Desenvolvimento, ONGs e Sociedade Civil
Editado por Deborah Eade e apresentado por Jenny Pearce
_________________________________________________________________________
Prefácio
Deborah Eade
O desenvolvimento, no sentido de um corpo de pensamento e prática sobre por que a
pobreza existe e persiste e sobre como erradica-la, tem uma história relativamente recente.
Diz-se que a era do desenvolvimento foi lançada pelo Presidente Truman em 1949 e é
verdade que a maioria das agencias especializadas da ONU foram estabelecidas nessa
época. (1) As ONG's do desenvolvimento, por tanto, são muito mais recentes embora
muitos dos nomes que hoje são familiares – Save the Children Fund, CARE, Oxfam –
começaram como agencias de assistência ou de ajuda em emergências e, ou se
‘converteram’ ao desenvolvimento nas décadas de 60 e 70 ou, pelo menos, o descobriram.
Milhares surgiram à medida que a industria do desenvolvimento realmente decolava. A
medida em que se começou a entender melhor que as causas da pobreza e a vulnerabilidade
eram estruturais e não ‘naturais’, as ONG's começaram a entender que o desenvolvimento
era a melhor forma de prevenção de desastres e que uma resposta ‘desenvolvimentista’ era
mais apropriada em emergências que uma proeza. Naturalmente, uma grande variedade de
enfoques e atividades foram – e ainda são – colocadas dentro do pacote da categoria
‘desenvolvimento’ que cobre tudo e qualquer coisa, desde a construção de latrinas e
esgotos, até o apoio a programas educativos de sindicatos e trabalhos pelos direitos
humanos. Mas, seja que as ONG's assumissem um enfoque de ‘necessidades básicas’ ou de
‘mudança estrutural’, havia um amplo consenso quanto a que, para erradicar a obstinada
pobreza, era necessário algo mais e bastante diferente, do que a ajuda humanitária. Em
contraste, a sociedade civil tem uma história de séculos no pensamento político de Ocidente
que data dos filósofos da antiga Grécia e que hoje está viva e goza de boa saúde – apesar de
que é cada vez mais obvio que é um termo bastante ‘folgado’. Como alguns dos seus
predecessores na linguagem desenvolvimentista – ‘comunidade’, ‘participação’,
‘desenvolvimento de baixo para cima’ – invoca-se mais freqüentemente para dar um brilho
benigno do que para iluminar o debate ou a prática.
Por que estas três categorias – desenvolvimento, sociedade civil e ONG's – chegaram a ser
vistas não só como categorias que se reforçam mutuamente, mas como termos superpostos
ou quase sinônimos? Porque, lendo certa literatura da política de ajuda dos anos 90, e a
julgar pelos recentes padrões de concessão de fundos das maiores agencias doadoras,
poderia se perdoar pensar que sociedade civil é igual a ONG's e que as ONG's são uma
parte essencial não somente da ‘entrega’ da ajuda para o desenvolvimento, mas da entrega
do desenvolvimento mesmo. Em outras palavras, que o desenvolvimento depende das
ONG's. Como foi fabricado este mito?
Existem vários elementos diferentes que podem fazer parte da explicação.
Em primeiro lugar, o projeto neoliberal – como expressado através do ajuste estrutural no
Sul e promovido pelos seus ideólogos e lideranças políticas no Norte (Ronald Reagan e
Margaret Thacher foram os mais notáveis) – requer um controle sobre os gastos do estado,
uma redução a níveis anteriores às inversões no setor social. Em teoria, um mercado sem
restrições forneceria serviços mais eficientes e criaria trabalhos que gerariam a riqueza
necessária para sustenta-los. Como agências privadas voluntárias, as ONG's podiam ocupar
esse novo espaço confortavelmente, principalmente, por exemplo, no que se refere à
participação em projetos de redes de segurança e fundos de investimento social que,
supostamente, aliviariam os efeitos imediatos do ajuste estrutural. Por tanto, as ONG's
foram estimuladas a se apresentarem como os canais apropriados para ajudar os mais
pobres, aqueles em perigo de cair pelos buracos da rede ou aqueles que a rede nunca
protegeu nem foi chamada a proteger. Muitas ONG's que antigamente se orgulhavam da
pouca ajuda financeira que aceitavam do governo começaram a aumentar os seus limites
auto-impostos na medida em que o dinheiro entrava.
