83 Revista TOXICODEPENDÊNCIAS • Edição IDT • Volume 12 • Número 3 • 2006 • pp. 83-86 09 Discurso Directo REFLEXÕES SOBRE AS TERAPÊUTICAS E MANUTENÇÃO OPIÓIDE JOSÉ GODINHO 1. INTRODUÇÃO As terapêuticas de manutenção com agonistas opióides, vulgarmente designadas por terapias de substituição, em que se destaca a utilização de metadona e buprenorfina, têm sido objecto de marcada controvérsia ao longo dos anos, na generalidade dos países, e também em Portugal. As causas desta controvérsia são múltiplas, desde as puramente ideológicas às económicas, conduzindo a posições extremistas e sem qualquer fundamento científico. Penso que um melhor conhecimento destes programas, das acções das substâncias utilizadas, e das suas diferenças em relação à heroína, bem como o esclarecimento de conceitos tão distintos, e tantas vezes confundidos, como o de dependência física e toxicodependência (dependência de substâncias, adição), permitirá ter uma visão distinta destas intervenções terapêuticas, fundamental para uma mudança de atitude em relação a este modelo de tratamento que, sendo claramente eficaz, tem sido frequentemente utilizado como intervenção de recurso (muitas vezes o último), não raramente com relutância dos próprios profissionais de saúde que, obviamente, “contagiam” os doentes, levando a um fraco investimento nestes programas, e consequente incómodo para todos os intervenientes. Espero que as reflexões seguintes permitam um outro olhar sobre estas terapêuticas, e talvez uma mudança de atitude. 2. DEPENDÊNCIA FÍSICA, TOLERÂNCIA, TOXICODEPENDÊNCIA Dependência física é uma propriedade farmacológica das substâncias, sendo habitualmente definida pela ocorrência de uma síndrome de privação específica para a substância, após a redução ou paragem abrupta do consumo, diminuição dos níveis sanguíneos, ou após a administração de um antagonista. Tolerância é um estado de adaptação, em que a exposição a uma substância conduz a alterações que resultam na diminuição de um ou mais dos seus efeitos ao longo do tempo. Toxicodependência é definida como uma doença primária, crónica, neurobiológica, com factores genéticos, psicossociais e do ambiente que influenciam o seu desenvolvimento e manifestações. Caracteriza-se por comportamentos que incluem um ou mais dos seguintes sintomas: perda de controlo sobre o uso da substância, uso compulsivo, continuação da utilização apesar dos prejuízos causados e “craving”. Estas definições são reconhecidas e recomendadas pela American Academy of Pain Medicine, American Pain Society e American Society of Addiction Medicine (2001). O grande mérito destas definições consensuais é distinguir claramente o conceito de dependência física do de toxicodependência. Estes conceitos têm sido frequentemente confundidos, mesmo nas classificações internacionais das doenças mentais, embora haja uma evolução no sentido da sua diferenciação. Assim, em 1980, o Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DSM III) atribuía uma marcada importância à tolerância e síndrome de abstinência, nos critérios de dependência de substâncias, enquanto que em 1994 a DSM IV reduz claramente a importância da tolerância e da síndrome de abstinência, focando os critérios diagnósticos, principalmente, nas alterações comportamentais. Conclui-se, assim, que o conceito de toxicodependência deve ser claramente distinto do conceito de dependência física. Este último, deve ser reservado apenas para o 84 REFLEXÕES SOBRE AS TERAPÊUTICAS E MANUTENÇÃO OPIÓIDE • pp. 83-86 sofrimento físico sentido pelo indivíduo quando pára ou reduz a administração de uma substância. A dependência física não é necessária, nem suficiente, para causar toxicodependência, sendo que algumas substâncias de abuso não causam dependência física e alguns medicamentos causam dependência física, mas não causam toxicodependência. Além disso, a dependência física e a síndrome de abstinência são habitualmente mediadas por regiões do sistema nervoso central, diferentes das implicadas nos processos de toxicodependência. (Nestler, E., J. 2002). 3. HEROÍNA E TOXICODEPENDÊNCIA A heroína, como a generalidade das substâncias de abuso, com excepção dos alucinogénios, conduz à auto administração pelos animais de laboratório (Gardner, E., L. 1997). Todas estas substâncias estimulam a actividade de circuitos cerebrais específicos, denominados habitualmente como vias da recompensa, localizados no sistema dopaminérgico mesolímbico, nomeadamente no nucleus accumbens e na área tegmental ventral. Esta estimulação é responsável pelos efeitos euforizantes das substâncias e pela tendência à repetição. Algumas substâncias, nomeadamente a heroína, na sua privação, provocam dependência física por actuarem em vias diferentes das vias da recompensa, sendo quadros claramente independentes (Bozarth, M., A. 1990). O efeito aditivo das substâncias, nomeadamente da heroína, parece ser resultante da forma de actuação destas