345 STEPHEN DEDALUS E MOLLY BLOOM: O QUE SE FAZ DA LINGUAGEM Vítor Jochims Schneider1 1 Introdução As reflexões do teórico da comunicação canadense Marshall McLuhan há tempo foram abandonadas por serem consideras datadas de uma época na qual as novas medialidades, em especial a televisão, se popularizavam de modo surpreendente, o que propiciava o questionamento sobre as medialidade da comunicação. McLuhan foi moda nos anos 60 e 70, suas declarações irônicas e bem humoradas geraram polêmica no meio universitário, e atualmente ele é considerado apenas mais um teórico medial entre tantos Pierre Levys a anunciar nascimentos e mortes de formas comunicativas. A importância de Marshall McLuhan neste trabalho se justifica pela origem das teorizações do autor: a literatura. Assim como diversos intelectuais da modernidade como Umberto Eco, Derrida, Frederic Jameson; McLuhan desenvolveu toda uma teoria que provem da leitura de textos literários. Seu estudo sobre as novas formas mediais é considerado pelo próprio autor como uma re-escrita teórica daquilo que a literatura de Joyce já havia diagnosticado na forma de ficção.2 Ao colocar Joyce como um referencial literário em nível teórico, McLuhan funda novas formas de leitura da obra do autor irlandês. Estas novas perspectivas podem ser observadas nas obras de Donald Theall e de Hugh Kenner, ambos orientados por McLuhan na Universidade de Toronto, e criadores de distintas leituras da obra de Joyce. Donald Theall é autor de James Joyce’s Techno-Poetics (1997), e Hugh Kenner, após ter iniciado seus estudos com McLuhan sobre Pound, produziu Dublin’s Joyce (1956). McLuhan enxerga em Joyce um trabalho de artístico que captou as modificações ocorridas nos campos da comunicação, por conseguinte, da linguagem. As primeiras décadas do século XX são consideradas como o período do nascimento das media e da exploração de suas potencialidades. Cinema, fotografia, rádio, gravações, transmissões, telefone, explosão 1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Rio Grande do Sul – Brasil. THEALL, D. McLuhan and Joyce: beyond media. In Canadian Journal of Communications, vol. 14 n. 4, 1989, p. 46-67 2 346 da imprensa jornalística, todos estes elementos contribuíram para criar um momento de abundância de formas comunicativas, que vão atravessas o cotidiano do homem moderno, que lentamente se retirava do universo tranquilo que havia se consolidado pela comunicação escrita. James Joyce, assim como diversos autores contemporâneos seus, soube explorar esta infinidade de formas comunicativas que saltavam aos olhos dos habitantes das grandes cidades européias. Sua literatura em Ulisses não é um relato narrativo, aliás, seria difícil estabelecer sólidos critérios narratológicos em toda sua obra; sua obra passa a ser uma coleta linguística que é reconfigurada num ato de escritura. Assim, Joyce utiliza de um arcabouço de referências enciclopédicas e de memórias subjetivas que são oferecidas ao futuro leitor num fluxo verbal, e a leitura passa a ser uma interpretação constante do ato de escrita. Conforme aponta Derrida (1992), a loucura da escrita de Joyce está no fato dela ser uma escrita que é abandonada ao leitor na forma de memória, de um arquivo, como uma teia de aranha a ser tecida novamente pelo leitor. Observando tal abandono da escrita por parte do autor/narrador, a obra passa a ser considerada um acontecimento singular, que se atualiza a cada leitura. Este processo de leitura que não é simples enxergar a obra, mas interpretá-la, no sentido dramático da palavra, McLuhan considera como uma forma de retornar à era da comunicação oral, onde cada palavra tinha seu significado no momento enunciativo, onde cada ato de fala se constituía sobre o gesto e a ação do falante. Neste contexto toda a linguagem é performativa, e está totalmente vinculada ao falante. Essa relação direta entre o falante e a coisa dita vai ser atenuada de forma drástica pelo advento da escrita. Segundo McLuhan, a escrita coloca o homem a perceber o mundo apenas com seus olhos, esquecendo o restante de seu corpo, ferramenta perceptiva, que era a base para toda atividade linguística da comunicação oral.3 O desenvolvimento da escrita instaurou um processo de afunilamento das capacidades comunicativas do homem. Ao ter a escrita como forma de comunicação padrão, a humanidade passou a se distanciar do conteúdo das palavras, elas perdem seu caráter performático, dramático e até mesmo social; em todas as sociedades alfabetizadas as palavras mágicas ou de ordem perdem sua efetividade. A escrita faz com que o homem abandone a concepção de que a linguagem é mágica ou de que ela possa constituir 3 MCLUHAN, M. A galáxia de Gutenberg : a formação do homem tipográfico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972. 