[Sem título] Guy Brett O artista trabalha para conhecer uma verdade que já intui. Essa operação cognitiva produz a obra. Ao nos aproximarmos de um relevo branco de Camargo, somos ofuscados por sua aura. Apenas gradualmente penetramos no significado central da obra através dos processos cognitivos. O objeto em si é vago. Não há nele nada de precisamente definível. Não há nenhuma imagem, nenhuma forma. O relevo não possui existência material definida. Em vez disso, parece dissolvido no espaço e na luz que o cercam. Torna-se uma espécie de molde branco sobre o qual a luz parece imprimir seu ritmo natural; traz vestígios de cada pequena transformação enquanto a luz cristalina da manhã transforma-se na luz chapada da tarde e, mais adiante, na esquiva luz da noite. Não está aí para nos dizer nada, mas para devolver, amplificado, tudo aquilo que levamos até ele. Ele divide nosso espaço natural e reflete nossa vida num código de sombras. Suas sequências temporais mantêm o compasso das nossas... Sem saber, descobrimos estar experimentando esse acompanhamento imaterial às nossas vidas com uma força positiva e construtiva. De que forma é possível perceber exatamente a ordem numa situação visual instável, sem composição ou centro de gravidade, caoticamente dinâmica na aparência? A evolução geral da arte moderna resulta de muitas contribuições diferentes. Um determinado aspecto da obra de um artista, uma obra em particular ou mesmo uma ideia não-realizada podem ter um papel importante. Este é papel da proposta estética, o pensamento que age como catalisador. No entanto, a totalidade da obra de um indivíduo é outro assunto. Buscamos continuidade e penetração; buscamos, em outras palavras, a realização de uma linguagem suficientemente próxima da vida para assistir a seu desenvolvimento e suficientemente flexível para exprimir as diferentes experiências que ocorrem no dia-a-dia. Mesmo assim, a existência de propostas irrealizadas deve implicar numa arte vital e audaciosa. Em tempos de decadência, as pessoas se limitam a copiar sem pensar. Não existem inventores, apenas usuários de linguagem. Os signos e seus significados já são conhecidos e podem expressar apenas aquilo que já é sabido. Se essa capacidade de capturar o pensamento é o germe de qualquer arte vital, o artista que forma a sua própria linguagem deve começar pela base do pensamento e expressar esse pensamento de modo a torná-lo real e iluminar a vida. O pensamento torna-se inseparável da linguagem que o expressa; sua força e originalidade são, portanto, identificados com a riqueza da linguagem. A arte de Camargo se apoia numa base extremamente inteligente e impiedosamente calculada e tem, ao mesmo tempo, a completa flexibilidade da linguagem artística. Diferença de natureza entre: Ilustração de uma ideia [Espaço de representação = Academia] Expressão de um pensamento [Espaço real = Criação] Podemos expandir essas frases de Camargo através do uso de definições de dicionário. A primeira se tornaria ‘a elucidação através de signos convencionais da imagem mental de algo previamente visto ou conhecido’; a segunda, ‘a revelação de um único ato de pensamento’. Esta última implica na direção do ato, o enunciado que compara a atividade do artista à atividade da natureza – como o carvalho de Walt Whitman, que ‘profere jubilosas folhas de verde escuro’. Na primeira, a ideia é separável do contexto na qual se expressa; na segunda, é inseparável. Camargo expressou a mesma distinção de outra maneira: O artista-artesão sabe fazer – e descreve. O artista-criador sabe ver – e diz. O primeiro relevo branco data de 1963, quando Camargo tinha vinte e três anos. Ele já vinha fazendo escultura desde os dezoito; sua personalidade emergia claramente desde o início, embora fosse expressa numa linguagem convencional. Os membros de suas primeiras figuras estão enlaçados e os corpos são sempre usados para fins rítmicos em vez de sentimentais. Quando sentiu a atração da arte abstrata e abandonou o trabalho figurativo, foi novamente para expressar um ritmo desimpedido – fez formas contínuas em folhas de metal que definem um volume virtual. Foi o mais próximo que chegou de uma solução formal, provocando uma reação violenta. Ele sabia que seria necessário um choque, então não foi por acaso e foi auto-aplicado. A combinação nos relevos de uma linguagem determinada com uma expressão indeterminada encontra eco em todo o seu desenvolvimento; períodos de construção são seguidos por explosões e aí por mais períodos de construção. Depois das obras de metal, Camargo fez peças de gesso, fragmentárias, orgânicas e sem forma, com estranhas técnicas de sua própria invenção: enfiando os dedos na superfície, fez moldes de areia ou moldou o gesso em dobras aleatórias como pedaços de tecido. Começou a enxergar possibilidades