nas vias da recompensa, sendo aceite que a capacidade aditiva depende da rapidez com que as mesmas activam estas vias. Se o cérebro for activado lentamente, adapta-se, e, ao criar mecanismos compensatórios, evita os efeitos perturbadores das substâncias. O cérebro tem grande capacidade de adaptação e se for perturbado devagar, muitas vezes é capaz de se adaptar e criar mecanismos compensatórios. Se for estimulado rapidamente não tem essa capacidade. Se uma substância actuar lentamente o cérebro é capaz de compensar as alterações que ela provoca. No entanto, se actuar no cérebro muito rapidamente, não permite que os mecanismos de adaptação funcionem, provocando uma estimulação marcada dos circuitos do prazer. O quadro de euforia está dependente da rapidez da estimulação das vias da recompensa.(Nida Notes 1997). Assim, a heroína, ao ser fumada ou injectada, atinge os centros cerebrais de forma muito rápida e intensa, e durante um período relativamente curto, dificultando o funcionamento dos mecanismos de adaptação cerebrais. Ao ultrapassar o limiar de tolerância provoca um quadro de euforia. Devido ao seu curto tempo de acção, existe uma rápida redução dos níveis de heroína com o consequente quadro de abstinência. Considera-se, também, que o uso crónico de opiáceos de curta acção, como a heroína, por conduzir a quadros de euforia e privação, é responsável por alterações nos sistemas neurobiológicos. Estas alterações mantêm-se mesmo após terminado o quadro de abstinência agudo, levando à persistência do “craving” ao longo do tempo (Stimmel, B., Kreek, M., J., 2000). A utilização crónica de heroína leva a mecanismos de sensitização (aumento da resposta a um efeito da substância após a sua utilização prolongada), conduzindo, provavelmente, a um aumento do desejo (“wanting”) da droga (Robinson, T., E., Berridge, K., C., 2000, Kelley, A., E., Berridge, K., C., 2002). Por sua vez surgem mecanismos de contra adaptação nas vias da recompensa, com intenção de neutralizar os efeitos da substância. A persistência destes mecanismos de neuroadaptação após o quadro de abstinência pode contribuir, também, para a tendência a retomar o seu uso (Roberts, A., J., Koob, G., F., 1997). 4. TERAPÊUTICAS COM AGONISTAS OPIÓIDES E COM NALTREXONA Com o objectivo de manter a abstinência de heroína a longo prazo, independentemente das intervenções psicos-sociais indispensáveis, e claramente muito importantes, têm sido utilizadas substâncias que actuam nos receptores opióides, quer estimulando-os, agonistas opióides dos receptores mu, completos e parciais, (de que são exemplos a metadona e a buprenorfina), quer bloqueando-os, antagonistas (de que é exemplo a naltrexona). A naltrexona tem sido largamente usada por não ter efeitos psicoactivos imediatos evidentes e, ao bloquear os receptores opióides impedir os efeitos da heroína, TOXICODEPENDÊNCIAS • Volume 12 • Número 3 • 2006 REFLEXÕES SOBRE AS TERAPÊUTICAS E MANUTENÇÃO OPIÓIDE • pp. 83-86 desencorajando o seu uso. Embora seja frequentemente esquecido, a naltrexona não é apenas um “tampão” para a heroína, pois ao bloquear os receptores opióides impede a acção de todos os opióides endógenos, tornando inoperante este sistema, sendo provável que leve a efeitos emocionais negativos, nomeadamente humor depressivo (Nestler, E., J., 2002). Este facto privilegia a sua utilização em indivíduos muito motivados, minimamente estruturados e, provavelmente, por períodos curtos. O seu uso deve ser assim, criterioso e não indiscriminado (por ex: como primeira intervenção terapêutica em qualquer toxicodependente), já que, em muitos casos, mesmo promovendo curtos períodos de abstinência, paradoxalmente, facilitará o retorno do indivíduo aos consumos. Julgo ser consensual que, ao tratarmos um toxicodependente de heroína, pretendemos resultados estáveis a médio/longo prazo, e não apenas resultados imediatos, claramente ilusórios, que, a resultarem em recaídas constantes, levam a uma maior desorganização do indivíduo, com o desacreditar do doente e família, e consequente aumento dos comportamentos de risco e perpetuação do problema. Os agonistas opióides, sendo a metadona o mais utilizado, têm um papel importante na terapêutica farmacológica da dependência de heroína. Apesar de muito utilizado em quase todo o mundo e, actualmente, também em Portugal, os programas de metadona têm sido objecto de grande controvérsia, quer entre os técnicos, quer na população em geral. A administração de metadona é frequentemente vista como a manutenção da situação, ao considerar-se que se trata da substituição de uma droga ilícita por uma droga lícita, mantendo a situação de dependência. A visão da metadona, não como uma droga no sentido pejorativo do termo, mas como um medicamento eficaz no tratamento de uma doença frequentemente crónica é, infelizmente, ainda pouco habitual. Esta visão negativa da utilização de agonistas opióides no tratamento da