A descoberta da conservação de energia: Mayer e Joule
Michael Fowler
Robert Mayer e a cor do sangue
Julius Robert Mayer nasceu na vila de moagem de Heilbronn, Alemanha, junto ao rio Neckar, em 1814. A
economia da vila era baseada no poder da água. Mayer, então um rapaz de dez anos, teve uma grande
ideia: porque não usar parte do trabalho de um moinho de água para mover um parafuso de Arquimedes
que voltaria a trazer a água para cima? Dessa forma não teriam que depender do rio para nada!
Ele decidiu construir um modelo. A sua primeira tentativa não funcionou – bombeava alguma água de
volta para cima, mas não em quantidade suficiente. Mas certamente que isso podia ser ultrapassado
ligando uma roda dentada para que o parafuso girasse mais depressa. Para seu desapontamento, descobriu
que o moinho tinha dificuldade em fazer girar o parafuso mais depressa, sendo necessário fornecer mais
água ao moinho, e assim voltou ao ponto de partida. Modificações adicionais cada vez mais engenhosas
não tiveram sucesso e finalmente Mayer convenceu-se de que não havia solução: não há nenhum modo de
pôr uma máquina a realizar trabalho em troca de nada. Esta lição ficou-lhe para a vida.
Mayer estudou para se tornar médico (os seus estudos incluiram um curso de física) e em 1840, aos 25
anos, alistou-se como médico num barco com destino aos trópicos. Pouco depois de chegar às Índias
Orientais Holandesas, alguns dos marinheiros ficaram doentes e o tratamento prescrito por Mayer incluía
sangrias. Ele ficou fascinado ao descobrir que o sangue venoso era de um vermelho brilhante, quase tanto
quanto o sangue arterial. Na Alemanha o sangue venoso era muito mais escuro, e havia uma razão: o
químico Lavoisier explicara que o consumo de alimentos pelo corpo consistia, pelo menos em parte, na
combustão controlada para proporcionar calor. O sangue venoso mais escuro continha de facto as cinzas,
que seriam levadas até aos pulmões e libertadas sob a forma de dióxido de carbono. Mayer concluiu que
era necessária uma menor combustão de alimentos para manter a temperatura corporal nos trópicos, daí a
cor mais clara do sangue.
Agora, Lavoisier afirmara que a quantidade de calor gerada pela queima, ou oxigenação, de uma certa
quantidade de carbono não dependia da sequência de reacções química involvidas, pelo que o calor gerado
pela oxigenação química sanguínea seria o mesmo que o o de uma combustão não controlada à moda
antiga. Esta formulação quantitativa levou Mayer a pensar sobre como poderia pedir o calor gerado no
corpo, para igualá-lo à quantidade de alimentos queimados. Mas isto em breve resultou num problema.
Qualquer pessoa pode gerar calor extra, esfregando as mãos ou, por exemplo, fazendo girar um moinho
ferrugento: o eixo ficará quente. Será que este calor “exterior” também entra nas contas do calor gerado
pelo corpo? Presumivelmente sim, a comida alimenta o corpo, e o corpo gera o calor, mesmo que
indirectamente. Mayer estava convencido desde a sua experiência infantil com o moinho de água de que
nada vinha de nenhures: o calor exterior não podia simplesmente aparecer do nada, tinha que ter uma
causa.
Mas ele viu que se o calor gerado indirectamente também tivesse que ser incluído, havia um problema. A
sua análise era mais ou menos esta (mudei ligeiramente a ilustração, mas a ideia é a mesma): supõe que
duas pessoas estão a fazer girar duas grandes rodas à mesma velocidade, sendo as rodas igualmente
difícies de mover. Uma delas é o nosso moinho rústico e ferrugento do parágrafo anterior, e todo o esforço
da pessoa vai para a geração de calor. Mas a outra roda tem um eixo suave e lubrificado e gera uma
quantidade desprezável de calor. Mas é igualmente difícil de rodar, no entanto, porque está a ser usada
para elevar um grande balde de água de um poço profundo. Como é que balançamos a factura
“comida=calor” neste segundo caso?
