O autor HELIO ESPERIDIÃO DA CRUZ nasceu em 11/01/1941, na cidade de
Diamantina, Minas Gerais.
Seus pseudônimos são: Acorienim, Miache Confuso, Achei e MC.
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MEMÓRIAS DE UMA GALINHA
AGRADECIMENTOS
A Deus meu criador por me dar a sutileza de observar esta
espécie de sua criação divina, que serve de alimento para a sua criação
humana.
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MEMÓRIAS DE UMA GALINHA
DEDICATÓRIA
todas as crianças que existem e existirão, creio que muitas delas
só conhecem esta espécie, peladas e embaladas em sacos plásticos, nos
freezer das geladeiras e dos supermercados.
A
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MEMÓRIAS DE UMA GALINHA
APRESENTAÇÃO
Durante onze anos observei estas criaturas em nosso quintal da
casa do campo, onde morávamos na Vila de Nossa Senhora dos Prazeres
de Milho Verde, berço natal da escrava mais famosa do Brasil, situada
na Serra do Espinhaço, nas vertentes do Rio Jequitinhonha, em Minas
Gerais.
Creio que este livro, poderá mostrar a todas as crianças o enorme
carinho, dedicação e preocupação desta espécie na educação de seus
filhotes, que transmitem ensinamentos de sobrevivência, educação e
segurança.
Quando uma delas chocava seus ovos, prolongamento de sua
linhagem e espécie, eu ficava observando o seu comportamento em
relação aos seus pintinhos. Anotava todos os piados e os objetivos de
cada um e os seus significados.
Um dos avisos que mais chamou minha atenção foi o da segurança
quando aquela sombra aparecia no quintal. Era um piado de medo
misturado com pavor. Era neste momento que todos do terreiro se
abaixavam e ficavam paradinhos sem executar nenhum movimento.
Desaparecendo a sombra todos voltavam às suas atividades normais.
No terceiro dia ela pula do ninho, fica tão nervosa que começa a
fazer rodopios próximos ao ninho, querendo que seus pintinhos pulem
para junto dela. Outro fato interessante é que elas não podem deixar
escurecer para procurar abrigo, isto se dá por elas terem os olhos na
lateral da cabeça, o que deve atrapalhar sua visão noturna. A noite é o
melhor horário para se capturar uma galinha ou um galo. Os ovos nos
quais os pintinhos não nascem se deve ao fato de não ter tido a
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participação do galo em sua formação. Espero assim esclarecer algumas
duvidas que as crianças possam ter em relação a essas espécies.
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MEMORIAS DE UMA GALINHA
Hum, que calorzinho gostoso, que lugar será este? Sei que me sinto
bem aqui, isto sim é que é vida boa. Xiii... Que barulho é este? Parece
que está tudo trincando, a casa está caindo, será por causa do meu
crescimento? Tem uns negócios me espetando o que será isto?
Engraçado, tem alguém bicando e comendo essas coisas que estão me
espetando. Olhe só... Esta deve de ser minha protetora, ela está
devorando o meu lar, doce lar temporário. Interessante é que ela está me
oferecendo uns pedacinhos bem pequenininhos da minha casa, qual será
a razão desse procedimento?
Um após outro foram deixando seus lares temporários, meus
irmãos foram aparecendo, a protetora com as mesmas tarefas, triturando
as casas e oferecendo minúsculos pedacinhos a cada um de nós, no total
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éramos catorze. Acho que foi por uns dois dias que ficamos todos
naquele lugar embaixo daquele calorzinho de nossa mãe. Foi então que
compreendi o que ela fazia, ensinava que a casa a qual ocupávamos
deveria ser e estar sempre limpa, para evitar a invasão de intrusos e
predadores. Foi o primeiro ensinamento que ela transmitiu a todos nós.
Na manhã do terceiro dia, assim que clareou mamãe, parecia
irritada, impaciente parecia estar muito preocupada com alguma coisa.
