OPEN
ANDRE AGASSI
OPEn
a minha história
Título original: Open – An Autobiography
Copyright © 2009 by AKA Publishing, LLC
Copyright © 2014 Cavalo de Ferro, marca propriedade de Theoria, Lda.,
para a presente edição.
Tradução publicada por acordo com Alfred A. Knopf, uma canchela editorial
de The Knopf Doubleday group, uma divisão de Random House, Inc.
Tradução e revisão editorial: Rita Guerra e Pedro Carvalho
Paginação: Finepaper, Lda.
1.ª edição, Janeiro de 2014
ISBN: 978-989-623-178-1
Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida sob qualquer
forma ou por qualquer processo sem a autorização prévia e por escrito
do editor, com excepção de excertos breves usados para a apresentação
crítica da obra.
Quando não encontrar algum livro da Cavalo de Ferro nas livrarias, sugerimos
que visite o nosso site: www.cavalodeferro.com
Para Stefanie, Jaden e Jaz
Nem sempre conseguimos perceber o que nos mantém
fechados, o que nos confina e parece que nos enterra, mas
ainda assim sentimos que existem certas barreiras, certas
paredes, certos muros. Será tudo imaginação ou fantasia?
Não acredito. E depois perguntamo-nos: Meu Deus, será
assim por muito tempo, para sempre, por toda a eternidade?
Sabes o que nos liberta deste cativeiro? É o afecto realmente
profundo. Sermos amigos, sermos irmão, amarmos, é isso que
abre as portas da prisão, através de um poder supremo, de
uma espécie de força mágica.
— Vincent van Gogh, em carta ao irmão,
escrita em Julho de 1880
FIM
Abro os olhos e não sei onde estou nem quem sou. Não é
nada de incomum, passei metade da minha vida sem saber.
Ainda assim, parece diferente. Esta confusão é mais assustadora, mais absoluta.
Olho para cima. Estou deitado no chão, ao lado da cama.
Já me lembro. Passei da cama para o chão a meio da noite.
Faço-o a maior parte das noites. É melhor para as minhas
costas. Demasiadas horas num colchão macio provocam-me
um sofrimento atroz. Conto até três e dou início ao longo
e penoso processo de me levantar. Viro-me de lado, a tossir
e a gemer, depois enrolo-me em posição fetal; por fim fico
de bruços. Agora espero, e espero, até que o sangue volte a
circular.
Sou relativamente jovem. Trinta e seis anos. Mas, quando
acordo, sinto-me como se tivesse noventa e seis. Depois de
três décadas de sprints, paragens bruscas, saltos constantes
e aterragens rudes, o meu corpo já não parece ser o meu
corpo, sobretudo pela manhã. Por conseguinte, a minha
mente também não parece ser a minha mente. Quando
abro os olhos, sou um estranho para mim mesmo e, embora
isso, uma vez mais, não seja nada de novo, é mais pronunciado de manhã. Revejo rapidamente os factos básicos.
O meu nome é Andre Agassi. Sou casado com Stefanie
Graf. Temos dois filhos, um menino e uma menina, de
cinco e três anos de idade. Vivemos em Las Vegas, no estado
do Nevada, mas, de momento, estamos instalados numa
suíte do hotel Four Seasons de Nova Iorque, porque estou
a participar no Open dos Estados Unidos de 2006. O meu
último Open dos Estados Unidos. Na verdade, a última
competição na qual participarei na vida. Ganho a vida a
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Andre Agassi
jogar ténis, embora odeie o ténis; odeio-o com uma paixão
secreta e sombria, sempre o odiei.
Quando este último elemento da minha identidade
assume o seu lugar, puxo os joelhos para debaixo de mim
e digo num sussurro: Por favor, deixai que tudo isto acabe.
Depois: Não estou pronto para que acabe.
Agora, no quarto ao lado, ouço Stefanie e as crianças. Estão a tomar o pequeno-almoço, a conversar e a rir.
O imenso desejo que sinto de os ver e de lhes tocar, além da
enorme necessidade de cafeína, dão-me a inspiração de que
preciso para me erguer, para ficar de pé. O ódio põe-me de
joelhos, o amor faz-me levantar.
Olho de relance para o relógio ao lado da cama. Sete e
meia. Stefanie deixou-me dormir. O cansaço destes últimos
dias tem sido terrível. Para além do desgaste físico, há a
extenuante torrente de emoções desencadeada pela minha
iminente reforma. Agora, erguendo-se do meio deste cansaço, chega a primeira onda de dor. Agarro as costas.