Mayer foi forçado a concluir que para que a equação “comida=calor” fizesse sentido, tinha de haver uma
outra equivalência: uma certa quantidade de trabalho mecânico, medido por exemplo pela elevação de um
peso conhecido ao longo de uma dada distância, tinha de contar o mesmo que uma certa quantidade de
calor, medido pelo aumento de temperatura de uma quantidade fixa de água em, digamos, alguns graus.
Em termos modernos, um joule tem de ser equivalente a um certo número de caloria. Mayer foi o primeiro
a falar deste “equivalente mecânico do calor” e em 1842 calculou o número usando resultados
previamente obtidos em França sobre o calor específico dos gases. Os experimentalistas franceses tinham
medido o calor específico do mesmo gás a volume constante (𝐶𝐶𝑉𝑉 ) e a pressão constante (𝐶𝐶𝑃𝑃 ). Encontraram
sempre que 𝐶𝐶𝑃𝑃 era maior que 𝐶𝐶𝑉𝑉 . Mayer interpretou isto com a seguinte experiência conceptual:
considera dois cilindros verticais, fechados no topo por pistões movíveis suportados pela pressão do gás,
contendo a mesma quantidade de gás à mesma temperatura. Agora fornece calor aos dois gases, mantendo
o pistão fixo num deles e deixando-o mover-se no outro. Mede a quantidade de calor necessária para
elevar a temperatura em dez graus, digamos. Descobriu-se que era necessário mais calor para o gás
mantido a pressão constante, aquele cujo pistão era livre de se mover. Mayer afirmou que assim acontecia
porque, nesse caso, parte do calor foi gasto sob a forma de trabalho na elevação do pistão: isto seguia
muito naturalmente o seu pensamento anterior, e as medições francesas permitiram-no obter um valor
numérico para essa equivalência. Mayer compreendeu a sequência: uma reacção química produz calor e
trabalho, trabalho esse que pode posteriormente produzir uma certa quantidade de calor. Isto foi o mesmo
que afirmar a conservação da energia. Infelizmente, Mayer não pertencia à comunidade científica alemã, e
este trabalho revolucionário foi ignorado durante alguns anos.
James Joule
Entretanto, em Manchester, Inglaterra, o centro da revolução industrial, o mesmo problema estava a ser
atacado de um ângulo diferente por James Joule, o filho de um próspero cervejeiro. Joule teve sorte
porque durante a adolescência foi ensinado em casa, juntamente com o seu irmão, por John Dalton, o
químico fundador da teoria atómica. Manchester estava na frente do progresso tecnológico, e uma das
ideias excitantes nos anos 1830 era que talvez as máquinas a vapor movidas a carvão pudessem ser
substituídas por motores eléctricos com baterias. Joule, na casa dos vinte, desafiou-se a si próprio a
melhorar o motor eléctrico até que este fosse competitivo em relação à máquina a vapor. Mas tal não
aconteceu – após anos de esforço, ele concluiu que na melhor das hipóteses seriam precisos cinco quilos
de zinco consumidos numa bateria para realizar o mesmo trabalho que um quilo de carvão. Mas aprendeu
imenso. Descobriu que uma corrente eléctrica num fio produzia calor a uma taxa de 𝐼𝐼 2 𝑅𝑅, conhecida
actualmente por potência de Joule (ou efeito de Joule). A interpretação da teoria calórica era que o fluido
calórico originalmente na bateria estava a ser libertado juntamente com a corrente eléctrica estabelecida
no fio. Contudo, Joule descobriu que o mesmo aquecimento ocorria se a corrente fosse gerada pelo
movimento perto de um magnete permanente. Era difícil imaginar como é que o fluido calórico ia parar ao
fio nessa situação. Joule decidiu que a teoria calórica era suspeita. Ele gerou uma corrente pela aplicação
de uma força conhecida a um dínamo, e estabeleceu que o calor que aparecia no fio era sempre
directamente proporcional ao trabalho da força responsável pelo movimento do dínamo.
Finalmente, ocorreu-lhe que o intermediário eléctrico era desnecessário: o calor podia ser directamente
produzido pela força, se em vez de mover o dínamos, fizesse girar umas pás dentro de água numa lata
isolada. A imagem abaixo mostra a montagem experimental:
As pás giram através de buracos cortados em folhas de latão
estacionárias. Tudo isto está dentro de uma lata isolada,
claro. Deste modo, Joule mediu o equivalente mecânico do
calor, o mesmo número que Mayer deduzira a partir das
experiências com gases francesas.