De repente, ela pulou da casa para o chão, começou a cacarejar e a fazer
rodopios bem próximos da casa. Só então entendi a sua segunda lição:
ela nos convidava a pular para o seu lado. Estava na hora de abandonar
aquela casa. Como nasci primeiro, tomei a iniciativa de pular para dar o
exemplo aos outros. Foi um vôo gostoso e gratificante, logo estava junto
de mamãe, sendo o meu primeiro contato com a terra. Meus irmãos aos
poucos foram me imitando, em poucos minutos estávamos todos ao lado
de nossa mãezinha, que ficou mais calma perdendo totalmente sua
irritação. Mamãe demonstrava estar feliz, batia as asas, ficava passando
os pés para trás riscando a terra, catando uns bichinhos que escavava e
nos oferecendo. Era a sua terceira lição de ensinamento. Era como se
quisesse dizer: “vocês têm de procurar e lutar por sua alimentação”.
Às vezes ela ciscava com tal vigor, que jogava bolos enormes de
terra sobre nós, muita das vezes algum caia e ficava chorando piu, piu,
piu, piu, piu e ela sempre vinha em socorro quando isto acontecia com
qualquer um de nós. Passamos a ser muito curiosos e ficávamos
próximos aos seus pés à espera do petisco que ela oferecia em ordem
decrescente de nascimento, ou seja, oferecia primeiro aos últimos a
nascerem, por eles estarem mais fragilizados. Quando um de nós se
afastava do grupo, ela gritava piando de forma diferente e quem estava
longe logo voltava para o seu lado, tinha de manter todos juntos e
unidos. Assim íamos aprendendo todos os ensinamentos que ela nos
transmitia.
Com o sol alto e escaldante, ela nos levava para embaixo de uma
árvore sombrosa que havia nos fundos do quintal. Abaixava e todos nós
entrávamos embaixo dela, dormíamos por algum tempo, retornando às
atividades. Eu gostava era de subir em suas costas e ali tirar um
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cochilinho. Logo que retornávamos às atividades, começava os
ensinamentos. Olha só que semelhante grande está chegando, xiii
mamãe ficou brava e partiu pra cima dela botando-a pra correr. É bem
parecida com mamãe, deve de ser parenta dela, ela só está nos
protegendo, quando chegam perto da gente elas costumam bicar nossa
cabeça colocando em risco nossa existência. Mesmo sendo parentes,
mamãe não as deixa se aproximarem. Mais uma lição: não devemos
confiar em ninguém, mas respeitar o território de cada um.
Xiii lá vem outro monstro, este é diferente, tem um troço grande
e vermelho na cabeça. Chegou bem perto de nós. Mamãe não fez nada,
porque será? Deixa pra lá, sou muito nova para entender estes
acontecimentos. Acredito ser mais uma lição que mamãe tenta nos
passar.
O sol começava a desaparecer quando mamãe foi para um cantinho
próximo de um tronco de uma árvore que estava carregada de umas
frutinhas redondinhas e pretinhas. Observei que todos do terreiro se
dirigiam para um só local e começaram a subir numas varas que estavam
na horizontal neste local, estavam todos calmos e um por um ia subindo.
Mamãe começou a chamar um por um de nós para junto dela, com suas
asas ela nos puxava para baixo de seu corpo. Sentimos que naquele lugar
era bom de ficar, era quentinho e muito aconchegante, deste jeito
passamos o nosso primeiro dia e noite sobre a terra.
Assim que começou a clarear o nosso segundo dia na terra e o
quarto dia de vida, mamãe levantou e iniciou os seus ensinamentos.
Estava observando nossos outros semelhantes, quando de repente
mamãe deu um piado diferente, e os outros também, corremos para junto
dela, só vi que todos se abaixaram e ficamos imóveis. Foi quando vi
uma enorme sombra passar sobre nós, desaparecendo em pouco tempo,
foi quando todos se levantaram voltando às suas atividades rotineiras.
