Prefácio A morte íntima Como morrer? Vivemos num mundo que esta pergunta amedronta e ele dela se distancia. Antes de nós, muitas civilizações olhavam a morte de frente. Traçavam para a comunidade e para cada um o caminho de passagem. Reconheciam, na realização do destino, sua riqueza e seu sentido. Talvez, jamais a relação com a morte tenha sido tão pobre como nestes tempos de aridez espiritual, em que os homens, ávidos de viver, parecem desconhecer o mistério. Ignoram que assim privam o gosto de viver de uma fonte essencial. Este livro é uma lição de vida. A luz que irradia é mais intensa que a de muitos tratados de sabedoria. Porque propõe não uma idéia, mas um testemunho da mais profunda experiência humana. Seu poder nasce dos fatos e da simplicidade de sua “reapresentação”. Reapresentação é aqui, a palavra exata. “Tornar de novo presente” o que sempre se oculta à consciência: além das coisas e do tempo, o cerne das angústias e esperanças, o sofrimento do outro, o diálogo eterno entre vida e morte. Este diálogo é “reapresentado” nestas páginas, diálogo que Marie de Hennezel realiza, sem descanso, com seus doentes terminais. Jamais esquecerei a lembrança da visita que fiz à unidade de cuidados paliativos, onde ela dispendia, então, sua generosa energia. Conhecia sua missão e, de tempos em tempos, conversava com ela. A força e a doçura que emanavam de suas palavras me tinham tocado. Reencontrava-as nos médicos e enfermeiros que me acolhiam em seus lugares de trabalho. Falaram-me de sua paixão, seus esforços, o atraso da França, as resistências a serem vencidas. Depois, acompanharam-me à cabeceira dos moribundos. Qual era o segredo de sua serenidade? De onde tiravam eles a paz de seu olhar? Cada expressão gravou-se em minha memória como a própria fisionomia da eternidade. O rosto de Daniela volta-me à lembrança, talvez por causa de sua juventude e seu silêncio. Paralisada, sem fala, ela só se exprimia pelo bater das pálpebras ou por meio da tela de um computador, comandado pelo último dedo, que ainda se movia. Entretanto, que vigor de espírito nesse ser privado de tudo, que curiosidade pelo “outro lado”, que ela abordava sem o auxílio de uma crença religiosa. Marie de Hennezel fala-nos sobre a dignidade dos últimos momentos de Daniela e de seus companheiros de infortúnio. Relata-nos, também, com uma modéstia que aumenta a emoção, a constância das equipes que deles cuidam e os acompanham, em seu último caminho. Faz-nos colher a aventura cotidiana da descoberta do outro, o engajamento no amor e na compaixão, a coragem dos gestos de ternura por esses corpos alterados. Mostranos, longe de toda morbidez, como é a alegria de viver que nutre suas escolhas e seus atos. Muitas vezes, conversamos sobre tudo isso. Eu a interrogava sobre a origem desse poder de desfazer a angústia, instaurar a paz, sobre a transformação que ela observava em alguns, às vésperas da morte. No momento da mais profunda solidão, o corpo rompido à beira do infinito, instaura-se em novo tempo, fora da medida comum. Às vezes, em certos dias, pelo socorro de uma presença que permite ao desespero e à dor se expressarem, os doentes assumem sua vida, apropriam-se dela, desvelam sua verdade. Descobrem a liberdade de aderir a si mesmos. Como se, quando tudo se acaba, tudo se desfaz do peso das dores e ilusões, que nos impedem de pertencer-nos. O mistério de existir e de morrer não é esclarecido, mas é, plenamente, vivido. Talvez, essa seja a mais bela lição deste livro: a morte pode fazer que um ser se torne aquilo a que foi chamado a ser; ela pode tornar-se, no mais pleno sentido do termo, uma realização. E não haverá no homem uma parte da eternidade, algo que a morte traz ao mundo e faz nascer em outro lugar? De seu leito de paralítica, Daniela nos oferece uma última mensagem: “Não creio nem em um Deus de justiça, nem em um Deus de amor. É demasiado humano, para ser verdade. Que falta de imaginação! Mas não creio também que sejamos reduzidos a um aglomerado de átomos. Isto significa que existe algo mais que a matéria, alma ou espírito ou consciência, à escolha. Creio nessa eternidade. Reencarnação ou acesso a outro diferente nível. Quem morrer, verá!” Eis tudo aí, em poucas palavras: o corpo dominado pelo espírito, a angústia vencida pela confiança, a plenitude do destino realizado. À semelhança de Daniela, a obra de Marie de Hennezel é de uma forte densidade humana. Como morrer? Se há uma resposta, poucos testemunhos podem inspirá-la com tamanha força como esse. François Mitterrand