A dor agarra-me a mim. Sinto-me como se alguém se tivesse
esgueirado até ao meu quarto durante a noite e me tivesse
prendido a coluna com um bloqueador de volante. Como é
que posso jogar no Open dos Estados Unidos com um bloqueador na coluna? Será que o último encontro da minha
carreira vai acabar com uma desistência?
Nasci com um problema chamado espondilolistese, o
que significa que uma vértebra da parte inferior da coluna
se afastou das outras, deslizou para a frente sozinha, se
revoltou. (Essa é a principal razão por que ando com os
pés virados para dentro.) Com esta vértebra solitária em
desarmonia, sobra menos espaço para os nervos dentro da
coluna e, ao menor movimento, os nervos sentem-se muito
mais apertados. Junte-se a isso duas hérnias discais e um
osso que não pára de crescer — num esforço fútil para proteger a região lesionada — e os nervos começam a sentir-se
verdadeiramente claustrofóbicos. Quando os nervos reclamam do pouco espaço de que dispõem, quando começam a
enviar sinais de desconforto, sinto uma dor a subir e a des-
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cer pela minha perna, que me impede de respirar e me faz
dizer coisas sem sentido. Em tais momentos, o único alívio
consiste em deitar-me e esperar. Por vezes, contudo, esse
momento ocorre a meio de um encontro. Nessas alturas,
tudo o que posso fazer é mudar de jogo — alterar os movimentos, correr de outra maneira, fazer tudo de forma diferente. É então que os meus músculos entram em espasmo.
Toda a gente evita mudanças; os músculos não as suportam.
Quando são forçados a mudar, os meus músculos juntam-se à revolta da coluna e, passado pouco tempo, todo o meu
corpo está em guerra consigo mesmo.
Gil — meu treinador, meu amigo, quase um pai —
explica as coisas da seguinte forma: O teu corpo está a dizer
que já não quer fazer isto.
O meu corpo já anda a dizer isso há muito tempo, respondo a Gil. Há quase tanto tempo quanto eu.
Desde Janeiro, contudo, o meu corpo tem-no dito aos gritos. O meu corpo não se quer reformar — o meu corpo já
se reformou. Mudou-se para a Florida e comprou uma casa
de luxo e vários pares de calças brancas. Por isso, tenho
negociado com o meu corpo, vou-lhe pedindo que saia da
reforma por algumas horas aqui, algumas horas ali. Boa
parte dessa negociação implica injecções de cortisona que
silenciam a dor durante algum tempo. Antes que faça efeito,
contudo, a droga causa os seus próprios tormentos.
Tomei uma ontem, para poder jogar hoje à noite. Foi a
terceira injecção este ano, a décima terceira da minha carreira e, de longe, a mais assustadora. O médico, que não era
o meu médico habitual, disse-me rispidamente para me pôr
em posição. Estendi-me sobre a maca, de rosto para baixo,
e a enfermeira puxou-me os calções. O médico explicou-me
que teria de inserir a agulha de cerca de quinze centímetros
de comprimento o mais perto possível dos nervos inflamados. Contudo não podia entrar a direito porque as hérnias
discais e o esporão ósseo estavam a bloquear o caminho.
As suas tentativas para os contornar, para partir o bloqueador, deixaram-me a ver estrelas. Primeiro inseriu a agulha.
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Depois posicionou um enorme aparelho sobre as minhas
costas para ver a que distância a agulha estava dos nervos.
Tinha de aproximar a agulha o mais possível, explicou, mas
sem lhes tocar. Se tocasse nos nervos, nem que fosse pouco
mais que um beliscão, a dor impedir-me-ia de participar no
torneio. Também podia mudar toda a minha vida. Para dentro, para fora, à volta, foi manobrando a agulha, até os meus
olhos se encherem de lágrimas.
Finalmente encontrou o sítio certo. Na mouche, disse.
A cortisona entrou. A sensação de ardor fez-me morder
o lábio. Depois veio a pressão. Senti-me macerado, embalsamado. O minúsculo espaço na minha espinha onde estão
alojados os nervos começou a parecer embalado em vácuo.
A pressão aumentou até parecer que as minhas costas iam
explodir.
A pressão permite-nos saber que está a fazer efeito, explicou o médico.
É bom saber isso, doutor.
Pouco depois a dor começou a parecer maravilhosa,
quase deliciosa, porque era o tipo de dor que sabemos anteceder o alívio. Mas talvez toda a dor seja assim.