Mamãe cacarejava e explicava a todos, que aquela grande sombra era de
um gavião, pertencia à família das aves, era perigoso e malvado para a
nossa linhagem. Sempre que ele aparece temos de abaixar e ficar
paradinhos, qualquer coisa que movimente ele desce e pega com suas
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garras afiadas, rasgando as carnes para saciar sua fome. Neste episódio
foi mais uma lição que aprendemos.
O tempo mudou, o sol sumiu. De repente escureceu, começaram
a cair umas gotas frias, mamãe ficou nervosa, começou a chamar todos
para junto dela, correu para debaixo de uma árvore. Com um piado
diferente nos chamava para nos esconder embaixo dela. Explicava que
aquelas gotas era a chuva que estava vindo, deveríamos nos proteger, se
fosse temporal seria muito perigoso para nós que ainda éramos crianças.
Mais um aprendizado era repassado. Tinha três de meus irmãos que
eram um tanto desobedientes, eles não atendiam de imediato aos
chamados de mamãe. Eram os últimos a chegar após qualquer chamado.
Mamãe aplicava corretivos neles, não adiantava e eles continuavam
rebeldes. Creio que isto acontece em todas as famílias, nem sempre os
dedos são iguais.
Tanto assim que num certo dia, mamãe e toda nossa descendência
deram o piado de perigo, todos abaixaram ficando parados e quietinhos.
Como sempre meus irmãos rebeldes não obedeceram ao aviso de perigo.
Não deu outra, o que vi, foi aterrorizante, vi quando aquela sombra
enorme baixou no terreiro, pegou minha irmã com suas garras afiadas,
subindo com ela para as alturas. Ainda pudemos vê-la se debatendo e
pedindo socorro, não quero nem imaginar o que aconteceu com ela.
Mamãe desalentada nos explicava: “ele a levara para uma árvore bem
alta, estrangulara seu pescoço, depois rasgara suas partes e as comera
com o sangue escorrendo e quente, saciando sua fome”.
Preste bem atenção, apesar de ser perigoso, o gavião só mata sua
própria espécie para saciar sua fome e manter a sua sobrevivência.
Portanto, se ele não tiver a necessidade de suplemento, torna-se um ser
fora de perigo. Neste estágio de fome saciada, ele só fica plainando no ar
quente curtindo a natureza e observando futuras presas. Quando ele
começa a dar vôos rasantes em direção ao solo, procurem se manter
quietos e parados, deste modo o enganamos pois ele só ataca vidas em
movimento. Mais uma lição de vida nos foi repassada. Mas, os dois
manos não absorviam os ensinamentos. Eles pareciam que tinham os
ouvidos tampados.
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Certo dia virou noite de tanto que escureceu, até a mamãe fez
confusão, chamando-nos para dormir, depois mudou o seu chamado para
um alerta de perigo e muita preocupação. Era um temporal que estava
chegando. Logo começaram a cair umas gotas grossas, a seguir veio o
temporal, parecia que o mundo estava acabando, era um verdadeiro
dilúvio. Água que não acabava mais, inclusive acompanhada de pedras
branquinhas e geladíssimas. Mamãe dizia: “isto é saraiva, se bater na
cabeça é morte certa”. Foi quando vimos passar nossos dois irmãos
rebeldes levados por aquela correnteza forte. Um deles parecia já estar
desacordado, não se debatia, enquanto o outro se debatia muito tentando
se livrar da correnteza e sair daquela situação. Mamãe ficou desesperada
em decidir se nos protegia ou se salvava os dois que estavam se
perdendo na correnteza. Ela ficou com a gente e dizia: “quem não houve
chamado, lamentamos, coitado”. Nunca mais vi meus dois irmãos
rebeldes. Éramos catorze, como três se foram, restaram onze irmãos
obedientes e nos tornamos uma família alegre e feliz.