Segundo, a ruptura do bloco soviético, que culminou com o colapso do muro de Berlim em
1989, foi associado com – e para alguns observadores atribuído a – o surgimento de
organizações populares através das quais articulava-se poderosamente a oposição ao
sistema político prevalecente. Estas incluíam grupos eclesiásticos, sindicatos, corpos
profissionais e, também, o nascente setor de ONG's. A idéia de organizações autônomas da
sociedade civil que obrigassem o governo a prestar contas e, que ao mesmo tempo
impulsionassem uma agenda democrática, atraia observadores de diferentes pontos do
espectro político – tanto pragmáticos quanto românticos – mas a abertura das economias
centralizadas na Europa Oriental coincidiu também, claramente, com os avanços da agenda
neoliberal que já estava a caminho tanto na América do Norte quanto na Europa Ocidental
e em grande parte do Sul.
Terceiro, na América Latina existe uma longa tradição de organização social como forma
de resistência a ditaduras militares no Continente, especialmente porque o espaço político
para o diálogo foi fechado. As ONG's jogaram um papel vital em países como o Brasil e o
Chile servindo, muitas vezes, para manter o pouco espaço que poderia existir para o debate
ou para aferrar-se a uma visão alternativa da sociedade. Na América Central, as
prolongadas guerras civis, que envolveram a maior parte da região na década de 80,
estavam militarmente num ponto morto no final da década. Com os Estados Unidos e a UE
voltados para a Europa Oriental, o fio dos fundos estava a ponto de ser desligado e a ajuda
externa começou a ir pelo ralo: o apoio dos Estados Unidos aos contra na Nicarágua e ao
governo e aos militares em El Salvador, estava-se tornando cada vez mais difícil de
justificar diante do eleitorado doméstico em termos da ‘crescente onda do comunismo’, e o
prolongado apoio da UE a soluções políticas para as guerras estava começando a declinar.
E, o assim chamado colapso do socialismo teve claras repercussões no tipo de futuro que os
movimentos de esquerda e centro esquerda da América Central podiam visualizar. O
momento de gloria do vanguardismo tinha passado, definitivamente. A medida em que a
possibilidade de algum tipo de processo de paz ia tomando forma, as ONG's e os ´thinktanks´ alternativos viraram-se para Antonio Gramsci – um dos mais influentes pensadores
da sociedade civil – mais do que para o Che Guevara, para pensar como poderiam ajudar na
construção do novo Estado, ao mesmo tempo em que mantinham a sua função
independente de cão de guarda e protagonista político. (O mesmo tipo de debate aconteceu
depois na África do Sul, quando as ONG's e os ‘cívicos’ tiveram que redefinir o seu papel
no contexto da tomada do poder pelo CNA, o que demandou algumas rápidas mudanças de
marcha. (Veja-se, por exemplo, Pieterse 1997).)
Que o aumento do neoliberalismo tenha coincidido com processos profundos (embora não
já revolucionários) de transição enraizados nas suas próprias sociedades e culturas, pode
não ter sido um acidente da história. Prestou-se, porem, tanto à apropriação – inclusive ao
seqüestro – destes processos pela ala ideológica do Consenso de Washington – com o seu
foco num bom governo e uma democratização do Sul e do Leste – quanto ao abraço, sem
sentido crítico, por doadores e comentaristas políticos, ONG's incluída, de qualquer coisa
que se autodenominasse ‘sociedade civil’. Houve um florescimento de noções neoromânticas de comunidades auto-abastecidas e auto-reguladas versus os estados normativos
e intrometidos. Inclusive os críticos mordazes do ‘cassino capitalista’, como David C.
