Recomeçar Ozair da Costa Pereira Assim como o dia amanhece e nos vem brindar todos os dias com a sua claridade habitual e maravilhosa, dando início a uma nova jornada, também não sabemos realmente o que sucederá conosco no decorrer das vinte e quatro horas que advirão em nossa existência. Estamos sempre tão imersos nesse eterno advir, que mergulhados no ramerrão de nosso dia, não chegamos a perceber o passar das horas. Quando estamos envolvidos com atividades de que gostamos, o tempo é contado em segundos, mas se acontece ao contrário, o nosso tempo será contado em léguas. O dia ao invés de 24 parece ter 48 longas horas. E tudo nos parece desagradável e enfadonho. São as coisas da vida. São as conseqüências as quais todos nós, seres humanos, estamos sujeitos. Quantas vezes já recomecei a minha vida? Inúmeras. O começo veio com o meu nascimento. A localidade onde nasci e permaneci por 18 anos não satisfazia os meus anseios de crescer a cada dia e cada vez mais. Ai começaram os meus “recomeços”. Fui para a capital do meu Estado. Ali era como se fosse uma nova vida, ou melhor, era uma nova vida, pois estava me aventurando, pela primeira vez, a seguir rumos que queria dar a mim mesmo, longe da minha mãe e de tudo de bom que ela me proprocionava; além do aconchego da família e dos amigos. Era uma terra distante e diferente de tudo o que já havia vivido, até então. Ali foi a minha primeira estação. Primeiras grandes dificuldades, primeiro trabalho (ajudante de carpinteiro), primeiro colégio na capital (Dom Bosco), graças a uma bolsa conseguida por um conterrâneo lá da velha mundurucanha, como é chamada carinhosamente a cidade de Maués, onde nasci. Minha primeira residência (bairro dos Educandos), primeiro concurso (Banco de Boston), reprovado, porque o concurso tinha cartas marcadas e eu não tinha padrinho. Segundo concurso (Cadrastrita de Prefeitura), terceiro lugar entre 250 concorrentes, inclusive universitários. Trabalhei naquela empresa por alguns meses, mas como a nossa função era cadastrar a cidade de Manaus, logo o serviço foi concluído e estávamos sem emprego, novamente. As dificuldades foram se acumulando. O meu ego estava ficando dilacerado a cada dia e o tempo era novamente contado em léguas para mim; porém, urgia encontrar uma solução porque os meus limites já extrapolavam as raias das minhas preocupações. Foi nesse entrevero de sofrimentos que apareceu uma luz no fim do túnel. Uma Companhia vinda do Sul fazia inscrições para homens sem qualificação profissional, para trabalhar em Rondônia, no trecho da estrada que ligaria Brasília ao Acre. Em fevereiro de 1959, entre 300 homens, eu embarcava, subindo o rio Madeira, numa viagem de aproximadamente cinco dias, singrando as suas águas tranqüilas, rumo a Porto Velho, para uma nova estação da vida. Permaneci naquela região, por aproximadamente, um ano, passando por várias funções e inúmeras paragens daquele Estado, que variava de 30 a 300 quilômetros distantes da capital. Fiz a minha primeira viagem de trem, na velha Madeira Mamoré, no trecho Porto Velho/Jaci Paraná e daí adentrando até o Acre. Viajando em trem de carga, levamos 18 horas para percorrer um trecho de aproximadamente 200 km. Na volta, a coisa já foi diferente; em um trem de passageiros o mesmo percurso foi realizado em apenas 6 horas. Fiquei pulando de serviço em serviço e quando não tinha nada para fazer ia para o aeroporto e embarcava no primeiro avião da Companhia, para qualquer lugar, sempre à procura de algo melhor que pudesse fazer. Mas era difícil e no final da tarde estava de volta, até que um maranhense me achou e me contratou como “apontador” de um grupo de trabalho que atuava exclusivamente na execução de pontes de madeira. Ali finalizei a estada por aquelas plagas, saindo de lá em avião da Panair do Brasil, rumo a Brasília (meu sonho); com uma rápida passagem por Cuiabá e depois Goiânia, para daí fazer a primeira viagem em um ônibus interestadual (duzentos quilômetros), chegando ao meu suposto destino mais ou menos às 15 horas do dia 28 de outubro de 1960, pisando em terras candangas, mais precisamente na cidade satélite do Núcleo Bandeirante. Assim que me instalei na cidade, minha providência imediata foi tomar um ônibus e partir para um giro pela cidade que, na minha imaginação, era a coisa mais bela que poderia