A minha família está a fazer cada vez mais barulho. Coxeio
até à sala de estar da nossa suíte. O meu filho, Jaden, e a
minha filha, Jaz, vêem-me e começam a gritar. Papá, Papá!
Os dois pulam e tentam saltar para cima de mim. Paro e
preparo-me, ergo-me à sua frente como um mimo a imitar
uma árvore no Inverno. Eles param mesmo antes de saltar porque sabem que o papá não está bem nestes últimos
dias, que se pode partir se se lançarem sobre ele com muita
força. Toco-lhes no rosto, beijo-lhes as bochechas e junto-me a eles na mesa do pequeno-almoço.
Jaden pergunta-me se é hoje.
Sim.
Vais jogar?
Sim.
Então, depois de hoje, vais estar reforma?
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Foi uma palavra nova que ele e a irmã mais nova aprenderam. Reformado. Quando a usam, deixam sempre de fora
a última sílaba. Para eles é reforma, para sempre constante,
um eterno presente. Talvez saibam algo que eu não sei.
Não se eu ganhar, filho. Se vencer esta noite, continuo a
jogar.
Mas se perderes podemos comprar um cão?
Para as crianças, a reforma significa ter um cachorrinho.
Stefanie e eu prometemos-lhes que, quando eu parasse de
treinar, quando deixássemos de viajar pelo mundo, poderíamos comprar um cachorrinho. Talvez lhe chame Cortisona.
Sim, pequeno, quando eu perder, compramos um cão.
Ele sorri. Espera que o pai perca, espera que o pai
enfrente a maior de todas as desilusões. Não compreende
— e como serei capaz de lhe explicar? — a dor da derrota,
a dor de jogar. Eu próprio precisei de quase trinta anos para
o conseguir entender, para solucionar o problema da minha
própria mente.
Pergunto a Jaden o que vai fazer hoje.
Vamos ver os ossos.
Olho para Stefanie. Ela recorda-me que os vai levar ao
Museu de História Natural. Dinossáurios. Penso nas minhas
vértebras retorcidas. Imagino o meu esqueleto em exposição no museu, ao lado dos demais dinossáurios. Tenissaurus
rex.
Jaz interrompe as minhas divagações. Estende-me o seu
muffin para que tire os mirtilos. O nosso ritual matinal. Cada
mirtilo tem de ser cirurgicamente extraído, o que requer
precisão, concentração. Inserir a faca, girá-la, aproximá-la
do mirtilo sem lhe tocar. Concentro-me no muffin e é um
alívio pensar em algo que não o ténis. No entanto, quando
lho devolvo, não consigo fingir que não me parece uma bola
de ténis, o que faz com que os músculos das minhas costas
se contraiam com a expectativa. A hora aproxima-se.
Depois do pequeno-almoço, Stefanie e as crianças despediram-se de mim com um beijo e saíram para a visita ao
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museu; eu fico sentado à mesa, em silêncio, a olhar para a
suíte. É igual a todas as outras suítes de hotel onde já me
hospedei, só que ainda o é mais. Limpa, elegante, confortável — estou no Four Seasons, por isso é linda —, mas
não deixa de ser apenas mais uma versão do que costumo
chamar Não Casa. O não-lugar onde existimos enquanto
atletas. Fecho os olhos, tento concentrar-me no encontro
desta noite, mas o meu pensamento desliza para o passado.
Nestes últimos dias, a minha mente parece ter entrado num
estado de analepse natural. À mais pequena oportunidade
tenta voltar ao início porque estou muito perto do fim.
Mas não o posso permitir. Não ainda. Não me posso dar ao
luxo de passar demasiado tempo no passado. Levanto-me e
ando à volta da mesa para testar o meu equilíbrio. Quando
me sinto razoavelmente estável, avanço com cuidado até ao
chuveiro.
A água quente faz-me gemer e gritar. Curvo-me para a
frente devagar, toco nos quadríceps, começo a voltar à vida.
Os meus músculos soltam-se. A minha pele canta. Os meus
poros abrem-se. Sinto o sangue quente a correr pelas veias.
Sinto que algo se começa a agitar. Vida. Esperança. As últimas gotas da juventude. Ainda assim, evito os movimentos
bruscos. Não quero que nada assuste a minha coluna. Deixo
que continue adormecida.