Korten que defendeu durante muito tempo que o desenvolvimento genuíno deve estar
‘centrado no povo’(2), atribuíram qualidades quase messiânicas às ‘comunidades locais’
autônomas que seriam a única esperança de resistência contra o assalto do capitalismo
corporativo. A sociedade civil não podia errar e não existia nada que não pudesse fazer. As
ONG's, pelo seu lado, floresciam como cogumelos e ofereciam-se para ser, tanto o canal
para fortalecer a sociedade civil quanto as organizações da sociedade civil em si mesmas –
e inclusive, às vezes, parecendo reclamar o direito divino a representar ou a falar em nome
de toda a sociedade civil. O que foi convenientemente deixado de lado foi que tanto as
organizações neonazistas quanto as de direitos humanos, as máfias e as organizações de
beneficência, os sindicatos e os rompe greves, os grupos pela defesa dos direitos dos
animais y os que defendem a caça da raposa, todas fazem parte da sociedade civil. A
internet também abriu muitas possibilidades para que pessoas com mentalidade parecida
formassem ‘comunidades virtuais’ e compartilhassem as suas idéias. Algumas redes da
sociedade civil vêem a necessidade de estados mais efetivos, regulamentação de mercado,
impostos para as transações financeiras especulativas, etc. Outros vêem a sociedade civil
como a única que pode garantir as liberdades individuais sustentando que o socialismo e o
estado do bem-estar social podem socavar a família, promover a desintegração social e
gerar dependência. Estes diferentes grupos não trabalham de maneira harmoniosa por uma
democratização das instituições públicas ou por um bom governo e, muitas vezes, nem
mesmo se mostram tolerantes com a idéia da existência dos outros. No melhor dos casos,
representam os interesses dos seus membros. Uma minoria de ONG's no mundo fazem,
inclusive, isso. É claro, então, que em lugar de ver a sociedade civil e as suas formas
organizacionais polifacéticas como uma alternativa coletiva ao estado, vêem que somente
um estado aberto e efetivo pode proteger os direitos de todos os seus cidadãos no caso de
que sejam pisados por outros.
Como uma subespécie particular da organização da sociedade civil, as ONG's se definem,
como freqüentemente tem sido dito, pelo que não são mais que pelo que são. (3) São de
todo tipo e tamanho e as agendas e ações de algumas são diametralmente opostas às de
outras. Algumas fazem proselitismo como condição para receber benefícios dos projetos;
outras se concentram num tema ou numa área geográfica; outras são agencias operativas
especialistas enquanto que outras só concedem fundos e outras, apoio; algumas se
concentram na promoção e defesa em alto nível internacional, outras trabalham em silêncio
e sem obstruir ninguém na base. Mas, com muita freqüência, as ONG's do desenvolvimento
estão, de alguma maneira, vinculadas com a transferência de recursos de sociedades que
têm de sobra para aquelas que têm pouco e, por tanto, com muita freqüência, dependem da
sua capacidade de mobilizar esses recursos de onde moram os contribuintes. É isto, muito
mais do que qualquer outra coisa, o que as torna susceptíveis a seguir, ou pelo menos a se
acomodar, as agendas e modas estabelecidas pelos que fornecem os fundos, sejam doadores
oficiais, organizações religiosas, fundações políticas ou de qualquer outro tipo. (4) Em
termos da estreita sobrevivência institucional, mobilizar dinheiro torna-se mais importante
que mobilizar pessoas.