347 um mundo, ela passa a ser signo, dotado de um significado mais ou menos fixo e passa a ser mero instrumento comunicativo. O romance tal como conhecemos no seu auge, isto é, na produção européia do século XIX, representa a consolidação da escrita. A linguagem escrita que um Flaubert esforça-se para tornar exata é uma forma de se construir uma realidade ficcional à semelhança da realidade empírica. No entanto a verossimilhança literária é fruto de uma linguagem falsificada, que não acompanha a linguagem que experimentamos no nosso agir no mundo. A literatura, em especial aquilo que se denomina literatura realista, faz do sequenciamento de séries causais e da linearidade os principais critérios para a criação linguística, assim como a arte do renascimento estabeleceu a proporção e a perspectivas como as normas para a criação plástica. Ambas as propostas serão vistas no princípio do século XX como reducionistas, que não apresentam a percepção moderna que o homem tem do mundo. A realidade não é mais vista regida por leis de proporção, muito menos por leis de sequenciamento causal. 2 Joyce James Joyce nunca acompanhou as fórmulas da escrita tradicional, tampouco buscou filiar-se às estéticas de ruptura das vanguardas. No entanto, Ulisses é apontado pela crítica como o romance de ruptura por excelência por ser uma obra que reformula a linguagem literária. Ao propor-se a utilizar toda sua capacidade estilística em narrar a odisséia de um dia em dezoito técnicas narrativas, Joyce se propôs a romper com a linguagem como ferramenta estruturante de um universo ficcional, idéia esta que havia imperado por todo o fértil século XIX. A partir de sua obra Um retrato do artista quando jovem (1919), Joyce passa a escrever não mais com a linguagem da escrita, mas com uma linguagem que busca sair das amarras da artificialidade artística e se direciona para a linguagem em sua forma natural, como a desenvolvida performaticamente na era da linguagem oral. Conforme ele mesmo aponta, sua escrita será ordenada pela a ordem ritual das palavras rituais justas, e não pela linearidade causal. 348 Ao acompanhar Stephen Dedalus como personagem de formação, acompanhamos uma linguagem em formação. Nas primeiras páginas de Um retrato do artista quando jovem, o que narra a infância de Dedalus é aberto com a frase típica das histórias infantis, once upon a time, mas não se trata de uma linguagem infantil direcionada para a infância, mas uma narrativa que se molda na linguagem da criança para si, como forma de configurar sua percepção do mundo. Seu universo, que se resume ao círculo familiar se manifesta por palavras de referência muito simples – o piano, o perfume da mãe, os óculos do pai, as escovas da tia, referências a animais. A linguagem se apresenta como criação espontânea, como ato enunciativo que compõe o próprio texto; a transcrição da dança, a repetição dos referentes sem a substituição por pronomes, a comparação seqüencial da idade dos adultos ao serem lidos como palavras, configuram o estado natural da linguagem. His mother had a nicer smell than his father. She played on the piano the sailor's hornpipe for him to dance. He danced: Tralala lala, Tralala tralaladdy, Tralala lala, Tralala lala. Uncle Charles and Dante clapped. They were older than his father and mother but uncle Charles was older than Dante. Dante had two brushes in her press. The brush with the maroon velvet back was for Michael Davitt and the brush with the green velvet back was for Parnell. Dante gave him a cachou every time he brought her a piece of tissue paper. (JOYCE, 2001, p.3) A formação de Stephen Dedalus é delineada por uma trajetória estilística. Ainda em A portrait of the artist as a young man, a retórica jesuítica, o discurso político, o monólogo interior e a formulação de uma estética renovadora desenham o retrato do jovem artista. O leitor acompanha o percurso de Stephen até sua decisão de sair da Irlanda rumo a Paris para completar sua jornada de formação artística, e nesse último capítulo a escrita de um diário pessoal toma conta da narrativa. Se, em Um retrato do artista quando jovem, Stephen termina sua jornada na Irlanda escrevendo um diário, em Ulysses, sua ambição de escritor tem como auge alguns versos escritos durante sua caminhada pela orla de Sandymouth. 