De pé, à frente do espelho da casa de banho, observo
o meu rosto enquanto me seco com a toalha. Olhos vermelhos, barba rala e grisalha — um rosto completamente
diferente do que tinha quando comecei. Mas também diferente do que vi o ano passado, neste mesmo espelho. Seja
eu quem for, não sou o rapaz que começou esta odisseia
nem o tipo que, há três meses, anunciou que essa odisseia
estava a chegar ao fim. Sou como uma raquete de ténis à
qual já trocaram o punho quatro vezes e o encordoamento
sete — será correcto dizer que se trata da mesma raquete?
Porém, algures nestes olhos, ainda vejo, vagamente, o rapaz
que não queria jogar ténis, que queria desistir, que desistiu mesmo várias vezes. Vejo aquele rapaz de cabelos louros
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que odiava o ténis e pergunto-me o que pensaria ele deste
homem calvo, que ainda odeia o ténis mas que continua a
jogar. Será que o rapaz ficaria chocado? Acharia divertido?
Sentiria orgulho? A pergunta faz-me sentir cansado, letárgico, e ainda é meio-dia.
Por favor, deixai que tudo isto acabe.
Não estou pronto para que acabe.
A linha da meta no final de uma carreira profissional
não é diferente da linha da meta no final de uma corrida.
O objectivo é colocar-me ao alcance dessa linha, para que esta
exerça uma atracção magnética. Quando estamos perto,
podemos sentir essa força a puxar-nos e usá-la para a atravessar. Contudo, mesmo antes de a alcançarmos, ou logo
depois, sentimos uma outra força, igualmente poderosa,
que nos empurra para longe. São inexplicáveis, místicas,
estas duas forças gémeas, estas energias contraditórias, mas
ambas existem. Sei disso porque passei boa parte da minha
vida à procura de uma, a combater a outra e, por várias
vezes, fiquei preso, suspenso, a saltitar entre as duas como
uma bola de ténis.
Esta noite: recordo a mim mesmo de que precisarei de
uma disciplina férrea para lidar com estas forças e o que
mais que me aparecer pelo caminho. Dores nas costas, más
jogadas, condições climáticas inadequadas, aversão por
mim mesmo. É uma forma de preocupação, este aviso, mas
também é uma meditação. Uma coisa que aprendi depois
de vinte e nove anos a jogar ténis: A vida atira todo o tipo de
coisas, com excepção do lava-louça, para o nosso caminho
— e depois atira o lava-louça. Cabe-nos a nós evitar os obstáculos. Se deixarmos que eles nos detenham ou distraiam,
não estamos a fazer bem o nosso trabalho e não fazermos
bem o nosso trabalho provoca remorsos que nos paralisam
mais do que uma dor nas costas.
Deito-me na cama com um copo de água e começo a ler.
Quando os meus olhos se cansam, ligo a televisão. Esta noite,
a segunda ronda do Open dos Estados Unidos! Será esta a despedida de Andre Agassi? O meu rosto surge no ecrã. Um rosto
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diferente do que vi no espelho. O que aparece nos jogos.
Avalio este novo reflexo de mim no espelho distorcido que
é a televisão e a minha ansiedade aumenta mais um pouco.
Terá sido este o último anúncio? A última vez que a CBS
promove uma das minhas partidas?
Não consigo deixar de sentir que estou à beira da morte.
Acredito que não seja por acaso que o ténis usa a linguagem da vida. Vantagem, serviço, falta, break e love1, os
elementos básicos do ténis são os da existência quotidiana
porque cada partida é uma vida em miniatura. Até a estrutura do ténis, a forma como as peças se encaixam umas nas
outras, como bonecas russas, reproduz a estrutura do nosso
dia-a-dia. Os pontos tornam-se jogos, que se tornam sets,
que se tornam torneios e está tudo tão estreitamente ligado
que cada ponto pode ser decisivo. Isso faz-me pensar em
como os segundos se tornam minutos, que se tornam horas
e em como cada hora pode ser o nosso melhor momento.
Ou o pior. A escolha é nossa.
Mas, se o ténis é como a vida, o que vem depois do
ténis deve ser o vazio do desconhecido. Esse pensamento
arrepia-me.
Stefanie irrompe pela porta com as crianças. Elas saltam
para cima da cama e o meu filho pergunta-me como me
sinto.
Bem, bem. Que tal os ossos?
Divertidos!
Stefanie dá-lhes sandes e sumos e sai de novo com elas.
Combinaram ir jogar, explica.
Não combinámos todos?
Agora posso dormir a sesta. Aos trinta e seis anos, a única
forma de conseguir jogar uma partida nocturna, que às
vezes se estende até depois da meia-noite, é descansar antes.
