76 3º ECOM.EDU ‐ Encontro de Comunicação e Educação de Ponta Grossa CORPO: NOVO LIMIAR ENTRE CIÊNCIA E ARTE? Artur Rodrigues Janeiro32 Marcia Reami Pechula33 Agência de Financiamento: CAPES GT1: Mídia, Educação e Arte Modalidade: Comunicação Oral Resumo: A obra do anatomista alemão Gunther von Hagens abre portas e janelas a diversas reflexões e possibilidades de (re‐)criações artísticas e de divulgação de informações científicas sobre o corpo humano; traz convites, encontros, desencontros e fugas, por remeter‐nos à arte, ciência, política e economia. Sob outro aspecto, as exposições realizadas por Gunther von Hagens configuram uma “ciência‐arte‐mídia” que revela a transformação da imagem do cadáver do corpo: imagem deslocada do âmbito do grotesco e asqueroso para o âmbito de uma beleza e harmonia das formas verdadeiramente naturais do próprio corpo, âmbito esse obtido pela técnica da plastination. Com ela, obteve‐se que o corpo pôde ser revisitado pela técnica, pela arte e pela ciência, revelando novas leituras acerca da vida e da morte. Palavras‐chave: ciência; educação; arte Resumen: El trabajo del anatomista alemán Gunther von Hagens abre puertas y ventanas a diferentes ideas y posibilidades de (re‐)creación artística y de difusión de la información científica sobre el cuerpo humano; trae las invitaciones, las reuniones, los desacuerdos y las fugas, haciendo referencia a los artes, las ciencias, la política y la economía. En otro aspecto, las exposiciones realizadas por Gunther von Hagens configuran un "arte‐ciencia‐media", que pone de manifiesto la transformación de la imagen del cadáver del cuerpo: la imagen cambió del alcance de lo grotesco y repugnante para el alcance de una belleza y armonía de formas verdaderamente naturales del propio cuerpo, alcance ese obtenido mediante la técnica de plastination. Con ella, se encontró que el cuerpo podría ser revisado por la técnica, el arte y la ciencia, “dejando al descubierto” nuevas lecturas acerca de la vida y la muerte. Palabras‐clave: ciencia; educación; arte Introdução Gunther von Hagens, anatomista alemão, criou uma técnica inovadora de preservação de tecidos biológicos, denominada “plastination”. Por meio dessa técnica, Gunther von Hagens tem realizado inúmeras exposições pelo mundo que tem capturado a curiosidade de milhares de pessoas. Suas exposições revelam o corpo humano tal como ele é, sem os comuns esfacelamentos gerados pelas técnicas tradicionais de preservação às diferentes peças anatômicas. O arranjo dos corpos 32 UNESP. E‐mail: [email protected] UNESP. E‐mail: [email protected] 33 77 “plastinizados” nas galerias atualiza a disposição artística dos cadáveres presentes nas pranchas anatômicas renascentistas. Estaria o trabalho de Gunther von Hagens propondo novas visões e reflexões sobre o corpo, sobre o quê é a vida ou a morte, assim como as obras renascentistas promoveram uma ruptura com a visão de corpo intocável, de morte pútrida e vida eterna? Escritos da atualidade têm defendido a ciência presente na obra de Von Hagens enquanto uma nova técnica que resgata a arte de outrora. Dada a associação entre ciência e arte, a intenção do presente estudo é a de realizar reflexões acerca do corpo no limiar entre ciência e arte, limiar esse que desde os primórdios do Renascimento encontra‐se representado em diferentes pinturas, sob diferentes aspectos, de simples esboços de esquemas anatômicos a pinturas de aulas de anatomia. 