toxicodependência de heroína é em grande parte devida a um reduzido conhecimento desta terapêutica. O objectivo principal de qualquer tratamento da dependência de heroína é parar o seu consumo e promover o normal funcionamento do indivíduo. É esta a finalidade dos programas de manutenção opióide, nomeadamente dos programas de manutenção com metadona. Assim, esta terapêutica tem por fim eliminar a síndrome de abstinência, eliminar o “craving”, normalizar as funções fisiológicas, e manter um limiar de tolerância aos opióides que impeça o efeito euforizante da heroína (Stimmel, B., Kreek, M., J., 2000). A metadona e a heroína são substâncias claramente distintas. A metadona é eficaz por via oral, tem uma acção longa, ocupa os receptores opióides lentamente permitindo criar níveis sanguíneos estáveis, evitando as oscilações características da heroína. Ao manter níveis estáveis permite normalizar o funcionamento fisiológico, sem provocar euforia ou privação, mantendo um normal funcionamento cognitivo e motor. Por mecanismos de tolerância e tolerância cruzada, a metadona, se utilizada em doses apropriadas (habitualmente superiores a 80 mg) impede o efeito euforizante da heroína, desencorajando o seu uso (Lowinson, J., H., et. al. 1997, Stimmel, B., Kreek, M. J., 2000, Stimmel, B., 2001). A terapêutica com metadona deve ser considerada uma terapêutica a longo prazo, não limitada no tempo, pelo que é necessário agilizar os mecanismos de administração, de modo a não se tornar um tratamento demasiado incómodo para os doentes e pesado para as instituições. Não sendo necessariamente uma terapêutica para toda a vida, é preciso que fique claro para os técnicos e para os doentes que, como em qualquer doença que pode ser crónica, não há limite de tempo para o tratamento. 5. CONCLUSÃO A eficácia da terapêutica com metadona, se correctamente utilizada, e acompanhada por um marcado investimento psicossocial, é indiscutível, e deve ser acessível aos toxicodependentes que dela possam beneficiar, o que actualmente não acontece, nomeadamente na região da grande Lisboa (Coutinho, R., 2004). O tratamento dos heroinodependentes deve ter como objectivo a sua abstinência continuada e evitar, tanto quanto possível, as recaídas, pelo que a atitude terapêutica deve ser individualizada e adaptada à realidade de cada indivíduo, sendo de evitar intervenções que, apesar de aparentemente eficazes a curto prazo, conduzam quase inevitavelmente a um retorno aos consumos. Penso que as terapêuticas com agonistas opióides, e 85 86 REFLEXÕES SOBRE AS TERAPÊUTICAS E MANUTENÇÃO OPIÓIDE • pp. 83-86 particularmente com metadona, acompanhadas de um adequado investimento psicossocial, devem ser uma das prioridades das Unidades Especializadas do Instituto da Droga e Toxicodependência. Isso só será possível se houver da parte dos técnicos uma atitude científica, rigorosa e desprovida de preconceitos. Contacto: José Godinho Chefe de Serviço de Psiquiatria CAT de Xabregas Rua de Xabregas, 62 1900-440 Lisboa e-mail: [email protected] REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS American Academy of Pain Medicine, American Pain Society, American Society of Addiction Medicine, (2001). “Definitions related to the use of opioids for the treatment of pain). Stimmel, B.; Kreek, M., J. (2000). “Neurobiology of addictive behaviors and its relationship to methadone maintenance”. The Mount Sinai Journal of Medicine, 67, (526): 375-380. Bozarth, M., A. (1990). “Drug addictive as a psychobiological process”. DM Warburton (Ed), Addictive controversies: 112-134. Stimmel, B. (2001). “Heroin addiction methadone maintenance, and opiophobia: A worldwide problem”. International Society of Addiction Medicine. E-Publication: International Addiction. Coutinho, R. (2004). “A propósito da procura de tratamento nos CAT”. Toxicodependências, 10, (3): 83-86. Gardner, E., L. (1997). “Brain reward mechanisms”. Lowinson, Ruiz, Millman, Langrod (Eds). Substance Abuse. A Comprehensive Textbook (3ªEd), 51-85. USA: Williams & Wilkins. Kelley, A., E. & Berridge, K., C. (2002). “The neuroscience of natural rewards: Relevance to addiction drugs”. The Journal of Neuroscience, 22, (9): 3306-3311. Lowinson, J.; H. Payte, J., T.; Joseph, H.; Marion, I.; J. & Dole, V.; P. (1997). “Methadone maintenance”. Lowinson, Ruiz, Millman, Langrod (Eds), Substance Abuse. A Comprehensive Textbook (3ªEd), 405-415. USA: Williams & Wilkins. Nestler, E., J. (2002). “From neurobiology to treatment: Progress against addiction”. Nature Neuroscience Supplement, 5: 1076-1079. Nida Notes, (March/April 1997), 8-11. Roberts, A., J., Koob, G., F (1997). “The neurobiology of addiction. An overview”. Alcohol Health & Research Word, 21, (2): 101-106. Robinson, T., E., Berridge, K., C. (2000). “The psychology and neurobiology of addiction : an incentive-sensitization view”. Addiction, 95: 91-117. TOXICODEPENDÊNCIAS • Volume 12 • Número 3 • 2006