Além disso, agora que sei mais ou menos quem sou, quero
fechar os olhos e fugir de mim. Quando abro os olhos vejo
que passou uma hora. Digo em voz alta: Está na hora. Chega
de me esconder. Volto para o chuveiro, mas este banho
é diferente do que tomei pela manhã. O banho da tarde é
1
Zero pontos ou nada. [N. da R.]
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sempre mais longo — vinte e dois minutos, mais ou menos —
e não é para acordar nem para me limpar. O banho da tarde
é para me dar ânimo, para me preparar.
O ténis é um desporto em que o jogador fala sozinho.
Nenhum outro desportista fala tanto sozinho quanto um
tenista. Os jogadores de beisebol, de golfe, os guarda-redes,
todos murmuram consigo mesmos, mas os tenistas falam
sozinhos — e respondem. No calor de uma partida, os jogadores de ténis parecem uns loucos no meio da praça a discursar, a praguejar, a discutir com o seu alter ego. Porquê?
Porque se trata de um desporto tremendamente solitário. Só os pugilistas conseguem entender a solidão de um
tenista — e, no entanto, os pugilistas têm as suas equipas e
treinadores no canto. Até o adversário do pugilista lhe faz
uma certa companhia, pois é alguém com quem se pode
engalfinhar e com quem pode resmungar. No ténis, ficamos
cara a cara com o inimigo, trocamos golpes com ele, mas
nunca lhe tocamos nem falamos com ele — ou com qualquer outra pessoa. As regras do jogo proíbem o tenista de
conversar até com o seu treinador enquanto está no court.
Há quem aponte os velocistas como desportistas igualmente
solitários, mas sou obrigado rir quando ouço isso. O velocista pode, pelo menos, sentir a presença, o cheiro, dos
outros corredores. Estão a poucos centímetros. No ténis,
estamos numa ilha. De todos os jogos praticados pela humanidade, o ténis é o que mais se parece com o confinamento
numa solitária, o que inevitavelmente leva a que se fale sozinho e, no meu caso, esse diálogo comigo mesmo começa
aqui, no banho da tarde. É neste momento que começo a
dizer coisas a mim mesmo, coisas loucas, uma e outra vez,
até acreditar nelas. Por exemplo, que um quase inválido
pode competir no Open dos Estados Unidos. Que um tipo
de trinta e seis anos pode derrotar um adversário que está
a entrar no seu auge. Durante a minha carreira venci 869
jogos, fiquei em quinto lugar na lista dos melhores tenistas
de todos os tempos, e muitas dessas partidas foram ganhas
durante o banho da tarde.
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Andre Agassi
Com a água a rugir-me aos ouvidos — um som não
muito diferente do produzido por vinte mil fãs — recordo
algumas vitórias especiais. Não as vitórias que os fãs recordariam, mas as que ainda me fazem acordar a meio da
noite. Squillari, em Paris. Blake, em Nova Iorque. Pete, na
Austrália. Depois lembro-me de algumas derrotas. Sacudo
a cabeça perante as decepções. Digo a mim mesmo que a
partida desta noite será como um exame para o qual me
preparei durante vinte e nove anos. Aconteça o que acontecer esta noite, já passei por isso pelo menos uma vez na
vida. Se for um teste físico, se for um teste mental, não será
nada de novo.
Por favor, deixai que tudo isto acabe.
Não quero que acabe.
Começo a chorar. Encosto-me à parede do chuveiro e
abandono-me.
Enquanto faço a barba, dou a mim mesmo ordens rigorosas: Conquista um ponto de cada vez. Obriga-o a esforçar-se. Aconteça o que acontecer, mantém a cabeça erguida.
E, pelo amor de Deus, aproveita — ou, pelo menos, tenta
aproveitar alguns momentos, até a dor, até a derrota, se for
isso o que te espera.
Penso no meu adversário, Marcos Baghdatis, e pergunto-me o que estará a fazer naquele momento. Ele é novo no
circuito, mas não é o novato típico. Está em oitavo lugar
no ranking mundial. É um miúdo grego, grande e forte, do
Chipre, a meio de um ano soberbo. Chegou à final do Open
da Austrália e à semifinal de Wimbledon. Conheço-o relativamente bem. No Open dos Estados Unidos do ano passado, jogámos uma partida de treino. Por norma, não jogo
partidas de treino com outros jogadores durante um Grand
Slam, mas Baghdatis pediu-mo de uma forma encantadora.