1. A anatomia da ciência na arte O século XV, segundo estudos de Gombrich (1995), representou um marco de ruptura das sociedades com a considerada Idade Média, revelando artistas que se encontravam dispostos a aventurar‐se em estilos diversos, capazes de conduzi‐los para além das amarras de uma arte estritamente sacra até então predominante no medievo. De Flandres à Alemanha e Itália, encontramos artistas que, imersos nessa nova aventura da arte, conseguiram conciliar as demandas sociais com suas novas próprias ideias e maneiras de produzir arte, as quais não perderam de vista a valorização da harmonia das formas, valorização essa típica da Era Clássica. O fazer‐arte dava‐se na relação mestre‐aprendiz e por mais que as técnicas artísticas fossem observadas e reproduzidas, aos poucos cada artista alimentava certas particularidades, certos interesses. Nesse âmbito, a arte ressurgiu em incrustadas pilastras dóricas, jônicas e coríntias e foi capaz de arredondar os arcos góticos, trazendo à luz os arcos renascentistas. De fato, uma arte de resgate surgiu após a Idade Média, a qual ganhou espaço nas ruas e lentamente foi valorizada. Deve‐se salientar o termo “lentamente”, pois a sociedade necessitava assimilar todas essas mudanças – um novo plano foi traçado pela arte para representar o mundo. Na Idade Média pouco se enxergava e era representado do existente para 78 além do claustro sagrado, assim, representar a natureza tal como ela é, exigiu da ruptura com o medievo novos estudos artísticos que foram buscar em estudos científicos a sua “perfeição”. Grandes nomes como Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo e Rafael, compuseram a origem da estética que extravasou a convenção para revelar uma outra visão de mundo, da vida e mesmo da morte. Como recordado novamente pelos estudos de Gombrich (1995), esses grandes nomes da Arte trouxeram à realidade o tido como impossível à época. Nada parecia suficientemente extraordinário que não pudesse ser superado, ousado, abusado. O corpo da carne, do pecado, repleto de sabores, odores, dores e pudores, foi aberto, dilacerado, dissecado e iluminado pela luz da curiosidade: inicialmente sobre uma singela mesa, numa sala modesta, conforme revelado pela ilustração de Johannes de Ketham na obra Fasciculus medicinae, e, posteriormente, nos espetáculos públicos de dissecação e nas pranchas dos estudos anatômicos dos mestres renascentistas. Na obra de Johannes de Ketham, encontramos o distanciamento mencionado por Mayr (1998, p.117) entre quem realizava a dissecação e quem conhecia, neste caso, os estudos anatômicos de Galeno: A anatomia era ensinada nas escolas médicas medievais, particularmente na Itália e na França, mas de uma forma literária peculiar. O professor de medicina recitava Galeno, enquanto um assistente (“cirurgião”) dissecava as correspondentes partes do corpo. Isso era feito pobremente [...] Esse distanciamento se perdeu, por exemplo, com a arte de Leonardo da Vinci, pois, segundo Gombrich (1995), após dissecar mais de trinta cadáveres, ele próprio confeccionou seus esboços e pinturas, desde representações das musculaturas dos membros até órgãos, sistemas e o desenvolvimento fetal do organismo. Não ficando restrito aos estudos da vida, Leonardo da Vinci também foi um colaborador aos estudos de mecânica. Semelhantemente à arte de Da Vinci, conforme evidencia o estudo de Mayr (1998, p.117‐118), há a mesma perda do distanciamento no trabalho do anatomista Andreas Vesalius, também denominado André Vesalius: Foi André Vesalius (1514‐1564) que, mais do que qualquer outro, mudou tudo isso. Ele mesmo participava ativamente nas dissecações [...] com Vesalius começou uma nova era para a anatomia, na qual o apego escolástico aos textos tradicionais foi substituído pelas observações pessoais. [...] O movimento era o cerne de todas as coisas [...] 79 O trabalho de Andreas Vesalius representou a excelência no estudo da Anatomia, por meio da qual se obteve a compreensão acerca das formas e estruturas orgânicas, o que possibilitou a origem de novos estudos em outros ramos da ciência, tais como, a fisiologia, a medicina e os estudos de evolução biológica (MAYR, 1998; PORTER e VIGARELLO, 2008). Assim, o progresso científico chegou às entranhas do corpo, reforçando que artistas e cientistas já caminhavam de mãos dadas há muito tempo: arte e ciência, fundidas, promoveram descobertas anatômicas e divulgações científicas importantíssimas ao desenvolvimento do conhecimento sobre o corpo, conforme