As tensões entre a ‘industria do desenvolvimento’ e as organizações da sociedade civil, não
são necessariamente negativas. Entretanto, como argumenta Jenny Pearce no seu ensaio
introdutório, o problema é que estas tensões são freqüentemente ignoradas ou minimizadas
dando-se uma boa aparência a sua natureza cambiante. O resultado é que as ONG's podem
adaptar-se com êxito a um mercado mutável para garantir um fluxo continuo de recursos,
mas à custa de impulsionar realmente uma mudança social radical ou de representar uma
alternativa real ao paradigma dominante (veja Fowler, 2000, para uma boa discussão destes
temas). Pior ainda, as ONG's (tanto do Sul quanto do Norte) podem de fato impedir com as
suas ações o funcionamento salutar de organizações da sociedade civil e, até, socavar as
funções do estado. Salientando a mistura de estudiosos-ativistas-praticantes que caracteriza
a revista Desenvolvimento na Prática da qual foram extraídos os que contribuíram neste
Compêndio, ela dirige um poderoso chamado às ONG's para que se envolvam com mais
energia e mais vigor em debates teóricos sobre desenvolvimento, para serem mais humildes
ao reconhecerem a miríade de outras formas de ação social e para serem o suficientemente
valentes para reconhecer que, a menos que estejam preparadas para mudar radicalmente a
sua maneira de trabalhar, podem não fazer parte da resposta para erradicar a pobreza e a
injustiça no século XXI.
(1) As Bretton Woods Institutions foram fundadas em 1944 enquanto que a FAO foi
estabelecida em 1945, a UNESCO e a UNICEF em 1946 seguidas pela WHO em
1948 e a UNHCR em 1951. A UNDP, porém, hoje uma das maiores fontes de
recursos para a cooperação do desenvolvimento, só foi estabelecida em 1965. A
mais antiga das agencias da ONU é ILO, que data de 1919. Continua sendo única
entre as agencias da ONU pela sua estrutura tripartite, com representação dos
governos, os comerciantes (empregadores) e sindicatos (trabalho organizado); em
termos atuais, estado, mercado e sociedade civil.
(2) David C. Korten preside o People-Centred Development Forum (Foro para o
Desenvolvimento Centrado nos Povos), é autor de muitos livros, incluindo The
Post-Corporate World: Life Under Capitalism (1999) e When Corporations Rule
the World (1995).
(3) É interessante que o termo mais antigo, ‘agencia voluntária’, há muito que deixou
de ser usado no contexto internacional. Na Grã Bretanha, por exemplo, hoje se
entende por ‘setor voluntário’, agencias locais ou nacionais freqüentemente sub
contratadas pelo governo. Inclusive nos Estados Unidos, onde o termo PVO
(Organizações Privadas Voluntárias) era de uso corrente até há poucos anos, ONG
tem se tornado muito mais comum.
(4) Inclusive a ONU é, por fim, um refém das políticas domésticas dos seus principais
doadores: em setembro de 1998, os Estados Unidos deviam mais da metade dos
US$2.5 bilhões das suas taxas não pagas, apesar de existirem tratados que obrigam
os estados membros. (A dívida morosa de 1998 de US$ 197 milhões foi paga em
novembro de 1998 para reter o direito a voto na Assembléia Geral.) O Congresso
dos Estados Unidos usa a sua influência massiva não somente para insistir em
reformas internas dentro da ONU (incluindo grande número de dispensas), mas para
realmente influenciar as políticas de algumas das agencias especializadas. Fundos
que já tinham sido prometidos a UNFPA foram detidos com a desculpa de que
supostamente apóia a política coercitiva de controle da população na China (UN
NGLS 1999: 21).
Referências
Fowler, Alan (2000) Civil Society, NGDOs and Social Development : Changing the Rules
of the Game, Geneva 2000 Occasional Papers, Number 1, Geneva : UNRISD.
Pieterse, Edgar (1997) 'South African NGOs and the trials of transition', Development in
Practice 7(2): 157-166.
UN NGLS (1999) Go Between 72, December 1998- January 1999, Geneva: NGLS
Download

Prefácio - Development in Practice