Assim levávamos nossas vidas, mamãe sempre passando lições
de aprendizado para todos nós. Comecei a praticar as lições. Foi quando
vi aquele grandalhão com aquela crista vermelha na cabeça só que o
pescoço deste era pelado. Chegou perto de mamãe e começou a rodar em
sua volta, emitindo uns piados diferentes... Kroou... Kroto... Kroto,
mamãe ficou toda assanhada. O grandalhão oferecia a ela alguma coisa
que ele tinha achado, não sei o que foi. Logo a seguir mamãe se abaixou
e ele subiu em suas costas, foi por pouco tempo. Separados os dois
começaram a bater suas asas freneticamente, ele danou a cantar
kokorioco... kokorioco... kokorioco por um bom tempo. Mamãe parecia
muito feliz, era como se estivesse gozando a vida. Não entendi nada,
muito tempo depois foi que absorvi aquela lição.
Mais uma lição de vida, sol forte calor escaldante, mamãe
começou a cavar um buraco, deixando a terra solta, deitou no buraco e
começou a jogar terra com as asas por todo o seu corpo. Explicando que
era para refrescar e espantar os piolhos, esclareceu também que quando
estiver ameaçando chuva, deveríamos jogar óleo em nossas penas, óleo
este retirado do nosso organismo. “Vocês produzirão este óleo quando
estiverem adultas. Este óleo nas penas faz com que a chuva bata nas
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penas e escorra, evitando encharcar o seu corpo. A terra também ajudará
a refrescar o calor da menopausa, quando chegar o tempo de vocês ou
quando estiverem na quarentena. Este período é quando você para de
botar ovo, continuação de nossa descendência, entrando no choco,
ficando aperreada... só entenderão quando chegar à época”. Esta ultima
lição não captei bem, ou seja, não ficou bem esclarecida, mamãe parecia
não gostar de falar no assunto.
Nova lição: subir em poleiros. Mamãe parou de chamar para
dormir embaixo dela, mudou o chamado e saía andando para o local
onde todos dormiam. Tinha alguns que preferiam dormir fora nas
árvores, estes sofriam mais com a chuva e o vento. Mamãe dizia:
“prestem atenção, não deixe escurecer demais, quando o sol começar a
se por dirijam-se para este local, que será a casa de vocês a partir de
hoje. Procurem os seus lugares preferidos que marcarem a partir de hoje,
a concorrência atualmente é grande. Quando vocês marcarem seus
lugares, defenda-o com unhas e bico para impor sua superioridade”.
Penúltima lição dizia mamãe: “não confiem em ninguém,
defendam seu dia a dia sem grandes pretensões. De uma maneira ou de
outra, um dia vocês irão parar no estômago de um ser que se diz
humano. É lógico que existem as exceções. São aquelas pessoas boas
que nos deixam vivas no terreiro até que nossa hora chegue. Ou então
irás viajar por longas horas nos engradados a bordo dos caminhões para
serem vendidos e consumidos como alimento”. Como mamãe sabia de
tudo isto? Ou foi observando o dia a dia ou já nascemos com este dom.
Última lição: passados alguns dias mamãe, começou a agir
estranhamente, não queria ficar mais junto a nós nem deixava que
ficássemos perto dela, acabou todo aquele cuidado e carinho que ela
tinha por nós. Quando nos aproximávamos ela nos bicava e nos
escorraçava de perto. Ela estava nos transmitindo a derradeira lição. Foi
então que ela nos reuniu e começou a falar. Vocês já estão com idade de
assumirem suas identidades e responsabilidades, portanto está na hora de
cada um de vocês se virar sozinho, buscando suas sobrevivências. Tanto
eu como meus irmãos e irmãs entendemos que cada um deveria se virar
a partir daquela última lição.
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Como já estávamos acostumados a dormir juntos à tardinha assim
que o sol começou a se por, fomos os onze para o dormitório de
costume, mamãe dormiu ao nosso lado, era como se observasse o nosso
comportamento. Foi só por esta noite que ela ficou ao nosso lado, o
espaço que ocupávamos ficou pequeno, apesar de estarmos acostumados
ali. Só que já estávamos bem crescidinhos, já não me sentia bem em
dormir embolado. Lembrei de uma das lições repassada por mamãe:
dormir no poleiro. Como nasci primeiro, meus irmãos sempre me
seguiam em minhas tomadas de decisões, passei a ser a líder da família.