relatado no estudo de Mandressi (2008, p.425): A participação dos artistas no estabelecimento da iconografia anatômica foi feita à base da convicção de que a ilustração cumpria um papel essencial no dispositivo de conhecimento organizado em torno da percepção visual. Pintores e anatomistas partilham os mesmos valores a propósito da experiência sensorial [...] Além disso, através da ilustração de capa da obra de Andreas Vesalius, a De Humani Corporis Fabrica, observa‐se uma ciência do espetáculo – os espetáculos públicos de dissecação – os quais, apenas recentemente, na Era Contemporânea, depois de séculos, ressurgiram através do trabalho anatômico do cientista Gunther von Hagens,. Em outras palavras, de acordo com estudo de Rebollo (2003, p.106), o trabalho de Gunther von Hagens resgatou “o espírito da ciência‐espetáculo”. Nesse intervalo entre os espetáculos renascentistas e contemporâneos do estudo da vida e da apresentação da morte, tem‐se que o estudo do corpo não desapareceu. As representações acerca do corpo anatômico novamente floresceram no campo das artes, com o surgimento de diversas obras, dentre as quais podem ser mencionadas a “Aula de anatomia do Dr. Willem van der Meer” (1617), de Michiel Jansz van Mierevelt; “A aula de anatomia do Dr. Joan Deijman” (1656) e “A aula de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp” (1632), ambas de Rembrant van Rijn; e a “Aula de anatomia do Dr. Frederik Ruysch” (1683), de Jan van Neck. São obras que trazem uma preocupação, um cuidado, um rigor científico no que se encontra representado: luz, sombra, profundidade, partes, vísceras, procedimentos, público... Testemunhas e espectadores nas telas que também “observam” os admiradores das telas – movimentos de 80 observações que percorrem as sombras, que chegam ao centro, que procuram os focos e alcançando as bordas, as margens, prontos para uma leitura, prontos para uma fuga ao além da moldura, ao além da realidade atual... Assim, permitindo uma leitura poética das obras “artístico‐anatômicas” aqui mencionadas até então, abaixo segue uma possibilidade de lê‐las, a qual não pode ser considerada fixa, tão menos uma “voz‐ única”. 2. Uma possibilidade de interpretação Todas as obras aqui referenciadas balbuciam, sussurram possíveis verdades. Encontramo‐nos diante delas e... Inicialmente não há portas, mas sim janelas para Ketham. Uma delas encontra‐se destrancada e aberta. Ela mantém‐se aberta e não representa insegurança alguma – por ela avista‐se o vazio ou o mesmo de sempre. A outra janela, fechada e possivelmente trancada, carrega em uma de suas folhas um vitral quebrado – pela cortante abertura observa‐se uma suave ondulação do relevo. Uma vez visível, possivelmente é dia e no calor do discurso‐mor os comentários percorrem os olhos que não mais veem; os toques chegam a membros que não mais sentem; a lâmina desliza rumo ao não mais mundo novo. – Quem indica o local do corte vê? O quê? – Aqui! Onde está o plexus reticularis. Quem corta escuta? Por quê? E os demais? Será que ao menos perceberam a inexistência de tal plexus reticularis? Ao menos perceberam quando a brisa do tempo cortou‐se toda no vitral quebrado quando trouxe arquibancadas e público ao agora espetáculo da vida? Da vida da morte? Da morte? Eis Vesalius ao centro da capa de sua obra. Eis uma cena do futuro da época; eis altas pilastras ornamentadas que sustentaram vários horizontes; eis a morte no centro da redenção à Ciência; eis a arte, as ideias e as ações nas mãos do cientista; eis, também e por ultimo, apenas uma fresta... Vamos fugir? Vista‐se com as únicas vestes que realmente lhe pertencem. Não se preocupe com as unhas não cortadas, com os pelos não aparados e com os cabelos embaraçados. Eles teimarão em crescer. Esteja certo de estar munido de plena insensibilidade para não ver quem te observa; para não reconhecer no grupo de 81 Ruysch o seu próprio trânsito por entre o olhar e tocar do seu futuro e passado representados pelos “mais