A recepção de Joule por parte da comunidade científica da
época não foi muito diferente da de Mayer. Também ele era
um provinciano, com um sotaque estranho. Mas teve uma
oportunidade de sorte em 1847, quando apresentou o seu
trabalho numa reunião da Associação Britânica, e William
Thomson estava na audiência. Thomson acabara de passar
um ano em Paris. Estava totalmente familiarizado com o
trabalho de Carnot, e acreditava que a teoria calórica estava
correcta. Mas ele sabia que se Joule produzira realmente
calor mexendo água, a teoria calórica tinha que estar errada
– ele disse que havia “dificuldades insuperáveis” na
reconciliação da duas.
Mas quem foi o primeiro: Mayer ou Joule?
Mayer e Joule, por abordagens inteiramente diferentes, chegaram quase simultaneamente à conclusão de
que calor e trabalho mecânico eram numericamente equivalentes: uma dada quantidade de trabalho podia
ser transformada numa quantidade de calor previsível. Qual dos dois homens merece mais crédito (para
não mencionar outros concorrentes!) tem sido discutido há mais de um século. É geralmente aceite que
Mayer foi o primeiro a falar no conceito de equivalente mecânico do calor (embora seguido de perto por
Joule) enquanto que o Joule foi o primeiro a dar-lhe uma sólida base experimental.
A emergência da conservação de energia
De facto, nos anos 1840, embora muitos ainda acreditassem na teoria calórica, esta estava em
dificuldades. Antes de 1820, quase todos acreditavam, seguindo Newton, que a luz era uma corrente de
partículas. Por volta de 1800, Herschel descobriu, ao fazer a luz do Sol passar por um prisma e analisando
o calor transmitido pelas diferentes cores, que havia calor transmitido para além do vermelho. Isso sugeriu
que esse calor radiante era composto por uma corrente de partículas calóricas, sem dúvida muito parecidas
com a luz. Mas nos anos 1820 estava estabelecido sem qualquer ambiguidade o carácter ondulatório da
luz. Significava isso que o calor também era uma onda? Talvez o fluido calórico fossem oscilações no
éter. As coisas estavam muito confusas. Em 1841, Joule escreveu diplomaticamente: “suponha-se o
espaço entre estes atómos compostos permeado por éter calorífico em estado vibratório ou, por outro lado,
ocupado pelas oscilações dos próprios átomos” (Joule 1963, p.52).
Parecia, no entanto, que as dificuldades na reconciliação da teoria de Carnot com as experiências de Joule
não eram tão insuperáveis quanto Thomson dissera. Em 1850, um professor alemão, Rudolph Clausius,
salientou que a teoria de Carnot ainda estava quase certa: o único ajuste necessário era que havia menos
calor emergindo do fundo do “moinho calórico” do que o que entrava no topo – parte desse calor
transforma-se em energia mecânica, o trabalho que a máquia a vapor realiza. Para máquinas a vapor reais,
o rendimento – a fracção de calor recebido que se transforma em trabalho útil – era tão baixo que era fácil
compreender porque é que a explicação de Carnot fora aceite durante tanto tempo. Pela primeira vez, com
o artigo de Clausius, emergiu uma teoria coerente do calor, e os dias da teoria calórica tinham um fim à
vista.
Livros utilizados na escrita destas notas...
Caneva, K. L.: 1993, Robert Mayer and the Conservation of Energy, Princeton University Press,
Princeton, New Jersey.
Cardwell, D. S. L.: 1989, James Joule: A Biography, Manchester University Press, Manchester and New
York.
Cardwell, D. S. L.: 1971, From Watt to Clausius, Cornell University Press, Ithaca, New York.
Joule, J. P.: 1963, Scientific Papers, Vol. I, Dawsons of Pall Mall, London.
Magie, W. F.: 1935, A Source Book in Physics, McGraw-Hill, New York.
Roller, D.: 1957, ‘The Early Development of the Concepts of Temperature and Heat: The Rise and
Decline of the Caloric Theory’, in J. B. Conant and L. K. Nash (eds.), Harvard Case Histories in
Experimental Science, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1957, 117-215.
Tradução/Adaptação Casa das Ciências 2009
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