Fui à luta com meus irmãos me seguindo. Lembrei-me que não deveria
deixar escurecer, foi o que fiz assim que o sol começou a se por, fui em
direção onde estavam os poleiros, com meus irmãos me seguindo. Subi
no poleiro, escolhi um lugar, marquei meu território, tive que brigar por
este espaço, tinha outros querendo o mesmo espaço, mas predominou
minha tenacidade, meus irmãos procederam da mesma forma, ficamos
um ao lado do outro.
Com o passar do tempo cada um correu atrás de seus objetivos e
metas, uns escolheram dormir nas árvores. Os machos engordavam
rapidamente, eram muitos gulosos, conheciam logo a faca no pescoço,
servindo de alimento, virando excrementos no dia seguinte. Cada um
levava a vida do melhor jeito que planejou.
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Assim são os poleiros onde dormíamos todas as noites. Ensinamentos da
nona lição.
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Esta é a nossa família, mamãe e seus filhos, alguns estão dispersos...
Esta amarelinha sou eu.
Relato os ensinamentos e lições transmitidas por mamãe a todos
nós.
Primeira: bicar aqueles lares doces lares para libertar sua criação
do casulo.
Segunda: triturar os restos de cada lar e servi-los por no máximo
três dias. Os que não trincavam deveriam ser abandonados. Manter a
casa sempre limpa, para evitar os predadores.
Terceira: no terceiro dia abandonar a casa pulando para a terra,
convocando os seus filhos para fazer o mesmo. Os quais deveriam ser
chamados deste jeito, kra...kra...kra..., encorajando-os a saltarem para o
chão abandonado a sua primeira casa.
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Quarta: Gal...Karan... Gal... Karan... Gal... Karan... Pastar, pegar
o alimento que está sendo oferecido.
Quinta: Khan... Khan... Khan... Conferindo a família.
Sexta: kro... kro... kro... Ajuntando a turma na hora do
recolhimento.
Sétima: piuuuuuuuuuuuuu... Perigo se aproximando, abaixar e
ficar bem paradinho para confundir o inimigo.
Oitava:
território.
ka... ka... ka... Estranho se aproximando do nosso
Nona: boootoovo... boootoovo... boootoovo... Anunciando sua
obra prima de concepção e continuação de nossa espécie.
Tinha uns cantos que não eram próprios das fêmeas, só os
machos conseguiam cantar é assim: kokorioko... kokorioko...
kokorioko... Cantavam em uma determinada seqüência, começavam
noite alta, depois em espaço de determinado tempo, até o dia clarear,
continuavam cantando espaçadamente durante o dia, cantava o pescoço
pelado, momentos depois o carijó, o chinês, o índio, o pedrês e o
garnisé, assim que um parava o outro começava fazendo isto
sucessivamente. Não tinha este dom, curtia aquele som tão singelo e
característicos de nossa espécie.
Décima lição: Kro... koro... kro... koro...kro...koro... Cavar buraco
deixando a terra solta. Deitar no buraco e jogar terra com as asas em
todo corpo, virando de um lado para o outro para se refrescar e acabar
com os piolhos.
Décima primeira: kre... kre... kre... Procurar o local para dormir,
um cantinho aconchegante no galinheiro, no poleiro feito pelo nosso
dono ou subir numa árvore escolhida. Assim que o sol começar a se por,
vá para os lugares escolhidos, não deixe escurecer, caso contrário ficarão
perdidas.
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Décima segunda e última lição: quando a sua criação já estiver
grandinha e não der para todos dormirem embaixo de você, durante o
dia, se afaste deles e quando se aproximarem comece a bicá-los
afastando-os para que cada um adquira confiança e vá em busca de sua
sobrevivência encontrando os seus objetivos. Ao recolher ensine-os
como usar o poleiro e marcar os seus territórios lutando em defesa de
seus espaços.