existir. No entanto, me deparei com uma cidade praticamente esquelética. Desci mais ou menos no meio do Eixinho Sul e rumei ao encontro das conchas acústicas. Hoje vejo que fiz uma longa caminhada e a minha resistência física só deu para chegar até ao meio do Eixo Monumental, onde grande parte dos ministérios já se achava concluída. Cheguei à rodoviária e fiz a viagem inversa. Até chegar ao meu destino ainda estava consciente de permanecer por ali algum tempo ou até mesmo para sempre. Procuraria um trabalho e me fixaria na cidade. Mas tudo mudou quando perguntei a que horas seria servido o jantar e tal foi a resposta do porteiro do hotel. “Não servimos refeições aqui. Elas são feitas no restaurante ao lado”. Ponto final! Ponto final também para a minha estada ali na Capital do meu país, pelo menos por enquanto. Enquanto jantava, não podia deixar de pensar que rumo tomaria a partir dali. E ao levantar da mesa já havia decidido o que fazer. Lembrei-me de um convite do meu ex-chefe, para trabalhar com ele em Carolina/MA e, como a nossa afinidade era muito boa, decidi viajar àquela cidade em busca de mais um porto seguro. E no dia seguinte já estava pousando na cidade, que seria mais uma das minhas estações. Foi a primeira vez que enfrentei o ramo do comércio. O meu amigo montou uma pequena mercearia, onde eu era o “faz tudo”. Deu-me ampla liberdade para atuar no novo ramo que abraçava agora, com grande entusiasmo. Todavia, como na vida, nem tudo são flores, tive que enfrentar a concorrência. E os meus concorrentes já eram velhos conhecidos da cidade, com cadernos e mais cadernos de anotações para pagamentos posteriores, o famoso “fiado” que grassa livre pelas cidadezinhas do interior. Minha alternativa não poderia ser outra, senão entrar pela mesma vereda, se quisesse sobreviver. Mas, o perigo era grande; os meus concorrentes já eram “cobras-criadas” e recebiam qualquer coisa em pagamento. Como não tinha capacidade para armazenamento das mercadorias, os estoques foram minguando e o capital zerando, para pagar os compromissos assumidos. Tive que fazer liquidação e partir para outro ponto, onde encontrei as mesmas dificuldades, até que me apareceu um sócio, que mais tarde veio a ser meu cunhado. Também não funcionou. E como o final do ano já se aproximava, decidi mais uma vez viajar rumo a Brasília (meu sonho), desta vez subindo o rio Tocantins até a cidade de Miracema do Norte, e dali seguindo até Ceres, de carona, em um caminhão de carga, viajando um dia inteiro, entrando pela noite. Foi nessa viagem de aventura que me deparei com as famosas “costelas de vaca” das estradas brasileiras da época. Em Ceres/GO, alojei-me por uma noite. E ao amanhecer já estava em campo à procura de trabalho, pois os meus parcos trocados já se esvaíam dos meus bolsos. E desta vez, era minha intenção chegar à Capital da República custasse o que custasse. Mas os serviços fugiam e tive que partir. O meu próximo destino: Anápolis. Uma cidade próspera que naquela época já possuía mais de 200 mil habitantes. Fiquei fascinado com a cidade, que tinha aspecto de uma capital. Pensei é aqui que vou “amarrar o meu burro”. Ledo engano. Perambulei pelas ruas de comércio por 3 longos dias. Quando me apresentava e tocava no assunto de uma vaga para trabalhar, a resposta era a mesma: “Agora, no momento, não”. No final do dia, os meus pés já queimavam pelo calor escaldante do asfalto das ruas “anapolinas”. As preocupações já se acumulavam e a minha partida daquela próspera cidade, era iminente. Agora, restava decidir para onde seguir. O meu coração mandava que fosse para Brasília, mas meu bolso mandava e com razão, que eu fosse para Goiânia. Estava numa encruzilhada. Brasília (meu sonho) distava dali 120 km; passagem de ônibus, 200 cruzeiros. Goiânia estava apenas a 50 km e a passagem, 50 cruzeiros. Foi uma situação em que o bolso ganhou da razão e da vontade de realizar aquele sonho que havia sido adiado por alguns anos. E agora iria ser novamente adiado por mais 17 anos. E lá fui eu para uma nova estação. Incorporei-me, como voluntário, na Polícia Militar do Estado, segundo pensava, para “passar uma chuva”, mas acabei passando uma longa tempestade. Nunca havia sequer pensado em ser soldado; detestava farda e chamava aqueles profissionais de “meganhas”. Mas como aprendi que o