O surgimento do conceito de direitos difusos e coletivos Cássio Casagrande e Bernardo Braga Dr. Cássio Casagrande: Eu sei que o senhor participou dos congressos ocorridos na Itália nos anos 70, inclusive com a participação do Mauro Cappelletii, nos quais os direitos coletivos estavam muito em voga... Dr. Barbosa Moreira : Travei conhecimento com esta problemática por volta dos anos de 76/77, quando eu tinha uma bolsa de estudos em Florença. Nesse momento o assunto era relativamente novo na Europa e estava suscitando muito interesse. Mauro Cappelletii era um dos principais doutrinadores sobre o assunto e chefe do Instituto de Direito Comparado da Universidade de Florença. Logo, pude ter contato com intensa produção sobre o assunto, e era interessante perceber que, naquela época, tais interesses eram tratados promiscuamente, sem nenhuma distinção técnica entre direitos difusos e coletivos tal qual existe hoje. Naquele momento me ocorreu que nós tínhamos no Brasil um instrumento processual capaz de tutelar esses novos interesses pela via judicial, a Ação Popular. Entretanto tal instrumento era pouco utilizado apesar de já regulado sob a vigência da Constituição de 46 (a lei que o regulamentou era de 65). Ao ser convidado para escrever um artigo em homenagem ao professor Liebman (que lecionou durante anos no Brasil, após ter sido forçado a se mudar para nosso país, perseguido pelo governo fascista) passou pela minha cabeça relatar na Itália um pouco da experiência brasileira com a AP. O ponto mais interessante foi que eu não consegui identificar no direito comparado nenhum instituto que se assemelhasse à nossa AP; a Itália, sobretudo, não o tinha. Posso dizer que naquela época havia grande carência de instrumentos processuais adequados para este tipo de tutela. Bernardo: Dr. Barbosa Moreira, qual seria o peso da AP na realidade jurídica daquela época, ela realmente já era dotada de alguma efetividade? Dr. Barbosa Moreira: Numericamente o peso não era muito grande, caso houvesse estatísticas provavelmente não seria muito relevante. Porém já havia casos interessantes. Bernardo: E como reagia o judiciário, já que a AP rompia com a visão tradicional do processo... 1 Dr. Barbosa Moreira: Em várias ocasiões a AP foi proposta com êxito; não sei se vocês têm acesso a um trabalho meu... Dr. Cássio Casagrande: Sim, um que o Senhor narra várias ações... Dr. Barbosa Moreira: Este mesmo, houve o caso do aeroporto de Brasília, outro sobre a defesa de um rio e de sua população ribeirinha... estes casos mostravam, sobretudo, a potencialidade do instrumento. Além disso quis mostrar aos italianos que havia algo na legislação brasileira que eles não tinham. Creio eu que até aquele momento ninguém havia ainda relacionado a AP com a tutela dos interesses coletivos, ninguém havia feito ainda tal conexão... Dr. Cássio Casagrande: Este foi o grande mérito do seu trabalho... Dr. Barbosa Moreira: Minha grande preocupação foi realizar essa conexão. Bernardo: Era a esta conclusão que queríamos chegar, nós podemos afirmar, com elevado grau de certeza, que a AP regulamentada sobre a vigência da Constituição de 46, pode ser considerada o embrião da ACPU? Dr. Barbosa Moreira: Certamente já fazíamos isso, embora não houvesse o nome adequado. Usava-se a AP, sem que se enquadrasse nela a categoria de direitos difusos e coletivos, embora na prática já o fosse. Publiquei o trabalho e ele obteve grande repercussão, inclusive aqui no Brasil; com isso veio a colaboração de outros professores, como a professora Ada Pellegrini Grinover. É importante ressaltar que embora a AP pudesse ser utilizada para a satisfação desses interesses, havia pontos em que ela era insuficiente, havia determinadas deficiências. Uma delas era a questão da legitimação ativa “ad causam”, visto que a AP só podia ser proposta pelo cidadão isolado. Como todos sabem, tais ações são propostas em face de grandes empresas ou entidades administrativas, ou seja, conflitam com grandes interesses econômicos e financeiros. Nesta perspectiva, trata-se de uma luta muito desigual, que desanima o cidadão a ingressar com uma ação desse tipo. Em certas hipóteses de desistência o MP até poderia ocupar o pólo ativo, todavia o MP jamais poderia tomar a iniciativa de ir a juízo. Bernardo: Podemos, portanto, chegar à conclusão de que a idéia já havia, o que faltavam eram apenas os mecanismos para a sua efetivação plena? Dr. Barbosa Moreira: Exatamente. Na minha coleção “Temas de Direito Processual” , existem vários artigos sobre este assunto. 