Um fato curioso que ocorria em nosso terreiro é que intruso não
tinha vez. Quando aquele com o rabo virado para as costas e com um
ferrão na ponta, ou aquelas coisas rastejantes compridas e grossas
entravam no terreiro, todos os adultos do terreiro faziam uma roda, e
cada um em seqüência ia e dava uma bicada e voltava para seu lugar.
Assim acontecia sucessivamente até matarem o intruso, depois faziam
picadinho dele e cada um comia um pedacinho, sobrando somente a
carcaça ou o couro os quais a terra dava fim com o passar do tempo.
Nenhum intruso se criava em nosso terreiro, tinha uns intrusos pequenos
e marrons que dançavam assim que pisavam no terreiro, com exceção da
enorme sombra, mas esta não parava no terreiro, voava baixo pegava sua
presa e ia embora.
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Exemplo da quarta lição de ensinamento.
Assim fui levando minha vida, sempre praticando os
ensinamentos de mamãe, que vez por outra, chegava perguntando como
estávamos levando nossas vidas, batíamos um bom papo, logo a seguir
se afastava para os seus afazeres.
Certo dia assim que fiquei adulta, comecei a me sentir esquisita,
tinha alguma coisa me perturbando e que me incomodava muito. Sentia
uma dor estranha nas minhas partes traseiras, senti a necessidade de
procurar um lugar para ficar quietinha, mamãe não tinha me orientado
sobre isto.
Agora me lembro, este incômodo começou três dias, após aquele
macho pedrez de pescoço pelado subir sobre mim. Enfiou aquele troço
em mim, que convenhamos até gostei, senti-me bem e feliz da vida,
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danei a bater asas, foi quando recordei de mamãe naquela cena que não
entendi o seu comportamento após aquele grandalhão subir nela. Foi
uma coisa boa estava feliz e precisava demonstrar ao pedrez que gostei e
queria mais.
A vontade de ficar sozinha foi aumentando. Escolhi um balaio
que estava pendurado, entrei nele e fiquei quietinha como se fosse
dormir. Fiquei ali deitadinha por um bom tempo, a dor começou apertar,
comecei a fazer força e sentia contrações, foi então que após tanto
sacrifício e força, saiu aquela coisa verde e de casca dura, que meu dono
chamava de ovo, o qual me dava o direito de preservar minha linhagem
e construir minha família.
Assim foi por dezessete vezes que coloquei aquela coisa grande
pelo meu traseiro. Vi aquelas coisas todas juntinhas no balaio, fiquei
aperreada e impaciente, me deu vontade de deitar sobre eles. Assim fiz
por vinte e um dias, de três em três dias, eu saia para comer, beber água
e espantar os piolhos, cavando um buraco deitando nele e espalhando
terra com as asas no corpo, do jeito que aprendi com mamãe na sua
décima lição. Logo voltava correndo para cobri-los novamente.
Após o vigésimo primeiro dia, os ovos começaram a trincar,
passei a escutar uns piu... piu... piu... Então comecei a bicar aquelas
cascas, libertando um por um de meus filhinhos de seus lares
temporários. Lembrei-me da primeira lição ensinada por mamãe e a
executei com muito capricho e carinho.
No total nasceram quinze filhos, que foram minha primeira
linhagem de descendentes. Dois ovos não trincaram, escutei meu dono
dizer, estes dois gorou. Limpei a casa, ficando nela por mais dois dias,
esperei os dois ovos trincarem, como não aconteceu, no clarear do
terceiro dia, pulei para o terreiro chamando meus filhos a me
acompanharem. Juntei toda minha prole começando os ensinamentos
que havia aprendido. Ensinei a todos as doze lições, e foram várias as
proles que criei com muito gosto.
Deste jeito o tempo foi passando, nossos donos não tinham o
costume de nos matar para comer, eles nos criavam só para curtir e
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retirar aprendizados da natureza, tendo os mesmos muitos gastos com
nossa criação comprando milho, fubá e ração de postura, só para
botarmos muito para escutarem, botooovoo...botooovo...botooovo... Que
eram tantos que eles davam para as pessoas menos favorecidas.