homem é o produto do meio, tive que aplicar essa regra a mim mesma; e não foi tão difícil a minha adaptação aos regulamentos e sofrimentos dos militares. Entrei como o “recruta zero”, e fiz vários cursos, como os de soldado, cabo, sargento, aperfeiçoamento de sargento, chegando até a graduação de subtenente. Ali as minhas responsabilidades e preocupações se multiplicaram. Contrai matrimônio com a noiva que havia deixado em Carolina. E dessa união nasceram 5 meninas, que vieram complementar parte da minha vida e me ajudaram a transpor aquela tempestade em que estava envolto e que duraria por 17 anos. Apesar das grandes dificuldades pelas quais passava, nunca me descuidei dos estudos, tendo concluído o segundo grau na Escola Técnica “Dom Marcos de Noronha”, e, em seguida, prestado vestibular para Letras Vernáculas e em 1971, concluía o meu curso na UCG - Universidade Católica de Goiás. Aqui começava ou recomeçava uma nova estação, talvez a última, quem sabe! A definitiva, depois de tantas tentativas... Apesar de já haver trabalhado um semestre na Fundação Educacional do Distrito Federal, em 1977, sob o regime de contrato “especial”, agora era diferente. No contrato, havia uma cláusula, segundo a qual, eu seria obrigado a prestar concurso na minha área, caso houvesse vaga. E assim, se fez. Em dezembro daquele mesmo ano, prestei o concurso e fui aprovado em 42º lugar. Em 10 de janeiro do ano seguinte (1978), trazia a minha família, com mudança e “los perros”. Apesar de saber o resultado do concurso, precisava esperar ser chamado para assinar um novo contrato, desta vez, em definitivo. Mas muita água ainda ia rolar. Como havia carência enorme na minha matéria, pensava que logo iria ser chamado, entretanto, não foi bem assim. O ano letivo começou em fevereiro, mas só fui ser chamado em 26 de abril. Na minha pressa de resolver as coisas, assumi compromissos, que não pude saldar. Comprei o ágio de uma casa no valor de Cr$130.000,00, dando 80.000,00 de entrada e o restante, Cr$50.000,00, para ser quitado em 60 dias. Isso tudo aconteceu porque não tinha costume de pagar aluguel. Por essa inconseqüência me “fritei” e perdi 75% do valor que havia dado. Foi o meu primeiro embate (negativo) na cidade com que havia sonhado para morar e terminar de criar minha família. Tudo isso, contudo, para mim, era coisa de somenos importância. O que realmente importava era que estava consolidando uma aspiração muito antiga, desde quando fazia o ginásio na minha cidade natal em 1955 e o professor de história nos dizia que Brasília seria construída em forma de um avião, não tendo, portanto, problema algum com transporte. Mera ilusão! Com o início do meu trabalho, tudo mudou. Todavia só consegui o meu teto definitivo em fevereiro de 1980, após ter vendido uma casa e um apartamento em Goiânia, para poder comprar uma casa em Taguatinga Norte, na qual morei até 1994. Hoje, pertence a minha filha número 4. Nesse ano, perdi duas pessoas que influenciaram sobremaneira a minha vida: minha mulher Jacira, dia 10 de março, e minha mãe, Adelaide, três dias depois. Chamei esse mês daquele ano de FATAL. Mas a vida continuou e premido pela solidão, pois as minhas filhas a essa altura já tinham vida própria, casei-me novamente, com Cláudia Regina de cuja união, nasceram Dênis Omael e Marcus Anael. Morei exclusivamente em uma chácara de 1995 até 2006, quando me mudei novamente para Taguatinga Sul desta vez. Estou, assim, me integrando novamente à vida citadina, porém mais em função de nossos filhos, do que de outras coisas, pois a partir das sextas-feiras à tarde, sempre vamos para a chácara e só voltamos domingo à noite. Faço parte do CCI – Centro de Convivência do Idoso da Universidade Católica de Brasília desde 2007 (até o ano passado UnTI – Universidade da Terceira Idade), onde sempre recolhido na minha humildade, consegui fazer algo que nunca havia imaginado, como, por exemplo, participar de um filme do projeto “Vovô e vovó” na telona do cinema, cujo filme se chamou Amor Virtual. A princípio fiquei muito apreensivo, pela falta de experiência, mas como na vida tudo tem que ter um início, não titubiei quando fui convidado. Porém, para saber se desempenhei bem o meu papel, só assistindo ao filme. Este ano já estou realizando outra coisa que jamais pensei em fazer: cantar em um coral.