2 Sempre achei que deveríamos alargar a legitimação ativa, abrangendo também o MP. O professor Mauro Cappelletti, baseado na experiência italiana, tinha uma profunda desconfiança acerca dessa prerrogativa do MP, ele achava que o MP não era o órgão adequado para tratar do assunto. Já no Brasil, naquela época, o MP tinha uma atuação muito restrita em relação ao processo civil, limitava -se a postos específicos, como por exemplo, falências, causas de menores, entre outros. Dr. Cássio Casagrande: Após vários congressos jurídicos os próprios doutrinadores resolveram elaborar um anteprojeto de lei... Dr. Barbosa Moreira: Isso surgiu atendendo a sugestões minhas e também de outros doutrinadores. Ficou claro para todos que, apesar da AP ter servido como meio de defesa desses novos direitos em juízo, ela continha defeitos que tolhiam a sua utilização em escala mais larga. Logo, havia dois caminhos possíveis a seguir: o primeiro deles seria transformar a AP, entretanto isto não era muito fácil, porque a AP tinha raiz constitucional, além de já ter o seu formato definido. Então, marchou-se para conceber uma nova figura processual, uma nova ação. Os professores de São Paulo tomaram a frente em tal processo, do qual participei formulando sugestões. Dr. Cássio Casagrande: O projeto inicialmente excluía do MP a legitimação ativa, voltando-se mais para as associações, isto é correto? Dr. Barbosa Moreira: Não posso dizer, com certeza, se realmente visava excluir o MP, o que posso afirmar é que havia certa resistência em dar ao MP um papel de destaque. Tal fato devia-se, sobretudo, às opiniões do professor Mauro Cappelletii que eram muito consideradas aqui no Brasil. Contudo, acabou o MP legitimado para a propositura da ACPU ao lado de outros co-legitimados; o que se esperava era que o MP se mantivesse “na sombra” o que não ocorreu. Pelo contrário, até certa época, as estatísticas mostravam que a maioria das ACPU’s eram propostas pelo MP. Vale destacar que no início as associações tiveram um papel muito discreto. Dr. Cássio Casagrande: E aqui no Rio de Janeiro, além do senhor, havia mais alguém interessado na questão? Sempre que se fala no assunto é o seu nome que vem a tona junto com os professores de São Paulo. Dr. Barbosa Moreira: Creio que nos primeiros anos não. Hoje, existem trabalhos de muito valor feitos em torno deste assunto, principalmente dos professores da UERJ, como o professor Aloísio Castro Mendes e Luís Paulo da Silva Araújo. 3 Posso dizer que, naquela época, o estudo do assunto tomou corpo em São Paulo, embora tivesse sido deflagrado por um trabalho meu. Bernardo: Houve dois projetos, certo? Dr. Barbosa Moreira: Sim, e o que acabou passando foi o do MP paulista, mas não houve maiores problemas, visto que havia convergência entre ambos. Acabou sendo aprovado o projeto de origem “oficial”, que se converteu na lei da ACPU. Importante frisar que os conceitos técnicos de direitos difusos e coletivos só foram incorporados à lei em 90, com o advento do CDC. Bernardo: Isso já não era previsto no projeto original de 85 e acabou sofrendo o veto presidencial? Dr. Barbosa Moreira: Não, eu iniciei esta classificação ainda nos anos 70, todavia ela só chegou no ordenamento jurídico brasileiro em 1990, com o CDC. Dr. Cássio Casagrande: O que mais me chamou a atenção no seu trabalho. Foi que você utilizou termos para classificar os direitos difusos e coletivos que depois vieram a ser utilizados no próprio Art 81 do CDC. Bernardo: Eu achei que você tinha feito parte da comissão que elaborou o CDC... Dr. Barbosa Moreira: Não, eu fui ouvido, fui consultado, formulei sugestões e críticas, porém nunca fiz parte oficial de nenhumas dessas comissões. Dr. Cássio Casagrande: Essa legislação, por mais contraditório que possa parecer, surgiu durante o governo militar e foi intensamente debatida neste período, seria uma forma de dar acesso à justiça durante um período autoritário? Dr. Barbosa Moreira: Seria simplista para não dizer simplória a concepção de que existe uma relação necessária entre o caráter de uma lei e o tipo de regime político adotado. Influência é claro que existe, mas não é a relação mecânica que muitos imaginam. Dr. Cássio Casagrande: A AP também foi regulamentada no início do regime... Dr. Barbosa Moreira: Bem no início, onde o caráter autoritário ainda não era tão marcante, o que só foi acontecer após o AI-2. Durante o governo Castelo 4 Branco, embora a democracia funcionasse como fachada, havia certa descrição, era um período mais atenuado. Vale lembrar, embora a lei da ACPU seja de 1985, ou seja, no final do regime, o seu processo de elaboração foi todo delineado sob o regime dos generais, e