349 White thy fambles, red thy gan And thy quarrons dainty is. Couch a hogshead with me then. In the darkmans clip and kiss. Morose delectation Aquinas tunbelly calls this, frate porcospino. Unfallen Adam rode and not rutted. Call away let him: thy quarrons dainty is. Language no whit worse than his. Monkwords, marybeads jabber on their girdles: roguewords, tough nuggets patter in their pockets. (JOYCE, 1998, p.47) Seus versos resultam num fracasso reconhecido pelo próprio autor, que compara suas palavras com as do filósofo da escolástica. Para um jovem que busca a todo custo afastar-se da moral jesuítica que vigorou em sua infância, as palavras assumem uma função enganadora, roguewords, pois a escrita distorce a experiência vivida, funcionando como norma, como seqüência linear, da mesma forma que um rosário, marybeads jabber, ordena as preces do fiel, mesmo que sua prece seja a mais desesperada. No episódio nomeado Proteu, Dedalus desenvolve uma reflexão acerca do posicionamento do homem no mundo limitado pelos seus sentidos, em especial o da visão, e para isso ele recorre às considerações da Metafísica de Aristóteles e as Investigações da natureza humana de Berkeley. Ao longo de sua caminhada, o jovem Stephen pendula entre as concepções do maestro di color che sanno e do good bishop of Cloyne. Para Aristóteles, a visão é o sentido mais elevado dos seres humanos e através do qual o homem tem acesso ao conhecimento. Para Berkeley, filósofo idealista, as imagens são resultado de nosso pensamento, não possuindo uma determinação em si. Nesse jogo de proposições contraditórias, Dedalus atribui à audição uma primazia sobre a visão, visto que aquela é a percepção do indefinido, do suspenso, logo, uma melhor forma de estabelecer contato com o mundo. Este episódio, último capítulo da telemaquia joyceana, tem como fim o simultâneo abandono do artista em formação das suas ambições a ser um maestro, um esgrimista das palavras, e seu novo posicionamento daquele que sem certezas se lança ao mar, navegando na linguagem. 4Dedalus é o navio silencioso que retorna a casa. 4 A metáfora sobre o navegar e o afundar-se na linguagem sobre Joyce foi utilizada pela primeira vez por Carl Jung, durante o tratamento de Lucia Joyce, filha esquizofrênica do escritor, em 1934. O psicanalísta descreve pai 350 He turned his face over a shoulder, rere regardant. Moving through the air high spars of a threemaster, her sails brailed up on the crosstrees, homing, upstream, silently moving, a silent ship. (JOYCE, 1998, p. 50) O episódio Calipso por sua vez, escrito sob o estilo da narrativa madura, apresenta as primeiras atividades da jornada de Leopold Bloom. O herói inicia seu dia preparando o café da manhã para esposa, cantora lírica que dentro de alguns dias apresentará algumas canções da ópera Don Giovanni de Mozart. Ademais das sugestões de adultério que a peça de Mozart introduz neste capítulo, a personagem de Molly Bloom apresenta-se como personagem que canta, que entoa as palavras. Leopold repara em sua pronúncia dos versos em italiano, o que faz mais uma vez com que a linguagem escrita corresponda com a linguagem sonora, continuando assim o percurso de retorno à linguagem natural. A ópera é a arte que transita entre música e poesia, entre o som e o verbo do libreto, mas a experiência do espectador de uma ópera é de uma obra e arte completa, que estimula diversos sentidos, ao contrário da leitura que estabelece apenas pela visão. He felt here and there. Voglio e non vorrei. Wonder if she pronounces that right: voglio. Not in the bed. Must have slid down. He stooped and lifted the valance. The book, fallen, sprawled against the bulge of the orangekeyed chamberpot. Show here, she said. I put a mark in it. There's a word I wanted to ask you. She swallowed a draught of tea from her cup held by nothandle and, having wiped her fingertips smartly on the blanket, began to search the text with the hairpin till she reached the word. Met him what? he asked. Here, she said. What does that mean? He leaned downward and read near her polished thumbnail. Metempsychosis? Yes. Who's he when he's at home? Metempsychosis, he said, frowning. It's Greek: from the Greek. That means the transmigration of souls. O, rocks! she said. Tell us in plain words. (JOYCE, 1998, p.61) A relação de Molly com as palavras se demonstra plenamente no monólogo do episódio Penélope que encerra Ulysses, mas já em sua primeira aparição ela se apresenta lidando com as palavras através de suas sonoridades e dando preferência à significação simples. Semelhante a Stephen Dedalus, Molly aproxima a linguagem de um universo sonoro, e filha like two people going to the bottom of a river, one falling and the other diving. (Lucia Joyce – the dance in the wake. By Carol Loeb Schloss, New York: Farrar, Straus & Giroux.) 