a que realmente nos referimos. Não creio, no entanto, que ao fazer tais especificações possamos prescindir dos problemas abordados neste paper. Referências Goldman, A. Knowledge in a Social World. NY: Oxford University Press, 1999. Kvanvig, J. The Value of Knowledge and the Pursuit of Understanding. NY: Cambridge University Press, 2003. Zagzebski, L. Recovering Understanding. 2001.