novos” da sala. De fato, esteja munido de plena insensibilidade para não sentir o toque daqueles que tocarão o que suas próprias mãos, possivelmente, não foram capazes de tocar; para não sentir a violação das vísceras pela falta de prática, pelas pinças e bisturis; para não sentir o corpo estranho e a não‐resposta nada imunológica; para você não saber que nada mais poderá fazer – assim você soubesse que na Morte não haveria sofrimento e nem poder algum. Vista‐se de humano e não tema, pois não será pecado quando a palidez expulsar a vida – será uma amostra do quando a Arte emudecer‐se de vez na Ciência. Qual cairá por terra primeiro? Vista‐se para apresentar‐se dignamente ao chapéu preto aveludado e seus seguidores, pois, quando nas aulas de Deijman, você não terá nem ideia de quem estará sob o chapéu. Na verdade, você não terá ideia alguma, muito menos poderíamos pensar em alguma má ideia que pudesse ser cortada por uma tesoura cirúrgica. Suas ideias ocultas em outras mãos. Crime? Parece que sim: pobre anatomista, decapitado pela moldura do título de “‘Doutor Morte’ do século XVII”? Porém, muitas ideias também não teríamos se seus olhos vissem e se sua boca nos sussurrasse onde estaria o Mestre Anatomista com seu chapéu na cena de Van Mierevelt. Nessa possível “falha” (será?) do artista, poderia o assistente‐chefe do centro da cena dizer‐nos onde está o “meu‐nosso” chapéu? Por onde começar? Assim, quais outras possíveis leituras e reflexões sobre o corpo podem ser realizadas a partir da transformação do repugnante cadáver em arte encantadora, que cativa o olhar e que assim pode configurar‐se como importante elemento para uma educação sobre o corpo? 3. Outros desdobramentos Para encontrar o começo das “respostas‐leituras” às perguntas anteriormente mencionadas, será abordada a partir de então a produção do trabalho científico do anatomista alemão Gunther von Hagens, sobretudo suas exposições anatômicas que têm percorrido vários países da Europa, Ásia e América. De acordo com a página on‐ line do trabalho de Von Hagens, resumidamente tem‐se que o anatomista nasceu em 1945, ingressando na Friedrich Schiller University em 1965, onde iniciou seus estudos de 82 medicina, os quais foram interrompidos com sua prisão entre 1969 e 1970 por motivos políticos. Somente em 1973, formou‐se em Medicina pela Lübeck University. Em 1977, Von Hagens criou a “plastination”, sua inovadora técnica de preservação de tecidos biológicos que, resumidamente, inicialmente interrompe quimicamente a decomposição do cadáver e submete‐o totalmente ou em partes à própria penetração e preenchimento por diversos polímeros que são capazes de assegurar: 1) rigidez, sem deformar as mais variadas estruturas biológicas; 2) coloração, que não será prejudicada pelo passar do tempo; e 3) maleabilidade, para manuseio e “disposição artística” do material preservado. Como última etapa do processo de “plastinização”, então, há a cura das peças “recém‐plastinizadas”, visando que as mesmas possuam um ótimo acabamento para utilização enquanto material de ensino, de revelação do corpo humano. Essa preocupação com o acabamento das peças anatômicas é a preocupação possivelmente máxima das exposições de Gunther von Hagens. Segundo o anatomista, todo o seu trabalho representa uma nova abordagem do corpo para o ensino de anatomia, cuja técnica inovadora e suas obras decorrentes, ainda que trazendo o clássico desmembramento do corpo presente na essência dos mais antigos e diversos estudos anatômicos, possibilitam aos observadores enxergar um corpo (e até mesmo atravessa‐lo com o olhar) que na sua origem nunca foi artificial, nunca foi forjado por um molde criado pelas mãos humanas. Gunther von Hagens, assim, revela aos olhares curiosos maravilhas até então inimagináveis; maravilhas até então sempre presentes em nós mesmos; maravilhas essas que se aproximam dos comentários tecidos por Amorim e Gonçalves (2012) quando referenciavam o aspecto maravilhoso e muitas