em buracos feitos por dedos (que sobressaem nos moldes de gesso) que, repetidos um ao lado do outro, tendiam a se tornar anônimos. Esses agrupamentos produziam um ritmo de contração e expansão que não se restringia a uma forma estática em particular, mas que era imaterial e dinâmica. Ele também viu o potencial das projeções para trazer luz para dentro da escultura, para que ela se tornasse expoente de um ritmo que também era imaterial e constantemente mutante. Camargo chegou à próxima etapa graças a uma descoberta acidental. Ao cortar uma maçã para comer, fatiou quase a metade da fruta. Em seguida, fez outro corte, num ângulo diferente, para tirar um pedaço. Os dois planos criaram uma relação de luz e sombra. Inconscientemente, o artista havia criado seu primeiro elemento cilíndrico. Na maçã estava a síntese que buscava para unificar todas as etapas anteriores de sua obra – a combinação, num único elemento, de substância (o corpo arredondado da maçã) e direção (o plano que acabava de expor). É a síntese do seu pensamento e experiência num único signo escultórico. Obra de arte: resultado da objetivação de uma verdade subjetiva. Os elementos de sua linguagem foram isolados de maneira tão estreitamente determinada e lógica que ficaram sem sentido em si. Camargo trabalha no campo das puras relações. Ele faz determinadas escolhas dentro de uma gama limitada de possibilidades do elemento cilíndrico – o ângulo do plano serrado, o comprimento e diâmetro do corpo. O artista tornou tão claro seu processo de raciocínio que ele nos aponta diretamente para o ato criador, o ato de escolher está livre dos trabalhos de fabricação. Ele utiliza uma linguagem expressiva muito próxima da música, a menos material das artes, a mais externa das artes. Mas, diferentemente de um compositor, ele não transcreve formas preconcebidas que existem na sua cabeça. Para ele, a composição é um ato que se desdobra no tempo. O ritmo de todo o seu ser flui através do ritmo motor de suas mãos. Ele é como um pianista ao distribuir os elementos por sobre a superfície, a uma só vez compositor e músico. A realização de uma obra totalmente racional (formalismo estético) restringe a vida ao campo estreito da consciência imediata – uma parte ínfima daquilo que o homem pode perceber através de uma abordagem mais receptiva e atenta da vida. Nos toca mais aquilo que é revelado do que aquilo que é descrito, e a comunicação metafórica ou parabólica tem um alcance mais profundo e direto, pois exige uma participação ativa de caráter criativo que liga o espectador à obra. O problema é expresso pelo contexto de onde o pensamento (obra) emerge. A síntese num único elemento nos leva a agrupá-lo com outros e a fixá-lo num contexto particular para formar a obra de arte. Ela leva, também, a uma abordagem mais atenta e mais próxima da vida, pois com a criação do contexto o espectador adentra a obra. Em vez de descrever, a obra revela. O espectador é tocado pela carga emocional do todo, do contexto, de um modo que não consegue bem explicar. Pois é tamanha a claridade da escultura de Camargo que o espectador sempre pode ver as partes separadas das quais o todo emerge. É através dessa misteriosa transformação das partes no todo que ele se liga à obra a despeito de si mesmo. Camargo compara essa interação entre a obra e o espectador à parábola. As ideias por detrás de uma parábola poderiam ser comunicadas por meios racionais e de forma linear, mas as palavras seriam fluidas e abertas a muitas interpretações incontroláveis. A parábola fixa as palavras num contexto emocional que força cada espectador a ver não a mesma coisa, mas do mesmo modo. Por ser baseado na vida – o espírito expresso através de ritmos motores – o contexto transforma o material exterior em vibração interior. Embora só faça sentido dentro do contexto estabelecido pelo artista, o elemento representa uma síntese que é fundamentalmente uma descoberta pessoal. Sua descoberta foi acidental, mas só poderia ter surgido da vida e da experiência de Camargo. Através do elemento, a luz entra na obra do mesmo modo que entrou na maçã, criando uma estrutura no espaço que é desmaterializada e continuamente mutantes. A forma do elemento condiciona o modo através do qual a luz e o espaço entram na obra, e o tipo de ritmo que a estrutura possui. Hoje esse ritmo é de substância, plenitude e sensualidade, como sempre foi. Nos relevos brancos opera-se uma forma particular de materialidade. Os sólidos brancos não são assimilados como sólidos; as sombras e as relações são sentidas com mais força, e esses são os traços imateriais do volume dos elementos. Nos relevos de Camargo, o volume, embora realmente exista, é percebido como virtual. Camargo trabalha entre a pintura e a escultura. Neste século, tanto a pintura como a escultura