não me consta que alguém tivesse tentado frear tal movimento. Não viam naquilo nenhuma ameaça à estabilidade do regime militar. É importante frisar que a lei tinha intenso caráter democrático, o que nos leva a crer que ou os militares não o perceberam ou não se incomodaram com tal fato. È simplório querer amarrar, rigorosamente, o caráter de uma legislação ao regime político sob o qual ela é editada. Dr. Cássio Casagrande: Em princípio, essa foi uma criação da academia, mas havia um ambiente propício para a criação desta lei... Dr. Barbosa Moreira: No momento em que você explica, muita gente acorda e adere. Bernardo: Qual foi a maior resistência encontrada na época? Dr. Barbosa Moreira: Não me lembro de um setor específico que tenha lutado contra... Dr. Cássio Casagrande: Mas houve muita resistência dos juízes em romper a barreira do processo civil clássico... Dr. Barbosa Moreira: De certa forma, contudo a atitude do judiciário brasileiro em face desta renovação não pode ser considerada como de rejeição... Dr. Cássio Casagrande: Talvez incompreensão neste momento inicial... Dr. Barbosa Moreira: Isso é inerente a qualquer renovação, existe uma tendência natural à resistência, mas não acredito que houvesse uma motivação ideológica para tal. Posso dizer que houve até alguns abusos (Ives Gandra, em seu livro, cita vários exemplos), alguns autores consideram que o judiciário alargou demais essa porta. Dr. Cássio Casagrande: Qual a sua opinião sobre a Lei da ACPU? Dr. Barbosa Moreira: Eu acho que o êxito concreto é menor do que o esperado. O professor Paulo Cézar Pinheiro Carneiro realizou um trabalho no qual afirma, 5 baseando-se em estatísticas, que a maioria das ACPU’s não chegam a ser julgadas no mérito, por alguma razão elas encalham no caminho. Posso dizer que ela é e foi útil, mas não posso dizer que ela foi esplendorosa ou introduziu uma modificação tão radical quanto o esperado. Bernardo: O senhor imaginava que a ACPU não alcançaria o êxito esperado? Dr. Barbosa Moreira: Eu não sou dado a previsões muito otimistas, não crio expectativas muito altas, para não ter decepções muito amargas. Deixe-me dizer: eu acho que a ACPU produziu bons resultados, em alguns casos ela foi eficaz, em outros menos, mas no balanço geral posso considerar o resultado moderadamente positivo. Um aspecto negativo foi que, durante um lapso de tempo considerável, não houve por parte das associações a iniciativa de propor ACPU’s, e esta acabou ficando nas mãos de entidades públicas, sobretudo do MP. Tal premissa não correspondia às intenções legislativas, um dos objetivos da lei era estimular o surgimento e a proliferação das associações civis, para que a própria sociedade tomasse ciência do problema. Bernardo: Nós realizamos uma pesquisa estatística, no âmbito do MPT, e comprovamos que muitas associações ao invés de ingressarem com uma ACPU, preferem encaminhar denúncia ao MP. Por que o senhor acha que isso ocorre? Dr. Barbosa Moreira: Por vários motivos. Falta de capacidade financeira é um deles. Além disso, o MP foi criando experiência ao longo dos anos e hoje conta com setores especializados no assunto; conta com mais organização que as associações. Eu escrevi um trabalho (“A iniciativa na defesa judicial dos interesses difusos e coletivos, um aspecto da experiência brasileira”, publicado em 1992 para um congresso Pan-americano, podendo ser encontrado na 5º Série dos Temas de Direito Processual ou na Revista de Processo nº 68) e o que mais me impressionou, na elaboração deste trabalho, foi a falta de interesse dos demais co-legitimados em propor essa nova ação. Dr. Cássio Casagrande: O senhor falou do aspecto financeiro/organizacional, mas o senhor não acha que os advogados saem da faculdade... Dr. Barbosa Moreira: O MP adquiriu “cancha”, logo ficou numa posição privilegiada, no entanto não é bom que ele seja o único. Não existem estatísticas 6 gerais, mas acredito que o número de ACPU’s originadas do MP seja bem superior ao número originado de todos os outros co-legitimados juntos. Bernardo: O senhor acha que o MP, por ter papel destacado na atualidade, tem maior propensão a ganhar uma causa, ele pode ser considerado “mais forte” para litigar em juízo? Dr. Barbosa Moreira: Pelo fato de no âmbito do MP o assunto ter sido estudado com muita atenç ão, formou-se uma gama de especialistas que, em tese, tem melhores condições de litigar contra uma grande empresa. É mais fácil para o MP romper determinadas barreiras do que as associações civis. Contudo, existem exceções louváveis, sobretudo no âmbito do direito do consumidor, existem associações