Um programa da televisão cipriota estava a fazer uma reportagem sobre ele e ele perguntou-me se nos poderiam filmar
a treinar. Claro, disse. Por que não? Ganhei o set por 6–2 e,
depois disso, ele era só sorrisos. Percebi que é do tipo que
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sorri quando está feliz mas também quando está nervoso e
nunca sabemos se se trata de uma coisa ou de outra. Fez-me
lembrar alguém, mas não me consegui lembrar quem.
Disse a Baghdatis que tinha um estilo de jogo parecido
com o meu e ele respondeu-me que não era por acaso.
Cresceu com fotografias minhas nas paredes do quarto,
criou o seu jogo a partir do meu. Por outras palavras, esta
noite vou enfrentar o meu próprio reflexo. Ele vai jogar no
fundo do court, apanhar a bola cedo, rebater para as vedações, tal como eu. Será uma partida renhida, cada um de
nós a tentar impor a sua vontade, cada um de nós à procura de uma oportunidade para bater uma esquerda para
o fundo do campo. Ele não tem um serviço arrasador, nem
eu, o que significa pontos demorados, jogadas rápidas, um
grande dispêndio de tempo e energia. Preparo-me para
a velocidade, as combinações, um ténis de atrito, a forma
mais brutal deste desporto.
É claro que a principal diferença entre Baghdatis e eu
é física. Temos corpos diferentes. Ele tem o corpo que eu
tinha no passado. É ágil, rápido, eléctrico. Vou ter de vencer
uma versão mais jovem de mim mesmo para manter a versão actual em actividade. Fecho os olhos e digo: Controla o
que podes controlar.
Repito, em voz alta. Falar em voz alta dá-me coragem.
Fecho a torneira e deixo-me ficar de pé, a tremer.
Como é mais fácil sentir coragem debaixo de um fluxo de
água quente! Porém, recordo a mim mesmo que coragem
debaixo de um banho quente não é verdadeira coragem.
No fim, o que sentimos não importa; é o que fazemos que
nos torna corajosos.
Stefanie volta com as crianças. É hora de preparar a Água
do Gil.
Transpiro muito, mais do que a maioria dos tenistas, por
isso preciso de me começar a hidratar várias horas antes de
uma partida. Bebo uma grande quantidade de um elixir
mágico que Gil, o meu preparador há dezassete anos, inven-
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Andre Agassi
tou para mim. Trata-se de uma mistura de hidratos de carbono, electrólitos, sais, vitaminas e mais alguns ingredientes. Gil guarda a fórmula a sete chaves. (Há duas décadas
que está a apurar a receita.) Em geral obriga-me a começar
a tomar a bebida na noite anterior à partida e continua a
forçar-me a beber até à hora do jogo. Depois vou bebendo
uns goles durante o encontro. Em fases diferentes bebo versões diferentes, cada uma com a sua cor: rosa para dar energia; vermelho para recuperar; castanho para reabastecer.
As crianças adoram ajudar-me a preparar a bebida.
Lutam para ver quem vai tirar os pós, quem segura o funil,
quem ajuda a deitar a mistura para as garrafas de água de
plástico. Contudo, só eu posso guardar as garrafas no saco,
juntamente com as minhas roupas, toalhas, livros, óculos de
sol e punhos. (Como sempre, as raquetes vão mais tarde.)
Ninguém para além de mim pode mexer no meu saco de
ténis e, depois de arrumado, fica ao lado da porta, como a
mala de um assassino, um sinal de que o dia se aproxima
ainda mais da hora decisiva.
Às cinco da tarde Gil liga-me do lobby.
Pergunta-me: Estás pronto? É hora de ir à luta. É agora,
Andre. É agora.
Hoje em dia toda a gente diz É agora, mas Gil já fala
assim há anos e ninguém o diz como ele. Quando ele diz É
agora, sinto a minha energia explodir e as minhas glândulas
a bombear adrenalina como géisers. Sinto-me como se fosse
capaz de erguer um carro acima da cabeça.
Stefanie vai com as crianças até à porta e diz-lhes que
está na hora de o pai sair. O que é que se diz, meninos?
Jaden grita: Arrasa, papá!
Arrasa, papá, repete Jaz, imitando o irmão.
Stefanie dá-me um beijo e não diz nada, porque não há
nada para dizer.
Gil instala-se no banco da frente do Lincoln Town Car, todo
bem vestido. Camisa preta, gravata preta e casaco preto.
Veste-se para todos os jogos como se tivesse um encontro
amoroso ou fosse participar num ataque da máfia. De vez
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