tiveram, separadamente, de negar seu legado renascentista. Na pintura Mondrian rompeu com a convenção da profundidade representada pela ilusão para insistir no plano absoluta. De sua parte, Malevich rompeu com a convenção de que a luz precisa ser representada através do estágio intermediário de mostrar seus efeitos sobre objetos do mundo exterior: em suas pinturas de branco sobre branco ele pôs a luz diretamente sobre a tela. Na escultura, Brancusi reduziu o volume a formas de extrema simplicidade arquetípica: o ovo, a coluna, o pássaro. Com sua escultura cinética de 1920, Gabo propôs a existência virtual do volume e criou esculturas nas quais o espaço se expressa como ‘profundidade contínua’. Na solução de Camargo ao problema do espaço e do movimento, essas duas vertentes já não se separam. Como Mondrian, ele se vale de meios puros e, como Malevich, usa a luz diretamente; ao mesmo tempo, usa o volume e as linhas de direção existentes no espaço tridimensional. Quando pintada, a luz branca entra na obra, desmaterializando os volumes num espaço que, aos olhos do espectador, possui uma profundidade indefinida que vibra e muda continuamente de acordo com os movimento do espectador e da luz. A obra entrelaça a informação dos sentidos tátil e visual de modo revolucionário. Sobre Brancusi: No espaço, o pássaro que voa descreve uma trajetória. É isso que realmente me atrai e que, apesar de sua imaterialidade, é tão real quanto o próprio pássaro. Para Camargo, a compreensão do pássaro é impossível sem a experiência de sua atividade no tempo e no espaço. O pássaro é um signo de suas possibilidades, que se expressam nos ritmos imateriais de seu voo livre e continuamente renovado. De forma semelhante, o elemento (o cilindro) é um signo de suas possibilidades expressas na luz e na sombra que surgem, sempre diferentes, do contexto escolhido pelo artista. Os relevos de Camargo não envolvem a rejeição do mundo visível em favor de um mundo ideal. Eles são uma ampliação do mundo visível, uma linguagem que expressa a natureza relativa daquilo que vemos no contexto de outras realidades que não podem ser percebidas e que em muito excedem àquelas que podem. A representação acadêmica do mundo visível baseia-se na experiência racional do passado. Ela diz: ‘Quando chuto essa pedra machuco o meu pé, por isso sei que ela é sólida.’ Essa filosofia não dá conta das ambiguidades da solidez de um relevo de Camargo. Na verdade, ela nos impede de expandir para preencher a moldura mais ampla proporcionada pela nossa experiência do mundo atual. Não se trata de trocar um tema por outro, mas de transformar nosso modo de ver. A obra não é uma representação, mas um signo, um índice da realidade. Seus equivalentes no mundo visível são os fenômenos que parecem ser signos em si mesmos, vestígios das forças que os criaram. Fenômenos instáveis, indeterminados como a obra, controlados pela lei das probabilidades mais do que pela necessidade. O que talvez aconteça na minha obra é que ela libera, em quem quer que dela se aproxime, emoções difusas, comparáveis àquelas que por vezes sentimos frente a determinados rostos ou paisagens, ou quando sentimos o espaço, a areia ou o vento... Da mesma forma que seria impossível calcular um voo orbital com algarismos romanos, o artista contemporâneo precisou inventar outro sistema de linguagem para compreender e expressar a realidade da qual tornou-se consciente. Foi importante empreender a destruição dos valores acadêmicos estabelecidos, apagá-los, pois eles nos impediam de nos aproximarmos do campo vasto da complexidade contemporânea. Tenho conseguido levar adiante esse árduo empreendimento dos artistas plásticos desde o início do século, um processo contínuo de desmaterialização da obra de arte. Os temas já não importam mais e a extração da formas puras abriu caminho para um tipo de criação mais livre no qual o objeto material, transposto, dissolve-se em campo psíquico, espaço lírico, palpitante, uma espécie de aura que a obra cria para si. A obra não impõe uma ordem. Ela reage com grande flexibilidade à presença do espectador e é desse diálogo que se cria a ordem. O artista assume total responsabilidade por sua escolha; o espectador também. Tendo criado uma linguagem precisa capaz de expressar o que sente, o artista estabelece a base para um diálogo entre o espectador e a obra. Embora esse diálogo seja dirigido pelo artista, não é fixado por ele. Pois a obra vive sua vida no mundo. Ela cria um espaço vivo, espontâneo, aberto ao inesperado. Sem sacrificar a objetividade dos primeiros artistas abstratos, a arte tornou-se mais livre, mais lírica e mais aberta para a vida. Saímos do quarto de pé direito alto e sem janelas de Mondrian para o Novo Mundo. BRETT, Guy. Camargo. London: Signals London, 1966. Traduzido do inglês por Steve Berg.