que adquiriram a experiência e a organização necessárias para enfrentar a questão. É importante frisar que tudo depende do nível da associação, existem associações de grandezas variadas. Dr. Cássio Casagrande: Outro momento que este assunto esteve muito em voga foi na Constituinte... Dr. Barbosa Moreira: Nesse momento o assunto já tinha se propagado, é como a mancha de óleo que vai se espalhando... Dr. Cássio Casagrande: E como o senhor vê a criação de tantos instrumentos processuais na Constituição de 1988? Dr. Barbosa Moreira: Em primeiro lugar, pelo fato de que do direito processual é que tinham saído às primeiras propostas, os constituintes encontravam vasto material no campo do processo, era o tema que estava mais trabalhado. Em segundo lugar houve uma assessoria específica de processualistas (a professora Ada Pellegrini Grinover era um dele) que auxiliaram a Constituinte. Na literatura jurídica brasileira, é difícil encontrar trabalhos referentes a tutela dos interesses difusos e coletivos fora do direito processual. Era de se esperar que o direito administrativo englobasse o tema, fato que não ocorreu. É importante lembra que a Constituinte estava empenhada em conter o arbítrio, a repressão, foi um momento de reflexão histórica no qual se tentou exorcizar o fantasma de um governo repressivo e isso de certa maneira “fertilizou o terreno” dos instrumentos processuais. Dr. Cássio Casagrande: Um termo muito utilizado era o da “litigância reprimida”, a questão do acesso à justiça... Dr. Barbosa Moreira: Décadas atrás muitas dessas questões não eram levadas ao judiciário, ninguém recorria ao juiz acerca de questões relacionadas ao meio 7 ambiente, não havia essa cultura. Quando tais questões passaram a ser levadas para a apreciação do Estado-Juiz ajudaram a emperrar ainda mais a máquina judiciária. De repente, o poder judiciário se viu diante de uma diversidade de assuntos, extremamente complexos, com o qual não estava acostumado a lidar. Quando se fala em morosidade judiciária, muitos se esquecem desse acréscimo de demanda e do fato de não ser possível oferecer um órgão judicial que se multiplique na velocidade suficiente para suportar o acréscimo. O crescimento da demanda é sempre maior do que o da oferta, não se podem multiplicar indefinidamente os tribunais. Dr. Cássio Casagrande: Outra questão interessante é que com este acréscimo de demanda, os juízes acabam ingressando nos conflitos políticos... Dr. Barbosa Moreira: Isso também tem suas luzes e suas sombras. Se por um lado não é desejável que o juiz fique numa torre de marfim, por outro lado não é desejável que ele participe ativamente de tais conflitos. Porém, não acredito que no Brasil isso tenha tomado grande vulto. Dr. Cássio Casagrande: Como o senhor avalia o fato de muitas ACPU’s levarem ao judiciário questões tradicionalmente reservadas ao poder legislativo? Dr. Barbosa Moreira: O poder judiciário tornou-se um desaguadouro de insatisfações que até bem pouco tempo atrás não eram levadas até ele. Um exemplo foi a criação dos juizados especiais; muita gente que não resolvia o problema ou buscava outras formas de resolvê-lo, passou a demandar o judiciário em busca de soluções. Isso se deve, sobretudo, a agilidade e as diversas facilidades que os juizados apresentam. Dr. Cássio Casagrande: O professor Mauro Cappellettii lecionou muito tempo nos estados Unidos, país no qual as Class Actions (ações coletivas) já eram muito difundidas. Ele levou essa experiência para a Itália? Dr. Barbosa Moreira: Sim, entretanto as Class Actions não eram unanimidade, apresentavam uma literatura muito vasta e algumas críticas dirigidas a ela. A grande novidade era a idéia de dano desprezível na esfera individual, mas significativo na esfera coletiva. A experiência americana era um modelo para a época, embora o Brasil não tenha adotado tal modelo, sofremos uma moderada influência. Posso dizer que 8 utilizamos alguma coisa do modelo, embora não nos tenhamos mantido obedientes a ele. Dr. Cássio Casagrande: Para finalizar, qual o balanço que o senhor faz destes vinte anos da lei de ACPU? E qual seriam as perspectivas para o futuro? Dr. Barbosa Moreira: Não me considero nem deslumbrado nem decepcionado com a lei da ACPU, acho que ela tem desempenhado seu papel de forma razoável, embora com algumas distorções. Muitas causas trazem problemas particularizados e, embora existam peritos, é muito difícil para o magistrado formar convicção sólida sobre a questão. Abreviações: MP: Ministério Público ACPU: Ação Civil Pública AP: Ação Popular (Entrevista realizada em 14 de abril de 2005.) 9