vezes grotesco que várias descobertas científicas portavam ainda que trancafiadas nos antigos gabinetes de curiosidade. Aspectos esses que nos movimentam para fora de nossa zona de conforto, rumo a questionamentos semelhantes aos traçados e percorridos por Masson (2012, p.333): A morte é erguida em troféu, espécie de ícone frio sem transcendência, esculpido em uma matéria plástica. A morte assim "fixada" não tem nenhum futuro. De fato, olhando as figuras de Von Hagens, me parece que justamente 83 não se "vê" mais a morte, nem o cadáver. O corpo morto é desviado da morte, seja ele incinerado, sepultado ou enfaixado. A morte não se assemelha mais a uma morte. O processo é um desvio da morte por um ato de transgressão a fim de assemelhar os corpos aos vivos em suas atividades quotidianas. É preciso observar as imagens de algumas das obras expostas nas diferentes Body Worlds para perceber o quanto Gunther von Hagens tem investido em uma “disposição quotidiana” de seus corpos – somente assim é possível alcançarmos, compreendermos, os dizeres de Céline Masson. Em suas exposições há a “encenação” de cadáveres dispostos jogando baralho sobre uma mesa, jogando futebol, futebol americano, basquetebol, andando a cavalo, dançando, cantando, tocando instrumentos musicais e até mesmo mantendo relações sexuais nas mais diversas posições. Além de todas essas “disposições artísticas”, há outras obras nas exposições de Gunther von Hagens que recuperam evidentemente algumas representações anatômicas cunhadas durante o Renascimento: encontramos o “Modern Leonardo” em referência ao “Homem Vitruviano” de Leonardo da Vinci, bem como o “The Skin Man”, que nos dizeres de Victora (2004) assemelha‐se ao “Martírio de São Bartolomeu”, de Michelangelo, mas que em minha compreensão assemelha‐se mais fielmente a representação artístico‐anatômica contida em uma prancha de estudo da obra Historia de la composicion del cuerpo humano (1560) do anatomista espanhol Juan Valverde de Amusco. Com a obra “Modern Leonardo”, Gunther von Hagens insere um de seus cadáveres dentro de uma “estrutura‐circunferência”. Dispondo‐o com seus membros abertos – braços e pernas afastados – com suas mãos e pés tocando a estrutura e com algumas camadas de musculatura “descolando‐se” parcialmente, Gunther von Hagens preenche mais a área da circunferência, quase que ainda assim simetricamente, sem deixar de obter semelhantemente uma nova versão, tridimensional, da obra “Homem Vitruviano” de Leonardo da Vinci. Com a obra “The Skin Man”, Gunther von Hagens surpreende o olhar ao revelar um cadáver que segura em suas mãos a sua própria pele. Seria uma necessidade do próprio corpo se mostrar ao mundo tal como ele é? Semelhantemente, embora ainda munido de sua adaga, encontra‐se uma outra ilustração anatômica do Renascimento, 84 encontrada na obra de Juan Valverde de Amusco. O cadáver parece fugir de seu abrigo‐esconderijo, parece sair de sob a pele e, sem temor algum, assim expõe‐se ao ar livre, erguendo como troféu seu até então limite com o meio externo. Embora não se considere um artista, de acordo com entrevista cedida à Revista Superinteressante de setembro de 2012, Gunther von Hagens apresenta um trabalho que se situa em uma interface entre ciência e arte, a qual lhe rendeu recentemente uma referência do jornal Folha de S. Paulo de 18 de julho de 2013, com a publicação da matéria “Uso de mortos na arte tem raiz no século 16”, que enfatizava a apropriação de elementos artísticos do Renascimento em exposições artísticas contemporâneas que trazem como elemento principal ou de destaque o corpo, (ainda) vivo ou morto, inteiro ou fragmentos, humano ou não. Realmente há ligações estéticas entre as obras anatômicas de Gunther von Hagens e os tradicionais estudos renascentistas do corpo. Uma vez com todas essas características já mencionadas, as exposições científicas do trabalho de Gunther von Hagens podem ser consideradas um trabalho midiático, pois proporcionam meios de