Tinha um galão vermelho, pelo qual eu era gamada, só que ele
era muito pesado e desajeitado. Adorava quando ele subia em mim, com
a minha idade já bem avançada, minhas juntas foram ficando debilitada,
principalmente minha perna direita apresentou um problema na junta
superior, entrando no processo de atrofiar, creio ser esta tal de bursite
que ouvi falar, causando-me uma dor horrível e um grande transtorno no
meu caminhar. Vivia me arrastando, assim foi até o resto dos meus dias
de vida neste planeta.
Meu dono por várias vezes me pegava com carinho e passava um
remédio de uns matos que ele mantinha numa garrafa com álcool. Digo
meu dono, na verdade ninguém é dono de ninguém, somos todos
indivíduos, cada um com suas características próprias, com todos os
problemas que a cada um está determinado a vivenciar durante o seu
trânsito terreno. Chamo-o de dono, é ele quem arca com as despesas
para o meu sustento e de meus semelhantes. Ele sempre foi uma pessoa
boa, dava para perceber o quanto ele se condoia com o meu estado de
sofrimento.
Assim passava os dias e os meses, minha perna ficando a cada dia
mais atrofiada dificultando minha vida, quando meu galão vinha me
procurar, apesar da gostar, saia me arrastando fugindo dele, mas ele
sempre me alcançava e subia em mim, não era mais prazeroso conforme
acontecia nos rituais anteriores, nos quais corríamos o mais que
podíamos em volta do terreiro, até chegar ao ato final que era o
acasalamento, isto sim era prazeroso.
Agora sinto muita dor, muitas das vezes o meu dono o enxotava
quando estava por perto me socorrendo com carinho. Não sei avaliar por
quanto tempo vivi nesta situação. Não adianta todos nós temos que
pagar pelo que fizemos nesta nossa passagem por aqui. Eu por exemplo,
adorei quando perdi meus três irmãos, achei bem feito eles eram chatos
e desobedientes e vivíamos brigando.
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Lembram que minha irmã foi levada por aquela sombra horrível
com cheiro de morte e carnificina, os outros dois levados por aquela
correnteza com grande volume de água que tanta falta nos fazem e que
no futuro será ponto de disputa por estes que se dizem humanos?
Quantas bicadas dei nas cabeças dos filhos dos meus semelhantes, creio
ser por isto que estou pagando.
Somos mais coerentes que os humanos, pensamos, sofremos, mas
buscamos soluções para nossos problemas quando esses existem. No
entanto, somos ignorados. Estamos ativos no dia a dia, contribuindo com
o propósito de nosso criador, que disse: “ai daquele que tem dois
ouvidos, mas não houve que tem uma só boca, mas fala dobrada e
demais”.
Fui uma galinha, mas fui feliz, fiz de tudo o que tinha vontade de
fazer. Cumpri com todos os ensinamentos e minhas obrigações, paguei
por tudo de ruim que aqui pratiquei e estou com minha consciência livre
dos meus pecados.
Vou tranqüila, minha passagem por aqui foi legal. Segundo os
registros de minha memória, fui eutanasiada no dia dois de setembro do
ano de dois mil e seis DC. Por sugestão de HEC e sacrificada por JGC.
Ao me abrirem para o preparo de saciar o apetite e gosto de quem iria
me devorar, encontrou um ovo, o último de minha esplêndida criação,
pronto para sair no dia seguinte.
AFC começou a passar mal com tonteira se recuperando logo a
seguir, arrependida em ter participado do meu extermínio. Antes ele
matou minha prima que estava com o oveiro arriado e como ela estava
muito estragada, optaram por mim. Meus donos não me comeram,
mandarão o JGC levar para sua casa.
Conforme a lei da natureza, em que todos estamos de passagem neste
planeta, por tempo determinado, perdoo o meu executor e os meus
donos, crêem que o HEC só quis aliviar os meus sofrimentos. Contudo,
não que eu deseje, mas o dia deles também chegará.
Miache Confuso - 22/10/2006
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