351 mas distintamente do jovem, ela é destituída de pretensões literárias e seu pensamento não se molda estilisticamente. Poder-se-ia afirmar que Molly Bloom é a personagem que mais se aproxima da linguagem natural almejada por Joyce. Seu monólogo interior, entre vigília e sonho, será a base para a escrita de Finnegans Wake, o épico onírico. O monólogo de Molly é o episódio único da terceira e última sessão de Ulysses que corresponde à Nostos da Odisséia de Homero, que narra a chegada de Odisseu à Ítaca. A palavra grega nostos significa retorno ao lar, e assim como no texto homérico o herói épico consegue retornar ao lar e retoma seu posto de rei, em Ulysses, nostos é ressignificado, indicando o retorno da linguagem ao seu local originário, a mente humana despida de ferramentas que ofereçam linearidade, seqüenciamento causal, ou mesmo as ferramentas da escrita tipográfica. O monólogo de Molly surpreende pela sua aproximação máxima com a linguagem em estado natural, no qual as palavras estão na seqüência do pensamento, e não da estrutura sintática da língua, nem na estrutura da linguagem tipográfica que prende a linguagem com estruturas de parágrafo e pontuação. I say stoop and washing up dishes they called it on the pier and the sentry in front of the governors house with the thing round his white helmet poor devil half roasted and the Spanish girls laughing in their shawls and their tall combs and the auctions in the morning the Greeks and the jews and the Arabs and the devil knows who else from all the ends of Europe and Duke street and the fowl market all clucking outside Larby Sharons and the poor donkeys slipping half asleep and the vague fellows in the cloaks asleep in the shade on the steps and the big wheels of the carts of the bulls and the old castle thousands of years old yes and those handsome Moors all in white and turbans like kings asking you to sit down in their little bit of a shop and Ronda with the old windows of the posadas 2 glancing eyes a lattice hid for her lover to kiss the iron and the wineshops half open at night and the castanets and the night we missed the boat at Algeciras the watchman going about serene with his lamp and O that awful deepdown torrent O and the sea the sea crimson sometimes like fire and the glorious sunsets and the figtrees in the Alameda gardens yes and all the queer little streets and the pink and blue and yellow houses and the rosegardens and the jessamine and geraniums and cactuses and Gibraltar as a girl where I was a Flower of the mountain yes when I put the rose in my hair like the Andalusian girls used or shall I wear a red yes and how he kissed me under the Moorish wall and I thought well as well him as another and then I asked him with my eyes to ask again yes and then he asked me would I yes to say yes my mountain flower and first I put my arms around him yes and drew him down to me so he could feel my breasts all perfume yes and his heart was going like mad and yes I said yes I will Yes. (JOYCE, 1998, p.732) A passagem citada fecha a odisséia do dia 16 de junho de 1902. Muito já se disse sobre a afirmação final de Molly Bloom que encerra o livro como uma aceitação incondicional da 352 realidade ou como uma celebração das forças femininas que se fazem presentes neste episódio. O que me interessa observar aqui é o estado que a linguagem atinge após sua própria odisséia estilística desenvolvida ao longo de toda obra. A crítica normalmente define esta construção como um monólogo interior, ou como fluxo de consciência. No entanto a escritura de Molly Bloom não se compara aos demais monólogos produzidos na literatura tradicional, e seu fluxo verbal não está regido por uma consciência, é pelo contrário fruto de seu inconsciente. A escritura de Molly não segue plano algum, podemos retomar o conceito de Derrida de ato de escritura na sua melhor forma. Não há forma de ler tal texto de modo interpretativo, pois ele não reconstrói nada além do próprio ato enunciativo, ou seja, a própria formação da linguagem num determinado estado. Ao estar deitado na cama, entre o sonho e a vigília, sentindo no corpo os efeitos da menstruação, o enunciador imaginário de tal texto faz com que a linguagem se desenvolva sobre seu estado momentâneo, como se a linguagem agisse performaticamente sobre seu estado natural. Aqui encontramos o retorno nostálgico da linguagem ao seu estado aural. Depois de ter ressuscitado a aura da linguagem no limiar entre consciência e inconsciência que encerra a odisséia de um dia, Joyce parte para a odisséia noturna, que acompanha uma noite de sonho em Finnegans Wake. Referências JOYCE, J. A portrait of the artist as young man. Hertfordshire, Wordsworth Editions, 2001. JOYCE, J. Ulysses. Virginia, Orchises Press, 1998. MCLUHAN, M. A galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972. SCHLOSS, Carol Loeb. Lucia Joyce – the dance in the wake. New York: Farrar, Straus & Giroux. THEALL, D. McLuhan and Joyce: beyond media. In Canadian Journal of Communications, vol. 14 n. 4, 1989, p. 46-67