transmissão de informações científicas, dos quais surgem outros tantos questionamentos, ideias, criações para essa “arte‐não‐ arte” que é “ciência‐não‐ciência”, que é “arte‐e‐ciência” ou não (ou não?), que é “alguma coisa” que até então nunca foi, nunca existiu; que pode ser lida com base nos dizeres de Lyotard (1993) e Shinn (2008) como ciência e tecnologia, como “tecnociência”: conhecimento científico de outrora sob vestes de novas técnicas, novas tecnologias. Tecnologias que, de acordo com Latour (2000), juntamente com a ciência e a sociedade, compõem um mesmo campo de estudo. Assim, dos interstícios entre ciência, tecnologia, arte, mídia e sociedade despontam possibilidades para novas leituras de mundo, para novos encontros com o corpo. No relatado na obra de Foucault (1978, p.222) encontramos que “constituíram um corpo único com o trabalho da medicina, impondo suas figuras estáveis mais através da coesão imaginaria do que por uma estreita definição conceitual”. Como se o corpo fosse um “louco quebra‐cabeça” cujas peças conseguissem se mover e pudessem se encaixar aleatoriamente, ao gosto da busca, à necessidade da pesquisa, aos desejos humanos, encontrando‐se esquecido de outros dizeres do próprio Foucault (1978), que estruturam o corpo enquanto “um conjunto de 85 localizações diferentes para sistemas de causalidades lineares” (p.249), local de “uma unidade secreta de uma sensibilidade que chama para si as influências mais diversas, mais distantes, mais heterogêneas do mundo exterior” (p.249) – logo, “um corpo penetrável (...), um corpo contínuo” (p.320), que incessantemente traz em si o espetáculo do viver, as relações entre vida e morte, e a necessidade de se repensar esses “conceitos/condições biológicas”, pois de acordo com Foucault (1977, p.197) “a morte abandonou seu velho céu trágico e tornou‐se o núcleo lírico do homem: sua invisível verdade, seu visível segredo”, que merece ser ao menos procurado. Além desses dizeres de Foucault, o relatado na obra de Bataille (1989, p.58) também torna possível a realização de outras “leituras artísticas” do trabalho de Gunther von Hagens: (...) é necessário à vida algumas vezes não fugir das sombras da morte, deixá‐la, ao contrário, desenvolver‐se nela, aos limites do desfalecimento, ao fim da própria morte. O constante retorno de elementos abominados é dado nas condições normais, mas insuficientemente. Ao menos não é suficiente que as sombras da morte renasçam apesar de nós: devemos ainda ressuscitá‐las voluntariamente – de uma maneira que responde com exatidão a nossas necessidades (eu entendo as sombras, não a própria morte). A este objetivo nos servem as artes, cujo efeito, nas salas de espetáculo, é nos levar ao mais alto grau possível de angustia. As artes incessantemente evocam diante de nós estas desordens, estes dilaceramentos e estas quedas que nossa atividade inteira tem por objetivo evitar. O anatomista parece tirar do corpo o seu direito de morrer plenamente. Tira da vida a morte e tira da própria morte a sua condição de final extremo da vida. Ainda guiados por Bataille (1989 e 1993), o ser humano encontra‐se mais “próximo” da morte, seja numa exposição ou numa reflexão mais profunda sobre o tema, admitindo a si próprio que equivocadamente algum dia julgou‐se verdadeiramente separado dela. Essa compreensão é evidenciada em Bataille (1993, sem página) pelo cadáver do homem [que] revela a completa redução ao estado de coisa do corpo do animal, em consequência do animal vivo. [E que] É, em princípio, [...] uma utilidade da mesma natureza que o pano, o ferro ou a madeira manufaturada Vale ressaltar que esses dizeres de Bataille encontram‐se com o trabalho de Gunther von Hagens ao evidenciar que o anatomista aceita doações de corpos de pessoas que desejam estar expostas após a morte, ou seja, o corpo por muito tempo 86 mantido como sagrado, virará coisa, objeto, obra de arte e de estudo a diversos olhares. Esse “ex‐homem‐coisa”, esse “ex‐humano‐objeto”, agora “cadáver‐coisa”, definitivamente não conseguiu escapar dos olhos e das mãos habilidosas da ciência, como podemos constatar pelo seguinte dizer da obra de Foucault (1977, p.190): Mas o olho absoluto do saber já confiscou e retomou em sua geometria de linhas [...] a soberania do visível. E tanto mais imperiosa que lhe associa o poder da morte. [...] a morte, ao contrario [da vida], abre à luz do dia o negro cofre dos corpos: vida obscura, morte límpida. É pela razão e seu histórico lógico‐matemático, (geo)métrico, que a ciência se apropriou do corpo humano e suas estruturas e anomalias, a fim de tentar proporcionar ao homem maior bem‐estar no viver, a cura para suas enfermidades e a realização de seus desejos mais impossíveis, pois, de acordo com os dizeres de Bataille (1989, p.57), podemos inferir que a ciência, enquanto produto da atividade humana, traz em si “o desejo de atingir um ponto mais distanciado do domínio fúnebre”, uma vez que “apagamos por toda a parte os traços, os sinais, os símbolos da morte, a custas de esforços incessantes”, dizeres esses que podem ser complementados por outros dizeres de Bataille (1993) que reforçam que ao longo da história, sacrificaram a ordem das coisas que nos mantém. Por fim, encontramos em Canguilhem (2009, p.107), aberturas de ideias que trazem muito da essência das reflexões aqui expostas: A vida procura ganhar da morte em todos os sentidos da palavra ganhar e, em primeiro lugar, no sentido em que o ganho é aquilo que é adquirido por meio do jogo. A vida joga contra a entropia crescente. Pode‐se falar então em uma vida que transcende os limites do individuo, que alcança as gerações que se utilizarão desses corpos que até lá estarão preservados por essa “vestimenta química” forjada pelos estudos de química, biologia, medicina e anatomia de Gunther von Hagens. Eis uma “vestimenta” para ainda não dizer que às futuras gerações tais corpos estarão totalmente “ressuscitados pelo ‘sopro da ciência’”. Considerações finais 87 A partir de uma ciência ousada, que surpreende até mesmo a arte, ou ainda, que se torna tão artística, o corpo até então vivo parece aproximar‐se de sua preservação eterna. Pela “plastinização” criada por Gunther von Hagens, o corpo tem estagnado em si as suas marcas histórico‐sociais e, parecendo não mais pertencer a este mundo, ainda insiste em pertencer; parecendo não mais se transformar, transforma‐se à medida que não se altera, não se transformando mais. Os conhecimentos científicos caminharão pelas musculaturas, pelos órgãos, pelas fraquezas biológicas, ganhando conceitos, explicações e interpretações por sobre o químico cadáver que revela os segredos da vida e suas particularidades. Informações que correrão rompendo os limites das veias e artérias preservadas, alcançando uma ampla divulgação acerca de peças anatômicas, do funcionamento do organismo, da aceitação do corpo que nos pertence, da valorização da vida através do belo. Assim, é nesse “movimento‐gatilho” de “informações‐interpretações” que a “arte‐ciência” espantosa do anatomista Gunther von Hagens prende a atenção e atinge o imaginário humano, conduzindo a reflexões até mesmo do que é a vida e do que é a morte – eis o cumprimento do papel da exposição científica, reforçado bela preocupação estética, enquanto um espaço e conteúdo midiático, de transmissão de conhecimentos. Referências bibliográficas AMORIM, A. C. R.; GONÇALVES, M. L. C. M. R. Gabinete de curiosidades: o paradoxo das maravilhas. Educação: Teoria e Prática, Rio Claro, vol.22, n.40, maio‐agosto, 2012. BATAILLE, G. A Literatura e o Mal. Trad. Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989. BATAILLE, G. Teoria da Religião. Trad. Sergio Goes de Paula e Vivian Lamare. São Paulo: Ática, 1993. CANGUILHEM. G. O Normal e o Patológico. Trad. Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. FOUCAULT, M. História da Loucura. Trad. José Teixeira Coelho Netto. 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